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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Educação

Joana Loureiro Freire

Produzir comunicação na cibercultura: coisa de criança!

Rio de Janeiro
2016
Joana Loureiro Freire

Produzir comunicação na cibercultura: coisa de criança!

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa:
Infância, Juventude e Educação

Orientadora: Professora Doutora Rita Marisa Ribes Pereira

Rio de Janeiro
2016
Joana Loureiro Freire

Produzir comunicação na cibercultura: coisa de criança!

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa:
Infância, Juventude e Educação

Aprovada em 15 de dezembro de 2016

Banca examinadora:

________________________________________
Profª Drª Rita Marisa Ribes Pereira (Orientadora)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

________________________________________
Profª Drª Edméa Oliveira dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

________________________________________
Profª Drª Maria Luiza Oswald
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

________________________________________
Profª Drª Adriana Hoffmann Fernandes
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

________________________________________
Profa Dra Fabiana de Amorim Marcello
Universidade do Estado do Rio Grande do Sul

Rio de Janeiro
2016
Dedicatória

Helena, meu doce de coco, amor da minha vida, você que nasceu no ano em que
ingressei nessa jornada de doutorado, a forma como você chegou a esse mundo mexeu
tanto comigo que cheguei a pensar ser incapaz de produzir uma tese. Foi essa
experiência, que marcou o dia de seu nascimento, que o fez ser o dia mais ambíguo da
minha vida. Um dia em que tristeza (por ter sido forçada a fazer uma cesárea sem nem
entrar em trabalho de parto) e alegria (por você ter você em meus braços, saudável e
linda) foram vividas intensamente, que me transformou por completo pela primeira vez.
Tornar-me sua mãe, acolher, cuidar, amamentar, foram momentos dos mais
maravilhosos que já vivi. Agradeço imensamente por tudo o que vivemos até agora e
por tudo o que sei que ainda viveremos, agradeço por toda a sua doçura e por todo amor
e carinho que você distribui para todos nós.
Clarice, minha delicinha de bebê, quando eu acreditava que não podia amar tanto um
ser, quando estava começando a me entender como mãe, ganhando a segurança e toda a
certeza de que o amor que temos pelos filhos é tão grande que chega a doer, nesse
momento da minha vida, você chegou e mostrou que esse amor não se divide, ele se
multiplica. Chegou chegando, como dizem por aí, sem pedir licença, causando. O bebê
que foi feito sem querer querendo, sem planejamento, o exame positivo que veio com
muita surpresa, mas com muita vontade de aumentarmos a família, com muito desejo de
termos mais um filho. E quando eu achava que não poderia mais me transformar, que já
era mãe, que não haveria mais surpresas pelo caminho, a sua chegada a esse mundo, à
nossa família, mostrou-me o contrário. Obrigada, Lalice, Claricinha, minha
gorduchinha, por toda essa alegria que você trouxe à nossa família.
Minhas filhas, Helena e Clarice, dedico esta tese a vocês, pois são vocês que me
mostram, todos os dias, que eu tenho muito mais força do que imagino. Dizer que as
amo não é o suficiente, mas na falta de uma palavra que dê conta de todo o amor que
sinto por vocês, fico com essa frase: “Amo vocês até a Lua, ida e volta”.
Agradecimentos

É preciso que eu comece agradecendo uma pessoa que teve todos os motivos
para não querer me ver nem pintada de ouro, mas que sempre esteve pronta para
acolher: , por muitas vezes eu pensei “Acho que Ritinha vai me matar e
depois me mandar catar coquinho na estrada”. (Exatamente nessa ordem!). Muito
obrigada por entender todas as coisas da vida (duas gestações, duas crianças para cuidar,
volta ao trabalho) que foram acontecendo ao longo desses quase quatro anos. Muito
obrigada por confiar e acreditar que eu conseguiria dar conta do recado. A sua confiança
em mim, seu apoio, a sua orientação maravilhosa fizeram com que eu conseguisse
terminar esta tese. Depois de quase seis anos sendo orientada por você, posso dizer com
toda certeza: “Vou morrer de saudades!”.
Outra pessoa que está ao meu lado há muitos anos, já são 12 anos!, e que sempre
esteve pronto para segurar todas as barras durante os meus estudos (já passamos pela
minha graduação, especialização, mestrado e agora o doutorado): segurou a onda da
grana, do tempo, das minhas ausências, das minhas angustias, das minhas irritações e
ansiedades, segurou a onda com as meninas; Paulinho, meu , você é o
companheiro da vida, está sempre pronto para caminhar junto, como eu já escrevi nos
agradecimentos da minha dissertação: espero que o nosso amor continue para sempre
sendo “eterno enquanto dure”. Te amo muito, meu primeiro amor da vida.
, mãe e pai, muito obrigada pela ajuda com as meninas, pelos
dias de folga para escrever (aquele sábado na pousada foi estratégico para a minha
escrita!), pelos momentos de descanso na casa de vocês. Foram fundamentais para que
essa tese chegasse a um ponto final. Tomaz, maninho, , saudades de conviver
mais com você! Assim que der vou te visitar na Bahia!
Ana Carolina, Carol, , obrigada por ser essa amiga maravilhosa e mais
ainda por ser uma madrinha perfeita para Helena. Sempre disposta a ajudar, a me dar
um tempo sem filhas, e principalmente, por pedir para passear com Helena. Obrigada
por amar tanto a minha filha e por deixa-la amar muito você, obrigada por fazer Helena
uma menina ainda mais feliz! Ah, não posso deixar de agradecer a você e ao Dri por
terem me cedido um dia inteiro de concentração na casa de vocês.
, a vida acadêmica e a maternidade nos uniram e rapidamente, as
afinidades mil nos tornaram ainda mais próximas. Em pouco tempo de convivência eu
percebi que você é uma daquelas pessoas que a gente não quer mais perder de vista.
Obrigada por ter aceitado ser madrinha da Clarice e por fazê-lo com tanto carinho e
dedicação.
À banca: - obrigada pelas considerações e leitura generosa na
qualificação; mais uma vez obrigada pelas
gentis palavras na banca de qualificação. Ainda bem que conseguimos uma verba para
você vir para a banca final, pois não poder contar com a sua leitura nessa última fase do
doutorado estava me deixando muito triste; – muito feliz por ter
você lendo um trabalho meu novamente; – que bom que
terei o prazer de ter na minha banca, você sempre arrasa; –
adorei dialogar com sua tese, obrigada por ter aceitado o meu convite para a banca.
Tenho certeza que a contribuição de cada um de vocês será fundamental para esta tese.
Ao : obrigada por tudo e desculpem pela ausência. Gostaria de ter lido
mais o trabalho de cada um de vocês, gostaria de ter papeado mais, tomado mais chopp,
mais café, convivido mais com o grupo nesses quase quatro anos. Obrigada, Carol,
João, Ivana, Nélia, Núbia, Fernanda, Eunice, Tayane, Íza, Cris, Juliana, Cecília!
E por último, mas muito importante, não posso deixar de agradecer às crianças:
e , meus primos que eu amo muito, obrigada por estarem sempre tão
disponíveis e empolgados com a minha pesquisa; , muito obrigada por ser
essa menina gentil e sempre disposta a me explicar tuuuudo; , obrigada por
sua participação no começo da pesquisa; , fico muito orgulhosa de ter sido sua
professora particular e perceber como você se tornou esse menino gentil e um
desenhista de primeira. A todos vocês: muito obrigada por me ensinarem tanto nesses
quase quatro anos!
No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha
imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e
desver.
Manoel de Barros
RESUMO

FREIRE, Joana L. Produzir comunicação na cibercultura: coisa de criança! Rio de


Janeiro, 2016. Tese de Doutorado em Educação – Centro de Educação e Humanidades -
Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2016.

Esta tese tem por principal objetivo investigar as produções infantis na internet,
buscando focar as possibilidades de autoria das crianças na cibercultura, seja através de
blogs, grupos da rede social Facebook, vídeos no Youtube, perfis como produtoras de
conteúdo digital e coautoras de informação e conhecimento. Contextualizando a
pesquisa, aponto a chegada até o tema e dialogo com conceitos de infância, cibercultura,
criação e autoria, e também com dados oficiais de pesquisas que ajudam a mapear os
usos da internet pelas crianças no contexto brasileiro. Para apresentar as crianças e suas
formas de autoria na web 2.0, foi preciso inovar na metodologia de pesquisa e passar a
seguir online meus interlocutores em suas redes na cibercultura. Da pesquisa de campo,
foi possível perceber, dentre outras coisas, que a fluidez característica da cibercultura
também se destacava nas formas de uso de meus interlocutores: as crianças criavam
perfis em diversas redes sociais a medida em que surgia uma novidade. Por isso, a
metodologia de pesquisa foi baseada em seguir as crianças nos perscursos que
construíam online: o objetivo era acompanha-las onde estivessem, independente da
interface ou do software social utilizado. Dentre as conclusões, destaca-se a que nos
mostra a possibilidade de horizontalidade permitida na cibercultura pelas crianças em
relação aos adultos. Com características de uma pesquisa longitudinal, foi possível
observar as crianças ao longo de quase quatro anos, observando seu desenvolvimento e
diferenças que podemos perceber em suas relações com e na cibercultura ao longo desse
período.

Palavras-chave: Infância Contemporânea. Cibercultura. Web 2.0. Autoria Infantil.


ABSTRACT

FREIRE, Joana L. Communication & media production in cyberculture: a childrens


matter! PhD Thesis in Education - Centro de Educação e Humanidades - Faculdade de
Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

This PhD thesis aims to investigate childrens production in the internet focusing on their
possibilities of authorship in cyberculture looking at childrens blogs, groups on
Facebook, Youtube vídeos, their profiles as digital media producers and co-authors of
information and knowledge. In this research I presented the way I arrived at the theme
and the dialogue with concepts such as childhood, cyberculture, creation and arthorship,
as well as official research data that help maping childrens uses of internet in Brazil. In
order to introduce the children and their forms of authorship in web 2.0 a new research
methodology was needed: I became one of the childrens followers in social networks.
From the research, among other aspects, I could notice cyberculture’s fluidity standing
out on the forms of internet use among the children in my research: they would create
profiles in several social networks as there would constantly appear new ones. And that
is why research methodology was based on following children on online paths: the point
was to follow them whereever they woulb be, no matter the interface or software
inicially used. Among the conclusions the highligh is the possibility of a horizontal
relation between children and adults that cyberculture enables. Being a long research,
during this work it was possible to observe the children and their development during
four years togheter with the diferences and relations in and with cyberculture itself.

Keywords: Contemporary Childhood; Web 2.0; Childrens Authorship.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Motivos para ir à escola todos os dias 17

Imagem 2 Meme gorduchinha 17

Imagem 3 Gráfico de atividades realizadas na internet 26

Imagem 4 Gráfico da proporção de crianças/adolescentes por atividade 27

Imagem 5 Gráfico da proporção de crianças/adolescentes por equipamento 28

Imagem 6 Proporção de crianças/adolescentes por equipamento 29

Imagem 7 Primeira parte post Isadora “25 coisas sobre mim”. 69

Imagem 8 Segunda parte post Isadora “25 coisas sobre mim” 70

Imagem 9 Página inicial perfil do João no Instagram em 12/2014. 92

Imagem 10 Página inicial perfil do João no Instagram em 08/2016 92

Imagem 11 Perfil do João no Facebook 93

Imagem 12 Perfil de Manuela no Blogger 94

Imagem 13 Perfil Manuela no Instagram em 12/2014 96

Imagem 14 Perfil Manuela no Instagram em 01/2015 96

Imagem 15 Perfil Manuela no Instagram em 03/08/2016 96

Imagem 16 Perfil Manuela no Instagram em 30/08/2016 96

Imagem 17 Perfil DixxManut no Instagram 97

Imagem 18 “Sobre mim” blog de Isadora 99

Imagem 19 Quem sou eu blog Isadora em 07/2014 100

Imagem 20 Perfil blog Isadora em 09/2016 100

Imagem 21 “Sobre” na página do blog de Isadora no Facebook 101

Imagem 22 Perfil Instagram Isadora em 07/2014 102


Imagem 23 Perfil Instagram Isadora em 03/2015 102

Imagem 24 Perfil Instagram Isadora em 03/2016 102

Imagem 25 Perfil Instagram Isadora em 08/2016 103

Imagem 26 Perfil de Isadora no Youtube 104

Imagem 27 Perfil de Isadora no Pinterest 09/2016 104

Imagem 28 Perfil de Isadora no Facebook 08/2016 104

Imagem 29 “Sobre” na página do blog de Isabela no Facebook 105

Imagem 30 “Sobre mim” blog de Isabela 106

Imagem 31 Perfil de Isabela no Facebook em 08/2016 106

Imagem 32 Perfil Instagram Isabela em 07/2014 107

Imagem 33 Perfil Instagram Isabela em 12/2014 107

Imagem 34 Perfil Instagram Isabela em 03/2015 108

Imagem 35 Perfil Instagram Isabela em 08/2016 108

Imagem 36 “Sobre” Caio em seu blog 109

Imagem 37 Ausência de posts 112

Imagem 38 Pedido de desculpas 114

Imagem 39 Post de Manuela: eu não ideias para postar 115

Imagem 40 Linha evolutiva 2001 a 2010 117

Imagem 41 Legenda da foto do Instagram de Manuela 122

Imagem 42 Isabela sem ideias com resposta de uma leitora 126

Imagem 43 Primeiro post de Manuela 128

Imagem 44 Post de João no Dona Feijão 130

Imagem 45 Página inicial canal Youtube João. 130

Imagem 46 Post de Manuela “Antes e depois” 131


Imagem 47 Afiliações e Parcerias 133

Imagem 48 Aparições do blog Gosto sem culpa em jornais 138

Imagem 49 Blog Gosto sem culpa em livro didático 139

Imagem 50 Post Isadora sobre beleza 143

Imagem 51 Post Manuela com brincadeira. Dezembro de 2014. 144

Imagem 52 Manuela ensinando a fazer um penteado 144

Imagem 53 Manuela em passeio com as amigas 144

Imagem 54 Primeiro post Caio 146

Imagem 55 Canal do Youtube Caio 146


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................. 13

QUANDO O FIM É UM NOVO COMEÇO................................................... 13


1 CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA: UM PRIMEIRO
LEVANTAMENTO........................................................................................... 16
1.1 Dries Planet................................................................................................... 16

1.2 Coisas da Sinistra......................................................................................... 18

1.3 Monster, Curiosidades, yoshis.................................................................... 19

1.4 My life, my place, my world........................................................................ 20

1.5 Videolog do Gutinho.................................................................................... 21

2 INFÂNCIA E CIBERCULTURA.................................................................. 23

2.1 Infância, cibercultura e as TICS................................................................. 23

2.1.1 TIC Crianças 2009...................................................................................... 24

2.1.2 TIC crianças 2010....................................................................................... 24

2.1.3 TIC KIDS ONLINE BRASIL 2012............................................................ 25

2.1.4 TIC Domicílios 2013................................................................................... 26

2.1.5 TIC KIDS ONLINE BRASIL 2013............................................................ 26

2.1.6 TIC KIDS ONLINE BRASIL 2015............................................................ 28

2.2 Infância, cibercultura e a contemporaneidade.......................................... 30

2.3 Infância, cibercultura, imaginação e criação............................................ 41

2.4 Infância, cibercultura e autoria.................................................................. 44

2.5 Infância, Cibercultura e um encontro com Walter Benjamin................. 48

2.6 Infância, Cibercultura e a WEB 2.0........................................................... 54

2.7 Infância e cibercultura: o limiar entre o público e o privado.................. 66


3 EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA: QUANDO A
PESQUISADORA VIRA SEGUIDORA.......................................................... 81
3.1 Onde encontramos as produções infantis na internet?............................. 83

3.1.1 Weblog ou Blog.......................................................................................... 83

3.1.2 Instagram..................................................................................................... 84

3.1.3 Facebook..................................................................................................... 85

3.1.4 Twitter......................................................................................................... 86

3.1.5 Tumblr......................................................................................................... 86

3.1.6 We heart it................................................................................................... 87

3.1.7 Youtube....................................................................................................... 88

3.1.8 Skoob........................................................................................................... 88

3.1.9 Pinterest....................................................................................................... 89

3.2 As crianças.................................................................................................... 90

3.2.1 João.............................................................................................................. 91

3.2.2 Manuela....................................................................................................... 93

3.2.3 Isadora......................................................................................................... 98

3.2.4 Isabela.......................................................................................................... 105

3.2.5 Caio............................................................................................................. 109

4 ENTÃO, O QUE PRODUZEM ESTAS CRIANÇAS?................................ 110

4.1 As condições de produção/criação.............................................................. 111

4.2 Fluidez........................................................................................................... 116

4.3 Criação e comunicação: eu e o outro.......................................................... 122

4.4 Estratégias para ser visto............................................................................. 129

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 140

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 149


Apresentação

Esta tese apresenta o percurso realizado nesses quatro anos de pesquisa e tem
por principal objetivo investigar as produções infantis na internet, seja através de blogs,
grupos da rede social Facebook, vídeos no Youtube, perfis como produtoras de
conteúdo digital e coautoras de informação e conhecimento. Ou seja, buscou investigar
a participação das crianças como autoras na Web 2.0, entendendo as mesmas e suas
maneiras de produzir conteúdo online. Que contextos de produção de comunicação as
crianças ocupam? Que formas de narrativa são utilizadas pelas crianças nestes
ambientes digitais? Quais os principais temas abordados por elas? Como se dá o uso da
técnica? Que ferramentas elas utilizam? O que as crianças dizem de si nesses espaços?

Quando o fim é um novo começo

Toda pesquisa só tem começo depois do fim.


Marília Amorim

A pesquisa de doutorado buscou compreender melhor e tentar aprofundar o


conhecimento acerca da internet como lugar de criação e comunicação que se apresenta
à infância contemporânea. Impossível escrever sobre esta pesquisa sem relembrar a
pesquisa de mestrado já finalizada, pois foi durante a escrita da mesma que a questão
central do doutorado surgiu.
A pesquisa de mestrado concluída em 2012, teve por objetivo conhecer os usos
que as crianças faziam na internet. Descobriu-se que o grupo de interlocutores da
pesquisa, acessava a internet em busca dos jogos online. A metodologia de pesquisa
adotada, envolveu vários momentos em que observei e joguei online com as crianças.
Partindo do conceito de ‘usos’ de Michel de Certeau (1994) e do conceito de
‘interatividade’ de Miguel Lemos (2010) e Marco Silva1 (2010), a pesquisa deparou-se
com formas de interação usadas pelas crianças, que eram diferentes das propostas pelos
jogos acessados. Entretanto, naquele momento e com o grupo investigado, observei que

1
Para maior discussão sobre esses conceitos e sobre a pesquisa desenvolvida ler FREIRE, 2012.

13
os usos que as crianças faziam da internet estava mais ligado a um consumo de sites,
geralmente feitos por adultos e voltados às crianças, do que propriamente na produção
efetiva de conteúdos de autoria das crianças. Dessa constatação, surge a seguinte
pergunta: As crianças têm espaço para marcar suas produções na internet? Há sites
feitos por crianças?
Ainda durante o desenvolvimento da dissertação de mestrado, recorri a Sarmento
(on-line, 2006) em seu relato das conclusões a que chegou em sua pesquisa “Os saberes
das crianças e as Interações na REDE”, onde ele afirma que a Internet ainda é território
produzido por adultos para crianças e raramente produzido pelas crianças, mesmo que
voltados para elas. Ao ler esta constatação de Sarmento priorizei pesquisar no site de
busca Google a expressão “sites produzidos por crianças” ou “sites feitos por crianças”
e confirmei a afirmação do autor: na primeira página dos resultados não havia quase
nenhum site, apenas listas de sites “para” ou “sobre” crianças. Procurando mais achei
um fórum em que um tópico2 de 2009 convidava os participantes a postarem links de
sites que eles tivessem produzido quando eram crianças. Muitos participantes postaram
links de sites que dizem ter produzido com 8 anos, mas nenhum deles continuava
online.
Em 2012, ao pesquisar no Google “blog feito por crianças” e “blog de criança”
foi possível achar alguns exemplos de blogs que hipoteticamente eram elaborados por
crianças. Alguns deles estavam inativos, com postagens bem antigas 3, mas alguns
estavam bem atualizados4.
Desta forma, ainda durante a escrita da dissertação foi se desenhando o tema de
uma futura pesquisa que assumi como projeto para o doutoramento. Desde então, passei
a garimpar blogs e demais formatos que fossem criados por crianças na internet.
Por isso, inicio esta tese com o capítulo intitulado “Construindo o objeto de
pesquisa: um primeiro levantamento”, onde apresento justamente as primeiras interfaces
e softwares sociais com os quais tive contato. O capítulo 2 “Infância e Cibercultura”
apresenta os conceitos e os autores com os quais dialoguei ao longo da escrita desta tese
e é de suma importância para o avançar das discussões propostas. No capítulo 3 “Em
busca de uma metodologia: quando a pesquisadora vira seguidora”, apresento a
construção da metodologia que foi adotada ao longo da pesquisa, bem como as

2
http://www.teamfortress.com.br/forum/viewtopic.php?f=4&t=4454&view=next
3
http://cantinhodafantasia.zip.net/
4
http://coisasdemeninojoao.blogspot.com/

14
interfaces e softwares sociais citados pelas crianças e finalizo com uma apresentação de
cada criança que participou da pesquisa, trazendo seus perfis nas diversas redes sociais
utilizadas por elas. O quarto e último capítulo, denominado “Então, o que produzem
estas crianças?”, procura apresentar o que seriam as categorias de análise, que nesta tese
não estão sendo assim nomeadas, já que o movimento de categorizar algo que foi
observado em rede pareceu-me incoerente. Por fim, apresento algumas conclusões às
quais se destacaram ao longo desses quase quatro anos de pesquisa, assim como
atualizo o máximo possível a produção de cada criança na cibercultura.

15
1 CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA: UM PRIMEIRO
LEVANTAMENTO5

Como dito anteriormente, o primeiro movimento de pesquisa foi o de mapear


blogs e sites construídos por crianças para, a partir deles, definir critérios para a
construção de uma metodologia que fosse coerente com um tema ainda pouco explorado
em relação à pesquisa com crianças e com uma pluralidade de caminhos a seguir.
O primeiro critério utilizado nesta busca foi: ser feito por crianças. A primeira
aproximação com uma produção infantil online deu-se por acaso: João, que é meu
primo e em 2012 tinha 10 anos, havia criado um perfil na Rede Social Facebook há
pouco tempo e compartilhou, com seu pai, o link do blog de um amigo, chamado Dries
Planet. Foi a partir dele que pude chegar a outros blogs feitos por crianças, pois é
comum um blogueiro indicar outros blogs. Desta forma, de um blog podemos chegar a
outros e outros, sendo esse o movimento feito até agora: descobrir novas produções e
produtos infantis a partir das dicas das próprias crianças.
Portanto, apresento os blogs com os quais tive contato no ano de 2012.

1.1 Dries Planet6

O criador do blog é Dries van Steen e mora em São Paulo. Seu blog existia
desde agosto de 2011 e havia, nessa época, postagens mensais que variam de 3 a 59,
acumulando até setembro de 2012 um total de 306 postagens. Além de reproduzir
conteúdos voltados para diversão como vídeos e muitos memes7 disponíveis na internet,
ele também produzia conteúdo, e normalmente fazia questão de destacar esse fato,
conforme vemos abaixo:

5
Alguns dos blogs consultados já estão com os links inativos, como é o caso de “Dris Planet”, “Coisas
da Sinistra” e “Monster, curiosidades, yoshis”. Já os blogs My life, my place, my word”,
“Monsterhighbmw” e “Videolog do Gutinho” estão com links ativos, porém desatualizados e sem
postagens desde 2012. (última consulta em novembro de 2016).
6
http://driesplanet.blogspot.com.br/
7
O termo meme de internet é usado para descrever um conceito que se espalha rapidamente pela rede.
Pode se referir a uma imagem, uma piada, enfim, um assunto qualquer que se destaca e é compartilhado
por vários usuários de redes sociais, blog etc. O termo é uma referência ao conceito de memes, parte de
uma ampla teoria de informações culturais criada por Richard Dawkins, em 1976, no seu livro The Selfish
Gene. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Memes_de_Internet

16
Motivos para ir todos os dias à escola (postado em 7/03/12)
A seguir, verá os motivos para ir à escola todos os dias, em um gráfico. Eu que
fiz em um programa do meu computador, ou seja, foi totalmente feito pelo
criador deste blog.

Imagem 1 - Motivos para ir todos os dias à escola

Gorduchinha8

Imagem 2 - Meme gorduchinha

O blog era bastante elaborado, com layout personalizado e muito dinâmico,


disponibilizava inclusive assinatura via RSS 9; possuía 16 seguidores que não eram

8
Primeira postagem do mês de setembro, exemplo de postagem retirada de outros sites ou blogs.
9
A tecnologia do RSS permite aos usuários da internet se inscreverem em sites que fornecem "feeds"
RSS. Estes são tipicamente sites que mudam ou atualizam o seu conteúdo regularmente. Para isso, são
utilizados Feeds RSS que recebem estas atualizações, desta maneira o utilizador pode permanecer
informado de diversas atualizações em diversos sites sem precisar visitá-los um a um. Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/RSS

17
muito atuantes na inclusão de comentários. Além da possibilidade de comentar, Dries
disponibilizava opções para avaliarmos os posts adicionados: Louco; Legal; + ou -; Sei
Lá. Havia também previsão do tempo, um relógio com a hora correta e dois
“joguinhos”: alimentando um peixinho (fish Dries Planet, uma espécie de aplicativo em
que o visitante pode alimentar um peixinho) e um mascote representado por um
morcego com o qual o usuário pode interagir, acordando-o ou alimentando-o com uma
mosca.

1.2 Coisas da Sinistra10

As informações sobre a autora disponíveis no próprio blog são:

Oi pessoal! Aqui vai um pouco sobre mim: Adoro Monster High11,


Cupcakes, fazer Monster Highs e bichinos de de pelúcia :D Odeio rúcula
>:(. Elas são malvadas...

“Sobre o blog”, ela relatava o seguinte:

Oi! Eu sempre via outros blogs na internet e, a algum tempo já tinha


vontade de criar um blog. Um dia perguntei para o meu pai se podia criar
um blog e ele disse que sim. Com a ajuda dele criei meu blog e, eu admito
que eu adoro postar aqui!
Até mais!

Ela postava muito conteúdo de criação própria (jogos, enquetes, sugestões de


leitura e de outros blogs) e poucas reproduções da internet - alguns vídeos, imagens de
animais que ela considerasse “fofinhas”, memes etc. Iniciou as postagens em fevereiro
de 2012 e tinha um total de 60 postagens até agosto desse mesmo ano. A seguir uma
amostra:

10
http://coisasdasinistra.blogspot.com.br/
11
http://play.monsterhigh.com/pt-br/index.html

18
Dica de leitura (postado em 24/08/12)
Oi!
Hoje vim dar uma dica de leitura para você:
A série: Querido Diário Otário de Jim Benton. Até logo!

O blog contava com comentários, principalmente de outras blogueiras que


postavam sobre assuntos semelhantes.

1.3 Monster, curiosidades, yoshis12

Blog encontrado por indicação do blog da Sinistra. Segue a descrição de seu


perfil no Blogger.
Sobre mim
Sexo - Feminino
Atividade - Aluno
Local - Gramado, RS, Brasil
Introdução - Sou inteligente, esperta, faço teatro, patinação e ... Estudo
Posso ser diferente, mas pelo menos sou eu mesma. Pessoas que não me
conhecem, pensam que sou louca, depois que me conhecem de verdade,
falam que eu sou divertida.
Interesses - MONSTER HIGH, PC, MEMES, FACEBOOK.
Filmes favoritos - PERCY JACKSON, HARRY POTTER FILMES DA
DISNEY E DA UNIVERSAL!
Músicas favoritas - QUALQUER UMA Q NAUM SEJE FORRO, NEM
SERTANEJO
Livros favoritos - PERCY JCKSON, ETC ETC

12
: http://monstercurioidadesyoshis.blogspot.com.br/

19
1.4 My life, my place, my world13

Foi encontrado através de uma indicação no blog “Monster, curiosidades e


yoshis”. Sua criadora é a Spectra Vondergeist (Star) e não há mais informações sobre
ela em seu perfil do blogger.

Sei que não ando Postando


Oi gente sei que não posto mais há muito tempo mas é pq eu tava de
castigo e tava tendo prova e se eu ficar em recuperação eu fico de
castigo de novo!!! =(
bem mas eu vim mostrar uma coisa muito fofinha da Robecca!!

Este tipo de postagem em que a escola é um motivo para a criança não atualizar
seu blog apareceu em alguns outros blogs, como vemos no exemplo abaixo:

SEGUNDA-FEIRA, 13 DE AGOSTO DE 2012

Importante!
Gente vou ficar tipo 2 dias sem postar pois tenho que estudar!me
desculpa!!
Bjos!
Postado por Beca MW às 12:0414

Ainda sobre o blog “My life, my place, my word”, observei que era indicado por
3 blogueiras oficiais: a Spectra, a Luciana Justice e a Catty. Permitir postagens de outras
meninas-usuárias era uma característica comum a vários blogs produzidos por garotas.
Conforme podemos ver abaixo em uma postagem retirada do blog da Sinistra15:

Desculpa!+notícia
Oiii!!!

13
http://mylife-myplace-myworld.blogspot.com.br/
14
Monster High - http://monsterhighbmw.blogspot.com.br/
15
http://coisasdasinistra.blogspot.com.br/2012/08/desculpanoticia.html

20
Bem...Vim pedir desculpa por não postar faz um tempo, tipo assim...10
dias! pois estou em provas, então não sobra muito tempo.
Bem, vamos postar:
De acordo com os resultados da enquete, devo fazer o concurso de
postadoras. Então,farei.
Para participar basta prencer esta ficha de incrição:
Nome:
Gmail:
Tem um blog? Qual?:
Usa palavrões nas postagens?:
Posta coisas inadequadas?:
Faz assinaturas?:
Postará com frequência?:
Atenção:Vou escolher só uma postadora.Nenhuma postadora vai se
tornar adiministradora ou poderá mudar o desing do blog.A postadora
terá que usar assinatura nas postagens,se quiser poderá fazer a própria
se não é só pedir no primeiro post.
Até mais!
Postado por Sinistra às 16:51

Até o último acesso feito antes do blog ser desativado, apenas uma menina havia
se candidatado e respondido às questões, e a criadora do blog ainda não havia aprovado
sua solicitação.

1.5 Videolog do Gutinho16

Canal de um menino que postou 3 vídeos em 2012. Em seus vídeos aparece


sempre sentado à mesa e falando para a câmera. O primeiro é sobre quanto ganha um
vloger (pessoa que faz videolog); o segundo e o terceiro são sobre vídeos engraçados

16
http://www.youtube.com/user/vlogdogutinho?feature=plcp

21
com animais. Os vídeos são editados, apresentam efeitos e links e chegam a mais ou
menos 1300 views. Seu último vídeo é de abril de 2012.

Dados do Videolog

Atividade mais recente: 03/08/2012

Data de inscrição: 19/01/2012

Idade: 32

País: Brasil

Oi, eu sou o Gutinho. Seja bem vindo ao meu canal, onde eu sempre

estarei postando vídeos de vários assuntos.

Todos as produções infantis apresentadas acima, foram objeto de pesquisa de


março a setembro de 2012, durante a escrita do anteprojeto apresentado como requisito
para a seleção de doutorado na UERJ. Portanto, após esse primeiro momento em que a
metodologia utilizada foi a de procurar mapear onde as crianças estão, e após delimitar
algumas que continuam participando de interfaces e softwares sociais17, busquei
aprofundar quais são as produções infantis e em quais espaços. O fato de as crianças
estarem em constante movimento faz com que muitos blogs e perfis sejam criados e
desativados ou abandonados após um período. Tendo esse movimento fluído como
marca do mundo digital e das produções infantis, a opção de seguir as crianças na
internet, tem se mostrado coerente, pois podemos seguir um perfil no Facebook, no
Twiter, no Instagram, assinar um blog ou canal no Youtube e receber notificações de
novas publicações por e-mail. Portanto, conforme será descrito mais a frente, a
metodologia que vem sendo utilizada é a de seguir as crianças e suas produções online.

17
Os termos softwares sociais e interfaces são utilizados nesta tese de acordo com a definição trazida por
Edméa Santos: “Os softwares sociais são interfaces ou conjuntos de interfaces integradas que estruturam
a comunicação síncrona e assíncrona entre praticantes geograficamente dispersos. Interface é um termo
que, na informática e na cibercultura, ganha o sentido de dispositivo para encontro de duas ou mais faces
em atitude comunicacional, dialógica ou polifônica. A interface está para a cibercultura como espaço
online de encontro e de comunicação entre duas ou mais faces. Forma-se um hibrido entre objetos
técnicos e seres humanos em processos de comunicação e de construção de conhecimentos. Com isso, os
praticantes se encontram não só para compartilhar suas autorias, como também – e sobretudo – para criar
vínculos sociais e afetivos pelas mais diferentes razões objetivas e subjetivas” (2011, p.84). A autora
afirma que comumente utilizamos o termo ‘rede social’ no lugar de ‘software social’, e que rede social é o
que acontece em uma situação comunicacional. Por isso, ela utiliza o termo ‘rede social da internet1. “O
conceito de rede social na internet parte da ideia de conectar praticantes com interesses comuns que
interagem colaborativamente a partir da mediação sociotécnica e de suas conexões” (2011, pp. -84-85).

22
2 INFÂNCIA E CIBERCULTURA

O conhecimento acumulado sobre crianças e


infâncias pouco tem nos ajudado a dialogar
efetivamente com as crianças.
Rita Ribes Pereira

Este capítulo apresenta os conceitos de infância e cibercultura que se mostraram


interessantes para o diálogo e enriquecimento do trabalho de campo. É um capítulo
longo por abordar vários assuntos que perpassam os temas da infância e da cibercultura.
Sendo assim, no item 2.1 apresento alguns dados de pesquisas estatísticas produzidas
pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação
(CETIC); no item 2.2, apresento as discussões mais especificamente voltadas para a
construção e delimitação de um conceito de infância contemporânea; no item 2.3 há
uma reflexão sobre a produção infantil na internet em diálogo com Vygotsky em seu
livro, “Imaginação e criação na Infância” (2009); o item 2.4 nos motiva a refletir sobre a
Infancia, a cibercultura e as possibilidades de autoria através do diálogo com a autora
Adriana Hoffmann Fernandes e de sua tese de doutorado; no item 2.5 apresento as
reflexões acarretadas pela leitura do livro “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura” (2012) de Walter Benjamin, e suas relações com a
Infância e a Cibercultura; e por último, mas não menos importante, o item 2.6, onde
podemos aprofundar um pouco as questões mais específicas relacionadas à cibercultura
e seus conceitos.

2.1 Infância, Cibercultura e as TICS

Antes de entrarmos na discussão teórica sobre infância e cibercultura, acredito


ser de suma importância conhecer alguns dados estatísticos os quais poderão enriquecer
ainda mais o nosso conhecimento acerca da infância contemporânea e sua relação com a
cibercultura. Sendo assim, proponho direcionarmos nosso olhar para alguns dados
apresentados nas pesquisas estatísticas divulgadas pelo CETIC18. As pesquisas

18
Com a missão de monitorar a adoção das tecnologias de informação e comunicação (TIC) – em
particular, o acesso e uso de computador, Internet e dispositivos móveis – foi criado em 2005 o Centro de

23
analisadas foram: TIC Crianças 2009, TIC Crianças 2010, TIC KIDS ONLINE BRASIL
2012, TIC KIDS ONLINE BRASIL 2013, TIC Domicílios 2013 e TIC KIDS BRASIL
ONLINE 201519. Destas pesquisas estatísticas, destaco aqui apenas os dados que estão
em diálogo com este estudo, já que essas pesquisas estatísticas apresentam muitos dados
não correlatos à questão abordada nesta tese.

2.1.1 TIC Crianças 2009

De abrangência nacional, foi a primeira realizada pelo CETIC, intentando medir


a posse e o uso das TICs por crianças entre 5 e 9 anos, utilizando como base o
questionário da TIC domicílios 2009, porém com o foco nas seguintes questões: Acesso
às Tecnologias da Informação e Comunicação (respondido pelos pais ou responsáveis);
Uso do Computador (respondido pela criança); Uso da Internet (respondido pela
criança); Habilidades com o computador/Internet (respondido pela criança); Acesso sem
fio (respondido pela criança). As entrevistas foram presenciais com a presença dos
responsáveis e das crianças.
Desta pesquisa, destacamos o seguinte dado: apenas 2% das crianças afirmavam
usar o celular para acesso à internet.

2.1.2 TIC Crianças 2010

Com a mesma abrangência, metodologia e público alvo da pesquisa realizada em


2009, porém com o foco nas seguintes questões: Acesso às tecnologias de informação e
comunicação (respondido pelos pais e/ou responsáveis); Uso do computador
(respondido pela criança); Uso da Internet (respondido pela criança); Uso do e-mail
(respondido pela criança); Habilidades com o computador e a Internet (respondido pela

Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC.br). O CETIC.br é um


departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), que implementa as
decisões e projetos do Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br). Por meio do CETIC.br, o NIC.br e o
CGI.br realizam sua atribuição de promover pesquisas que contribuam para o desenvolvimento da
Internet no país. http://www.cetic.br/pagina/saiba-mais-sobre-o-cetic/92
19
As pesquisas citadas estão disponíveis em: http://www.cetic.br/publicacoes/indice/pesquisas/

24
criança); Acesso sem fio e uso do celular (respondido pela criança); e apontando um
perfil domiciliar.
Neste ano, o percentual de crianças que usava o celular para acesso à internet foi
de 1%.

2.1.3 TIC KIDS ONLINE BRASIL 2012

Realizada em parceria com pesquisadores da equipe EU Kids Online Network20.


Diferentemente das outras duas pesquisas anteriores (TIC Crianças 2009 e 2010), que
mapearam o uso das tecnologias da informação e da comunicação por crianças e jovens
brasileiros, essa nova pesquisa objetivou compreender os desafios gerados pelo uso das
TICs, mais especificamente o acesso à Internet, que foi constatado nas pesquisas
anteriores. Respondendo questões tais quais: “Como e onde crianças e adolescentes
acessam a Internet? Quais as implicações de tais usos? Qual a relação entre os diversos
dispositivos de acesso, como notebooks, tablets e celulares, e a privacidade de uso da
Internet? Que estratégias de mediação os pais e responsáveis utilizam para ajudar seus
filhos a navegarem com segurança na Internet?”, a TIC KIDS Online Brasil, pesquisa
inédita no país, buscou “mapear as oportunidades e riscos associados ao uso da Internet
por jovens brasileiros de 9 a 16 anos de idade” (p.22).
Um dos dados que se destacam e convidam ao diálogo é a constatação de que
21% das crianças pesquisadas acessam a Internet pelo celular. Outro dado importante
apresentado pela TIC KIDS Online 2012 é referente aos usos que as crianças fazem da
internet. Observando o gráfico a seguir, aparecem, pela primeira vez, formas de uso que
percebem a criança como possível produtora de conteúdo na internet, conforme vemos
nos itens: “Colocou (ou postou) fotos, vídeos ou músicas”; “Colocou (ou postou) uma
mensagem num site”; “Criou um personagem, bicho de estimação ou avatar”; “Escreveu
em um blog ou diário on-line”; “Usou sites de compartilhamento de arquivos”.

20
O projeto “EU Kids on line” vem sendo coordenado pelas Professoras Sonia Livingston e Leslie
Haddon, da London School of Economics and Political Science. Soma de 2006 até o momento pesquisa
em 27 países europeus tendo por objetivos básicos identificar e avaliar o uso de internet por crianças,
comparar resultados no contexto europeu e desenvolver recomendações para a elaboração de políticas de
ação que promovam um uso mais seguro da internet. Foi financiado pelo Programa Safer Internet da
Comissão Européia. Para maiores informações, ver: www.eukidsonline.net e
http://ec.europa.eu/information_society/activities/sip/index_en.htm

25
Imagem 3 - Gráfico de atividades realizadas na internet.

2.1.4 TIC Domicílios 2013

Buscou mapear o acesso às tecnologias de informação e comunicação em


domicílios do território nacional. Apresenta um infográfico21 onde há os seguintes
dados coletados com crianças a partir de 10 anos: 75% dos usuários tinham entre 10 e
15 anos. 34% dos “usuários de Internet postam textos, imagens ou vídeos que criou”.
16% das crianças dessa faixa etária disseram que utilizam a internet para “Criar ou
atualizar blogs, páginas na Internet ou website”.

2.1.5 TIC KIDS ONLINE BRASIL 2013

Com os mesmos objetivos, metodologia e abrangência da pesquisa realizada em


2012, apresenta o gráfico da proporção de crianças/adolescentes distribuídos por

21
http://www.cetic.br/tics/usuarios/2013/total-brasil/C9/expandido

26
atividades realizadas na internet, onde há opções que contemplam os espaços de criação
online. Cabe destacar que a opção “Escreveu em um blog ou diário on-line” teve uma
queda de 1% em relação à pesquisa do ano anterior, contrastando com o aumento de
16% no item “Colocou/postou fotos, vídeos ou músicas em redes sociais”.

Imagem 4 - Gráfico da proporção de crianças/adolescentes por atividade.

O crescente uso de celulares do tipo smartphone, no Brasil, foi constatado em


2013, segundo reportagem, de agosto de 2013, do portal G1 22: dos 5,3 milhões de
celulares vendidos, 53% eram smartphones. A pesquisa TIC KIDS Online 2013,
acrescenta que 53% dos entrevistados disseram acessar a internet pelo celular, contra
21% da pesquisa realizada em 2012. “Já o acesso à Internet por meio dos tablets
cresceu de 2%, em 2012, para 16% em 2013”.

22
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/08/venda-de-smartphone-supera-de-celular-tradicional-
pela-1-vez-no-brasil.html

27
Imagem 5 - Gráfico da proporção de crianças/adolescentes por equipamentos utilizados para acessar a internet.

Outro dado importante é o aumento do número de crianças presentes nas redes


sociais: “a pesquisa revela que 79% dos usuários de Internet, entre 9 e 17 anos,
possuem perfil em redes sociais – um crescimento de 9 pontos percentuais em relação a
2012”.

2.1.6 TIC KIDS ONLINE BRASIL 2015

Realizada entre novembro de 2015 e junho de 2016, a recente pesquisa ainda


não tem um relatório completo publicado, mas já é possível acessar alguns dados
disponíveis no site do Cetic, em um documento chamado “Apresentação dos principais
resultados TIC KIDS ONLINE BRASIL 2015”23. Embora tenha uma parte da pesquisa
inteiramente voltada para questões relacionadas à intolerância e ao discurso de ódio na
rede, essa pesquisa apresenta questões interessantes que consideram a criança e sua

23
http://cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2015_coletiva_de_imprensa.pdf

28
efetiva participação na internet, utilizando expressões que se aproximam das utilizadas
pelas crianças nas redes sociais.
Um gráfico que se destaca é o que apresenta o uso de celulares como forma de
acesso à internet, onde podemos ver que esse acesso pulou de 21% em 2012 para 85%
em 2015.

Imagem 6 - Proporção de crianças/adolescentes x equipamento que acesse a internet.

Um dado interessante e que nos ajuda nas reflexões propostas por esta tese é o
que constata que 87% das crianças possuem perfil em uma rede social e, ainda mais, os
gráficos que mostram o percentual de crianças com perfis em cada rede social, a saber:
79% declararam possuir perfil no Facebook, 71% no WhatsApp, 37% no Instagram,
27% no Snapchat e 20% no Twiter.
Entretanto, de todos os gráficos, o mais interessante para nós, é o que apresenta
o que as crianças responderam à seguinte questão: “Postou na internet um texto,
imagem ou vídeo que você mesmo fez?” em que apenas 37% das crianças responderam
sim, contra 63% de não como resposta. Ou seja, apesar de a autoria na internet estar
cada vez mais facilitada e de termos algumas crianças que postam coisas na internet,

29
essas ainda não são a maioria. Mas, além disso, cabe destacar que o tipo de pergunta
utilizada pelos pesquisadores do TIC KIDS BRASIL, demonstra que essa realidade
existe e surpreende de forma positiva o fato de uma pesquisa mais voltada à segurança
das crianças, trazer a possibilidade de autoria em suas questões.
A pesquisa TIC KIDS Online, em seu relatório de 2012, reconhece que esse
acesso para usos mais voltados à produção de conteúdos pelas crianças está em
ascensão e merece destaque.
Ainda que, como já exposto, as atividades mais voltadas à produção de
conteúdos por parte de crianças e adolescentes não estejam entre as mais
citadas, são atividades levadas a cabo com frequência entre aqueles que a
realizam: 85% postaram mensagens em um site pelo menos uma vez por
semana e 67% postaram vídeos, fotos ou músicas pelo menos uma vez por
semana. Os dados coletados pela pesquisa TIC Kids Online Brasil não
permitem identificar qual o perfil socioeconômico desse usuário mais
proativo em termos de geração de novos conteúdos, devido ao tamanho
restrito da amostra de entrevistados. Os dados sobre a frequência, contudo, já
indicam que esse público está atento às oportunidades de expressão e
comunicação possibilitadas pelo uso da Internet (TIC KIDS Online, 2012,
p.138).

2.2 Infância, cibercultura e a contemporaneidade

Pensar em conceitos de infância pressupõe compreendermos que nós, adultos,


tendemos a construir concepções culturais para as crianças de forma que nos ajude a
entendê-las melhor, sendo esse recurso também uma forma de preservação de nossa
própria infância. Entender a infância como categoria abarca duas formas: uma que
envolve o discurso sobre ela, que é produzido por adultos e dirigido para adultos, e
outra que engloba o discurso sobre ela, também produzido pelos adultos, mas voltado
para as crianças (BUCKINGHAM, 2007). O discurso que determina o papel da infância
e das crianças, facilita nosso entendimento sobre elas e faz com que passemos a encarar
nossa própria infância de outra forma. Ao mesmo tempo, para pesquisarmos a infância,
precisamos olhar para a criança que fomos. O outro sempre estará presente ao falarmos
de infância por que a nossa história de quando éramos crianças é contada pelo outro. É
através do outro que eu reativo a minha memória (JOBIM E SOUZA, PEREIRA, 1998).
Não podemos esquecer que “a maior parte das crianças do mundo de hoje não
vive de acordo com a ‘nossa’ concepção de infância e [...] que nenhuma descrição de
crianças – e consequentemente nenhuma invocação da ideia de infância – pode ser

30
neutra” (BUCKINGAM, 2007, p. 25). Por isso, às vezes, é tentador querer que o
conceito de infância caiba em um modelo de infância semelhante ao vivido por nós – ou
o que queremos acreditar que foi. Perceber que a infância que vivemos não se
assemelha à infância que observamos nas crianças hoje em dia, do nosso lugar de
adultos, pode nos levar a criticar a infância contemporânea. Tentando fugir desse ideal
de infância, temos que tentar entender a infância contemporânea que parece ser tão
diferente da vivida por nós, que abarca muitas crianças que vivem em diferentes
condições, mas que continuam sendo crianças e vivendo a infância. Estamos vivendo
um “processo de reinstitucionalização da infância”, ou seja, as crianças ocupam outro
lugar social (SARMENTO, online [2012]).
Em minha dissertação de mestrado, recorri ao termo ‘Nativos Digitais’ para
enquadrar as crianças com as quais eu dialogava e até a mim mesma, compreendendo
esse a partir do que foi dito por Marc Prensky “para caracterizar as gerações nascidas
nas últimas décadas do século XX em que se deu o início e a rápida difusão das
tecnologias digitais” (FREIRE, 2012, p.13). Revendo esse conceito, entre tantos outros
(geração X, Y, net, F5), concluo que ao nomear a infância contemporânea, querendo
que ela caiba em um determinado conceito, estamos deixando de “conhecer as crianças
por elas mesmas” (MACEDO, 2014, p. 21). A cada momento surgem novas formas de
nomear a infância contemporânea pelo simples fato de as crianças estarem na/em rede
(MACEDO; PEREIRA, 2012). Portanto, para nós, o importante é pesquisar a infância
contemporânea como ela se apresenta e em suas relações com a tecnologia. Não
acreditamos que nomear esse movimento/momento, seja determinante para a análise.
Afinal quem são as crianças de hoje? Como nomear os que pertencem à
chamada infância que já nascem na cibercultura? O que é infância? O que é
cibercultura? Onde a infância e a cibercultura se encontram? Elas se encontram na vida,
nas experiências cotidianas. A infância, e as crianças, estão imersas na cibercultura
assim como a nossa sociedade. Fernandes (2009) apresenta uma importante
consideração sobre o contexto atual, em relação às crianças, o qual
exige que as transformações vividas pelas crianças não sejam
interpretadas como questões individuais, mas como questões maiores,
culturais, que estão modificando seus modos de viver, de ser, e que
trazem mudanças também relativas tanto a sua aprendizagem, como a
sua produção cultural. (2009, p.15)

Ou seja, cabe a nós pesquisadores da infância, compreendermos que as


produções culturais das crianças na internet são um retrato dessa nova forma de

31
produção cultural, aprendizagem e nos modos de viver e ser criança. Compreender esse
papel das crianças na nossa sociedade, essa interação das crianças com a cibercultura,
sem tentar nomear, pedagogizar ou categorizar essa relação é viável quando entendemos
que a infância é um momento de múltiplas possibilidades e que partindo de um olhar
alteritário é possível enxergar essas crianças como “um legítimo outro” (MATURANA,
1998, p. 22). Esse olhar alteritário, lançado à infância contemporânea em suas nuances
acontece quando compreendemos que a criança não é um “objeto a ser conhecido”, mas
sim “um sujeito que dispõe de um saber que deve ser reconhecido e legitimado”.
(JOBIM E SOUZA, CASTRO, 1997, p. 83).
Para abranger a infância contemporânea, também é preciso compreender que as
crianças são “participantes, atores sociais, com suas próprias experiências e
interpretações do mundo” (BORBA, 2005, p. 82). Esta visão nos leva ao entendimento
de que as crianças, enquanto atores sociais são produtoras de cultura.
A Sociologia da Infância considera que as crianças são atores sociais e a infância
é uma categoria social; propondo que estes dois conceitos sejam analisados em
separado, já que a infância vai existir enquanto categoria social independente dos
sujeitos que dela fazem parte. E sugere considerarmos “a infância como categoria social
do tipo geracional, socialmente construída e dependente da categoria geracional
constituída pelos adultos” (SARMENTO, 2008, p. 22). De acordo com a Sociologia da
Infância, essa dependência gerou uma relação legitimada e reconhecida em que os
adultos têm o poder de controle sobre as crianças. A infância pode ser considerada
homogênea, já que os adultos e até as crianças a entendem como uma experiência
específica da vida, e deve ser entendida como heterogênea já que dentro dessa fase
existem vários tipos de infância que serão determinadas pelo contexto e por outras
categorias sociais (classes sociais, gênero, etnia etc.), como nos traz Sarmento (2008, p.
23), “a condição social da infância é simultaneamente homogênea, enquanto categoria
social, por relação com as outras categorias geracionais, e heterogênea, por ser cruzada
pelas outras categorias sociais”.
Uma análise sociológica da infância, segundo Sarmento, citando Prout e James
(1990) e Qvortrup (2001) (2008, pp. 23-24) considera como paradigmas, dentre outros,
entender a infância como
uma construção social, [...] sendo distinta da imaturidade biológica, não é
uma forma natural nem universal de grupos humanos, mas aparece como uma
componente estrutural e específica de muitas sociedades; a infância não é
uma fase transitiva, mas uma categoria social permanente [...] e uma [...]

32
análise comparativa e multicultural revela uma variedade de infâncias, mais
do que um fenômeno singular e universal.

As autoras Solange Jobim e Souza e Rita Ribes Pereira, no artigo Infância,


Conhecimento e Contemporaneidade (1998), já citado no início dessa reflexão sobre
infância, apontam questões interessantes para pensarmos a concepção de infância
contemporânea. Partindo da obervação em relação à produção do conhecimento sobre a
infância entendendo que esta é demarcada pela relação com o outro, as autoras nos
lembram que quem diz o que é ser criança é o adulto e esse dizer é alterado de acordo
com os ideais e expectativas de cada época. “o modo como nos relacionamos com a
infância é revelador das formas de controle da história” (p.30) As autoras discorrem
sobre o desenvolvimento do conceito de infância ao longo da história recente, no que,
em uma interpretação do artigo, podemos nomear de fases da concepção de infância.
Começando com o que podemos chamar de “não-lugar da criança”, fase em que a
criança é inserida no mundo dos adultos, após lutar pela sobrevivência, com a entrada
de políticas médico-higienistas que buscam diminuir as taxas de mortalidade infantil.
Em seguida, teríamos a fase da “criança como ser imperfeito”, onde há uma valorização
da criança pelo iluminismo, porém destacando o seu lado imperfeito que deve ser
educado para que se torne um homem dotado de linguagem, futuro cidadão responsável.
Desta forma, esse olhar da ciência sobre a infância, não visava conhece-la em suas
peculiaridades, mas sim, nega-la, tendo por objetivo fazer a criança crescer e vencer as
imperfeições que a afastavam da fase adulta. Por último, teríamos a “criança e suas
fases do desenvolvimento” em que a infância medida e analisada a partir das fases de
desenvolvimento que trazem critérios de normalidade. A ciência passou a explicar para
os pais como agir em relação a seus filhos, retirando a autoridade dos mesmos.
Surgiram os especialistas em educação e cuidado de crianças (psicólogos,
psicopedagogos, fonoaudiólogos, psicomotricista, pediatra, profissionais da mídia etc.).
Fugindo desse conceito evolucionista da história, desse pensamento da vida em
linha reta, as autoras recorrem à Benjamin, a fim compreender que a criança é posta no
lugar de quem precisa trilhar seu caminho evolucionista, precisa crescer, caminhar em
direção ao futuro. A criança é “forçada” a abandonar suas ruínas do passado recente
para atingir os objetivos que a levarão para o futuro. Assim, munem-se dos conceitos de
origem e ruína, origem sendo o que está implicado no passado e no futuro e ruína como
não apenas o fim, mas também o vir-a-ser, algo que permanece em construção.

33
As fases da vida (infância, idade adulta e velhice) não podem ser entendidas
apenas como um processo linear, já que são “categorias sociais, históricas e culturais,
que recompõem permanentemente a experiência vivida” (JOBIM E SOUZA;
PEREIRA, 1998, p. 28)
Acredito que as crianças de hoje são como as de ontem e estabelecem suas
relações com o que existe na cultura. Estamos no século XXI e atualmente, a cultura
existe, também, de forma cibernética. Não há porque nomear. São crianças que vivem e
convivem com a cibercultura, que nascem imersos nela e, por isso, as achamos tão
diferentes de nós, que não nascemos imersas nessa cibercultura. As crianças que se
tornarem pensadoras acadêmicas daqui há quarenta anos e que estudarem sobre infância
dificilmente terão esse estranhamento, pois ele pertence à nós. Conforme relatei em
minha dissertação, ao ver meus primos pequenos lidando muito bem com os sites, fiquei
surpresa, e o estranhamento causado em mim, despertou o desejo de pesquisar sobre o
assunto, de conhecer melhor o que fazia aquelas crianças navegarem na internet.

No ano de 2005, meus primos, nascidos na Espanha, João (com 3 anos à


época) e Manuela (com 1 ano), vieram morar em São Paulo. A partir daí,
comecei a conviver com eles de forma mais constante. Em uma das minhas
primeiras visitas à casa deles, ainda em 2005, percebi o fascínio deles por
jogos on-line, o que acabou gerando em mim muita vontade em descobrir
mais sobre o assunto (FREIRE, 2012, pp-15-16).

Ver crianças tão pequenas e com tamanha desenvoltura ao lidar com o


computador e navegando em sites com bastante propriedade foi estranho para mim que
tive contato com computadores com mais idade (9 anos). Então, esse lugar de
estranhamento é nosso, mas precisamos “admitir que o que particulariza a criança em
relação ao adulto é a sua condição de nascer e crescer em rede” (MACEDO, 2014,
p.49).
Desta forma, pensar a infância contemporânea, requer que pensemos a
cibercultura, pois a sociedade contemporânea, está mergulhada na cibercultura. A
infância está na sociedade, faz parte desta, não é um organismo isolado que se
desenvolve à margem da sociedade e que, quando pronta, ou seja, quando as crianças
crescem, passa a fazer parte da sociedade. Cabe ressaltar o entendimento de que apesar
dessa total imersão da sociedade na cibercultura, há ainda muita exclusão social em
vários níveis, inclusive, a exclusão do mundo digital e cibernético. Mas, aqui nesta tese,
olhamos para a infância e para as crianças que têm o acesso à internet.

34
Sim, elas já sabem manusear um tablet e um celular desde pequenas e elas
sabem que um celular pode ser utilizado para diversas coisas além de falar com alguém:
sorriem para foto, pegam nossos aparelhos e tiram fotos ou pedem para tirarmos,
acessam jogos e sites. Elas sabem isso porque estão convivendo conosco que fazemos
tudo isso. Então porque nos espantamos? Porque continuamos pesquisando? Qual o
sentido de uma pesquisa que se propõe a investigar uma utilização que pode ser
considerada banal, mas, que ao mesmo tempo carrega tantas questões: é apropriado
crianças estarem na internet? Quais são os riscos envolvidos? O que a sociedade pode
fazer para ajudar as crianças a utilizarem a internet de forma segura e produtiva? Essas
questões, tão comuns em diversos trabalhos acadêmicos sobre infância e cibercultura,
não serão respondidas nesta tese, pois a proposta desta tese é a de compreender as
formas de criação, produção e comunicação que as crianças usam na internet.
Acreditamos que para compreender a infância contemporânea, precisamos
descobrir o discurso das crianças sobre a infância: o que elas falam de si? Que
produções escolhem mostrar para os outros? Que referências utilizam para suas
produções online? Que imagens atribuem a si mesmas? O que consomem no mundo da
internet? Buscar no discurso, nas narrativas infantis e produções online, as respostas
para estas perguntas, parece ser promissor para nos mostrar o que as crianças vivem em
suas infâncias na contemporaneidade.
Testar as diversas funções exercidas por adultos faz parte do desenvolvimento
infantil: brincar de arrumar a casa, brincar de fazer comida, brincar de loja, de ser mãe e
pai... Sim, algumas crianças já entendem que fazer um blog pode dar dinheiro e
realmente utilizam essas interfaces com alguma intenção de futuro. Mas, isso ainda
choca? Isso é tão diferente do que uma criança que dança ballet e sonha em ser bailarina
profissional, por exemplo?
Isadora24 e as meninas que são Youtubers mirins realmente parecem querer fazer
daquilo uma profissão, ou fazer com que aquilo seja o início de uma profissão. Como
podemos ver nesta fala da Isadora:

Joana – Isadora, porque você quis fazer esse blog assim? Como é que foi a
história dele?

24
Isadora participou da pesquisa. Apresento as crianças com as quais conversei a partir da página 88.

35
Isadora - Ah, porque eu via vários na Internet e eu ficava: ah, eu queria fazer isso,
deve ser legal, ah, eu gostaria de fazer isso, ah eu queria fazer isso que pode
mudar a minha vida. Aí eu fui e criei o blog.
Joana – E como você acha assim, que pode mudar a sua vida?
Isadora - Ué, no futuro eu posso conseguir mais visualizações aí eu posso ganhar
uma grana.
Joana – Como assim?
Isadora - Por que existe um sistema no google que se chama Google Adsense 25 que
você coloca o número da conta aí eles botam anúncios no seu site e você ganha um
dinheiro com isso.

Casos de blogueiras que publicaram livros após lançarem seus trabalhos na


internet são cada vez mais comuns. Bruna Vieira, blogueira do “Depois dos 15” 26 e
autora de vários livros, sendo o primeiro deles, chamado “Depois dos Quinze: quando
tudo começou a mudar” (2012, Editora Gutenberg), uma compilação de suas crônicas
publicadas em seu blog, é uma das referências da menina Isadora, já que faz parte da
sua lista de indicações de blogs em seu próprio blog.

Joana – Você acha que esse blog é uma inspiração para você (Depois dos 15)?
Isadora – Acho, essa blogueira já fez 3 livros que ela escreveu e é um blog muito
legal.
Joana – É, e você acha, assim, que é um sonho seu, você gostaria de viver o que
ela viveu?
Isadora – Não porque ela teve uma desilusão amorosa e ela criou o blog para
superar isso.
Joana – Então você não gostaria de viver uma desilusão amorosa, mas, assim,
essa questão do blog dela, do sucesso...
Isadora – Eu tentei escrever um livro, só que eu não consegui porque eu não sabia
o que fazer, mas quando eu crescer eu com certeza vou criar uns livros bem legais.

Além de Bruna Vieira, a autora Isabela Freitas, que também começou


publicando em um blog27, e após publicar seu livro “Não se apega, não” (Intrínseca
Editora, 2014) que rapidamente atingiu 230 mil cópias vendidas, é um exemplo de uma
25
http://www.lucrei.com/o-que-e-o-google-adsense-aprenda-e-de-os-seus-primeiros-passos-tutorial/
https://support.google.com/adsense/answer/65065?hl=pt-BR
26
http://www.depoisdosquinze.com/
27
http://isabelafreitas.com.br/

36
carreira que começou na internet e se expandiu. Ambas foram destaque na Bienal de
201528 e participaram de bate-papos com os leitores.
O que quero dizer com isso? Que devemos exaltar toda a publicação na internet
feita por crianças? Que devemos transformar essa ferramenta em um conteúdo escolar
para que elas aprendam a lidar com ela de forma correta? Não, apenas quero que
passemos a compreender que as crianças publicarão conteúdo na internet porque isso
faz parte do nosso mundo, da nossa sociedade e as crianças vivem nela. Por isso, esse
estudo, na contramão de muitos estudos atuais que abordam a questão da criança e da
internet, não vai falar sobre os riscos, sobre a segurança, sobre a desenvoltura infantil
frente as tecnologias... Esse estudo pretende abordar questões observadas na relação das
crianças com a cibercultura, mais especificamente utilizando redes sociais ou
plataformas que possibilitam a publicação de conteúdo e imagens. Quem são essas
crianças? São um retrato da infância contemporânea. De uma parte dela. Porque nem
todas as crianças, apesar da divulgada facilidade dessa faixa etária em lidar com as
tecnologias, utilizam essas plataformas de forma constante e dedicada. Muitas usam
esporadicamente, como mais uma forma de entretenimento, como mais uma brincadeira
e mais uma maneira de experimentar, reproduzir e recriar o que veem adultos fazerem.
Além de não esquecermos das crianças que não tem acesso às tecnologias, que estão à
margem dessa sociedade embora estejam também imersas na cibercultura, mas sem ter
acesso às ferramentas que possibilitam a sua utilização.
Já está estabelecida, no campo dos estudos da infância,
[...] a compreensão de que a criança nasce inserida numa cultura e que a
criança a ressignifica e recria com os instrumentos que essa mesma cultura
lhe permite. Em suas brincadeiras, suas demandas e seus modos de agir, mais
do que imitar o mundo social supostamente já instituído, as crianças
formulam a sua crítica, o afetam e o recriam. (PEREIRA, 2014, p. 132).

Ao ampliarmos essa discussão sobre a transformação da cultura pela criança,


olhando para a cibercultura, temos que concordar com Rita Ribes Pereira quando ela
alega que
[...] nos estudos sobre cibercultura, por seu turno, tornou-se matéria
corrente a compreensão de que as tecnologias digitais engendram
profundas transformações nos modos de produção e de circulação da
cultura (PEREIRA, 2014, p. 133).

28
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/blogueiras-isabela-freitas-e-bruna-vieira-sao-
atracoes-da-bienal-do-rio.html

37
Outro termo que surge atrelado à nomeação da infância contemporânea como
geração net, x, y etc, é o de cibercultura infantil, que estaria relacionada à criação e
recriação da cultura infantil feita pelas crianças que navegam na internet. Os autores
estudados29, argumentam que as crianças estão inseridas na cibercultura e por isso tem à
sua disposição possibilidades de criar, conectar, participar, interagir, fazendo uma
separação entre cibercultura e cibercultura infantil. Mas, acredito que as crianças estão
inseridas na cibercultura que é uma só, pois até os jogos, que poderiam ser encarados
como algo mais lúdico e pertencente ao mundo das crianças, são usados por adultos
também. Não podemos criar um nicho da cibercultura que só é usado pelas crianças,
pois esse pensamento cartesiano apenas ajuda a ampliar o fosso geracional tão
propagado em relação aos usos das tecnologias por crianças e adultos, quando na
verdade, até as formas de consumo são muito parecidas. É claro que as crianças
possuem produtos específicos voltados para elas, mas com Macedo (2014) podemos
afirmar que muitas coisas produzidas para as crianças no mundo virtual são produtos
ofertados tanto para elas quanto para adultos. Ainda de acordo com Macedo, foi
constatada uma maior aptidão das crianças em relação aos adultos na utilização das
tecnologias causando o fosso geracional, em que as crianças eram vistas como usuárias
mais habilidosas do que os adultos. Atualmente, os adultos também já têm maior
domínio sobre as tecnologias e, por isso, há uma redução desse fosso criado quando se
constatou uma maior aptidão das crianças para mexerem nos aparatos (MACEDO,
2014).
Pensando de modo crítico, entretanto, as tecnologias digitais podem ajudar a
colocar em discussão a posição social que as crianças ocupam em relação aos
adultos, oferecendo outras perspectivas para a compreensão dos processos
cognitivos. A criança, tão marcada pelo seu suposto não-saber, pode
experimentar ser também aquela que ensina. O adulto, libertando-se do lugar
cristalizado do ensinar, pode permitir-se aprender com a criança – aprender a
entregar-se ao jogo, a ver o desconhecido não apenas como medo, mas como
possibilidade (PEREIRA, 2010, p. 10).

Cabe destacar que Macedo ao afirmar em sua tese, intitulada “Você tem face?”
Sobre Crianças e Redes Sociais Online , defendida em 2014, que as crianças estão para
além da ingenuidade e do risco propagado, nos permite ir adiante à discussão que nos

29
Mayra Fernanda Ferreira, Edvaldo Souza Couto, José Américo Santos Menezes, Danuta Leão, Ana
Flávia de Luna Camboim e Francisco Menezes Martins.

38
propomos, pois a autora já explicou que as crianças não vivem apenas os riscos da
internet, que elas não estão tão desprotegidas quanto dizem algumas pesquisas.
Portanto, não é mais necessário que abordemos esse assunto, pois já sabemos que as
crianças não estão apenas envoltas em riscos ao navegarem na internet e podemos tentar
compreender como elas se relacionam com a internet de forma criativa, o que produzem
online, suas formas de autoria e narrativas.
Um bom exemplo da separação entre o que seria cibercultura e o que seria
cibercultura infantil pode ser visto em Couto (2013) quando ele afirma que “a
cibercultura é marcada pela convergência midiática e a cibercultura infantil pelo
hibridismo de práticas e descobertas lúdicas” (COUTO, 2013, p. 908). Ainda
dialogando com Macedo (2014) podemos ampliar essa afirmação, pois a autora nos
mostra que a convergência das mídias também chega a utilização infantil quando traz
que muitas das coisas mostradas nos perfis das crianças, tem a ver com a televisão,
novelas, filmes, personagens.
Aprofundando a definição de cibercultura infantil, seguimos trazendo Couto que
aponta que esta
significa o mundo das crianças conectadas, seus hábitos, ideias e
comportamentos como sujeitos que produzem e compartilham informações
na rede. [...]. A cibercultura infantil, participativa, [...] diz que a criança é
produtora e difusora de informações e valores, que cria e divulga suas
invenções, que é agente ativo e propulsor de cultura (COUTO, 2013, p. 901).

Percebemos em Couto um discurso bastante comum nos estudos que abordam a


infância e a cibercultura: o discurso que valoriza as possibilidades surgidas com o uso
das tecnologias pelas crianças.
A cultura digital está a favor das crianças, o que possibilita e potencializa as
condições intelectuais para que possam participar da mídia digital e se
reconhecerem, cada vez mais, como autoras nesse ambiente. As crianças
conectadas são pioneiras na sociedade do imaginário tecnológico digital, pois
tem a impressão de estar criando seu próprio terreno de aventuras, de poder
inventar alguma coisa e se diferenciar das gerações anteriores, sem ter que se
justificar. Talvez seja neste ponto que reside a grandeza e os principais
valores da cibercultura infantil: liberdade, participação, colaboração,
entretenimento e inovação (COUTO, 2013, p. 904).

Conforme já foi dito, esta tese não pretende enaltecer ou repudiar a relação das
crianças com a cibercultura e, consequentemente, com as tecnologias. Entretanto, não
podemos nos furtar à seguinte reflexão: às crianças sempre coube o papel de criadoras,
de imaginativas, de mostrar suas produções para os adultos da família. Basta
lembrarmos dos desenhos, pinturas, brincadeiras, apresentações de música ou teatro. A

39
infância é vista como a idade em que o ser humano é mais inventivo e criativo. Desta
forma, não podemos relacionar todo o potencial criativo das crianças apenas com a
cibercultura, haja visto que esse potencial sempre existiu e sempre foi mostrado, mesmo
que em escalas menores, mais familiares. Ou seja, a diferença entre uma criança que
fazia um desenho e este era colado na parede da sua casa para ser mostrado para a
família e amigos e de uma criança que coloca seus desenhos em um blog (como é o caso
do Caio, interlocutor dessa pesquisa), é a possibilidade de aumentar a visualização
desses desenhos. Entretanto, sabemos que a tecnologia também possibilita novas formas
de interação, de criação e de exposição das crianças. É uma relação bastante tênue entre
entender as facilidades possibilitadas pelo uso das tecnologias e a valorização destas
mesmas tecnologias, principalmente no que diz respeito ao manejo pelas crianças que
normalmente são vistas como mais incapazes do que os adultos. Perceber que as
crianças conseguem manipular e criar utilizando as ferramentas disponíveis e, muitas
vezes, conseguem dar conta delas de forma ainda mais aprofundada que muitos adultos,
viabiliza o discurso que enaltece essa relação entre a criança e a cibercultura: “em
velocidades crescentes os experimentos, as criações e os imaginários infantis se
ampliaram e, provavelmente, ficaram mais ricos e fecundos” (COUTO, 2013, p. 910).
Entretanto, o próprio autor apresenta um contraponto interessante à essa
supervalorização da relação da criança com a cibercultura ao afirmar que:
as crianças brincavam com a areia da praia, jogavam bola,
participavam de batalhas, arrumavam casinhas e enfeitavam bonecas.
Na cibercultura infantil continuam com todas essas brincadeiras, agora
integradas ou vivenciadas por meio de telas. É preciso destacar e
enfatizar essa condição recente dos modos de brincar. As telas não são
em si a brincadeira, são os meios pelos quais as conexões e as
brincadeiras acontecem (COUTO, 2013, p. 910).

Completando sua afirmação, Couto traz uma interessante argumentação sobre a


relação das crianças com a cibercultura ao defender que as tecnologias não decretam a
morte da infância, que as crianças continuam brincando, criando, imaginando e que a
diferença é que agora existem mais meios com os quais as crianças podem explorar suas
potencialidades.
Não faz sentido dizer que a infância acabou, ou que as crianças não
sabem mais brincar, que ficam isoladas e presas em casa, que só
sabem ver e estar no mundo por intermédio de suas telas preferidas. É
preciso compreender o teor das mixagens, dos hibridismos que
marcam a vida contemporânea. Esses hibridismos atualizam os modos
de ser, brincar e viver de muitas e diferentes maneiras. Embora
milhares de crianças estejam cada vez mais conectadas, parece que

40
elas seguem usando também estratégias culturais tradicionalmente
associadas à infância, digamos, tradicional, e hibridizando todas elas
(COUTO, 2013, p. 910).

A constatação de que existe um termo utilizado para nomear a participação das


crianças na cibercultura, trouxe o seguinte pensamento: apenas a criança busca a
diversão, a conexão, a criação e a interação ao utilizar a web? Os textos propagam uma
separação entre o que é para crianças e o que é para adultos, mas não podemos esquecer
que os responsáveis por determinar o que é para as crianças são os adultos e não as
próprias crianças.
Aliás, cabe ressaltar que de acordo com várias pesquisas, as crianças possuem
um interesse muito maior pelo que não foi elaborado para elas do que por algo que foi
pensado como de uso exclusivo para as crianças. Portanto, concordamos com Pereira
(2014) em sua afirmação de que:

O que está em jogo é a construção de um outro lugar social a partir do qual se


torne possível dialogar com as crianças relativizando a hierarquia cristalizada
pela modernidade. No que se refere à pesquisa esse questionamento é
decisivo, pois ele coloca em xeque o paradoxo vivido pelo pesquisador, que é
adulto, de ser ao mesmo tempo aquele que deseja melhor conhecer as práticas
infantis (por isso as pesquisas) e, também aquele que, com sua ciência,
assume a autoridade de legitima-las ou não (PEREIRA, 2014, online).

2.3 Infância, Cibercultura, Imaginação e Criação

Pensar em produções infantis online, requer pensarmos sobre a criação das


crianças e para isso, recorremos ao diálogo com Vygotsky e seu livro “Imaginação e
criação na infância” de 2009. O autor analisa a imaginação em sua relação com a
atividade criadora do homem e para isso irá desenvolver conceitos como criação,
imaginação, reprodução, realidade, relacionando a criação com a educação artística e
escolar. Para nós, nesta tese, o mais importante é uma análise dos capítulos iniciais do
livro, onde Vygotsky discorre de forma mais filosófica sobre os temas, sem relacioná-
los com a prática escolar ou artística.
Ao abordar a criação e a imaginação, o autor começa argumentando que,
comumente, chamamos atividade criadora aquela em que se cria algo novo, entretanto,

41
ele irá desenvolver melhor essa teoria, provando que nem sempre é assim. Para isso, o
autor traz duas atividades criadoras principais:
1ª) Reconstituidora ou reprodutiva: reprodução literal do que vejo ou do que
assimilei e elaborei antes. Ou seja, é uma criação que se dá com base em algo
vivenciado, visto ou pensado anteriormente. Esta atividade está mais ligada à memória.
Um ótimo exemplo deste tipo de atividade criadora, pode ser retirado da
conversa com Caio, em que estamos vendo os desenhos que ele colocou em seu blog:

Caio – O gato de duas cabeças, dragão; ah, esses aí são de dois filmes que eu
misturei.
Joana – Ah, você que inventou esse?
Caio – É.
Joana – Você não copiou de lugar nenhum, né? Tem uns desenhos que você copia
e uns que você inventa?
Caio – Ah, alguns eu desenho que eu conheço.

2ª) Combinatória ou criadora: esta atividade seria a de imaginarmos algo que


não vivemos, ou seja, esta atividade está mais atrelada à imaginação, precisa da
imaginação para existir. Quando imaginamos uma situação não vivenciada, nos
colocando naquele lugar, conseguimos formar uma imagem na nossa mente. É quando
podemos “esboçar um quadro do futuro ou do passado” (VYGOTSKY, 2009, p.13)
mesmo sem ter vivido, sem ter sentido o que achamos que irá acontecer nesse quadro
criado. A imaginação é peça fundamental para a criação e não pode ser vista apenas
como o não real, como não tendo significado prático. Ao imaginar o homem consegue
criar. “Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se, sem
dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando também possível a criação
artística, a científica e técnica.” (VYGOTSKY, 2009, p. 14).
Vygotsky pretende ressaltar que todos podemos criar, que a criação não é para
alguns gênios talentosos, mas que ela também está no cotidiano:

a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras


históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e
cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se
comparado às criações dos gênios” (VYGOTSKY, 2009, p. 16).

42
Voltando à questão da reprodução, que é muito comum entre as produções
infantis online, cabe destacar que ao reproduzir algo que já viu, a criança está criando
algo novo por que os elementos da experiência anterior nunca se reproduzem. Acontece
“[...] uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas”, afinal “[...] o ímpeto da
criança para criar é a imaginação em atividade” (VYGOTSKY, 2009, p.17). Portanto,
ao criarem produções parecidas com as existentes, as crianças estão criando uma nova
produção, afinal a reprodução existe como possibilidade de criação por que a
combinação de elementos que já são conhecidos representa algo novo. “[...] É essa
capacidade de fazer uma construção de elementos, de combinar o velho de novas
maneiras, que constitui a base da criação” (VYGOTSKY, 2009, p.17).
Entrando na discussão sobre imaginação e realidade, o autor apresenta formas de
relacionar esses dois termos. Segundo ele, a imaginação sempre será construída com
elementos retirados da realidade e da experiência anterior da pessoa. Se precisamos da
experiência anterior e de elementos reais vividos, podemos concluir que quanto maior
for a experiência social da criança, maior será sua capacidade criadora. Entretanto,
também é possível imaginar o que não foi vivido ou visto, tendo por base o relato do
outro.
Segundo o autor, o “círculo completo da atividade criativa da imaginação” (p.
30) engloba elementos retirados da realidade que são elaborados e transformados em
imaginação e retornam à realidade como nova força ativa que a modifica (a realidade é
modificada por esse novo elemento).
O sentimento e o pensamento movem a criação humana, não podemos criar sem
desejo. Por isso, as crianças mudam o blog, abandonam, recomeçam, mudam o tema, a
cada novo desejo de criar algo que pode ter vindo de novas experiências. Isadora com o
canal do Youtube Experimentex, por exemplo, diz que a ideia surgiu após uma ida ao
bairro da Liberdade (SP) onde conheceu doces japoneses. Os vídeos mostram Isadora
ensinando a fazer os doces, que apesar de estarem prontos, ainda tem que passar por
algum tipo de processamento, como colocar de molho na água.

Joana – E aí, esse Experimentex é muito legal. De onde surgiu isso?


Isadora – É, quando eu fui na Liberdade, não na primeira vez, porque eu já fui
várias vezes. Mas, quando eu fui em São Paulo uma vez eu encontrei doces
japoneses e eu queria retratar esse momento porque é muito diferente. Daí eu fiz e
mandei o vídeo.

43
Vygotsky, falando sobre o mecanismo da imaginação criativa, aborda os fatores
psicológicos que favorecem a criação:
1º) Necessidade de adaptação ao meio, com o surgimento de novos desafios;
sem desejo de mudança não há criação.
2º) O desejo é importante, mas sozinho não quer dizer nada, a criação não
acontece apenas por que desejamos.
3º) Dos interesses surgirão as imagens que serão as molas propulsoras do desejo
para a efetiva criação.
Ou seja, quando temos um desafio, um desejo de mudança, imaginamos a partir
dos nossos interesses, como faremos essa criação. Entretanto, Vygotsky não deixa de
mencionar o meio externo como fator que influencia a criação. “Qualquer inventor,
mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio. Sua criação surge de
necessidades que foram criadas antes dele e, igualmente, apoia-se em possibilidades que
existem além dele”. (VYGOTSKY, 2009, p. 42). Portanto, o outro sempre está na nossa
criação. Nós criamos em relação, para o outro. E o que as interfaces e softwares sociais
ajudam a fazer é ampliar os meios de divulgação da criação feita. Estes usos destas
plataformas como meio de divulgação de trabalhos, criações etc. é uma forma comum
na nossa sociedade contemporânea. Quase todas as produções audiovisuais podem e vão
circular nos meios digitais disponíveis.
E essa circulação favorece o que Caio viveu ao achar seu próprio blog como
resultado de pesquisa no google, conforme conta sua mãe.

Raquel - E aí o blog é do Google, é, um dia ele tava vendo imagens de dinossauro


no ‘Google Images’ e ele achou um desenho dele, que por causa do blog entrou na
busca. Nossa, ele ficou muito feliz, todo bobo.

2.4 Infância, Cibercultura e Autoria

Uma tese que se apresenta de extrema relevância para o diálogo é intitulada


“Infância e cultura: o que narram as crianças na contemporaneidade?” defendida por
Adriana Hoffmann Fernandes em 2009. A autora investigou a produção de narrativas da

44
infância contemporânea, dialogando com crianças de 7 a 11 anos, utilizando três escolas
e um blog para lócus da pesquisa. Com enfoque na contação e criação de histórias pelas
crianças, a autora destaca a criação e a preferência do uso de imagens ou de narrativas
orais pelos sujeitos participantes de sua pesquisa.
Apesar de ter como um dos enfoques a escola, Adriana Hoffmann Fernandes traz
argumentações que colocam a criança em uma perspectiva histórica e cultural,
compreendendo a infância em sua completude e não apenas no que se refere ao âmbito
escolar. Por isso, essa tese se desvela de suma importância para o diálogo, pois
possibilita saber como pensam as crianças contemporâneas entendendo-as como partes
integrantes da sociedade e produtoras de cultura, já que precisamos compreender a
infância contemporânea que está imersa na cultura existente e que é capaz de produzir
cultura. Desta forma, mesmo sem abordar o assunto sobre a utilização da internet na
escola, acreditamos que captar o que a infância contemporânea produz online ajude a
escola a entender melhor as crianças que lá estão e que, mesmo sem poderem acessar a
internet livremente, estão online, conectadas.
Fernandes investigou “que narrativas constituem a infância contemporânea”
(2009, pp.12-13), seu foco foi a produção de narrativas pelas crianças, como constroem
e como se relacionam com a narrativa hoje. Partindo do pressuposto de que a criança
está inserida em um mundo midiático, com maior ou menor intensidade dependendo de
seu contexto socioeconômico, a autora quer compreender como a escola e os
educadores podem se relacionar com as produções de narrativas pelas crianças sem se
prenderem apenas aos “padrões formais da cultura letrada” (2009, p.15).
Fernandes esclarece, em diálogo com Amaro e Moreira (2001), que “o
significado mais inclusivo de ‘narrativa’ refere-se a qualquer apresentação escrita ou
oral” (2009, p. 12), frisando que vai buscar as histórias (escritas, orais ou de outras
formas) produzidas pelas crianças de diferentes formas (escrita, desenho etc.)
compreendendo a produção de histórias como a produção de narrativas. Sendo assim, a
autora quer entender como as crianças produziam narrativas na época do estudo
realizado.
Esse foco nos aproxima, até porque podemos compreender que as crianças
continuam produzindo narrativas em diferentes meios e podemos compreender essas
narrativas como formas de autorias. Afinal, o que é um vídeo de um Youtuber mirim
além de uma narrativa, de uma forma autoral de se colocar na internet? Os posts dos
blogs também são histórias e muitas vezes contam experiências vividas pelas crianças;

45
as fotografias do Instagram também podem ser consideradas formas de narrativa afinal
também registram momentos importantes vividos pelas crianças. Sem esquecermos que
a maioria das fotos vêm com legendas ou comentários que contam/descrevem/narram o
momento vivido.
Portanto, temos de concordar com Fernandes quando a autora traz a seguinte
questão: “não seria provável supor que as crianças estejam recriando suas narrativas,
tanto no conteúdo como na forma?” (2009, p. 15). Sim, e esta tese que apresento aqui
comprova isso. A utilização dos blogs, redes sociais e Youtube, ajudam as crianças a
criarem novas formas e conteúdos para suas narrativas.
O diálogo com a tese de Fernandes continua e nos auxilia a ampliar a discussão
sobre cultura, indo para além da cibercultura, nos auxiliando a aprofundar as discussões
sobre a cultura de pares das crianças. A autora começa o diálogo com o autor Eric
Hobsbaum e sua análise sobre a “revolução cultural” (grifo da autora), destacando que o
texto do autor é de suma importância para pensarmos “como a criança se relaciona
contemporaneamente com o conhecimento e com a cultura” (p.17). A autora destaca
que a sociedade ocidental sofreu muitas mudanças, principalmente nas formas de vida
familiar com a mudança da família nuclear, com o aumento de divórcios, de pessoas
morando sozinhas, de mulheres que criam seus filhos sozinhas e de mulheres que são
chefes de família. Tudo isso somado ao surgimento da cultura juvenil trouxe uma
grande transformação na relação entre as gerações.
Fernandes em dialogo com Santaella (2006), apresenta a cultura como algo
mutável e que se desloca entre as eras: “cultura oral, escrita, impressa, massiva, das
mídias e cibercultura convivem simultaneamente num processo cumulativo em que cada
nova formação vai se integrando às formações anteriores e modificando-as, provocando
reajustes e refuncionalizações” (p. 21).
Ainda Fernandes, conclui que todas essas mudanças sociais e culturais
vivenciadas por nossa sociedade, trazem uma nova forma de ser criança, com novas
experiências infantis que acarretam transformações nas relações entre as gerações.

Precisamos pensar que a relação cada vez maior das crianças com as
produções da atualidade pode também modificar seus modos de produção
cultural [... investigar como a criança se relaciona e produz suas narrativas
hoje, acreditando que, diante das revoluções da cultura, também podem estar
ocorrendo revoluções nas produções culturais da infância (2009, p.27).

Como entendo a cultura não como algo pronto, acabado, mas pelo viés do
cultural como produção coletiva dos homens, sempre em processo, no qual
cada sujeito produz cultura na sua relação com os demais em sociedade,

46
também entendo que a forma como a criança lida com o conhecimento é
cultural, sendo essa criança uma produtora de cultura (2009, p.44).

Minha investigação mostra que as crianças estão buscando outros lugares para
contar histórias, já que elas trazem formas de narrar que são diferentes das de
antigamente, entretanto, também contam sobre experiências vividas por elas. A mídia é
uma das fontes dessa mudança e as minhas crianças são um exemplo disso: elas narram
nos vídeos, nas legendas e comentários das fotos, com as próprias fotos, gifs, montagens
e nos blogs. A gravação de um vídeo no Youtube onde, por exemplo, Isadora mostra
como fazer doces japoneses, não pode ser considerada uma forma de narrativa? De
acordo com Fernandes, o narrar se modifica historicamente e cada nova forma de narrar
traz consigo novos desafios de acordo com os recursos utilizados para o contar (p.181).
As formas de narrativas das crianças com as quais conversei, caminham mais
para o contar experiências vividas: elas tiram fotos dos lugares em que estiveram,
gravam vídeos contando como foi uma viagem, retratam momentos vividos com amigos
e familiares. “Dessa maneira, ao contarem algo, parece que nem sempre interessa trazer
detalhes do que viveram nos lugares. Vale mais contar que foram a vários lugares do
que contar a experiência vivida” (p.203). Os aplicativos de fotos, as redes sociais, foram
criadas para isso mesmo: um modo de contar onde se esteve, mas sem trazer muitos
detalhes. As legendas, quando existem, apresentam poucas informações. As crianças
que utilizam as redes sociais, assim como a maioria da população em geral, parecem
acreditar no ditado que diz que “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
No Instagram, por exemplo, as imagens são postas na timeline, são publicadas
para todos os amigos. Mas, as crianças que não tem WhatsApp, utilizam o direct para
conversar. As imagens vão para o público, mas as palavras para o privado. Elas separam
as conversas pessoais das postagens públicas.
A autora apresenta ainda, dois fatos muito interessantes: a obrigatoriedade da
postagem no blog e o cumprimento do prazo para essa postagem pelas crianças. Ou
seja: as crianças tinham o compromisso de enviar textos para os editores postarem no
blog e elas cumpriam esse compromisso o que, no caso da pesquisa de Fernandes,
possibilitou uma produção mais constante do que a realizada nas oficinas. A autora
compreendeu que essa obrigatoriedade da escrita para o blog não era um problema para
as crianças já que elas saberiam que seriam lidas e comentadas, legitimando a escrita de
forma significativa. No blog, “escreve-se para ser lido” (p. 211).

47
Com as crianças que participaram da minha pesquisa, pude perceber que a falta
de interação dos leitores dos blogs (ou a falta de leitores), fez com que muitas delas
abandonassem seus blogs. A autora também percebeu isso em sua pesquisa, já que as
crianças que tinham blogs pessoais os desativaram por falta de leitores. “É talvez por
essa falta do olhar do outro que as crianças blogueiras que tinham blogs pessoais,
optaram por interrompê-los” (p.213).
A escrita semanal, ao mesmo tempo em que trazia o compromisso, também
trazia dificuldades: para buscar um tema, para ter tempo para escrever etc. As mesmas
dificuldades que percebi em minha pesquisa, mas com a diferença de que a publicação
no blog de um jornal era um compromisso muito importante para as crianças.
Isso me levou a pensar que a participação das crianças no
Bloguinho pelo período de 3 meses só ocorreu devido a essa
obrigatoriedade da postagem semanal. No momento em que a
escrita se torna opcional fica bem mais difícil manter uma
constância na sua produção (p. 216).

Qual a diferença, para as crianças, de publicar no blog de um jornal e em seus


próprios blogs? Será que o fato de o blog ser famoso fez diferença? Afinal, se perceber
sendo lido e comentado é realmente importante para as crianças. Se seus blogs pessoais
fossem tão visitados elas teriam uma produção maior? Ou apenas a obrigação faz a
produção aumentar?

2.5 Infância, Cibercultura e um encontro com Walter Benjamin

Benjamin e seus escritos publicados em a “Magia e técnica, arte e política:


ensaios sobre a literatura e história da cultura” (2012), em que ele propõe conceitos para
a teoria da arte que poderão revolucionar a política artística num contexto fascista,
enriquece as reflexões desta tese em vários momentos e por isso, é um dos autores
apresentados agora e que poderão surgir ao longo do texto. Iniciando com sua escrita
sobre Reprodutibilidade técnica, em que Benjamin, destaca que a xilogravura, na Idade
Média, e a litografia, no século XIX, permitiram a reprodução da obra de arte. Porém, a
litografia permitiu além da reprodução em massa, a produção diária de novas produções
artísticas. “Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida

48
cotidiana” (2012, p.181). Benjamin, destaca que a litografia logo foi ultrapassada pela
fotografia:
Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada
das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam
unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa que a mão
desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração
que começou a situar-se no mesmo nível que a fala (2012, p.181).

O autor acrescenta que a reprodução do som também fez muita diferença nos
processos artísticos e acabou conquistando um lugar próprio na arte com a junção entre
reprodução de imagem e som (cinema).
No item denominado Autenticidade, Benjamin discorre sobre uma obra de arte
original e sua possível reprodução. Quando reproduzimos uma obra de arte, por maior
perfeição que exista nessa reprodução, há a ausência do “aqui e agora”. “O aqui e agora
do original constitui o conteúdo da sua autenticidade”. Benjamin fala das artes mesmo,
dos quadros, das esculturas etc. Apenas o original está incluído em um contexto.
Benjamin continua afirmando que uma reprodução manual é considerada
falsificação, mas que uma reprodução técnica como a fotografia, mantém a sua
autonomia pois mostra coisas diferentes ao que é possível o olhar do homem perceber,
possibilitando uma variedade de olhares que lhe conferem autenticidade. Outra
característica da reprodução técnica é a possibilidade de transpor essa obra para lugares
inimagináveis. Ele dá como exemplo o som que pode ter sido tocado em um show e que
vai para dentro de nossas casas, havendo uma transposição da música. Ao manter a
autonomia, ela enfrenta a autenticidade. Para Benjamin, essas características
desvalorizam o aqui e agora, ou seja, afetam sua autenticidade.

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido


pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu
testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando
ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se
perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece
com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional (2012, p.182).

Segundo ele, ao ser reproduzida de forma técnica, a obra de arte perde sua aura,
pois retira a tradição do objeto que foi reproduzido, já que ao mesmo tempo em que
amplia a oferta, atingindo cada vez mais pessoas, a reprodutibilidade técnica destrói a
49
aura da arte, a sua autenticidade. Isso, a longo prazo, nos faz chegar no que estamos
agora “a liquidação do valor tradicional de patrimônio da cultura” (BENJAMIN, 2012,
p.183). Dessa forma, a cultura deixa de ser algo que habita nas ou que emana apenas das
classes sociais mais ricas e passa a ser valorizada em todas as classes sociais e em todas
as suas formas de expressão. Hoje em dia, a cultura é conhecida como algo que se
depreende do contexto da vida que está no cotidiano. Não há os clássicos apenas, não há
mais uma valoração da cultura, o que é excelente já que todas as classes sociais foram
“autorizadas” a produzir cultura, ou seja, houve um reconhecimento da cultura de todas
as classes, inclusive, da cultura produzida por crianças.
Continuando a reflexão com Benjamin, cabe trazer uma relação feita durante a
leitura do item “Destruição da aura”, em que o autor afirma que “no interior de grandes
períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao
mesmo tempo que seu modo de existência” (BENJAMIN, 2012, p.183). Podemos trocar
a expressão ‘coletividades humanas’ por ‘infância’: no interior de grandes períodos
históricos, a forma de percepção da infância se transforma ao mesmo tempo que seu
modo de existência. Ou seja, a mudança na forma de percepção da infância se modifica
ao mesmo tempo em que a própria infância se modifica. Impossível falar em morte da
infância ao ler esta frase. Impossível desprezar a cultura infantil atual, que envolve sim
as tecnologias e a internet, em detrimento de um resgate da infância que vivemos. Aliás,
dada a minha idade e minha história de vida, minha infância já foi permeada pela
tecnologia e pela internet30. E Benjamin continua: “o modo pelo qual se organiza a
percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente,
mas também historicamente” (2012, p.183). Trocando os termos novamente, teremos: o
modo pelo qual se organiza a infância, o meio em que ela se dá, não é apenas
condicionado naturalmente, mas também historicamente. O que confirma que infância é
conceito histórico, ou seja, que se modifica ao longo da história.
Benjamin afirma que aura “é uma teia singular, composta de elementos espaciais
e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”
(2012, p.184). Ou seja, a aura, segundo Benjamin, seria aquele momento único em que
experenciamos algo de forma plena. Ele dá como exemplo: “observar, em repouso,
numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta
sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho”

30
Para maiores detalhes, ler FREIRE, 2012.

50
(BENJAMIN, 2012, p.184). Benjamin acredita que a aura está em declínio por duas
razões: a necessidade de proximidade que as pessoas têm em relação aos objetos e a
reprodução. Podemos compreender que a aura se perde no momento em que sentimos a
necessidade de ter uma fotografia da montanha ao invés de nos concentrarmos em viver
a aura daquele momento. A necessidade de ter, ao invés de vivenciar, a concepção de
que apenas tendo algo seremos felizes, a necessidade de registrar em imagens a
experiência vivida como se fosse uma premissa para termos efetivamente vivenciado
aquele momento. Essas são características muito visíveis na nossa sociedade que vive as
redes sociais.
Benjamin traz os filmes para falar que a técnica da produção de um filme está
diretamente relacionada a sua reprodutibilidade técnica. Além de ser mais fácil a sua
reprodução, ela se torna obrigatória por que a produção é muito onerosa. “A difusão se
torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor, que
poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. O filme é uma
criação da coletividade” (BENJAMIN, 2012, p.186). Por isso o Youtube é tão
revolucionário: ele é a possibilidade de uma pessoa fazer um filme caseiro, de baixo ou
nenhum custo, e exibi-lo para milhões de pessoas de forma barata também. Por “não”
ter custos de produção, ele não precisa ser vendido para a massa.
Outro tema desenvolvido por Benjamin e que muito nos interessa nesta tese foi
chamado por ele de ‘Valor de eternidade’. “Os gregos foram obrigados, pelo estágio de
sua técnica, a produzir valores eternos na arte” (BENJAMIN, 2012, p.189). Por não
terem a possibilidades de reprodução em massa, apenas no molde e na cunhagem isso
era possível, os gregos precisavam construir arte para a eternidade.
Em nosso tempo, com toda a reprodução disponível, continuamos buscando dar
valor de eternidade às nossas produções? As crianças, almejando maior visibilidade,
mais curtidas, mais corações, não estão em busca dessa valoração? Podemos relacionar
o valor de eternidade com a efemeridade das produções realizadas agora? Segundo
Benjamin, não dá para pensarmos nisso, principalmente se pensarmos nos filmes, pois
por serem montados quadro a quadro, atingem a perfeição. As partes são escolhidas
para chegarmos a um todo perfeito. Já a escultura, obra de arte eternizada pelos gregos,
é feita a partir de um grande bloco que vai sendo entalhado, formando obras de arte
imperfeitas. “Para os gregos, [...] a mais alta das artes era a menos perfectível, a
escultura” (BENJAMIN, 2012, p.190). Entretanto, Benjamin viveu em um século que
não contava com nem um centésimo da tecnologia que contamos. Fazer um filme, por

51
exemplo, pode ser tarefa das mais simples, tanto que existem os filmes chamados
caseiros que não exigem superproduções. Portanto, acredito que mudamos o nosso valor
de eternidade: uma arte não precisa ser a mais perfeita para atingir um valor de
eternidade, basta que seja a mais curtida, compartilhada, comentada.
Assim, entramos em mais um conceito trabalhado por Benjamin em toda essa
discussão: o intérprete cinematográfico. Nele, o autor, afirma que após ver-se refletido
no espelho, o homem pode ver sua imagem refletida para milhares, para a massa. E o
interprete sabe disso, tem consciência de que sua imagem será projetada para a massa, o
ator sabe que é a massa quem vai controlá-lo já que essa massa possui muita autoridade.
Conforme vemos com os Youtubers: a massa diz quem vai continuar filmando, pois ao
não ter likes e curtidas o Youtuber pode vir a desistir do canal. Cada vídeo também é
medido por likes e visualizações. A quantidade de likes diz para onde o Youtuber deve
seguir. Ou seja, o intérprete daquele vídeo, pode chegar a atingir o valor de eternidade.
Ainda de acordo com o autor, o cinema, a serviço do capital, estimula o culto ao
estrelato. Acredito que a Youtuber Julia Silva seja um grande exemplo disso: seu canal
é muito conhecido e ela possui vários vídeos em que mostra os produtos que “ganhou”
direto de fornecedores.
Benjamin também traz uma citação, sem dizer uma fonte específica, que nos
ajuda muito a observar os Youtubers e seu sucesso: “Desde muito, os observadores
especializados reconheceram que quase sempre os maiores efeitos são alcançados
quando os atores representam o menos possível” (BENJAMIN, 2012, p.196). Não são
os Youtubers atores que representam vídeos de si mesmos? Não importa mais a bela
aparência: ser real também é muito importante. “O ator cinematográfico típico só
representa a si mesmo” (BENJAMIN, 2012, p.197). Os Youtubers também são assim:
em sua maioria, eles só representam a si mesmos.
Outra relação importante feita por Benjamin falando do ator de cinema e que se
encaixa perfeitamente no estudo dos Youtubers: “O astro do cinema impressiona seu
público sobretudo porque parece abrir a todos, a partir do seu exemplo, a possibilidade
de “fazer cinema”. A ideia de se fazer reproduzir pela câmara exerce uma enorme
atração sobre o homem moderno” (BENJAMIN, 2012, p.197). O Youtube permitiu de
forma muito fácil, essa possibilidade de fazer cinema. Qualquer pessoa com uma
câmera na mão pode fazer um vídeo e publicar no Youtube. O próprio significado de
Youtube é um exemplo do quanto essa enorme atração entre o homem e a câmara é real.

52
No item ‘Exposição perante a massa’ Benjamin afirma que o cinema transforma
o modo de os atores e também os políticos se mostrarem. A internet e o Youtube
também tem essa característica: o objetivo de um Youtuber é ser visto, de um blogueiro
é ser lido. Quanto mais se mostrar, mais facilmente se vende e mais se ganha. Mostrar-
se para vender-se e ter sucesso.
Já o desenvolvimento do conceito chamado de ‘Exigência de ser filmado’
Benjamin discorre sobre a possibilidade de qualquer um ser filmado. Para isso, ele traz
a questão da leitura e da escrita, contando que com a grande ampliação da imprensa “um
número crescente de leitores começou a escrever, a princípio esporadicamente”
(BENJAMIN, 2012, p.199). O autor, como sempre visionário, continua afirmando que
“com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se
transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto
a converter-se num escritor” (BENJAMIN, 2012, p.199). Exatamente como vivemos
intensamente com a web 2.0. Ele também conta que o cinema russo já contava com
pessoas que se autorrepresentavam, principalmente no processo de trabalho, ou seja,
falando algo que elas dominavam. Os Youtubers fazem exatamente isso: existem muitos
canais de especialistas que falam sobre seus processos de trabalho. Sendo assim, temos
canais de culinária, comida, aulas, maternidade, tutoriais diversos etc. Benjamin conta
que o cinema europeu excluía essas produções em função do capital. Com o Youtube, as
produções são as mais diversas, pois não dependem exclusivamente do capital. Existem
formas de se alavancar um vídeo, pagando para que ele apareça nos primeiros resultados
de uma busca, mas também é possível publicar um vídeo sem pagar nada por isso. Tudo
depende do objetivo de quem publica o mesmo.
Finalizando os conceitos apresentados por Benjamin, trazemos ‘O autor como
produtor’ em que Benjamin, em uma conferência pronunciada no Instituto para o estudo
do Facismo em Paris, em 1934, se propõe a analisar a autonomia do autor. Ele traz
conceitos como politicamente correto e qualidade literária para abordar a luta de classes
e as formas de resistência dentro das relações de produção literária. Para o nosso debate
nessa tese, cabe nos atermos à seguinte afirmação feita por Benjamin: para estudarmos a
relação do autor como produtor, é necessário recorrermos à imprensa. Ele traz o jornal
soviético como exemplo de um veículo que possibilita ao leitor que se torne autor,
diminuindo a distinção entre esses dois termos. O jornal, em suas seções de cartas dos
leitores, possibilita que estes se tornem autores. Esse também foi um movimento feito

53
pelos veículos de comunicação na web: ao ler uma matéria e poder comentar, você está
se tornando autor daquela matéria também.
“E esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da
produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os
leitores ou expectadores” (BENJAMIN, 2012, p.141-142). Os colaboradores, leitores ou
expectadores, estão produzindo a favor do sistema sem perceber? Sim, todo esse modo
de produção atual, está mais orientado para manter o sistema capitalista: tudo gera em
torno do consumo. A maioria dos blogs que começam a fazer sucesso entre crianças e
adolescentes está, via de regra, ligado ao consumo, seja de jogos, moda ou viagens.
Benjamin alega que é bom que o consumidor alce à esfera de produtor, mas
ressalta que nem sempre isso é feito de forma reflexiva e a mudar a ordem estabelecida.
“Talvez tenha chamado vossa atenção o fato de que as observações que estou a ponto de
concluir imponham ao escritor apenas uma única exigência, que é a reflexão: refletir
sobre sua posição no processo produtivo” (BENJAMIN, 2012, p.144). É claro que não
podemos exigir isso das crianças, mas também, não podemos deixar de pensar que elas
acabam chegando a muitas reflexões: o post da Isadora (página 144) sobre a
importância da beleza interior é um exemplo. A fala da Manuela sobre as fotos mais
sensuais tiradas por meninas do 9º ano da sua escola também (página 96). Ou seja, não
podemos acreditar que as crianças estão produzindo na internet sem pensar sobre suas
produções.

2.6 Infância, Cibercultura e a WEB 2.0

Mas, o que entendemos por cibercultura? Com o auxílio de Santos (2011, p. 77),
temos a seguinte descrição: “A cibercultura é a cultura contemporânea estruturada pelo
uso das tecnologias digitais em rede nas esferas do ciberespaço e das cidades”. Ou seja,
a definição da autora atualiza a dos primeiros estudos que definiam cibercultura como a
cultura do ciberespaço, sendo este, um espaço informacional que
se constitui e é constituído pelas tecnologias digitais em rede que é para
nosso tempo um dos mais importantes artefatos técnico-culturais, pois
ampliam e potencializam a nossa capacidade de memória, armazenamento,
processamento de informações e conhecimentos, e, sobretudo, de
comunicação (p. 77).

54
Cabe destacar que essa comunicação é “caracterizada pela liberação do polo da
emissão, pela reconfiguração das mídias e pela conectividade generalizada” (p.77).
Ainda em diálogo com Edméa Santos, aprendemos por que não devemos mais definir a
cibercultura apenas como a cultura da internet, já que
com o avanço tecnológico, mais especificamente por conta da mobilidade dos
dispositivos e da internet, das mídias locativas, das tecnologias via satélite,
que conectam o ciberespaço com as cidades e estas com o ciberespaço, não
podemos mais entender a cibercultura apenas como a cultura da internet. Por
outro lado, é preciso reconhecer os avanços da internet e como essa rede
mundial de computadores vem interagindo com diversos espaçostempos
cotidianos (p. 83).

Outro destaque importante trazido por Santos é a afirmação de que a nossa


sociedade vive um momento de expansão das tecnologias digitais que permite que
transformemos as formas de produção e socialização dos saberes. Elas nos possibilitam
produzir, acessar, transmitir informações sem, necessariamente, precisar de um suporte
físico fixo facilitando assim os processos de transmissão, circulação, armazenamento e
também de significação das informações, conhecimentos e saberes. Em síntese, esse
processo de digitalização se caracteriza tecnicamente pela convergência da computação
(informática e suas aplicações), da comunicação (transmissão e recepção de dados) e
dos conteúdos (textos, sons, imagens, gráficos). (SANTOS, 2002).
Desta digitalização e do crescimento do acesso à Internet, possibilitado pela
transição do Computador utilizado nas grandes empresas, passando pelo Computador
Pessoal (PC) e chegando ao Computador Conectado (CC) a partir da década de 90
evidenciam-se as novas formas de comunicação e de estruturação das atividades
humanas. “A influência das tecnologias digitais em rede vem afetando os cotidianos em
suas mais plurais dimensões”, ou seja, o tempo é real e o espaço é o não espaço,
dificilmente estamos isolados.
As tecnologias digitais surgiram, então, como a infraestrutura do
ciberespaço, novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de
organização e de transação, mas também novo mercado da informação
e do conhecimento (LÉVY, 1999, p. 32).

Do livro de ficção científica de William Gibson (Neuromante, 1984), surge o


termo ciberespaço, sendo prontamente utilizado pelos usuários e criadores de redes
digitais. Segundo Lévy, ciberespaço é “o espaço de comunicação aberto pela
interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores” (1999, p.
92). Esse conceito, entretanto, como a própria realidade cultural em que estamos

55
inseridos, tende a se alterar constantemente. De acordo com Lemos, é com o surgimento
do ciberespaço que a possiblidade da circulação livre da mensagem acontece, já que não
há mais apenas um centro de edição dessa mensagem e ela pode ser distribuída de
“forma transversal e vertical, aleatória e associativa” (LEMOS, 2010, pp. 79-80). Esta
comunicação possibilitada pelo ciberespaço pode acontecer das seguintes formas: “um-
um, um-todos e todos-todos em troca simultânea (comunicação síncrona) ou não
(comunicação assíncrona)” (SANTOS, 2002, p. 115, grifo meu). É o desejo de conexão
da sociedade que permite a popularização do ciberespaço na cultura contemporânea,
possibilitando a existência da chamada cibercultura.
Segundo Lemos (2003), definir cibercultura é um problema, já que
o termo está recheado de sentidos mas podemos compreender a cibercultura
como a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a
sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base microeletrônica que
surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática na
década de 70 (p.11).

Entretanto, o próprio autor nos apresenta a seguinte definição de cibercultura


como o “produto da digitalização dos media, do advento de um fluxo de mensagens
planetário, multimodal e bidirecional, em que o receptor torna-se também, um emissor
potencial” (LEMOS, 2010, p. 259). Desta forma, o poder de emissão do usuário está
cada vez mais presente na internet, principalmente por conta da transformação do
conceito que rege a web, que a princípio cabia na definição de Lévy em 1999, onde o
autor explica que ela “é uma função da Internet que junta, em um único e imenso
hipertexto31 ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os documentos
e hipertextos que a alimentam” (LÉVY, 1999, p. 27). E que em 2005 ganha uma nova
definição cunhada por Tim O’ Reilly em que ele coloca a expressão Web 2.0 em
destaque com a publicação do artigo “O que é Web 2.0?”. Em seu texto O’ Reilly traz
um mapa com algumas das principais características que o novo conceito de Web
apresenta. Algumas delas são: Confie nos seus usuários; O Beta perpétuo; Software
melhor quanto mais as pessoas o utilizam; Experiência rica do usuário;
“Hackeabilidade”; O direito de Remixar: “Alguns direitos reservados”;
Comportamento do usuário não predeterminado; Descentralização Radical. Ainda
31
Hipertexto é um texto em formato digital, reconfigurável e fluido. Ele é composto por blocos
elementares ligados por links que podem ser explorados em tempo real na tela. A noção de
hiperdocumento generaliza, para todas as categorias de signos (imagens, animações, sons etc.), o
princípio da mensagem em rede móvel que caracteriza o hipertexto.

56
conforme O’Reilly (2006), a Web 2.0 deve “facilitar o autosserviço do consumidor” (p.
7); ser quase que uma transposição do PC (computador pessoal) on-line, permitindo que
o usuário gerencie arquivos pessoais e conteúdos na Web e possuir sistemas que são
projetados para serem hackeados ou remixados, ou seja, sistemas que permitem a
alteração pelos usuários. Uma expressão que caracteriza a Web 2.0 é “alguns direitos
reservados”, utilizada pelo Creative Commons para opor-se ao sempre utilizado “todos
os direitos reservados”. Estas características ressaltam o destaque que o usuário adquire
com a Web 2.0 já que para além de buscar informações, ele poderá contribuir com
informações.
Santos (2010), explica as diferenças entre a Web em sua primeira fase,
conhecida como Web 1.0 e em sua segunda fase, a Web 2.0. A autora nos mostra que em
sua primeira fase a Internet não era um lugar de fácil acesso para a produção e
compartilhamento de informações, sendo necessário para isso, conhecer linguagens
como HTML32. Já com a Web 2.0, começaram a aparecer sites que possibilitam essa
inserção dos conteúdos sem a necessidade do conhecimento de linguagens específicas,
pois têm o acesso aberto, com conteúdos dinâmicos criados pelos usuários, oferecem
conteúdo livre para cópia e utilizam tecnologias já existentes. A Web 2.0 pode ser
exemplificada se pensarmos em sites colaborativos onde o usuário participa do
conteúdo, tais como: Facebook, Orkut, blogs, sites de notícias que possibilitem ao leitor
colocar seus comentários, Wikipedia etc. A autora afirma que com a Web 2.0
“passamos a ter conteúdos criados, publicados e editados pelos próprios praticantes da
rede” (2011, p. 84).
A importância desse conceito está na possibilidade de ampliação do polo de
emissão: não há mais apenas um emissor, agora todos podem participar e colocar
conteúdo na internet. Seguimos com Santos:
Atualmente, a cibercultura vem se caracterizando pela emergência da
Web 2.0 com seus softwares e redes sociais mediadas pelas interfaces
digitais em rede, pela mobilidade e convergência de mídias, dos
computadores e dispositivos portáteis e da telefonia móvel.
(SANTOS, 2011, online).

A partir dessa descrição da web 2.0, podemos perceber que o usuário ganha uma
nova forma de navegar na internet: além de buscar informações, ele pode se tornar
propagador de informações. A liberação do polo de emissão de conteúdos é um dos

32
Abreviação para a expressão inglesa HyperText Markup Language, que significa Linguagem de
Marcação de Hipertexto.

57
pilares desta tese, pois é esta liberação que possibilita às crianças (e aos adultos
também) a autoria na internet. Ou seja, ele pode interagir, comunicar-se, expressar-se,
criar conteúdos e divulga-los. Essa possibilidade de interação pelo usuário é um tema
bastante discutido nos estudos que envolvem a cibercultura. Esta interatividade foi
possibilitada pela evolução das interfaces e dos media digitais, pois é nessas interfaces
que a interatividade por acontecer. (LEMOS, 2010, online [2010]). Santos nos lembra
que a liberação do polo de emissão não foi sempre uma realidade:
Só as agências de notícias e grandes indústrias culturais gozavam da
possibilidade de emitir e difundir informações e conhecimentos. Com a
expansão das mídias digitais em rede (ciberespaço) e das mídias móveis,
temos a possibilidade não só de produzir como também de fazer circular
informações para além do desktop (Santos, 2011, p. 91)

Ainda de acordo com Lemos, contando sobre a evolução das interfaces e o


consequente aumento das possibilidades de interação, em 1963 “houve o impulso para
uma interatividade gráfica onde o usuário podia desenhar no monitor, através de uma
caneta (pen light)” (LEMOS, on-line[2012]). O desenvolvimento da realidade virtual,
transformando o computador “numa ferramenta universal de manipulação cognitiva
graças à interatividade e à simulação” (LEMOS, on-line[2012]) também favoreceu o
desenvolvimento da interatividade. Situa o surgimento do teclado e do monitor, na era
dos microcomputadores nos anos 60, como possibilitadores de “uma interação mais
dinâmica com os computadores e uma visualização mais confortável das informações”
(LEMOS, on-line[2012]). A partir do surgimento da microinformática, a massificação
dos computadores cresce vertiginosamente: os jogos eletrônicos e a manipulação virtual
dos ícones e janelas da tela através do mouse permite que a interface gráfica ganhe uma
agilidade e facilidade no manuseio. Sendo assim, “a simulação dos objetos e tarefas é
fundamental” (LEMOS, on-line[2012]) nesta fase evolutiva do computador e da
interatividade. Com essa história da evolução do computador trazida por Lemos (2010,
online [2012]), percebemos que a interatividade possibilitada hoje nem sempre existiu.
A fim de continuar a consideração sobre a interatividade, recorro à Silva (2010b,
2004, 2010) que afirma que a interatividade é um mais comunicacional, permite
coautoria, cocriação do usuário em relação ao produto, além de permitir a modificação
dos conteúdos.
O termo significa a comunicação que se faz entre emissão e recepção
entendida como cocriação da mensagem. [...] A mensagem só toma

58
todo o seu significado sob a intervenção do receptor que se torna, de
certa maneira, criador (SILVA, 2004, pp. 4-5).

Ainda de acordo com Silva, a interatividade é a “possibilidade libertadora da


autoria do usuário sobre sua ação de conhecer” (2010b, p. 45). Este autor destaca três
características que fundamentam a interatividade, a partir dos seguintes binômios: a)
bidirecionalidade-hibridação que é a comunicação feita a partir do consenso de que não
se pode mais separar o emissor e o receptor. Baseia-se na troca entre estes polos, onde
cada um assume o papel do outro, não havendo mais distinções, ou seja, considerando
que há emissor e receptor e agindo de forma a possibilitar uma comunicação onde “todo
emissor é potencialmente um receptor e todo receptor é potencialmente um emissor” (p.
8); b) participação-intervenção permite que o usuário participe do processo de
produção; e c) potencialidade-permutabilidade é a liberdade de navegação sem pontos
fixos de saída ou chegada, ou seja, a possibilidade do usuário em decidir o que acontece
no monitor, não precisando seguir uma sequência, podendo de forma aleatória, clicar
em qualquer ponto, não havendo pontos intermediários. Segundo ele, um dos marcos
dessa interatividade é a “liberdade diante das informações armazenadas” (2004, p. 9).
Com potencialidade ele quer dizer que há potencial por causa da enorme quantidade de
informações instantâneas e com permutabilidade ele traz a liberdade que temos ao
combiná-las.
Diante desse equipamento é o usuário quem decide o que vai acontecer no
monitor. Ele tem diante de si uma tecnologia capaz de produzir uma narrativa
também potencial e permutativa, uma tecnologia capaz de produzir narrativas
possíveis. Dependendo do que ele fizer acontecer, novos eventos ou
combinações podem ser desencadeados. Então ele mesmo não sabe o que vai
acontecer. Depende da conexão que fizer a cada momento. Depende do
acaso. (SILVA, 2004, p. 9).

Silva afirma que a imagem digital requer uma nova dimensão comunicacional
“aquilo que define o digital como peculiar disposição comunicacional é precisamente a
condição de hipertexto essencialmente interativo” (2010b, p. 83). Sendo assim, defende
que para além de compreendermos a interatividade temos que entender que é necessário
haver uma nova forma de comunicação, aquela que permite a participação-intervenção
do interlocutor e não entender a comunicação como aquela que transmite. Para
exemplificar, Silva (2004, p. 85) apresenta a comunicação em duas modalidades: a
unidirecional e a interativa. Na comunicação unidirecional, a mensagem é “fechada,
imutável, linear, sequencial”; o emissor é um “contador de histórias narrador que atrai o
receptor (de maneira mais ou menos sedutora e/ou por imposição) para o seu universo

59
mental, seu imaginário, sua récita”; o receptor é um “assimilador passivo”. Na
comunicação interativa, a mensagem é “modificável, em mutação, na medida em que
responde às solicitações daquele que a manipula”; o emissor é um “ ‘designer de
software’, constrói uma rede (não uma rota) e define um conjunto de territórios a
explorar; ele não oferece uma história a ouvir, mas um conjunto de territórios a
explorar; ele não oferece uma história a ouvir, mas um conjunto intricado (labirinto) de
territórios abertos a navegações e dispostos a interferências, a modificações” e o
receptor é o “ ‘usuário’, manipula a mensagem como coautor, cocriador, verdadeiro
conceptor”.
A interatividade faz parte dos fundamentos da cibercultura, a saber:
interatividade, hipertexto, simulação, convergência, mobilidade e ubiquidade. Edmea
nos lembra, que esses termos existem antes do surgimento das tecnologias digitais, mas
que é com elas que eles ganham destaque. A interatividade existe quando há
comunicação, pois esse é um conceito da área comunicacional que existe com ou sem
mediação digital, conforme vimos na explicação acima apresentada por um
comunicador (Marco Silva). O que as interfaces possibilitam é a interatividade entre
sujeitos da comunicação que estão geograficamente dispersos.
Os produtos culturais que emergem da autoria e da comunicação interativa
são em potência hipertextos, isto é, textos que se conectam a outros textos
através da polifonia dos sentidos e significados que são criados nos contextos
online e off line. (Santos, 2011, p.88).

Ainda Edméa nos diz que o hipertexto é um produto cultural fruto da autoria e
da comunicação interativa. O hipertexto é fundamental para a autoria e interatividade já
que, segundo Santos e Silva (2009, p. 127)
A disponibilidade do diálogo com vários autores/leitores permite acesso e
negociação de sentidos, ressignificando a noção de autoria. [... O fim no
hipertexto é sempre um novo começo caleidoscópico, no qual podemos,
simultaneamente, ler vários textos (janelas mixadas), cortar, colar e criar
intertextos.

Ou seja, é o hipertexto quem possibilita que o indivíduo se relacione de outra


forma com a informação, indo para além do consumo, da passividade, e assumindo o
lugar de “sujeito operativo, participativo e criativo” (Silva e Santos, 2009, p.130).
Edméa Santos (2011, p. 89), define autoria na cibercultura como uma

60
obra aberta, plástica, móvel e em constante virtualização, ou seja, simulação.
Simular é virtualizar, questionar, inventar, criar e testar hipóteses. Com a
possibilidade da interatividade e do hipertexto, o sujeito pode simular
coletivamente, em colaboração com os demais sujeitos geograficamente
dispersos no ciberespaço e nas cidades. (2011, p.89).

Ao possibilitar a interatividade para o usuário, o ciberespaço proporcionou o


surgimento de um outro tipo de leitor, o chamado “leitor imersivo”. Este conceito,
cunhado por Santaella (2004), é de fundamental importância para os estudos da
cibercultura e faz-se necessário dar-nos a conhece-lo um pouco mais.
Entretanto, primeiro precisamos entender que a palavra leitor utilizada pela
autora, transcende ao seu uso habitual: para além de um leitor de “letras”, de palavras,
devemos pensar em um leitor de imagens, do cinema e da TV, ou seja, um leitor para
além daquele que lê livros: [...] “visto que as habilidades perceptivas e cognitivas que
eles desenvolvem nos ajudam a compreender o perfil do leitor que navega pelas infovias
do ciberespaço, povoadas de imagens, sinais, mapas, rotas, luzes, pistas, palavras, textos
e sons” (SANTAELLA, 2004, pp. 16-17).
A autora justifica essa nova forma de entendimento do que seja um leitor,
trazendo as modificações que a leitura vem sofrendo há décadas para além do
ciberespaço. O ciberespaço proporciona mais uma forma de leitura e,
consequentemente, outros tipos de leitores. Essa modificação é ainda mais clara se
pensarmos no próprio livro infantil que, muitas vezes, conta com imagens, facas
(imagens que saltam do livro), sons, texturas etc. Ou seja, não foi o ciberespaço que
modificou a leitura que, neste momento, se apresenta de diversas formas em diversas
plataformas.
Pretendendo compreender melhor esse processo de mudança nas formas de
leitura, a autora classifica o leitor em três tipos (SANTAELLA, 2004, p.19):
 Contemplativo: é o leitor da era do livro impresso e da imagem
expositiva e fixa.
 Movente: é o leitor do mundo em movimento, mundo que não para,
dinâmico, complexo, heterogêneo.
 Imersivo: é o leitor que aparece no mundo imaterial, virtual.

61
Sendo o tema dessa tese de doutorado relacionado à cibercultura, não há a
necessidade de aprofundarmos os três tipos de leitor descritos por Santaella (2004),
entretanto, cabe uma contemplação mais detalhada acerca do leitor imersivo que surge
com o ciberespaço.
O leitor imersivo é aquele que aparece com a digitalização da informação e que
vai conectar-se entre os nós e os nexos ao navegar pela tela, num roteiro multilinear.
Dentre as especificidades do leitor imersivo estão a interatividade e as transformações
sensórias, um agir física e mentalmente: “não há mais tempo para contemplação”
(SANTAELLA, 2004, p. 181). O leitor imersivo é aquele que navega com todos os seus
sentidos, não utiliza apenas a leitura das palavras escritas, mas também as imagens, as
tentativas e erros. Desta definição de leitor imersivo, Santaella (2004), apresenta os
estilos de navegação que o acompanham: o errante, o detetive e o previdente. Ela
descreve cada modo de navegar da seguinte maneira:
O errante é aquele que navega utilizando o ponteiro magnético do seu instinto
para advinhar. (...) Enfrenta a sua tarefa como quem brinca, explorando
aleatoriamente o campo de possiblidades aberto pela trama hipermediática
com o desprendimento que é típico daqueles que não temem o risco de errar
(...) não traz consigo o suporte da memória, pois navega como quem percorre
territórios ainda desconhecidos e, por isso mesmo, surpreendentes.
O detetive é aquele munido de uma memória operativa aguçada movimenta-
se no campo. (...) Suas estratégias de busca são acionadas mediante avanços,
erros e autocorreções. Seu percurso caracteriza-se, portanto, como um
processo auto organizativo próprio daquele que aprende com a experiência.
O previdente (...) é aquele que, tendo já passado pelo processo de
aprendizagem, adquiriu tal familiaridade com os processo informacionais (...)
que é capaz de antecipar as consequências de cada uma de suas escolhas.
(SANTAELLA, 2004, pp. 178-179)

Entretanto, Santaella (2004) alerta que, em sua pesquisa, ela constatou que
mesmo os internautas mais experientes podem apresentar um estilo errante de
navegação.
Portanto, agora que já destacamos o que consideramos importante no conceito
de infância contemporânea e de cibercultura, cabe argumentar com Pereira (2013) sobre
a relação entre a infância e a cibercultura. Compreender que as crianças ocupam uma
posição de horizontalidade em relação aos adultos quando falamos de produções online
é fundamental para seguirmos em frente. Como se dá essa horizontalidade? A
possibilidade de produzir e de divulgar conteúdo facilitada/viabilizada pela internet é
real e efetiva: o domínio das ferramentas que possibilitam essa inserção de conteúdos é
muito mais disponível do que se pensarmos em um programa de televisão ou de rádio,
por exemplo. Ou em um jornal ou livro. As ferramentas disponíveis na internet,

62
possibilitam que, com uma câmera, celular, tablet, com uma ideia, sabendo escrever ou
desenhar, a criança possa produzir conteúdos online. Assim, como veremos a frente, as
crianças interlocutoras da pesquisa produzem vídeos para o canal do Youtube, vídeos
em que aparecem falando sobre determinado assunto, cantando ou jogando e explicando
como vencer determinada fase do jogo, postam fotos ou vídeos curtos em redes sociais,
constroem blogs com seus desenhos ou com temas que sejam de seu interesse onde
escrevem textos sobre determinado assunto, selecionam imagens para ilustrar esses
textos. Desta forma, a parte técnica, possibilitada com a Web 2.0, facilita a produção e
veiculação dessas produções. Afinal, sabemos que as crianças há muito tempo
desenham, jogam ou escrevem livros e histórias, mas agora, elas podem dar visibilidade
a essas produções de uma forma mais abrangente.
O que está em jogo, sim, parece ser o exercício de se fazer uma avaliação das
possibilidades de produção horizontalizada de conhecimento, onde adultos e
crianças possam, em semelhantes condições de autoria, compartilhar e
disputar sentidos à experiência social. Isto implica a construção de uma ética
que reconheça a criança não como um vir-a-ser a quem se olha tomando
distância, mas como um ser que é em plenitude e desse lugar que ocupa age e
interpreta o mundo social em que está inserido. Uma ética que reconheça a
legitimidade da narrativa infantil, assim como da produção de uma narrativa
que não se dá a posteriori, mas que se produz “enquanto” vivemos.
(PEREIRA, 2014, p. 152).

Com o objetivo de ponderar sobre “o lugar social que as crianças ocupam na


cibercultura” (PEREIRA, 2014, p. 140) e compreendendo que “a cibercultura recoloca
em pauta a indagação ‘o que é a infância?’”, continuamos o diálogo com Pereira (2014)
em seu artigo em que ela escreve um texto filosófico que nos ajude a pensar na
interlocução entre infância e cibercultura, considerando infância como “experiência que
é própria das crianças e que constitui os adultos em forma de memória” (2014, p. 131).
Pereira segue destacando que pensar a infância de forma articulada, evidencia uma
dificuldade ou dúvida racional decorrente da impossibilidade objetiva de obtermos
resposta ao refletirmos sobre a experiência da infância contemporânea. Pois, pensar algo
contemporâneo sempre é um desafio ainda maior quando a partir da cibercultura
percebemos que a criança ocupa um lugar de autoria “numa perspectiva de construção
coletiva da cultura” (PEREIRA, 2014, p. 133), ou seja, a criança, com a web 2.0 passa a
produzir de forma colaborativa a comunicação, saindo do lugar de quem apenas acessa
as informações disponíveis. Nunca é demais repetir que esse novo papel possibilitado
pela web 2.0 é também utilizado pelos adultos, já que é uma possibilidade disponível a
qualquer usuário da internet.

63
A partir dessa possibilidade de autoria pelos usuários, crianças e adultos, Pereira
indaga: “qual é o lugar que a criança efetivamente ocupa nessa suposta coletivização da
produção e da circulação da cultura contemporânea?” (PEREIRA, 2014, p. 134).
Questão muito importante para esta tese que pretende apresentar crianças que produzem
e fazem circular cultura, principalmente entre outras crianças. As Youtubers mirins são
um ótimo exemplo dessa circulação da cultura de pares. Em 2015, conversando com
Luana, 10 anos, filha de amigos, foi possível descobrir vários Youtubers mirins, aliás
foi possível descobrir que existe essa classificação dentro dos canais do Youtube. Os
canais que Luana indicou foram: Bel para meninas 33; Manuela Antelo34; Julia Silva35;
Duda Monster High36. Durante a navegação nos perfis indicados por Luana, foi possível
ter contato com alguns outros. São eles: 234janine37; Carol Caelo38; Canal da Lulu39; Fã
Clube JuliaSilva40 (feito por uma fã, conforme descrito em sobre: “Oi gente,meu nome
eh Suelen Alves,e sou uma grande fã da Julia por iso fiz este Fã Clube. Inscrevam-se”.
Já conta com 8.164 inscritos); Carol Santina41 e Giovanna e Thais42 Algumas destas
crianças tem blog e perfis no Instagram e no Facebook. Uma das youtubers mirins, a
Júlia Silva, está em propagandas do canal infantil Discovery Kids e em outros lugares
da mídia. Ou seja, essas crianças estão se fazendo conhecer e colocando em circulação
suas produções.
Portanto, esta tese se propõe a ampliar a percepção que temos da criança em sua
relação com a cibercultura, fugindo da falta de diálogo entre os campos de estudo da
infância e da cibercultura, conforme destaca Pereira.
O que se percebe é que, a despeito de toda produção acadêmica que se
acumula nos diferentes campos disciplinares dedicados aos estudos da
infância e da cibercultura, quando trazidos de maneira relacional, esses
campos de estudo pouco dialogam: a criança que, em tese, é o sujeito ativo
que ressignifica e recria a cultura em que está inserida, parece não ocupar o
mesmo lugar social do sujeito colaborativo ou interator que experimenta na
cibercultura novos modos de autoria, subjetivação e de sociabilidade
(PEREIRA, 2014, p. 134).

Após fazer um levantamento amplo sobre infância e cibercultura, Pereira (2014)


conclui que existem duas tendências discursivas que estão presentes de forma mais
33
https://www.youtube.com/channel/UCIyBJyajKYaG-iPc78M2geg
34
https://www.youtube.com/user/veveantelo/about
35
https://www.youtube.com/user/paulaloma29
36
https://www.youtube.com/channel/UCl7IyrcHJvI13IqpzH-cMHg
37
https://www.youtube.com/channel/UCz4DvqOhYI-kK7ddFuXHMyQ
38
https://www.youtube.com/channel/UCUB7MsIrQ9ddXY3AHLXo22g
39
https://www.youtube.com/channel/UCgdDy-fpitMcI39TEfxDl0g
40
https://www.youtube.com/channel/UCgVBnS4SEw92qXSWdONb1kA
41
https://www.youtube.com/user/carolsantinaoficial
42
https://www.youtube.com/channel/UCjhfn2uak0lGlkM2oY72Dag

64
enfática no que se refere aos estudos sobre o assunto. A primeira se refere a um lugar de
“expertise” da criança em relação ao uso dos aparatos. Entretanto, importante ressaltar
que “a experiência infantil de comunicação no contexto da cibercultura parece
permanecer um terreno intocável” (PEREIRA, 2014, p. 140). A segunda tem a ver com
os riscos e em como preparar as crianças para enfrentarem esses riscos. Pereira destaca
que a temática da segurança ganha muito espaço, inclusive mercadológico, já que
estando a criança colocada em um lugar natural de recepção, mesmo considerando sua
capacidade de contemplação ativa e de ressignificação, e o adulto em um lugar natural
de produção e apresentação dessa cultura para a criança; quando a cibercultura e a
perspectiva da imersão possibilita que essa relação seja horizontalizada sem haver mais
o lugar do adulto como única fonte de produção da cultura, surgem os discursos que
apontam para os perigos, os riscos e a fragilidade infantil que estão em jogo quando a
criança passa a ter o domínio sobre essas ferramentas de produção de cultura e de
comunicação (PEREIRA, 2014).
Pereira alega ainda que apesar da cibercultura possibilitar a horizontalidade na
produção e na socialização da cultura, por olharmos a infância a partir da perspectiva da
visão moderna de infância, ainda não conseguimos reconhecer a experiência infantil de
forma horizontal na relação com a cibercultura. Não nos permitimos perceber a criança
que ocupa esse lugar de produção da cultura. Macedo (2013), assim como Pereira,
aborda uma questão muito importante para a tese que aqui se desenvolve: a
possibilidade de uma relação horizontal possibilitada pela ocupação dos mesmos
ambientes informacionais e comunicacionais. “Seja adulto ou criança, há, em potência,
uma horizontalidade das vozes e das relações; uma espécie de democratização do
espaço” (MACEDO, 2014, p.55).
Ainda de acordo com Pereira (2014), o adulto, ao olhar para a infância como
algo que não lhe pertence mais, produz um conhecimento que não se dirige às crianças.
Estamos sempre olhando o que supomos faltar nas crianças e não aquilo que a criança é,
tem ou faz. A cibercultura, se pensarmos nas possibilidades de produção e
comunicação, permite que a criança dialogue por ela mesma com a cultura, sem ter
como meio de interação a escola ou os programas culturais organizados por adultos.

65
2.7 Infância e cibercultura: o limiar entre o público e o privado

Viver numa casa de vidro é uma virtude


revolucionária por excelência. Também isso é
embriaguez, um exibicionismo moral, que nos
é extremamente necessário.
Walter Benjamin

Trazendo uma discussão sobre blogs, canais no Youtube, vídeos virais, fotologs
etc., feitos por adultos, Sibília, defende que a formação da subjetividade do ser humano,
que é uma construção social e histórica, passa por uma transformação. O que era feito
de dentro para fora, de forma silenciosa, em reclusão, passa a ser feito de fora para
dentro. Sendo assim, passamos de uma subjetividade interdirigida para uma
subjetividade alterdirigida. A formação da subjetividade que se dava na introspecção, na
solidão, agora se dá na extrospecção. Essa nossa formação da subjetividade, contribui
para a perda da diferença entre público e privado, ou melhor, é uma consequência dessa
perda, ou dizendo melhor ainda: é um ciclo. Quanto menos diferenciamos o público do
privado, mais utilizamos a subjetividade alterdirigida, o que nos faz diferenciar ainda
menos o público do privado e assim sucessivamente. O homem passou do público para
o privado e agora estamos vivendo uma volta a esse público: passamos do ser, para o ter
e agora estamos no aparecer. Sendo assim, precisamos de uma subjetividade visível: é
preciso mostrar-se para existir.

[...] há um deslocamento em direção à intimidade: uma curiosidade


crescente por aqueles âmbitos da existência que costumavam ser
catalogados de maneira inequívoca como privados. (SIBÍLIA, 2009,
p.34).

Esse anseio em retratar o real da vida comum, dilui ainda mais as fronteiras entre
público e privado e contribui para o aumento das narrativas na primeira pessoa do
singular. Assim, esse eu que se mostra tem
uma ânsia por inventar realidades que pareçam ficções.
Espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar nossas
personalidades e vidas (já nem tão) privadas em realidades
ficcionalizadas com recursos midiáticos. (SIBÍLIA, 2009, p.197).

66
Ainda sobre a formação das subjetividades, a autora continua:

Tudo indica que estaria se deslocando, portanto, o eixo em torno do


qual as subjetividades se constroem. Abandonando o espaço interior
dos abismos da alma ou dos sombrios conflitos psíquicos, o eu passa a
se estruturar em torno do corpo. Ou, mais precisamente, da imagem
visível do q cada um é. (SIBÍLIA, 2009, p. 111)

A autora destaca ainda a mudança na relação autor-criação: antes o que


importava era a obra e agora o que importa é o autor da obra. Saímos de um lugar em
que o apreciado era a criação para um lugar em que o apreciado é a criatura. O que
parece bem lógico se pensarmos nessa mudança de lugar em que a formação da
subjetividade está acontecendo. A partir do momento em que o que importa é o que sou
e não o que faço, a obra de autor perde a importância e destaca-se a sua vida privada, a
sua personalidade. O que vende, o que dá lucros, e a autora traz inúmeros exemplos que
destacam isso, não é apenas a obra, mas sim a autenticidade que envolve a vida do
criador dessa obra. E quanto mais autêntico, mais valioso será esse autor-narrador-
personagem. Os blogs, fotologs e videologs são lugares que enaltecem a figura do autor,
possibilitando essa mudança de perspectiva da função-autor, onde o que mais importa
não é a obra e sim a vida dele.
Sibília afirma que os equipamentos tecnológicos podem, aparentemente, nos
salvar da angustia da perda da memória que está ameaçada por conta da vertigem
contemporânea (de informações, de conteúdos etc.), e ao perdermos a memória,
perdemos aquilo que somos. Sendo assim, os fotologs permitem que a memória fique
salva e as fotos diárias do cotidiano com legendas, são o melhor meio de exibir a
intimidade, de forma rápida e autêntica. "[...] os relatos de si tendem a ser cada vez mais
instantâneos, presentes, breves e explícitos". (SIBÍLIA, 2009, p. 137).
A autora defende que a principal obra que produzem os autores-narradores dos
novos gêneros confessionais da internet é o personagem chamado eu, ou seja, "o que se
cria e recria incessantemente nesses espaços interativos é a própria personalidade" (p.
233), portanto, a Web 2.0 com suas novas formas de expressão e comunicação,
possibilita as ferramentas para a “criação de si” (SIBÍLIA, 2009, p.233).
Podemos afirmar que as crianças também estão utilizando essas ferramentas em
busca de uma criação de si mesmas, de suas subjetividades? Voltando à discussão
trazida por Sibília sobre autor-personagem, podemos compreender a potência de uma

67
selfie43? O que são os vídeos do youtube em que as Youtubers mirins contam 50 coisas
sobre elas? As crianças estão criando a si mesmo na internet? Existe uma busca por uma
formação da subjetividade por parte delas? Todos estamos tentando mostrar o que
pensamos ao usarmos as Redes Sociais. Esta forma de utilização tem sido uma das
principais: posts ou fotos em que as pessoas compartilham ideias, experiências,
pensamentos, ideais, sentimentos. Talvez a grande diferença, potência, do mundo digital
ou das relações nas Redes Sociais é que a relação de alteridade, o ser para o outro, o se
ver no outro, ganha grandes proporções. Mais do que nunca, temos que pensar e avaliar
o que vamos dizer, pois as palavras escritas, além de dificultarem a entonação e
excluírem as expressões corporais (o uso de smiles etc. ajuda a diminuir esse
enrijecimento da palavra escrita na internet), ficarão ali escritas e vão dizer muito sobre
quem as escreveu. Da mesma forma que quando escrevemos um artigo, não podemos
mensurar o que o leitor vai compreender dessa escrita, isso acontece no mundo virtual,
entretanto, nas Redes Sociais e blogs, a nossa “cara está a tapa”, ou seja, é possível que
o leitor interaja com o autor.
Acreditamos que a produção de narrativas online já seja uma forma de criação
de si pelas crianças. É uma forma de criação que utiliza a web para compartilhar suas
criações pessoais ao mesmo tempo em que se mostram/se relacionam com o mundo e
vão criando sua subjetividade. É onde elas podem dizer: eu sou assim, afirmar-se, eu
gosto disso, autoconhecimento. “Eu tenho tédio”, “Eu não tenho tempo” são formas de
se relacionar com o mundo, de construir subjetividades. Essas formas de participação
destacadas, o tédio, o reclamar da falta de tempo, fazem parte das regras atuais do jogo:
mostrar-se como alguém comum, tornar-se visível na internet mostrando o cotidiano,
transformando a realidade em entretenimento.
Um exemplo interessante é um post de Isadora chamado “25 coisas sobre mim”
em que ela enumera 25 coisas sobre ela, tais como: “1- amooo estudar, e minhas
matérias favoritas são ciências, história e português :); 2- amo todos os tipos de frutas,
todas mesmo...; 3- esse fato é bem estranho, mas é verdade: eu tenho muita aflição de
tecido rasgando, me arrepio inteiraa *-*”. Ao fazer essa lista, selecionando e refletindo
sobre o que colocar nela, Isadora o faz pensando no outro. E, ao mesmo tempo, é um

43
Selfie — junção do substantivo self (em inglês "eu", "a própria pessoa") e o sufixo ie — ou selfy 1 é
um tipo de fotografia de autorretrato, normalmente tomada com uma câmera fotográfica de mão ou
celular com câmera. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English
Dictionary. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Selfie

68
momento de encontro consigo mesma, de reflexão de sua subjetividade, de constituição
de sua identidade.

Imagem 7 - Primeira parte post Isadora "25 coisas sobre mim".

69
Imagem 8: Segunda parte post Isadora "25 coisas sobre mim".

Rosa Maria Bueno Fischer, ao dialogar com Hannah Arendt, apresenta as


seguintes questões que nos instigam quando nos deparamos com esse tipo de post em
que a intimidade é compartilhada: “Que é feito de nossos sentimentos, num tempo em
que eles ‘precisam’ tão avidamente ser plenamente falados e expostos? Que encanto
extraordinário tem a esfera pública midiática, a ponto de por ela nos desfazermos de
nossa intimidade?” (2002, p. 4).
Seguindo essa linha de pensamento despertada por Sibília (2009) e corroborada
por Fischer, torna-se imprescindível irmos aos escritos de Hannah Arendt, em seu livro
“A condição humana”, mais especificamente no capítulo II: “As esferas pública e
privada”. Embora seus escritos não sejam contemporâneos da cibercultura, a autora
“nos oferece uma belíssima reflexão sobre a urgente necessidade de pensar de outras
formas o político, seja em nossas vidas cotidianas, seja em práticas mais amplas e

70
diferenciadas da vida pública” (Fischer, 2002, p.2). O objetivo do diálogo com essa
autora é o de olharmos para as produções infantis na internet compreendendo que elas
fazem parte de um movimento amplo da sociedade e que tem como norte a pergunta: o
que é público e o que é privado nesse momento em que vivemos como sociedade
mediada pelas tecnologias digitais? Conforme já vimos ao dialogarmos com Sibília
(2009), o show do eu e a sociedade do espetáculo trazem consigo toda a vivência da
sociedade desde a separação entre público e privado. Portanto, com o intuito de
aprofundar o debate apresentado nesta tese, percebemos que o difícil diálogo com
Hannah Arendt, ou melhor dizendo, com um pouco de sua produção, será de extrema
importância para demarcarmos as experiências infantis online na sociedade
contemporânea.
A autora inicia o capítulo defendendo que a vida humana existe porque o homem
age sobre o mundo. De acordo com ela, mesmo “o eremita em meio à natureza
selvagem” (ARENDT, 2007, p.31) só existe em relação aos outros seres humanos. Ela
defende que o homem que trabalha, que age sobre o mundo, que fabrica coisas, só existe
porque vivemos em sociedade, ou seja, a atividade humana está condicionada ao fato de
os homens viverem juntos. “Nem um animal, nem deus é capaz de ação, e só a ação
depende inteiramente da constante presença de outros” (ARENDT, 2007, p.31).
Arendt, mapeando e definindo o conceito de política, dialoga com Aristóteles e a
expressão “zoon politikon44” que, segundo a autora, foi equivocadamente traduzida
como “animal socialis” - “o homem é, por natureza político, isto é, social”. De acordo
com Arendt, a concepção grega de política havia sido esquecida.
Arendt diz que a palavra ‘social’ é de origem romana “sem qualquer equivalente
na língua ou pensamentos gregos (...) o uso latino da palavra societas significava a
aliança entre pessoas para um fim específico” (ARENDT, 2007, p.32). A definição de
social, de sociedade, começa a adquirir contorno quando surge o conceito de “uma
sociedade da espécie humana”, se transformando em “condição humana fundamental”
(ARENDT, 2007, p.33). Ainda segundo a autora, Platão e Aristóteles entendiam o fato
de o homem precisar de outro homem para viver, mas creditavam essa necessidade à
44
Zoon politikon é uma expressão utilizada pelo filósofo grego Aristóteles para descrever a natureza do
homem – um animal racional que fala e pensa (zoon logikon) – em sua interação necessária na Cidade -
Estado (pólis). Ou seja, a pólis, o estar junto, nos obriga a agir/interagir. Aristóteles desenvolve a clássica
divisão das formas de governo – monarquia, aristocracia e república – conforme se refiram ao governo de
um só, de um pequeno grupo ou do povo. Acredita que o povo precisa ser educado para formar o bom
cidadão e o bom governante, não considerando que qualquer pessoa tenha a capacidade de governar,
sendo assim, acaba por excluir os artesãos e comerciantes das artes políticas. Site consultado:
https://sites.google.com/site/professordiegoobonito/temas-de-filosofia---concepcoes-de-politica

71
uma característica animal, necessidades da vida biológica, que são as mesmas para o
animal humano e para outros animais. O pensamento grego entendia que “a capacidade
humana de organização política” (ARENDT, 2007, p.33) é diferente da capacidade
natural do homem de viver com outro homem constituindo uma família e habitando
uma casa.
A pólis permitiu que a ênfase mudasse da ação para o discurso como meio de
persuasão. Desta forma, “o ser político, o viver numa pólis, significava que tudo era
decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência”
(ARENDT, 2007, p.35). Os gregos entendiam que havia uma diferença entre a vida
familiar e a vida política: a vida no lar era cercada pela violência, pelas ordens, e a vida
política era cercada pelo discurso, pela persuasão.
Hannah Arendt termina sua argumentação sobre o porquê é um equívoco chamar
o homem político de homem social, lembrando que a definição latina de zoon politikon
é animal rationale (um ser vivo dotado de fala) e que na verdade, Aristóteles defendia
que a grande capacidade humana é a contemplação, sendo essa irredutível a palavras.
A confusão gerada pela avaliação errônea das esferas política e social, agravou-
se com a concepção moderna de sociedade: “a distinção entre uma esfera de vida
privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e
da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da
antiga cidade-estado” (ARENDT, 2007, p.37). A esfera social, como a conhecemos,
surgiu na era moderna e não corresponde à esfera privada e nem à pública, pois é no
estado nacional que ela encontra sua forma política. Sendo assim, a sociedade é, ou
deveria ser, como uma esfera privada aumentada, ou seja, a reunião das famílias
economicamente ativas, cria um grupo grande que, ao se organizar politicamente, pode
ser chamada de nação.
Entretanto, para os gregos, eram considerados domésticos todos os assuntos
relacionados à sobrevivência da espécie. O que acontecia no lar, não era político e não
podia ser controlado por ninguém além do chefe de família.
O lar e a família foram perdendo a santidade, quando algumas regras se
expandiram e passaram a “cuidar” do que acontecia dentro da casa. Ao mesmo tempo, o
sentimento de propriedade passou a ocupar um lugar intocável. Isso aconteceu por que
era a propriedade que legitimava a participação do homem nos negócios do mundo, era
preciso ter um lugar seu, que lhe pertencesse para poder alcançar a esfera política. O
entendimento era de que na esfera familiar havia a necessidade premente de vida que

72
fazia com que os homens ficassem juntos. Era essa premência, que engloba as
necessidades fisiológicas do homem (comer, dormir e procriar principalmente) que unia
os homens em uma vida familiar.
Com a queda do Império Romano, a Igreja faz o papel do Estado, dando
cidadania às pessoas fora da esfera privada. Sair das trevas do cotidiano para o sagrado
da Igreja, favoreceu a transposição do privado para o público. Mas, foi o feudalismo que
efetivamente assumiu o que a esfera pública havia sido na antiguidade, ao absorver
“todas as atividades para a esfera do lar e, consequentemente, a própria existência de
uma esfera pública” (ARENDT, 2007, p.43). Público e privado se juntaram no feudo,
ou seja, antes de o privado ir para o público, foi este último quem ocupou um espaço
destinado anteriormente apenas ao privado. Afinal, o homem, o chefe de família, era
soberano em seu lar, não precisava seguir regras externas dentro de sua própria casa, já
que as leis e a justiça só existiam na esfera pública. Esse chefe de família “embora
pudesse exercer um domínio mais ameno ou mais severo, não conhecia leis nem justiça
fora da esfera pública” (ARENDT, 2007, p.44). Já o senhor feudal, continuava
soberano, mas a justiça já havia ingressado em seu lar, ou pelo menos alguma forma de
justiça, sendo assim, ele tinha o poder de “administrar justiça dentro dos limites de seu
domínio” (ARENDT, 2007, p.44). Assim, podemos concluir que a sociedade passa a
existir quando os interesses privados assumem importância pública.
A nossa definição de privado começa nos últimos períodos da civilização
romana. Ser privado, antigamente, não era considerado algo bom, pois “significava
literalmente um estado no qual o indivíduo se privava de alguma coisa, até mesmo das
mais altas e mais humanas capacidades do homem” (ARENDT, 2007, p. 48). Para ser
um humano integralmente, era necessário viver a esfera pública, pois quem vivia
exclusivamente o privado, como os escravos e os bárbaros, não era considerado
integralmente humano.
A palavra privatividade não é vista por nós como algo ruim por causa do enorme
enriquecimento da esfera privada no moderno individualismo. Nesse contexto,
Rousseau, surge como o primeiro explorador da intimidade. Para ele o íntimo e o social
eram formas subjetivas da existência humana. Com esse destaque da vida emocional,
subjetiva e íntima, emergem as artes pessoais como a música e a poesia, artes que
expressam sentimentos individuais e declinam as artes públicas como a arquitetura. O
social e o íntimo começam a caminhar juntos.

73
O social é tão importante hoje em dia, que o privado e a intimidade perdem
importância. Viver em sociedade, em tempos conectados, de Redes Sociais etc., é expor
a nossa privatividade para a sociedade e não mais escondê-la no âmbito familiar,
individual. E, podemos ir além, ao afirmar que, não possuir uma conta em alguma Rede
Social é como não existir socialmente.
O fato histórico decisivo é que a privatividade moderna, em sua
função mais relevante – proteger aquilo que é íntimo – foi descoberta
não como o oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual,
portanto, tem laços ainda mais estreitos e autênticos (ARENDT, 2007,
p.48).

O surgimento do conceito de sociedade faz emergir as normas, o comportamento


esperado ao invés da ação espontânea ou reação inusitada. Da compreensão de uma
grande sociedade até o equacionamento em relação à posição social, que faz com que
surjam as comunidades, as classes, que vigoram até hoje, e finalmente, com a sociedade
de massas que fez com que a esfera do social atingisse “o ponto em que abrange e
controla igualmente e com igual força, todos os membros de uma determinada
comunidade” (ARENDT, 2007, p.50).
Irrompe o sentimento moderno de igualdade: a distinção e diferença reduzem-se
a questões da vida privada do indivíduo, pois na sociedade há o comportamento que
rege as formas de relação humanas.
O surgimento da sociedade na era moderna possibilitou substituir a ação pelo
comportamento e o governo pessoal pela burocracia. Das ciências econômicas, com a
estatística que era utilizada para as reflexões sobre a sociedade e os seres humanos, a
sociedade passa a ser analisada, medida e estudada pelas “ciências do comportamento”,
as ciências sociais.
A esfera social cresceu e intensificou-se, passando a englobar as esferas do
político, do privado e da intimidade, esta última uma esfera mais recente. Com a
percepção de que a privatividade não era algo interessante, pois essa remetia apenas à
sobrevivência do ser humano, a sociedade rapidamente se organizou em torno do
trabalho como única forma de subsistência. Por isso, “a sociedade é a forma na qual o
fato da dependência mutua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância
pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas
em praça pública” (ARENDT, 2007, p.56). Ou seja, o trabalho, antes restrito à esfera

74
privada, alcançou a esfera pública. Desta forma, ele deixou de ser algo que servia
apenas à sobrevivência e ganhou destaque ao deixar de controlar apenas questões vitais.
O labor, o trabalho, ganhou a alçada pública e além de se modificar, transformou o
mundo. Arendt traz a evolução da palavra labor: de algo que era insuportavelmente
doloroso para o ponto em que pode-se falar em excelência no trabalho. A excelência
sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e
distinguir-se das demais. Toda atividade realizada em público pode atingir
uma excelência jamais igualada na intimidade; para a excelência, por
definição, há sempre a necessidade de presença de outros, e essa presença
requer um público formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser
a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores (ARENDT, 2007,
p.58).

Mostrar as produções na internet aumenta o nível de excelência das crianças?


Isso difere as produções feitas em casa ou na escola e que são mostradas apenas nesse
ambientes, para os amigos, familiares e professores, das produções feitas e divulgadas
online?
Afinal, a esfera pública é o lugar onde há a divulgação, onde nos mostramos,
onde tudo “pode ser visto e ouvido por todos” (ARENDT, 2007, p.59). A aparência, o
que aparece para os outros e para nós mesmos, ou seja, o que vem a público e é visto e
ouvido pelos outros, constitui a realidade. É o que mostramos em público que se torna
real. Os sentimentos, esse são guardados no íntimo e só se tornam realidade quando
externalizados, de forma adequada à aparição pública.
Quando é necessário externalizar, tornar público, um sentimento ou algo que
queremos tirar do campo íntimo, privado, é necessário refletir, colocar de forma que
apareça para o outro. Essa reflexão é transformadora: ao colocar coisas privadas para o
público, garantimos que somos reais.
Toda vez que falamos de coisas que só podem ser experimentadas na
privatividade ou na intimidade, trazemo-las para uma esfera na qual
assumirão uma espécie de realidade que, a despeito de sua intensidade, elas
jamais poderiam ter tido antes. A presença de outros que veem o que vemos e
ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos
(ARENDT, 2007, p. 60).

Arendt ressalta que o “irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e


relevante” (ARENDT, 2007, p.60). Ela traz o exemplo dos franceses e seu
encantamento com as pequenas coisas, com o cotidiano, dizendo que esse encantamento
com o que seria irrelevante para a esfera pública, não torna o mundo privado em
público, mas sim caracteriza uma regressão à esfera privada.

75
O encantamento com o privado, com as histórias cotidianas, com os sentimentos
e histórias pessoais, continua. E, além de continuar, ele se tornou público: quanto mais
for divulgado e aparecer, melhor. A falta de encantamento com a esfera pública é
driblada com as histórias individuais nesta esfera. Então é assim que, uma matéria de
jornal, por exemplo, vai falar de um assunto que seja de importância e relevância
pública, como o transporte coletivo, falando também com um usuário deste transporte e
até, como visto em reportagem de 2016 na televisão, acompanhando este usuário em sua
rotina diária ao utilizar esse meio de transporte. A história de uma pessoa ganha
representatividade para mostrar a história de muitas pessoas. [...] “de tal modo que
passamos a crer que o ‘bom’ é centrar nossa atenção na vida intimista, de tal forma que
passamos a localizar a experiência humana basicamente naquilo que estiver mais
próximo das circunstancias imediatas da vida (Senett, 2001 p. 412, apud Fischer, 2002,
p. 80).
Hannah Arendt, que defende que o público tem dois sentidos correlatos, mas
com diferenças entre si, alega que o primeiro sentido é o descrito acima: o público como
aparência, como o que aparece de nós para o outro e para nós mesmos e do outro para
nós. O segundo sentido dado por ela é que público “significa o próprio mundo”,
destacando que esse mundo “é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe
dentro dele” (ARENDT, 2007, p.62). Ela destaca que esse mundo ao qual se refere, não
é o mundo orgânico, mas sim o mundo dos homens que convivem juntos. Defende
ainda que os homens precisam de um mundo comum que os mantenha unidos e
separados ao mesmo tempo. A sociedade de massas parece ter perdido essa força que
unia e separava as pessoas. Entretanto, Arendt destaca que a filosofia cristã buscou
reunir as pessoas em um mundo comum, criando um vínculo entre os homens através da
caridade.
O mundo comum, que para o Cristianismo acontecia através da caridade que
salvaria a alma de um homem, sendo essa salvação individual de interesse de todos, é o
que existe para além de nós: já existe quando nascemos e continuará existindo quando
morrermos. Essa é a ligação comum entre todos os homens: o nascimento e a morte, a
breve existência nesse mundo. Entretanto, esse mundo comum só existe e sobrevive por
causa da presença pública, do caráter público da esfera pública.
De acordo com Arendt foi a ascensão da sociedade à esfera pública na era
moderna, que determinou o vício pela vaidade, entendida como um desejo individual de

76
imortalidade. Dialogando com Adam Smith, a autora alega que a admiração pública e a
recompensa monetária têm o mesmo valor para os homens.
[...] admiração pública e a recompensa monetária têm a mesma natureza e
podem substituir uma à outra. A admiração pública é também algo a ser
usado e consumido; e o status, como diríamos hoje, satisfaz uma necessidade
como o alimento satisfaz outra: a admiração pública é consumida pela
vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome
(ARENDT, 2007, p. 66. grifo da autora).

Quando a admiração pública ganha esse destaque, a realidade não está mais na
presença pública de outros, como era no início desse convívio em sociedade, mas sim
em maior ou menor urgência das necessidades individuais. E as necessidades
individuais não ajudam a formar um mundo comum por conta de sua própria futilidade.
Essa afirmação de Hannah nos ajuda a ponderar sobre os chamados “15 minutos
de fama”, e também sobre a fluidez dos assuntos na internet. As pessoas, mais
preocupadas com sua vaidade, com sua necessidade de admiração pública, querem a
fama a qualquer preço. Assim, uma pessoa que hoje é famosa, amanhã poderá ser
esquecida pela mídia, trocada por outra pessoa famosa. No caso de crianças como a
youtuber Julia Silva, o que acontecerá quando ela não for mais interessante para a mídia
e para seu público? Conseguirá ela se reinventar para continuar sendo famosa? As
crianças também procuram o status ao publicarem fotos no Instagram, por exemplo.
Isadora e Manuela disseram que utilizaram como critério para apagar fotos as que
tinham menos curtidas.
Arendt afirma que a futilidade dessa busca pela admiração pública é tão grande
que o recebimento de dinheiro passa a ser mais importante:
A admiração pública, consumida diariamente em doses cada vez maiores, é
ao contrário, tão fútil que a recompensa monetária, uma das coisas mais
fúteis que existem, pode tornar-se mais objetiva e mais real (ARENDT, 2007,
p.66).

Apesar da objetividade do dinheiro que satisfaz as necessidades, cabe destacar


que a realidade da esfera pública não é nada objetiva ou objetificável, pois ela é
composta por diversos indivíduos que ocupam diferentes lugares. Ao olharmos um
objeto do mundo, por exemplo, o olhamos de um determinado lugar, que nos faz
perceber esse objeto de forma diferente de outras pessoas. Ou seja, o que vemos do
mundo depende do lugar que ocupamos nesse mundo. Saber que vemos o mesmo que
uma multidão de pessoas, mesmo que saibamos que cada olhar será diferente, nos ajuda

77
a tornar o mundo real e fidedigno. Por isso, o mundo familiar não pode substituir uma
multidão de espectadores, pois é com os muitos olhares que nós damos realidade ao que
vemos.
Com essa argumentação podemos pensar sobre as redes sociais. Cada vez mais,
as pessoas tendem a se isolar entre os que pensam como elas: na Rede Social Facebook,
podemos excluir “amigos” que pensam muito diferente de nós, podemos nos unir a um
grupo que tenha as mesmas convicções políticas e filosóficas de vida, podemos nos unir
a pessoas por temas de interesse (trabalho, maternidade, lazeres). Enfim, cada vez mais,
as pessoas parecem se unir em pequenas comunidades dentro de um enorme mundo
virtual.
Viver uma vida privada, conforme já foi dito, significa
ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por
outros [...] a privação da privatividade reside na ausência de outros;
para estes o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como
se não existisse (ARENDT, 2007, p.68).

A vida no lar e na família ganhou o caráter de esfera privada graças aos


romanos, que com grande senso político, jamais renunciaram ao privado privilegiando o
público, pois compreendiam que as duas esferas em questão, só poderiam perdurar
enquanto coexistissem. Arendt alega que a decadência da esfera pública começa com
sua transformação em uma “esfera muito restrita de governo” (ARENDT, 2007, p.70).
Ainda segundo a autora, a esfera privada também entra em ameaça de término já que
ambas apenas existem em relação e não de forma isolada. E é principalmente ao
observarmos a questão da propriedade privada que podemos compreender ainda mais a
conexão existente entre público e privado.
A propriedade privada significava que o indivíduo possuía seu lugar no mundo o
que automaticamente lhe garantia um lugar no corpo político, pois o homem chefiava
uma família que pertencia à esfera pública, afinal, ter uma propriedade, era ter cidadania
e estar protegido pela lei. A propriedade privada também era importante para a cidade e
são os limites entre as casas que compõem uma cidade, que delimitam uma propriedade
privada. As leis que legislavam sobre a propriedade e sobre a cidade-estado eram
determinadas a partir do muro que unia as casas e as separava do resto do mundo. Era
esse muro que as constituía num espaço político.
O surgimento do social coincide com a mudança da preocupação com a
propriedade privada, que passa de individual a pública, pois os proprietários
procuravam a proteção da esfera pública para o acúmulo de ainda mais riqueza. Assim,

78
a riqueza sai do mundo privado e vai para o capital, atingindo o mundo compartilhado
por todos. Entretanto, não é a riqueza em si que ganha o mundo comum, mas o processo
de obtenção de capital, de acumulação. Portanto, a riqueza nunca foi comum, sempre foi
da esfera privada. O que se tornou comum foi o governo que foi “nomeado para
proteger uns dos outros os proprietários privados na luta competitiva por mais riqueza”
(ARENDT, 2007, p.79). A única coisa comum para as pessoas nesse conceito moderno
de governo, são seus interesses privados.
Segundo Arendt, a contradição entre público e privado acabou no início da era
moderna, pois as esferas pública e privada foram extintas e sumiram totalmente na
esfera social. Ou seja, a esfera pública virou função da esfera privada e esta se tornou a
única preocupação comum. “Encarada deste ponto de vista, a moderna descoberta da
intimidade parece constituir uma fuga do mundo exterior como um todo para a
subjetividade interior do indivíduo, subjetividade esta que antes fora abrigada e
protegida pela esfera privada” (ARENDT, 2007, p.79).
A esfera privada, ao se tornar social, transforma a propriedade imóvel em
propriedade móvel fazendo com que a distinção entre propriedade e riqueza se
desvalorize, pois tudo que é palpável ou consumível passa a ser objeto de consumo. A
diferenciação entre propriedade e riqueza sai do uso privado e determinado por sua
localização e vai para a esfera social onde adquire característica constantemente
mutável, tendo como único denominador comum o dinheiro, que mesmo assim, só pode
fixar essa mudança constante de forma temporária. Com essa mudança ocorrida, o
conceito de propriedade se transforma também: sai de um lugar fixo, localizável no
mundo e adquirido pelo homem e passa a ter no próprio homem sua origem, no corpo e
na força desse homem, passando a ser a “força de trabalho”.
Assim, a propriedade moderna perdeu seu caráter mundano e passou a
situar-se na própria pessoa, isto é, naquilo que o indivíduo somente
podia perder juntamente com a vida [...] a única propriedade em que
podemos confiar é o nosso talento e a nossa força de trabalho
(ARENDT, 2007, p. 80).

Este situar-se na própria pessoa traz consigo algumas questões: é daí que surge a
necessidade do ser humano em aparecer, em exibir-se? A selfie é um reflexo dessa
perda do caráter mundano da propriedade moderna? O que produzimos de mais valioso
somos nós mesmos? E, por isso, Isadora afirma que seu perfil tem de ter muitas
informações sobre ela?

79
Arendt continua discorrendo sobre a propriedade privada ter sido engolida pelo
social. Ela alega que a intimidade não dá conta de substituir a propriedade privada, pois
essa traz dois pontos fundamentais que não acontecem na intimidade: o primeiro é que
as nossas necessidades particulares, que fazem parte das nossas posses particulares, são
muito mais importantes para nós do que qualquer outra coisa do mundo comum.
Primeiro precisamos dar conta de termos a nossa riqueza para depois nos preocuparmos
com o mundo comum. E quando há muita riqueza que não é necessário lutarmos pelas
nossas posses, a necessidade some e a vida perde o sentido. Ou seja, precisamos da
necessidade para termos o impulso de vida. Quando todas as necessidades estão
satisfeitas, a liberdade não aparece, o que surge é a apatia. A liberdade por estar na
necessidade. O homem precisa de um objetivo para querer fazer algo.
Talvez essa seja a grande questão das crianças que não continuam com seus
blogs etc.: elas não têm uma motivação maior, uma necessidade por trás da ação. As que
têm isso, mantem os blogs.
Arendt continua explicando sobre a importância da propriedade privada
destacando que é nela que a pessoa consegue o refúgio contra o mundo público comum:
“[...] não só contra tudo o que nele ocorre, mas também contra a sua própria
publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido. Uma existência vivida inteiramente em
público, na presença de outros, torna-se como diríamos superficial” (ARENDT, 2007, p.
81). As redes sociais podem nos fazer viver constantemente em público, podem nos tirar
a privacidade da propriedade privada. “O único modo eficaz de garantir a sombra do
que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a propriedade privada – um lugar
só nosso, no qual podemos nos esconder” (ARENDT, 2007, p.81). Com o mundo
conectado, nem em nossas casas estamos escondidos. Estamos sempre online, expostos,
podemos nos expor sem parar. A divisão entre as esferas pública e privada é
determinada pelo que deve ou não ser exibido, o que deve ou não ser ocultado. Essa
divisão continua mesmo nesse mundo digital onde podemos estar permanentemente
expostos.

80
3 EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA: QUANDO A
PESQUISADORA VIRA SEGUIDORA

Atenção para escutar, o que você quer saber de verdade.


Marisa Monte

Ao iniciar a pesquisa algumas decisões têm de ser tomadas pelo pesquisador.


Uma das decisões que se fizeram necessárias surgiu da seguinte pergunta: a pesquisa
será feita em interlocução direta com as crianças ou apenas a partir da observação das
suas produções na internet? Marília Amorim em um brilhante texto chamado “O
detetive e o pesquisador” (1997), relaciona tipos de detetives retirados da literatura
policial ao ato de pesquisar. Passeando pelos autores e seus detetives, Amorim conclui
que o melhor detetive é apresentado por Raymond Chandler. O que faz desse detetive o
melhor, no caso o que mais o aproxima ao papel do pesquisador em Ciências Humanas
é o fato de que para ele o outro, no caso o investigado ou suspeito, é a parte mais
importante e ele se deixa afetar e ser afetado por essa relação com o outro. Portanto,
partimos da compreensão de que esta pesquisa só poderia acontecer na relação com o
outro, em diálogo, já que de acordo com Bakhtin (1986) é através da palavra que
podemos ter o “modo mais puro e sensível de relação social” (1986, p. 36). Ainda
segundo o autor, “o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra”
(BAKHTIN, 1986, p.37), ou seja, “a palavra está presente em todos os atos de
compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN, 1986, p. 38). Portanto,
para irmos em busca do que realmente queremos saber, é necessário conversar com as
crianças. E podemos dizer ainda também que ao aproximar a pesquisa, o pesquisador do
detetive, Amorim nos faz compreender ainda mais a importância em relatarmos
minuciosamente o percurso vivido. Olhar para o percurso vivido e tentar transmiti-lo,
contá-lo ao leitor, de forma a dar a “conhecer os procedimentos que permitiram a
elucidação do mistério” (AMORIM, 1997, p.127), é procurar o que não se sabe.
Desta forma, podemos dizer que a pesquisa desenvolvida apresenta algumas
formas de interação: uma que se dá no fluxo que é próprio da internet, possibilitada por
ferramentas técnicas disponibilizadas em cada site (analisar o site, interagir através de
comentários etc.); outra forma é face a face, intentando na convivência uma maior

81
profundidade do que a encontrada online; e por último, conversas online possibilitadas
por aplicativos ou chats.
Acreditamos ainda que os desvios levam ao que se quer saber de verdade, ou
seja, ao decidir seguir as crianças através de suas produções, sem prender-se a um tipo
específico como o blog, por exemplo, é possível encontrar, em um tortuoso caminho de
vai-e-vem, tecendo novas redes no encontro com as crianças, algumas respostas e novas
perguntas. Reconstruir o percurso feito é o que permite refletir sobre ele, já que ao
seguir as crianças, foi possível tecer novas redes, que levam a outras crianças e a outras
interfaces e formas de criação de narrativas online.
Após constatar que as crianças estavam criando blogs etc., conforme já foi
relatado no item “Construindo o objeto de pesquisa: um primeiro levantamento”
(página 15), iniciei a procura por blogs que tivessem sido elaborados por crianças. A
partir do perfil de João na Rede Social Facebook, cheguei a dois outros blogs (Coisas da
Sinistra e Dries Planet) e ao grupo Dona Feijão criado por João. Dos blogs, fui
ampliando o leque, pois as crianças costumam indicar blogs de seus amigos. Conforme
já foi dito, alguns desses blogs visitados foram abandonados, entretanto, outros foram
surgindo: a partir do momento em que se conhece um blog ou uma criança que utiliza a
internet para suas produções, entra-se no movimento da rede, onde um conecta o outro,
onde de um ponto pode-se ir a outro e depois voltar ao primeiro. Assim, novos possíveis
interlocutores passaram a fazer parte desta teia, desta rede. Nem todos os interlocutores
foram “descobertos” desta forma, mas a ideia era de após sua entrada na pesquisa,
passasse a “seguir” as crianças ainda mais: se uma das crianças não utiliza mais o blog,
mas não deixa de postar fotos no Instagram, é a partir deste aplicativo que a pesquisa
retirará seus elementos para análise.
Outra forma utilizada para buscar interlocutores foi interagir com as crianças a
partir de suas produções online. Assim, a partir do e-mail cadastrado no blog, de um
comentário em uma foto no Instagram ou mensagem in box no perfil do Facebook, por
exemplo, fiz uma tentativa de contato com algumas crianças. Mas, não obtive resposta
desta maneira e por isso, foi necessário partir para a procura a partir de amigos e
conhecidos e, destas relações, surgiram os atuais interlocutores da pesquisa.
Os sujeitos da pesquisa também tiveram uma participação fluída. Nesse sentido,
a metodologia adotada se aproxima da própria lógica dos sujeitos e do objeto estudados.
Ao mesmo tempo, é preciso estar atenta para que esse grupo não inviabilize a
pontualidade de um estudo mais preciso, afinal essa é uma das armadilhas da Web:

82
sempre há algo novo para ver, o que não se mostra compatível com a necessidade de
aprofundar a reflexão em uma pesquisa.
A partir dessa busca e de indicações feitas por crianças e por colegas do grupo
de pesquisa, cheguei a 5 crianças com as quais busquei conversar em encontros
presenciais, além de analisar o material produzido e iniciar uma aproximação de forma
online.

3.1 Onde encontramos as produções infantis na internet?

Para uma melhor visualização do que encontramos em campo, trazemos, em


primeiro lugar, a descrição dos softwares sociais ocupados pelas crianças na internet e
depois a apresentação de cada criança, a descrição de como cheguei a elas e a descrição
de seus perfis que estão online.
A opção de fazer essa “apresentação” aqui, e não como um glossário no início
do trabalho, deve-se ao fato de que foi a partir da interlocução com as crianças que estes
se tornaram presentes. Isto é, só estão aqui mencionados os espaços efetivamente
ocupados pelas crianças que participaram da pesquisa, lembrando que essa relação é
uma via de mão dupla: o acesso a esses espaços conduz à interlocução com outras
crianças e a interlocução com outras crianças conduz a novos espaços.

3.1.1 Weblog ou Blog

O termo weblog, usado pela primeira vez por Jorn Barger, em 1998, referia-se a
um conjunto de sites que juntavam e divulgavam links interessantes da web (web + log
= arquivo web). Entretanto, os weblogs eram escassos e, apenas em 1999, com o
surgimento de ferramentas de publicação e manutenção de sites (como o Blogger que
em 2004 foi comprado pelo Google) que não exigiam o conhecimento da linguagem
HTML foi que os blogs começaram a ser adotados, “além disso, a posterior agregação
da ferramenta de comentários aos blogs também foi fundamental para a popularização
do sistema” (RECUERO, AMARAL E MONTARDO, 2008, p. 2). A compra da

83
ferramenta Blogger pelo Google e a escolha da palavra “weblog” como a palavra do ano
pelo Merriam-Webster`s Dictionnary em 2004, também facilitaram esse crescimento no
uso (RECUERO, AMARAL E MONTARDO, 2008).
Um blog, enquanto forma de expressão na internet, pode ser entendido como um
diário pessoal onde há a escrita de si e a estruturação da própria vida como um diálogo
(SIBILIA, 2008). Inserido no âmbito da Web 2.0, onde todos os usuários podem se
tornar emissores de conhecimento, devido à facilidade de inserção de conteúdos
possibilitada por essa nova forma de navegação na internet, os blogs se tornaram uma
das interfaces de fácil publicação de escrita. De acordo com Di Luccio e Nocolaci-da-
Costa:
Os principais recursos utilizados nos blogs são os posts, textos que podem ser
alterados, apagados, atualizados, etc. com a frequência que o autor desejar.
Os posts podem incluir links para outras páginas da web ou para outros blogs.
Novos posts são acrescentados no topo da página. Abaixo ou acima do post,
podemos encontrar a data e a hora de sua publicação. Dessa forma, os leitores
podem acompanhar o blog lendo as publicações em ordem cronologicamente
inversa. Outro recurso quase sempre presente nos blogs é a caixa de diálogos,
por meio da qual os leitores podem enviar seus comentários para o escritor
(2010, p. 136)

Schittine (2004 apud Hoffmann, 2009, p. 158) aponta que o escrito íntimo
franqueava a muitas pessoas a oportunidade de escrever, porque, aparentemente, não
demandava a qualidade exigida na ficção que era exigida quando se escreve para o
outro. O falar de si mesmo era uma prática não só de escritores famosos, mas de
anônimos. Schittine aponta que, mesmo que no diário íntimo tradicional o trabalho do
diarista fosse solitário, a folha de papel funcionava como um interlocutor, ainda que
silencioso. É nela que o diarista colocava ou não a coragem de falar o que tem pensado
e feito apenas em segredo.

3.1.2 Instagram45

O Instagram é uma Rede Social para compartilhamento de fotos e pequenos


vídeos. O usuário pode seguir pessoas e ser seguido, isso significa que ele poderá ver as
fotos publicadas por quem ele segue e seus seguidores terão acesso às suas fotos. Há a

45
https://instagram.com/

84
opção de comentar as fotos ou de dar coração para dizer que gostou. Também há a
opção de publicar uma foto ou vídeo para todos os seus seguidores verem ou mandar
apenas para quem o usuário desejar (Direct). Ao publicar uma foto, não é possível
nomeá-la, sendo necessário usar a forma de comentários para tal objetivo. É possível
publicar instantaneamente uma foto no Instagram e no Facebook. Há perfis de pessoas
que postam conteúdos informativos ou piadas, como por exemplo: “mamaecriaebrinca”
que apresenta imagens e textos com dicas de atividades para bebês e crianças e o perfil
“failclips” que apresenta pequenos vídeos com cenas que não deram muito certo, aquele
vídeo que não sai como esperado.
A descrição fornecida na página inicial do Instagram é:

Capture e compartilhe momentos do mundo. O Instagram é uma maneira


rápida, atraente e divertida de compartilhar sua vida com amigos e
familiares. Faça uma foto ou vídeo, escolha um filtro para mudar sua
aparência e publique no Instagram – é assim fácil. Você pode até
compartilhar com o Facebook, Twitter, Tumblr e outros. É uma nova
maneira de ver o mundo. Ah é, mencionamos que é de graça?

3.1.3 Facebook46

Rede Social criada em 2004, onde os usuários podem adicionar amigos, trocar
mensagens, publicar fotos, textos, curtir e comentar fotos e textos de amigos, criar
grupos, criar páginas de serviço ou empresa, jogar online. Enfim, há muitas
possibilidades nesta plataforma. Como exemplo de usos possíveis do Facebook, há o
grupo criado por João e as páginas perfis dos blogs para divulgação, criadas por Isadora
e Isabela47. A opção de criar um grupo, pode ter as seguintes configurações: aberto,
fechado ou secreto. Ao criar uma página, ela pode ser curtida e indicada para outros
amigos curtirem. A descrição que se encontra disponível na página “sobre” do
Facebook é:

46
https://www.facebook.com/
47
Apresentarei as produções de cada criança mais a frente.

85
A missão do Facebook é dar às pessoas o poder de compartilhar informações
e fazer do mundo um lugar mais aberto e conectado.
Milhões de pessoas usam o Facebook para compartilhar um número
ilimitado de fotos, links, vídeos e conhecer mais as pessoas com quem você
se relaciona.

3.1.4 Twitter48

Criado em 2006, é uma Rede Social, considerada um microblog, onde é possível


postar mensagens de até 140 caracteres. O usuário pode ser seguido e poderá seguir
outros usuários o que possibilita que ele veja as publicações de quem segue, podendo
retwitar o que foi dito por quem ele segue ou ter sua publicação retwitada. É utilizado
por empresas, principalmente as que vinculam matérias jornalísticas. Também é muito
usado para divulgação de outras interfaces como sites, blogs etc. Segundo a descrição
da própria página do Twitter:

Bem-vindo ao Twitter. Conecte-se com seus amigos — e outras pessoas


fascinantes. Receba atualizações sobre coisas que lhe interessam no
momento em que elas acontecem e veja eventos acontecerem, em tempo
real, de todos os ângulos.

3.1.5 Tumblr49

Criado em 2007 e comprado pelo Yahoo50 em 2013. É uma plataforma onde é


possível a publicação de textos, imagens, vídeos, links, citações, arquivos de áudio etc.
É uma plataforma que, a princípio, faz uma mistura de blog com Rede Social. Para
trocas de mensagens, é necessário que o usuário publique um chat e as postagens de
textos podem ser reblogadas, ou seja, compartilhadas na sua dashboard (como se fosse a
timeline do Facebook). A pronúncia seria “tâmbler”. Segue descrição do próprio site:

48
https://twitter.com/
49
https://www.tumblr.com/
50
https://br.yahoo.com/

86
O Tumblr é tão fácil de usar que é difícil de explicar. Nós fizemos com que o
processo de criar um blog seja muito, mas muito fácil. Histórias, fotos, GIFs,
séries de TV, links, piadas sem graça, piadas inteligentes, músicas do
Spotify, arquivos mp3, vídeos, moda, arte, papo-cabeça, etc. O Tumblr é
composto por 213 million blogs diferentes, cheios das coisas mais incríveis
que você pode imaginar.
O Tumblr é feito de blogs. Acontece que, quando se facilita o processo para
que as pessoas criem coisas interessantes, é exatamente isso o que elas
fazem. Todos aqueles blogs incríveis que os seus amigos te enviam são todos
blogs do Tumblr. Nós ajudaremos você a encontrar e a seguir blogs como
esses e também vamos ajudar outras pessoas a encontrarem e seguirem o seu
blog.
Você já sabe como isso funciona. Depois que você começar a seguir um
blog, todos os posts desse blog irão aparecer no seu Painel, como esperado.
Reblogue, adicione comentários, faça o que você quiser. Outras pessoas
farão o mesmo com os seus posts. É assim que você irá conhecer pessoas
aqui.
Sério, você pode colocar qualquer coisa aqui.
Sete tipos de posts só para começar (texto, foto, citação, link, chat, áudio e
vídeo). O seu cérebro pode cuidar do resto. Use-o da forma que quiser!
Tudo bem! Na verdade, não é tão difícil de explicar.
Nós mentimos. Mas agora você entende essa coisa aqui. Portanto, vem com
a gente!
Ou leve o Tumblr sempre com você (mostrando que tem aplicativo para o
celular também).

3.1.6 We heart it51

Uma espécie de biblioteca pessoal de imagens, onde o usuário pode dar corações
para as imagens que gostou, seguir coleções de fotos por temas de interesse, descriminar
quais imagens quer ver marcando por tags (food, vintage, retro, por exemplo), seguir
outros usuários e publicar fotos a partir de urls ou de seu arquivo pessoal. Segundo a
descrição do próprio site:

Descubra inspiração e imagens que você ama todos os dias! #Happiness


We Heart It é o lugar para encontrar lindas imagens de tudo que você ama,
inspirado por milhões de pessoas pelo mundo!
Salve uma coleção de citações, veja imagens que combinam com seu humor,
encontre imagens para uma colagem de arte moda, e receba novidades
através de imagens das últimas tendências!
Principais funcionalidades:
♥ Veja imagens de alta qualidade, gifs e vídeos em uma variedade de estilos
coloridos, vivos, artísticos, vintage, e preto e branco.
♥ Busque e encontre exatamente o que está procurando, seja fashion ou
tendências de cortes de cabelo, ou um gato hipster de óculos!
51
http://weheartit.com/

87
♥ Salve suas imagens favoritas na sua galeria do We Heart It, telefone, ou
fundo de tela.
♥ Compartilhe as mais novas imagens com seus amigos no Tumblr,
Facebook ou Twitter.
♥ Agrupe suas imagens em "sets", como vestidos que você quer, lugares para
viajar, decoração para casa e quarto, idéias de tatuagens, e o que mais você
quiser.
♥ Siga as pessoas que definem tendências e junte-se à nossa comunidade de
pessoas dos Estados Unidos, Brasil, Noruega e dezenas de outros países.
Continue Hearteando no We Heart It!

3.1.7 Youtube52

Permite que seus usuários vejam e coloquem vídeos online. Criado em 2005 e
comprado pelo Google, conta com milhões de usuários no mundo todo e é uma das
principais ferramentas utilizadas por quem quer compartilhar vídeos caseiros e até
profissionais. Ao se cadastrar no google, o usuário adquire automaticamente um canal
no Youtube. Com isso, é possível curtir ou comentar um vídeo, se inscrever em canais
de outros usuários, postar vídeos (que podem ser públicos ou privados) e compartilhar
suas ideias no item discussão. Na sessão sobre do site, encontra-se a seguinte descrição:

Fundado em fevereiro de 2005, o YouTube é onde bilhões de pessoas


descobrem e compartilham vídeos originais e os assistem. O YouTube
oferece um fórum para as pessoas se conectarem, informarem e inspirarem
outras pessoas por todo o mundo e atua como uma plataforma de
distribuição para criadores de conteúdo original e para grandes e pequenos
anunciantes.

3.1.8 Skoob53

Se auto intitula a maior rede social para leitores do Brasil. A ideia é que o
usuário possa marcar os livros que leu, os que quer ler, os que parou pela metade, fazer
trocas com outros usuários, seguir editoras e escritores, ter amigos com os mesmos
gostos de leitura e fazer comentários sobre os livros que leu. Segue descrição do próprio
site:

52
https://www.youtube.com/
53
http://www.skoob.com.br/

88
Somos a maior rede social para leitores do Brasil. Funcionamos como uma
estante virtual, onde você pode não só colocar os livros que já leu, como
aqueles que ainda deseja ler. Tudo de forma organizada para que você não se
perca durante as leituras. E você ainda tem a vantagem de poder
compartilhar suas opiniões com seus amigos, fazer trocas de livros,
participar de sorteios, ganhar cortesias e muito mais.

3.1.9 Pinterest54

É uma interface que tem como foco as imagens que podem ser separadas por
temas de interesse. Por exemplo: um usuário que quer viajar para a Islândia, pode fazer
buscas e separar as imagens desse lugar; ou separar imagens de festas com um tema
específico, por exemplo. Cada imagem leva a um link, portanto, ao salvar as imagens de
um país que se pretenda conhecer, por exemplo, estamos salvando informações sobre
esse país. As imagens são chamadas de pins e você pode ver e salvar pins que seus
amigos já salvaram. Também é possível conversar inbox com outros usuários do
Pinterest.
Em sua página na internet, encontramos o seguinte: “Pinterest - O catálogo mundial de
ideias. Encontre e guarde receitas, dicas para a criação de filhos, estilo e outras ideias
para experimentar”.
Tudo sobre o Pinterest
Antes de mais nada: o que é o Pinterest?
O Pinterest é uma ferramenta visual de favoritos, que ajuda você a descobrir e salvar
ideias criativas.
Há um vídeo, em inglês (traduzido livremente por mim) em que podemos ter maior
conhecimento do que é o Pinterest: Imagine se a internet tivesse apenas coisas que você
ama. Então, todas as coisas boas enterradas no duplo w estariam esperando por você.
Bem, isso é o Pinterest: um lugar para as coisas boas. Coisas que você quer descobrir e
salvar para depois. E tudo começa com um pin. Um pin é um marcador de páginas
visual. Quando você clica num Pin, ele te leva direto para o site de onde veio para que
você possa aprender mais. Você pode achar Pins de outras pessoas diretamente no
Pinterest, mas qualquer coisa na internet pode se tornar um Pin também. Um pin pode

54
https://br.pinterest.com/

89
ser: uma sobremesa deliciosa, sua próxima aventura, um projeto DIY (Do It Yourself –
Faça você mesma) ou amor à primeira vista. Quando for a hora de seus Pins ganharem
um lugar, você pode salvá-los nas pastas, que irão ajudá-lo a guardar seus Pins por
temas ou tópicos. Então, faça Pin, à vontade e de graça! Todo dia é uma nova chance
de trazer Pins para a sua vida!

3.2 As crianças55

Neste momento, busco apresentar cada criança individualmente, para que


possamos conhecer melhor cada uma, auxiliando na reflexão sobre as relações delas
com a internet. Para isso, trago algumas informações básicas sobre cada uma, mas
também os seus perfis online, ou seja, os perfis cadastrados nas plataformas descritas
acima, e alguns diálogos sobre os mesmos. Afinal, o que dizem as crianças de si
mesmas em seus perfis? Buscar a resposta a essa pergunta, nos dirá muito sobre a
infância na cibercultura.
A interlocução de pesquisa, online e presencial, incluiu 5 crianças, a saber: Caio,
os irmãos João e Manuela e as irmãs Isadora e Isabela. Todas as crianças são de classe
média e estudam em escolas particulares. Os primeiros com quem conversei foram João
e Manuela que são meus primos. Nascidos na Espanha, moram em São Paulo há +/- 10
anos. As irmãs Isadora e Isabela são cariocas e atualmente moram em Garça, SP.
Cheguei à elas através do filho de uma integrante do grupo, pois eles estudavam na
mesma escola. Caio nasceu e mora no Rio de Janeiro. Meu primeiro contato com ele foi
como sua professora particular quando ele cursava a alfabetização.
A metodologia de pesquisa utilizada contou com 4 conversas presenciais e
algumas online, além da observação dos softwares sociais e das interfaces utilizados
pelas crianças. Para melhor visualização estrutural, separo as conversas por data:

2013
Conversa com João e Manu em 31/05/2013.

55
Data do último acesso aos perfis das crianças: agosto de 2016. As imagens expostas nesta qualificação
foram retiradas da internet e seu uso foi autorizado pelas crianças

90
2014
Conversa presencial com as irmãs Isabela e Isadora em 12/03/2014;
Conversa com Isadora via Skype em 02/08/2014
Conversa com os irmãos João e Manuela em 05/03/2014
Conversa com Caio e sua mãe Raquel em 09/05/2014

2016
Conversa com Manuela por Direct do Instagram em 25 e 26 de fevereiro de
2016.
Conversa com Isadora por WhatsApp56 em 25 e 26 de fevereiro de 2016.

3.2.1 João

Em nossa primeira conversa, em maio de 2013, ele tinha 11 anos57. Já teve


alguns blogs dos quais não lembra o nome. No dia 15/02/2012, criou um grupo fechado
no site de Rede Social Facebook, chamado Dona Feijão, e acrescentou todos os contatos
do seu perfil do Facebook. O grupo ficou com 91 membros no total. A última postagem
no grupo não é dele, mas de outro integrante.
João possui um canal no Youtube chamado Malditovsky Plays 58, onde postou 29
vídeos que gravava enquanto jogava Minecraft59. Sua última postagem é de 2 anos atrás.
Possui um perfil no Instagram, onde postou um último vídeo em 23 de maio de
2015, que mostra seu pai (segundo João) fazendo camarão em uma frigideira. Nos perfis
do Instagran (um de 2014 e outro de 2016), podemos perceber que ele fez alterações na
descrição de seu perfil, modificando o texto que se encontra logo abaixo do seu nome.
João também passou a seguir mais pessoas e a ter mais seguidores.

56
Aplicativo para troca de mensagens via celular e web. https://www.whatsapp.com/?l=pt_br
57
João nasceu em fevereiro de 2002 e em novembro de 2016 está com 14 anos.
58
https://www.youtube.com/channel/UC7CbTD4sKe7at80b1ip1ZuQ
59
https://minecraft.net/pt-br/

91
Imagem 9 - Página inicial perfil do João no Instagram em dezembro de
2014.

Imagem 10- Página inicial perfil do João no Instagram em agosto de


2016.

92
Imagem 11 - perfil de João no Facebook. Não tem foto de capa. A
foto do perfil é a mesma desde que ele criou o perfil.

3.2.2 Manuela

Em nossa primeira conversa, em maio de 2013, ela tinha 9 anos60 e seu blog
tinha sido criado há alguns dias. Também nasceu na Espanha (Manuela e João são
irmãos) e frequenta a mesma escola que João.
Manuela tem um blog chamado M@nulândia61, um blog chamado Eco Looks 62
(criado em maio de 2014 e conta com 2 postagens) e outro chamado Troços da Manu63,
sem nenhuma postagem. Ela também possui perfil no Instagram.
Em 2013, conversamos sobre o seu perfil enquanto acessávamos seu blog.
Manuela coloca uma foto, a informação se é menina ou menino e os nomes dos outros
blogs que ela tem (provavelmente essa é uma atualização automática do blogger). Não
há mais nenhuma informação sobre ela em seu perfil do blogger.

Joana – Posso olhar o seu perfil? Clica lá para ver.


Manu – Sim, mas não tem muita coisa. Só a minha foto e se eu sou menina ou
menino.
Joana – Você acha tranquilo botar foto? Eu quase nunca vejo colocar foto.
Manu – Minha mãe deixou eu colocar foto.
Joana – Sua mãe deixou, né? Tá. Aí tá botando que você é menina, né?
Manu – Na verdade eu nem toquei aqui. Eu nunca toco aqui.
Joana – Nunca pensou em escrever aí, né?

60
Manuela nasceu em 10 de setembro de 2004 e em novembro de 2016, está com 12 anos.
61
http://manulandi.blogspot.com.br/
62
http://ecolooksroupas.blogspot.com.br/
63
http://pucataca.blogspot.com.br/

93
Manu – É.
Joana – Ah, aqui tá que você está desde 2007.
Manu – 2007?
Joana – É por que você fez com o e-mail da sua mãe, né?
Manu – É.
Joana – Ah, então é por isso. Ah, 60 visualizações do perfil já.
Manu – 60? Que bom. Queria que fosse 2007 visualizações do perfil já.
Joana – Mas, tem que escrever mais coisas sobre você, não?
Manu – Minha mãe disse que não é bom.

Imagem 12 - Perfil de Manuela no Blogger. Perfil que aparece quando


clicamos em seu perfil no blog Manulandi.

Ela usa o Instagram de forma ativa e seu perfil está cheio de fotos dela e de suas
amigas. Cabe destacar que Manuela utiliza o celular de sua mãe para acessar o
Instagram, ou seja, sua mãe tem acesso às suas conversas e postagens nesse aplicativo.
Ela fez modificações em seu perfil, trocando o nome de “Manumaluca” para
“Manutfreire” e depois para “Manuh.freire”. No primeiro perfil, ela possuía 180
publicações e apagou muitas, ficando com 24 publicações e por fim 8 publicações no
perfil mais recente (última visualização em setembro 2016). Entretanto, no novo perfil,
Manu conta com mais seguidores e segue mais pessoas.
Em fevereiro de 2016, nós conversamos, sobre essa mudança em seu perfil, pelo
Messenger do Instagram que se chama Direct:
Joana - Manu, deixa eu te perguntar: você fez um novo perfil do Instagram?

94
Manu - Kkkk não eu só fico mudando o meu nome que nem louca 😂mas se você
ver um outro com a minha foto deve ser o meu insta de desenho
Joana - Mas, quando muda o nome as fotos antigas somem? Qual é o seu insta de
desenho? Quero seguir 😍
Manu - O insta eh @pequena_grande_artista. Elas n somem. Eu deletei algumas.
Joana - Manu, como você decidiu qual foto iria deletar?
Manu - ah e eu deletei assim: eu pensei q só ficaria com as fotos q eu tirei num
momento especial, e as selfies sem sentido eu deletei, também uso o critério das
curtidas, se uma foto ganha muitas curtidas eu n deleto.

Um pouco após essa minha conversa com Manuela, em que ela citou o perfil de
desenhos, fui procura-lo para poder seguir e não achei. Por isso, tentei conversar com
ela sobre isso em 30 de agosto de 2016:

Joana – Deixa eu te perguntar uma coisa. Vc apagou o seu perfil de desenhos?

No dia 06 de setembro, ela ainda não havia me respondido. Tentei novamente:

Joana – Não tô achando. Vc vai me ignorar? Magoei! Rsrs.


Manu – É que eu vi a mensagem antes dela... eu tia Cris. Aí ela não deve ter visto.
Sorry (quem respondeu foi a minha tia, mãe da Manu).

Então Manu “entra” na conversa:

Manuela – agora sou eu. sim e nao, eu n apaguei, mas eu troquei o “objetivo”.
Antes eu postava desenhos e agora se chama @dixxmanut, eh um insta modinha
onde a gnt posta foto zoadas ou piadinhas.
Joana – Obrigadaaaa! Eu vi q algumas de suas amigas tb tem esse outro perfil
com dixx. Esse dixx significa algo? Foram vcs quem inventaram ou é uma moda
mais geral?
Manu – É uma moda mais geral então eu não sei o que o dixx significa (perdoa a
minha falta de acentos, é um caso grave de preguiça)

95
Imagem 14 - Perfil de Manuela no Instagram em
Imagem 13 - Perfil de Manuela no Instagram em janeiro de 2015.
dezembro de 2014

Imagem 145 - Perfil de Manuela no Instagram em Imagem 136 - Perfil de Manuela no Instagram
03 de agosto de 2016. em 30 de agosto de 2016.

96
Imagem 157 - Perfil Instagram dixxmanut

Os perfis de Manuela nos mostram uma mudança clara em suas postagens ao


longo dos anos. Podemos começar observando a quantidade de postagens, seguidores e
seguidos; depois podemos partir para o nome que ela dá ao seu perfil e o nome e a
descrição que utiliza; e podemos terminar nas fotos. Acredito que olhando esses itens,
podemos observar seu crescimento e desenvolvimento físico, mas, principalmente, a sua
transição entre a infância e a pré-adolescência. Em nossa última conversa, por Direct do
Instagram, abordei o assunto com ela:
Joana - você começou a fazer seu blog ainda criança. Mas você foi crescendo. O
que você acha que mudou? E o que vc acha de criança produzir coisas na
internet?
Manuela - Depende da idade,se fosse da idade q eu tinha, ela seria tão inocente
que não aconteceria nada pq ela n falaria nada sobre ela, na minha idade a gnt já
gosta de se exibir mais e eh difícil tomar cuidado para n se expor demais ou dar
informações pessoais, eu acho perigoso, mas só para minha idade e adolescentes
Joana - Entao, o q vc acha q mudou é q antes vc era mais inocente e hj vc se exibe
mais?
Manuela - Quando vc poe desse jeito até parece q eu sou uma ... brincadeira! Mas
acho q sim. Só n tanto pq eu sei o q estou fazendo
Joana - Explica melhor essa frase: "eu sei o q estou fazendo", por favor?

97
Manuela - Oi jo!! Voltei. O q quis dizer eh q eu tenho noção do perigo que eu
corro até oq minha mae faz questão de me lembrar to da hora
Joana - E vc acha q tem amigas q sao muito exibidas e nao tem nocao do q estao
fazendo?
Manuela - não. mas as meninas do nono ano são. Olha. (E me mostra duas fotos
de duas meninas diferentes q postaram fotos sensuais - uma mostrando a barriga e
outra o decote com os seios bem evidentes).

Na fala de Manu sobre a mudança dos perfis, cabe destacar sua explicação sobre
como filtrou as fotos que ficariam e as que deletaria: as curtidas contam bastante na
hora de escolher qual foto será mantida. Essa questão das curtidas será analisada no
item denominado “Criação e comunicação: eu e o outro” a partir da página 119.

3.2.3 Isadora

Quando conversamos a primeira vez, ela tinha 10 anos64 e possuía um blog65,


criado em 2012 quando tinha 8 anos, um canal no Youtube66 e muitos perfis: no
Instagram67, no Facebook68, no Shopcliq69 (aparentemente, este site foi desativado), no
Skoob70, no Twiter71, no Tumblr72, no Weheartit73 e no Pinterest74. Isadora começou
criando o blog chamado “Gosto sem culpa” e, com a criação deste, automaticamente o
Youtube criou o seu canal, em seguida ela criou a conta no Instagram, a página do blog
no Facebook (segundo ela, para divulgação) e por último a conta no Twiter (também
com a intenção de divulgar o blog). Isadora conta que as postagens do Instagram são
redirecionadas para o Facebook e o Twiter também. Já foram feitas três entrevistas: uma
no dia 12/04/2014 em sua antiga casa no Rio de Janeiro com a presença de sua irmã,

64
Isadora nasceu em 07 de novembro de 2003 e em novembro de 2016 Isadora está com 13 anos.
65
http://www.gostosemculpa.blogspot.com.br/
66
https://www.youtube.com/channel/UCQeGkSrVS1RhSgYiQ5cjjNw
67
http://instagram.com/isadorasantosg3223
68
https://www.facebook.com/GostoSemCulpaByIsadora
69
http://shopcliq.com.br/isadora.guimaraes.54
70
http://www.skoob.com.br/usuario/1520521
71
https://twitter.com/GscIsadora
72
http://isaguima.tumblr.com/
73
http://weheartit.com/isadora_guimaraes_54
74
https://br.pinterest.com/isaguima/

98
Isabela, que também tem um blog; outra, somente com ela, no dia 02/08/2014, via
Skype, pois Isadora se mudou para o interior de São Paulo; e em fevereiro de 2016,
conversamos via Direct (caixa de mensagens do Instagram) e via WhatsApp
Seu perfil no blog é bastante detalhado, conforme podemos observar a seguir:

Joana – Ah, esqueci de perguntar pra você do seu perfil.


Isadora – Que perfil?
Joana – Do blog. Você bota foto...?
Isadora – Foto, meu nome, idade, do que eu falo no blog. Aí tem uma abinha lá
que é “Sobre mim”, aí eu escrevi um pouco mais e assim vai.
Joana – E você acha que é importante ter isso?
Isadora – É porque você faz um blog que não tem a sua foto, não tem o seu nome,
não tem a sua idade, fica um blog estranho, né? Você não sabe qual é o nome da
pessoa, qual é a idade da pessoa, você não sabe do que que ela fala. Tem que
escrever...
Joana – Tem que escrever no blog, né? E no Instagram, tem sua foto também?
Isadora – Tem foto, aí eu escrevo lá que eu sou é, que eu tenho um blog, e aí, tem a
minha idade e a minha foto.

Imagem 18 – “sobre mim” do blog de Isadora.

99
Imagem 19 - Quem sou eu da página inicial do blog. Julho de 2014.

Imagem 20 - Perfil na página inicial do blog. Setembro de 2016.

Analisando esses três perfis coletados no blog de Isadora ao longo desses anos,
podemos perceber algumas mudanças em seus interesses e até em sua escrita. Acho
importante destacarmos o fato de ela apresentar seus outros perfis em outros softwares
sociais e principalmente destacar a mudança no que ela apresenta como interesse: em

100
seu perfil de 10 anos, aparecerem várias coisas como interesse e no de 12 anos, ela cita
apenas a fotografia e o gostar de saber sobre as coisas.
Isadora possui um perfil pessoal no Facebook e costuma responder os posts
feitos por amigos e parentes, mas raramente posta alguma coisa. Ela utiliza o perfil do
blog no Facebook sempre que coloca novos posts.

Imagem 21 - "Sobre" que aparece na página do blog no Facebook

Fez uma alteração recente (em 2016) no se perfil do Instagram. Em nossa


conversa por WhatsApp perguntei porque ela havia feito essa modificação.

Joana - Te perguntei se você trocou de Insta porque eu tinha um perfil seu (uma
foto) que tinha muitas publicações
Isadora - Ah, e é que eu apaguei elas
Joana - E o seu nome era _doraisa. Perguntei pq minha prima fez isso tb. Mudou o
nome
Isadora - Sim
Joana - Do perfil do Insta. E eu achei q as fotos sumissem depois de fazermos isso
Isadora - Não, você tem a opção de apagar e de mudar o nome separados
Joana - Ah, entendi. E posso perguntar por que você quis mudar o nome?
Isadora - Então, eu enjoo muito fácil das coisas aí eu mudei porque também estava
muito longo quando eu ainda era @isadorasantosg3223
Joana - E mais uma coisa que fiquei pensando: como você decidiu quais fotos
apagar no Insta?
Isadora - Selecionando as que eu mais gostava e que eu menos gostava

101
Imagem 22 - Perfil Instagram Isadora julho de 2014. Acessado pelo computador e não pelo
aplicativo do celular.

Imagem 23 - Perfil Isadora Instagram março de 2015 Imagem 24 - Perfil Isadora março de 2016.

102
Imagem 25 - Perfil Instagram agosto de 2016.

Analisando as mudanças nos perfis de Isadora, além da mudança física visível


pelas fotos, podemos perceber algumas mudanças de atitudes, como, por exemplo na
forma como ela utiliza o espaço para a escrita do seu nome: o primeiro perfil do
Instagram utiliza o nome quase que completo e com um número; no segundo perfil,
utiliza o primeiro nome em letras minúsculas e com a imagem de um ursinho; o terceiro
perfil apresenta seu primeiro nome em letras maiúsculas; e o último perfil apresenta seu
nome e sobrenome (opta pelo Guimarães) e o símbolo de seu signo, o que já pode
demarcar uma busca pelo autoconhecimento, em um movimento mais adolescente. O
número de fotos diminuiu e o de seguidores e seguidos aumentou. Em nossa última
conversa, por Whats App, eu perguntei sobre esse crescimento:

Joana - vc começou a fazer seu blog ainda criança. Mas vc foi crescendo. O que
você acha que mudou? E o que vc acha de criança produzir coisas na internet?
Isadora Guimaraes - Eu acho que eu evolui, eu não sou mais aquela menina que
ama moda, maquiagem, sapatos, roupas... Agora eu mudei em relação aos meus
gostos, hobbies e interesses, agora eu gosto de livros, música, dança, arte, e outras
coisas. E isso também tem muito a ver com a minha relação comigo mesma. Eu
ainda gosto de maquiagem, mas não naquele nível. E eu usava muito, agora não,

103
só pra sair. E é isso.
Joana - E o que vc acha de criança produzir coisas na internet?
Isadora - Acho muito legal, tanto que eu comecei assim, mas, não pode interferir
nos estudos. Mas eu acho demais!

Figura 2616 - Perfil no Youtube

Imagem 17- Perfil do Pinterest de Isadora. Setembro de 2016.

Imagem 28- Perfil no Facebook pessoal agosto


2016

104
3.2.4 Isabela

Em nossa única conversa, em 12 de março de 2014, Isabela tinha 8 anos (faria 9


no mês seguinte)75. O primeiro blog de Isabela se chamava “E aí, tá na moda?”, mas ela
o apagou no primeiro dia. Depois fez o blog “Pensando na Maquiagem” que tem a
última postagem em julho de 2015, onde ela convida para visitarmos seu blog novo,
mas não há nome nem link para o mesmo. Após essa nossa primeira conversa, tentei
falar com Isabela via Messenger do Facebook, mas não obtive resposta. Continuei
observando seus perfis e não senti necessidade de falar novamente com ela. Isabela
criou uma página no Facebook (Pensando na Maquiagem by Isabela) com o intuito de
divulgar o blog. E, ao apresentar-se nessa página, chama a atenção o fato de Isabela
citar o blog da irmã, conforme vemos na imagem abaixo.

Imagem 29 – “Sobre” que aparece na página do blog no Facebook.

Sabendo que Isabela afirma só ter criado o blog porque estava com inveja da
irmã, conforme vemos no diálogo a seguir, podemos concluir que quando Isabela traz o
blog da irmã na descrição do perfil do Facebook criado para seu blog, é como se ela
buscasse legitimidade para o mesmo, como se ter uma irmã que faz um blog a
autorizasse a ter um também.
Isabela possui perfil pessoal no Facebook, canal no Youtube, conta no Instagram
e no Pinterest. De todos, o que ela mais utiliza é o Instagram. Abaixo, apresento as
imagens de perfis disponíveis nas plataformas utilizadas por Isabela

75
Isabela nasceu em 13 de abril de 2005e em novembro de 2016 Isabela está com 11 anos.

105
Imagem 30 - Sobre do blog de Isabela.

Imagem31 - Perfil pessoal Facebook. Agosto de 2016.

106
Imagem 32 - Perfil Instagram Isabela. Julho de 2014.

Imagem 33 - Perfil Isabela Instagram. Dezembro de 2014.

107
Imagem 34 - Perfil de Isabela no Instagram. Março de
Imagem 35 - Perfil Isabela Instagram. Agosto de 2016
2015.

Analisando as mudanças no perfil do Instagram de Isabela, podemos perceber


uma mudança física, que demonstra seu crescimento, E assim como Manu e Isadora,
chama a atenção alguns detalhes: o texto de apresentação do Instagram que fica abaixo
do nome, por exemplo, passa por transformações interessantes: no primeiro perfil, ela
escreve um texto cheio de figuras fofinhas que a ajudam a se descrever. O segundo e o
terceiro perfis, trazem dois textos e o quarto perfil traz apenas uma palavra: “Pessoa”.
Também há um aumento significativo de publicações. Ao contrário de Manu e Isadora,
Isabela manteve todas as suas fotos em seu perfil, mesmo tendo feito alterações nele.

108
3.2.5 Caio

Quando conversamos sobre seu blog pela primeira vez, em maio de 2014, Caio
tinha 12 anos76, tendo criado seu blog em maio de 2012, com 10 anos. Seu blog se
chama “Animais Selvagens 77” e foi criado para que ele colocasse seus desenhos online.
Fizemos apenas uma entrevista em que conversamos enquanto observávamos seu blog.
Por conta das questões que envolvem a produção de Caio78, senti necessidade de
conversar com sua mãe também, o que fiz nesse mesmo dia. Após essa nossa conversa
de maio de 2014, fui observando o blog de Caio e nesse período, não senti necessidade
de marcar uma nova conversa com ele. Caio não possui perfil no Facebook, nem em
nenhuma outra rede social. Abaixo, apresento imagem do “sobre” de seu blog, onde
vemos que há as informações básicas solicitadas pelo blogger no momento do cadastro
e uma foto que, segundo Caio, foi escolhida por sua mãe.

Joana – Vamos ver aqui, ó, o seu perfil? Vê o que que tem? Tem uma foto sua.
Quem escolheu essa foto, foi você ou sua mãe?
Caio – Foi minha mãe.

Imagem 36 – “Sobre” Caio em seu blog.

76
Caio nasceu em 22 de julho de 2002 e em novembro de 2016 está com 14 anos.
77
http://caio-animaisselvagens.blogspot.com.br/
78
Caio está atualmente no 5º ano do Ensino Fundamental78 e é considerado um aluno especial, mas sem
um diagnóstico definido, sendo atendido por uma fonoaudióloga, uma psicóloga e frequentando um curso
de desenho. É através dos desenhos que Caio se expressa melhor desde pequeno e, por isso, essa arte
sempre foi incentivada pela família e escola.

109
4 ENTÃO, O QUE PRODUZEM ESTAS CRIANÇAS?

Não há trabalho de campo que não vise ao encontro com


o outro, que não busque um interlocutor.
Marília Amorim

Uma tese deve contar com categorias que são muito importantes pois apresentam
toda a relação que o pesquisador fez com o campo. São as categorias que mostram ao
leitor o que foi feito com o trabalho de campo. Apesar de buscar entrelaçar o campo à
teoria sempre que possível, são as categorias que possibilitam ao leitor aproximar-se do
material encontrado pelo pesquisador. A partir do momento em que a transcrição
termina, o pesquisador inicia um trabalho de filtragem e categorização. As categorias
podem preexistir na cabeça do pesquisador, mas, normalmente, se modificam ao longo
do trabalho, ganhando novos contornos. As categorias que fariam parte do trabalho, em
seu início, normalmente, surgem da primeira aproximação do pesquisador com o tema,
de suas hipóteses. Porém, as categorias são definidas apenas quando nos debruçamos,
esmiuçamos o material colhido em campo. Esse trabalho de categorizar os achados de
campo pode, além de ser bastante penoso e complexo, não dar conta do que foi vivido
em campo: como categorizar uma pesquisa feita com dados encontrados na internet, ou
seja, uma pesquisa que viveu a complexidade dos nós, do emaranhado? Como separar o
que parece estar entranhado, unido, conectado? Como separar, de forma linear, as falas
e situações observadas se cada uma parece se referir à outra? Com essas indagações em
mente, e consciente de que a pesquisa que fiz está cheia de nós, de links e hipertextos,
que imagens e falas se remetem umas às outras constantemente, por isso, estamos
nomeando de itens os achados sobre os quais me debrucei mais atentamente. Buscando
organizar um pouco esses achados, separei os seguintes temas para uma análise mais
minuciosa: “As condições de produção/criação”; “Fluidez”; “Criação e comunicação: eu
e o outro” e “Estratégias para ser visto”.
Todos os itens foram elencados a partir da análise do material de campo, das
conversas com as crianças e da observação de seus blogs etc.

110
4.1 As condições de produção/criação

O que leva as crianças a produzirem blogs, a criarem perfis nas Redes Sociais, a
publicarem vídeos? Nesse item pretendo, com a ajuda das crianças, entender o que as
coloca nesse lugar de produção e de publicação de conteúdo online. Também busco
entender o que as motiva ou desmotiva em suas publicações. Então podemos começar
com a resposta de algumas crianças a uma pergunta que foi feita a todos eles: o que
motivou cada um a produzir e publicar online?
Isadora ao ser perguntada sobre por que criou o blog, respondeu:
Isadora – Por que eu via vários na internet e eu ficava: ah, eu queria fazer isso,
deve ser legal, ah, eu gostaria de fazer isso, ah eu queria fazer isso que pode
mudar a minha vida. Aí eu fui e criei o blog.
Joana – E porque você escolheu o tema da maquiagem?
Isadora – Na verdade eu não falo só de maquiagem, eu falo de moda, beleza, de...
Joana – E porque foram esses temas de beleza, moda, maquiagem?
Isadora – É porque era o tema que eu mais gostava de ler. E aí eu também gosto
de escrever e eu também gosto de pesquisar sobre eles. Daí eu escrevi um blog.

Já Manuela, respondeu à essa pergunta com a seguinte afirmação:

Joana – Porque que você fez o blog?


Manu – Ah, porque eu gosto de tipo, mostrar as coisas que eu gosto.

Uma das condições que apareceram em campo está relacionado ao tempo. De


acordo com o que foi esquadrinhado, as postagens das crianças costumam estar
condicionadas ao tempo que sobra após as obrigações escolares. Percebe-se que as
crianças não têm tempo para fazer o que gostariam, sem o intuito de dizer se é bom ou
ruim elas estarem na Internet, mas efetivamente, as crianças não podem fazer o que
realmente gostariam por conta da escola, das tarefas educativas. Em posts de vários
blogs, é possível encontrar essa explicação do porquê as crianças não estarem postando
como gostariam, ou do porquê abandonarem seus blogs etc.

111
Imagem 37 – Ausência de posts.

Tanto nas conversas que tive com as crianças quanto nas observações das
postagens feitas nos blogs a escola frequentemente aparece como a “culpada” pela falta
de tempo da criança. Um exemplo é a postagem do blog “My life, my place, my word”,
em que a blogueira justifica a ausência de posts contando que estava de castigo e em
época de provas e que se ficasse de recuperação, ficaria de castigo novamente (página
20). Ou seja, a escola que geralmente não permite o acesso livre à internet pelas
crianças, é a mesma que, dentro de casa, ou nas horas livres, impossibilita a produção
online das crianças pela demanda de tempo. Não queremos dizer, com isso, que a escola
é necessariamente a vilã dessa relação, apenas queremos refletir sobre essa questão
apontada pelas crianças. Outro exemplo interessante que aponta a escola como culpada
pela dificuldade em publicar nos blogs, aparece na fala de Manuela quando perguntada
sobre a quantidade de vezes em que faz postagens em seu blog. Ela afirma que não
posta muito:
Manu - Assim, como eu não tenho muito tempo, eu só posto quando eu tipo, eu não
posto muito, em um dia eu encho, eu coloco um montão de coisas e daí eu fico sem
postar porque já tá com um montão de coisas.
Joana – Mas, porque que você acha que não tem tempo assim?
Manu – Ah, porque eu sempre chego tarde da escola...

112
Manuela lê um post em que ela relaciona as postagens com a falta de tempo. Ela
acredita que seu blog não está legal por conta da sua falta de tempo e deixa isso claro
para os seus leitores.

Manu – Como vocês sabem meu blog tem várias postagens bobas isso acontece
porque eu não tenho tempo para postagens. Assinado Manuela. Eu admito, meu
blog está superchato. Isso porque eu não tenho tempo para postar coisas legais. E
uma carinha triste.

Cabe destacar, que nesse post, Manu justifica a falta de posts mais elaborados
relacionando à sua falta de tempo, afinal, posts mais elaborados exigem maior
dedicação da blogueira.
Já Isadora, ao ser perguntada sobre a proibição de usar o computador durante a
semana, informação que já havia sido dada por ela em outro ponto da nossa conversa,
traz a seguinte declaração:

Joana – A questão da postagem, só pode acontecer no final de semana por causa


dos compromissos que vocês têm da escola etc.? Daí, você acha que isso
atrapalha, assim, o seu blog?
Isadora – Não. Porque aí no fim de semana eu faço um post ou sábado ou
domingo. Sexta eu entro só de noite. Mas, não atrapalha nada, já tô acostumada
também. Desde que eu entrei na escola minha mãe não deixa eu entrar no
computador quando tava na escola. Então eu já tô acostumada.
Joana – Você nem sente falta de não poder durante a semana?
Isadora – E faz 7 anos que eu entrei em todas as minhas escolas, então faz tempo
que eu estou nas escolas.

A escola impede mesmo a produção ou serve de desculpa para quando as


crianças não querem mais fazer algo? Será que há falta de tempo ou de interesse?
Acredito que há as duas coisas já que cada criança lida com suas produções de forma
diferenciada. Caio e Isadora, esta já fez posts justificando a falta de posts por causa da
escola, mantém seus blogs ativos. Talvez eles postem com menos frequência do que
gostariam, mas a questão é que não os abandonaram como as outras crianças. Então,
provavelmente, a escola atrapalhe a produção dos blogs, mas não impossibilita
totalmente.

113
Imagem 38 – Post pedindo desculpas pelo sumiço.

A questão da falta de tempo para se dedicar às redes sociais, tema recorrente


durante as conversas com os interlocutores já que muitas criam os blogs, fotologs,
videologs e logo param de atualizar as postagens, e o consequente abandono das
mesmas, pode ser debatida com Sibília quando a autora traz dados de 2003 que
comprovam o grande abandono dos blogs, considerando como abandono a falta de
atualização nos últimos dois meses.
[...] pois na febril atualidade não há mais tempo para nada. Se não há tempo
para ler, nem para escrever ou sequer para praticar a mais modesta
introspecção, então por que haveria tempo disponível para manter um blog?
Mesmo obedecendo a lógica da brevidade e do instante, essa atividade não
deixa de exigir constância e perseverança para continuar a existir, com todas
as demandas de uma, é tarefa a moda antiga. (SIBÍLIA, 2009, p.138)

Isadora, que utiliza o blog com maior dedicação, costuma elaborar e anotar suas
ideias durante a semana em um caderninho. Esta foi a forma que ela encontrou de
publicar novos posts. “A gente se organiza num caderninho que a gente escreve o que a
gente quer fazer, o que a gente quer gravar e é bem mais simples. A gente mesmo que
tem as ideias. Tipo ou às vezes a gente copia uma pessoa que fez um post e eu quero

114
fazer parecido e eu escrevo no caderninho”. Entretanto, de acordo com as postagens
sobre escola e sobre a falta de tempo e de ideias para postar, podemos perceber que a
maioria das crianças não têm tempo de ócio para colocar a imaginação criativa em
funcionamento. A pressão da vida cotidiana, corrida e cheia de compromissos escolares
e extracurriculares, as faz perder o fio da meada da imaginação criativa que é necessária
para as formas de criação, seja em um blog ou em um canal no Youtube. Tanto que as
crianças que fazem dos seus espaços um lugar quase que de trabalho, dedicando tempo
para seus projetos, conseguem publicar mais. Caso, por exemplo, da Youtuber Mirim
Julia Silva, que faz disso, além de passatempo, uma fonte de renda.
A seguir, apresento um post de Manuela em que ela deixa claro a sua falta de
ideias sobre o que postar.

Imagem 39 - Post de Manuela admitindo não ter ideias para postar.

Com esses achados podemos corroborar o grande interesse demonstrado pelas


crianças pelo aplicativo Instagram: a partir de smartphones, a criança tira uma foto,
escreve uma legenda e pode postar imediatamente.
Entretanto, cabe destacar que a autora afirma que o número de novos blogs ainda
é maior do que o de abandonos, creditando os novos à possibilidade existente em que se
abandone uma tarefa que tenha se tornado cansativa demais, pois sempre há a
possibilidade de criar um novo perfil, um novo blog, de reinventar-se.

Assim, seguindo o prático esquema do faça você mesmo, é possível deletar


com total rapidez e facilidade tudo aquilo - e todo aquele - que não mereça
ficar no desvão da memória. Neste sentido, as ferramentas digitais prometem

115
ser bem mais eficazes do que o antigo método analógico da "página virada" e
da lenta ruminação intestinal. (SIBÍLIA, 2009, p.139)

Esse movimento, que estamos chamando de fluidez, mostrou-se importante e


necessário aprofundar em uma categoria.

4.2 Fluidez

Ficamos pobres. Abandonamos, uma a uma, todas


as peças do patrimônio humano, tivemos que
empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu
valor para recebermos em troca a moeda miúda do
‘atual’.
Walter Benjamin.

As observações que demarcam a fluidez envolvem o abandono das produções,


sejam blogs ou perfis em redes sociais, bem como a criação de novas produções que
representem novos interesses. A substituição de softwares sociais ou interfaces por
outros mais novos também chama a atenção. Fluidez, segundo o dicionário Michaelis
Online, vem de fluência (qualidade ou natureza daquilo que flui) e em sua definição
física é a propriedade que um líquido tem de escoar nas canalizações; inverso da
viscosidade absoluta de um líquido; fluididade. Porém, a definição que melhor se
encaixa no que pretendemos trazer nessa categoria vem da palavra fluir: perder a força,
a intensidade; desfazer-se, diluir-se, enfraquecer-se.
Essa mudança constante também é uma característica possibilitada pela própria
tecnologia: a facilidade em trocar de interface de acordo com interesses ou em ingressar
em uma nova rede social da internet é comum às crianças. Podemos afirmar que
vivemos em um mundo onde tudo pode e deve ser trocado com maior facilidade e em
um curto espaço de tempo. Um smartphone tem modificações em seu aparelho e sistema
que nos faz desejar ter um aparelho mais “moderno”. Vivemos um tempo em que o que
importa é a nova geração de aparelhos que ganham nomes com números para sabermos
mais facilmente qual foi o último a ser fabricado. Os aplicativos são atualizados
constantemente e se o aparelho não acompanhar as atualizações, não conseguimos fazer
com que uma nova versão desse aplicativo funcione corretamente no aparelho.

116
Queremos ou somos impulsionados a consumir as novidades tecnológicas diariamente.
Estar desatualizado do que está acontecendo de novo pode ser um problema social
muito grande dependendo da nossa profissão ou, inclusive, da nossa faixa etária. Quase
todos os interlocutores desta pesquisa fizeram essa multiplicação de perfis e acessos às
redes sociais da internet. Do blog, para uma conta no Twiter, um perfil no Facebook,
depois um no Instagram etc. e a cada novo perfil criado, segue-se o abandono do antigo,
ou pelo menos, uma maior valorização do novo em detrimento do antigo. Apesar de já
ter dito que não pretendo enquadrar as crianças dentro de um conceito, conforme já
discutido no capítulo “Infância e Cibercultura” (página 22), não posso deixar de
mencionar uma reportagem79 do Jornal O Globo de 2013, em que há uma classificação
que nos ajuda a contemplar a categoria aqui chamada de Fluidez: a chamada geração
F5. Essa geração inclui as crianças que nasceram entre 2001 e 2007 e que
“acompanharam o estouro da banda larga e das redes sociais e o surgimento dos
dispositivos móveis”.

Imagem 40 – Linha evolutiva das mudanças tecnológicas de 2001 a 2010.

De acordo com a linha evolutiva apresentada acima, podemos concluir que as


crianças participantes da pesquisa desenvolvida nesta tese, nasceram e estão crescendo
em rede, e ainda mais, vivenciam transformações tecnológicas de forma muito rápida. A
novidade chega ao mercado cada vez mais rápido, a atualização é constante. Inclusive, o
nome geração F5 vem da função desta tecla, já que é ela que atualiza o navegador da
internet no computador. Ainda de acordo com a reportagem, a Geração F5 é
caracterizada por 5 “Fs”: full time, estão sempre conectadas; feed, são estimuladas por
diversas fontes de conteúdo; filtro, selecionam o que é relevante; foco, se aprofundam
nos temas de interesse; e flexibilidade, capacidade de transitar com facilidade entre os
assuntos”. Portanto, as crianças participantes desta pesquisa, tendo nascido entre 2002 e
2005, estariam, teoricamente, dentro do que podemos chamar de Geração F5. E, apesar

79
A tecla do momento: crianças da geração ‘F5’. Jornal o Globo (versão impressa), 2ª edição, 14 de julho
de 2013, Caderno Economia, Digital & Mídia. 30.

117
de não querer utilizar estas nomeações, acredito que essa característica de viver em
atualização, caiba muito bem na discussão que estou nomeando de Fluidez, afinal, as
crianças com as quais conversei, demonstraram estar sempre em busca de novidades, e
mais ainda, buscando novos interesses quando o antigo já não satisfaz mais. São
crianças que vivem em atualização constante, mas que ao mesmo tempo se dedicam full
time ao que está no centro do interesse do momento. Então, uma criança pode decidir
criar um blog para falar mais de um assunto sobre o qual ela se interessa (caso de
Isadora) e também pode abandonar um grupo recém-criado, como, por exemplo, o
grupo Dona Feijão, criado por João em 15 de fevereiro de 2012, que teve muitas
postagens feitas por ele no primeiro mês e logo suas postagens foram diminuindo, sendo
a última de 10/11/2012. Depois disso, outros usuários fizeram postagens esporádicas e a
última foi em 08/05/2014. Perguntado sobre porque não postava mais nada no grupo e
se tinha abandonado o mesmo, João respondeu: “É. É que ficou chato assim, ai,
botando coisa, vendo o que as pessoas fizeram. Ficou chato”.
Em relação ao seu canal do Youtube, o Malditoviskis Plays Plays Jogos, João
explicou que foi criado automaticamente quando ele criou um e-mail do google e
passou a ser usado em 2012, mas não há postagens de novos vídeos desde dezembro de
2013. João explica porque parou de postar: “Aí meu headset (fone com microfone)
ficava quebrando, ele tá quebrado, aí eu parei de postar vídeos”.
Sua página pessoal do Facebook e seu perfil do Instagram, também possuem
pouquíssimas publicações. Em 5/11/2014, João compartilhou um link no Facebook,
após isso, ele foi marcado em fotos e foi parabenizado por seu aniversário em fevereiro
de 2015. Mas, não colocou mais nenhum post. Seu Instagram também tem um último
vídeo postado em maio de 2015 e conta com um total de 18 publicações. Ou seja, João
tem poucas publicações de um modo geral e a vista de qualquer empecilho ou
desânimo, ele abandona seus perfis.

Joana – Então você não entra mais no Facebook?


João – Não.
Joana – Porque?
João – Por que eu enjoei
Joana – Mas, e o grupo lá, aquele?
João – Dona Feijão? Ficou.
Joana – Deixou pra lá? Cansou dele?

118
Joao – É. É que ficou chato assim, ai, botando coisa, vendo o que as pessoas
fizeram. Ficou chato.
Joana – E qual é o nome do seu canal no youtube que eu procurei e não consegui
achar.
João – Eu acho que eu vou deletar ele, mas é, é que eu tentei mudar o nome só que
deu errado. É malditovisks plays play jogos.

Joana – Mas, o grupo Dona Feijão tá abandonado, né? E o seu Facebook?


João – É. Também, tentei desativar e não consegui. Eu tinha o meu Facebook pra
jogar Red Crucible

Manuela, também já não posta há muito tempo em seus blogs. O Blog


Manulandia conta com 17 postagens, sendo a mais recente de outubro de 2013. O Blog
Ecolooks possui 2 postagens e no blog Troços da Manu não há nenhum post. Segundo
Manuela explica, houve uma migração para o Instagram, tendo criado seu perfil no final
de 2013, e um abandono dos blogs criados por ela. Ela afirma que “A gente fica mais no
Instagram”.
Mas, mesmo o Instagram, aplicativo ao qual as crianças têm sido mais fiéis,
sofre com a fluidez que se caracteriza na já comentada mudança de perfil (ver página 88
onde apresento as crianças) e também na criação de novos perfis, como no caso de
Manuela que criou um perfil para colocar seus desenhos (@pequena_grande_artista) e
que depois o transformou em um perfil Dixx conforme descrito na página 93.
A fluidez também é determinada pelo fluxo das crianças entre os
aplicativos/plataformas. a necessidade de estar onde os amigos estão. Ou seja, as
crianças vão seguindo o fluxo das outras crianças: a criação de um blog, faz com que
outras crianças queiram criar um blog, a criação de um grupo, a ida para o Instagram,
Snapchat etc. A cultura de pares deles se mostra nessas migrações, nessa fluidez. As
crianças querem conhecer o que outras crianças estão usando, conforme podemos ver
nas falas abaixo:

Joana – Mas, e porque você fez esse grupo (refiro-me ao grupo do Facebook,
Dona Feijão)?
João – Porque eu fiz esse grupo... (silêncio). Eu tenho uma amiga que tava fazendo
um monte de grupo. Aí eu achei legal fazer um grupo, aí eu fiz.

119
Joana – E porque você quis fazer (um perfil no Instagram)?
Manu – Porque eu tava muito por fora das novidades. Ficava todo mundo falando:
ah, você viu aquele vídeo, ah, Manu, você viu aquele vídeo no Instagram? Daí eu,
eu não tenho Instagram, eu não tenho Instagram. Daí eu fiquei com vontade de ter
pra ver o que era de tão legal no Instagram e era bem legal.

Joana – E você Isabela, porque você quis fazer o Instagram?


Isabela – Porque todo mundo tinha e eu queria ter também.
Joana – E o blog, você fez porquê?
Isabela – Porque a Isadora tinha.
Isadora – Todas as minhas amigas, quando eu criei, e a Isabela criou, todas, todas
mesmo, todas, eu tenho várias amigas por causa da escola, várias na escola, todas
criaram!

Joana – E aquele negócio que eu nunca sei falar o nome Tumbrl?


João – Ah, sei. Tumbrl. Não sei o que é nunca usei. Coisa de velho.
Joana – Frequente agora é o Instagram?
João – E Snapchat.
Joana – Snapchat e Instagram estão bombando?
João – E o Vine também.

Joana – Você quer ter Facebook?


Manu – Pra mim é a mesma coisa que Instagram, mas sim, eu quero.
Joana – Suas amigas têm Facebook?
Manu – Não. Pra mim assim, Instagram é pros amigos e Facebook é até pra falar
com a família mesmo. Porque ninguém da minha classe tem Face, né? Todo
mundo tá no Instagram!
Joana – Instagram é o que tá bombando?
Manu – Nossa, o Instagram tá muito bombando!

Joana – Suas amigas têm blog?


Manu –Assim, quando eu fiz o blog todo mundo começou a me copiar.
Joana –Você foi a primeira da sala a fazer?
Manu –É, mas a aluna nova, uma menina que entrou, ela já tinha blog. E a minha
amiga ela copiou totalmente o nome do meu blog. O meu é Manulandia e o dela é
Sofiland.

120
Esta afirmação de que o Instagram é o preferido pelas crianças, é correlata à
informação que apresentamos na página 22, no gráfico que mostra o aumento de
postagens em Redes Sociais e a diminuição do uso do blog.

Joana – E porque você parou de fazer o seu blog mesmo.


Manu – Porque quando o Instagram começou a tipo bombar, todo mundo ficou
mais no Instagram. Ninguém queria blog, tipo, é que blog a gente faz tipo, ah, vem
ver meu blog tem um monte de coisa legal blá, blá, blá, mas aí depois a gente fica
tipo, ah, tenho que postar, ai que droga!
Joana – Vira uma obrigação?
Manu – É. No Instagram é mais legal, tipo, ah eu quero postar isso, ai que legal.
Mas, às vezes você fica tipo, ai não se eu não postar alguma coisa eu vou perder
meus seguidores!
Joana – Eu acho que o Instagram é mais prático, né?
Manu – É porque no Instagram não precisa postar tudo aquilo, né? Porque no
Instagram, as pessoas te seguem não pelas suas fotos. Elas te seguem porque você
é amigo delas. Tipo a minha melhor amiga, finge que ela não posta nada, finge que
ela só posta foto do pé dela, eu vou seguir ela porque ela é minha amiga.

Questionada sobre o assunto de seu blog, Isabela explica que não fala mais
apenas sobre maquiagem e moda: “Mas, quando eu criei o blog é, eu ainda tava com
inveja da Isadora e aí eu queria com o mesmo tema do dela. Só que agora, é, eu posto
sobre muita coisa, tipo decoração e tal”.
Porém, cabe destacar que não podemos relacionar o “abandono” ou a escassez
de postagens apenas com a falta de tempo e a fluidez já analisadas até agora: a falta de
interação com o outro é também um fator que pode desmotivar a publicação das
produções infantis e, portanto, também foi separada em uma categoria que tratamos a
seguir.

121
4.3 Criação e comunicação: eu e o outro

A palavra se dirige.
Mikhail Bakhtin

No item anterior, “Fluidez”, já percebemos como o importante papel da


amizade, de estar com outras crianças, participando da cultura de pares, faz com que as
crianças estejam em determinadas Redes Sociais e/ou usem determinados aplicativos
em detrimento de outros. Continuando essa linha de pensamento, onde o outro tem
papel determinante, esta categoria apresenta a importância das relações que reverberam
para o online. Partindo do pressuposto que é na relação com o outro que eu me
reconheço, que é o olhar do outro que me dá contornos, acreditamos que as crianças
buscam essa interação online, tanto quanto os adultos o fazem. E é a partir das Redes
Sociais e dos blogs que as produções infantis online ganham visibilidade para o outro e
que a interação é possível através de comentários, likes, curtidas, corações etc. Mas,
qual é a real importância desse outro para as crianças? Até onde vai o desejo delas em
serem vistas, comentadas, curtidas, lidas? Até que ponto o outro motiva ou desmotiva as
produções infantis online? Para ampliar essas discussões, apresento conversas e
publicações das crianças onde elas mostram o quão importante é a relação com o outro.
Conforme podemos ver no comentário de Manuela a uma imagem que ela mesma
publicou no Instagram:

Imagem 41 - Legenda de foto do Instagram de


Manuela.

A imagem80 mostra Manuela com um bebê no colo e ela coloca a seguinte


legenda “Poxa... ninguém vai comentar nada...”. Quando ela posta uma imagem, além
dos corações que recebe, ela espera por comentários. Sobre a questão dos comentários,

80
Apesar de termos autorização para uso das imagens, pensamos que elas só devem ser usadas quando
forem essencialmente importantes. Neste caso o foco está na legenda, portanto, a imagem foi suprimida
para preservar as crianças envolvidas.

122
reportagem do dia 04/12/2014, veiculada no portal de notícias G1, com o título “Em
busca de popularidade, jovens 'negociam' elogios no Instagram”, confirma essa
necessidade que parece estar posta na sociedade contemporânea: ser visto, curtido,
comentado. De acordo com a reportagem, os jovens estão trocando “curtidas e
comentários”: se um usuário curtir minha foto, eu curtirei a foto dele em troca.
Conversando com Manuela, pergunto sobre o porquê ela faz postagens no
Instagram ela menciona a questão dos seguidores, corroborando que tê-los em grande
quantidade é muito importante.

Joana - É, sabe o que eu queria saber? Porque eu quero entender porque as


crianças gostam de postar coisas, de criar coisas na internet, entendeu?
Manu – É pra todo mundo... Você me deixa em cada fria! É pra, ah, tem gente que
gosta de tipo mostrar como é, ah, o que eu gosto de fazer, gosto de jogar
Minecraft, tem gente que gosta de fazer vídeo no Youtube por diversão, é por
diversão assim.
Joana – Você faz por que? Por diversão?
Manu – Sim, eu faço por diversão. E pras pessoas me seguirem. Porque no
Instagram tem uma certa competição pra ganhar seguidores.
Joana – Ah, e como é que a gente ganha seguidores?
Manu – Postando coisa legal?
Joana – Então por isso que tem que pensar no que postar, né? Ver o que é que vai
postar?
Manu – É.
Joana – Entendi. E todos os seus amigos te seguem da sala?
Manu – Ah, deixa eu pensar. Todos que estão (no Instagram), sim.

A questão dos comentários, da necessidade de saber que alguém viu e comentou


o que foi feito por ela é recorrente e surgiu também em conversas com outros
interlocutores da pesquisa e pode ser compreendida com o auxílio de Sibília (2009,
online81):

Por isso, apesar da ênfase nas novas práticas presentes na Web 2.0, eu tendo
a afirmar que se trata de um fenômeno bem mais amplo: usamos essas
ferramentas para responder às demandas de um novo tipo de sociedade, um
universo cada vez mais distante daquela cultura oitocentista que incitava a
escrever diários verdadeiramente “íntimos”.

81
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2361&secao=283

123
Uma das principais manifestações dessa virada é um crescente desejo de ser
visto, uma vontade de se construir como um eu visível, como um personagem
que os outros podem ver e, graças a esse olhar reconfortante, confirmam a
existência de quem se exibe.

Outra criança que demonstra essa necessidade de interação com o outro de


forma clara é Isadora. Em nossa primeira conversa ela conta que há visualizações de seu
blog que veem do mundo todo: “Tem visualizações da Rússia. Tenho quase mil
visualizações dos Estados Unidos”. Para destacar a importância que as visualizações
têm para Isadora, destaco diálogo ocorrido em nossa segunda conversa, ocorrida via
Skype. Finalizando a conversa com ela, falo:
Joana - Então tá Isadora, eu acho que por enquanto é isso. Por que eu já tinha, eu
achei que a gente fosse ver o blog juntas, mas como eu consegui ver isso ontem...
Deixa eu dar uma entrada aqui pra ver se ainda tem alguma coisa e aí eu já te
libero.
Isadora – Já que você não lembrou mais alguma pergunta pra fazer, eu tenho uma
pergunta que você possa fazer e eu responder. Posso dar uma ideia?
Joana – Claro!
Isadora – Sobre quantos seguidores e quantas visualizações seu tenho.
Joana – Ah, me conta!
Isadora – No youtube eu tenho, deixa eu ver, no youtube, um pouco menos de 3 mil
visualizações ao todo.
Joana – Nossa!
Isadora – No blog, eu tenho um pouco mais de 10 mil visualizações.
Joana – Um pouco mais de 10 mil visualizações?
Isadora – É. E no Instagram eu tenho mais de 200 seguidores.
Joana – Caramba, Isadora, tudo isso?
Isadora – É eu acho que é muito... E no Facebook eu tenho, é o que eu tenho
menos curtidas. Tenho quase 30 curtidas.
Joana – Ah, mas é bom também, né? Eu acho que é bom sim, quer dizer, eu não
entendo muito, mas o que importa é que o blog tem bastante visualização e o
youtube também, né? E as pessoas assinam o seu canal do blog?
Isadora – Sim, eu tenho alguns seguidores, acho que 14 seguidores no Google e no
Instagram eu tenho quase 200 inscritos. No Youtube eu tenho quase 30 inscritos.

E, quando perguntada sobre os comentários, explica: “Eu tenho poucos


comentários. Acho que eu tenho uns 10 comentários no blog todo. É porque eu acho

124
que meu blog está com problema nos comentários porque as pessoas só conseguem
comentar se elas têm uma conta no Blogger”. Clicando em seus posts, achei 2
comentários de pessoas conhecidas de Isadora e que comentaram num post em que ela
dava uma receita de um doce. Ela agradeceu os dois. Outra criança que destaca a
importância de ser visto ou comentado é Caio. Na verdade, sua mãe relata que:

Raquel – Quando alguém comenta ele fica, no início ele pedia toda hora pra eu
olhar, todo dia se tinha algum comentário, né? Aí depois ele parou de pedir, mas
quando alguém comenta ele fica deslumbrado.

Sobre a importância de falar com/para o outro Fernandes (2009) traz uma


afirmação muito importante:
Os significados que surgem na relação com o Outro são formações dinâmicas
e evoluem ao longo da história dos povos e também ao longo do
desenvolvimento da criança; o que mostra que as línguas e seus usos não são
estáticos mas produções históricas. A fala não é uma produção do indivíduo
mas um evento que é resultado de uma interação social. É esse caráter de
interação que faz da fala lugar de produção de sentidos, veiculando
significados socialmente instituídos ao longo da história, que permitem a
emergência de múltiplos sentidos em função da realidade pessoal dos
interlocutores e das condições concretas em que ocorre tal interlocução.
Dessa maneira percebemos que, quando escolhem a escrita, esta faz mais
sentido quando se vai “escrever com o outro” e “escrever para o outro” ( p.
98 – grifos da autora).

Ainda sobre essa relação com o outro, sobre a escrita para o outro, mais uma vez
Fernandes (2009), aponta dois momentos de suas crianças: durante a escrita em sala de
aula, as crianças não queriam nem pensar em colocar suas histórias na Internet (além da
vergonha, alegavam medo de ter suas histórias copiadas por MSN, por exemplo).
Quando a autora entrevista as crianças que participaram do bloguinho, a percepção foi
outra: as crianças queriam ser vistas. Tendo percebido a mesma coisa, a vontade das
crianças em serem vistas ou em terem seus blogs vistos, fico com a pergunta: por que a
história produzida em sala de aula não pode ser partilhada pela internet, mas a narrativa
que se direciona para isso sim? Quais são as diferenças entre produzir para a Internet e
para a escola? A que tipo de julgamentos as crianças estão se expondo na escola e na
internet?
A autora também percebeu a importância que o outro assume para as crianças
que escrevem um blog.
As crianças demonstram ter entendido bem a lógica da escrita no blog em
que escrevem para vários “outros”. As crianças autoras dos posts sabem que

125
serão lidas por várias e diferentes pessoas, e que algumas dessas pessoas
farão comentários a respeito de seu post. Escrever para muitos leitores pode
também trazer essa dimensão diferencial da busca de assuntos que agradem a
uma maioria, ou a compreensão do que buscam as pessoas que lêem um blog
(FERNANDES, 2009, p. 203).

Mas, afinal, qual é a importância dos comentários? O que podemos pensar após
comprovarmos essa necessidade que as crianças têm em ter comentários? O
reconhecimento do que é uma criação se dá no social, na relação com o outro. A
publicação existe para atingir o outro, para comunicar, sensibilizar e modificar o outro.
Quando a criança faz uma publicação, ela quer afetar o outro e busca se ver nesse outro,
se reconhecer e se transformar. Desta forma, nos chama a atenção posts como esse que
foi retirado do blog da Isabela.

Imagem 42 - Post de Isabela sobre falta de ideias com resposta de uma leitora do blog

Em diálogo com Vygotsky, o autor debate sobre os suplícios da criação,


destacando que criar é difícil e que nem sempre coincide com as possibilidades de
criação. Eles sabem da necessidade de produzir para não ficar “out”, mas não sabem o
que e nem como farão conforme ilustrado na imagem anterior. Mesmo sem ter ideias do

126
que postar, é preciso postar, tornar público a sua produção ou a falta dela, pois o
reconhecimento de que é uma criação se dará no social, no contato com o outro.
Neste sentido, é preciso que o outro nos veja para que nós existamos e para o
outro nos ver, precisamos nos mostrar. Sibília (2009) defende que os blogs e fotologs
ajudam nessa formação da subjetividade alterdirigida, pois eles facilitam a escrita de si,
o mostrar-se ao outro, proporcionam a opção de transformarmos a nossa própria vida
em relato, facilitando a espetacularização da vida cotidiana.

Como quer que seja, não há dúvidas de que esses reluzentes espaços
da web 2.0 são interessantes, nem que seja porque se apresentam
como cenários bem adequados para montar um espetáculo cada vez
mais estridente: o show do eu. (SIBÍLIA, 2009, p. 27. Grifo da
autora).

O que são os comentários para as crianças? Segundo Sibília, pensando em


blogueiros adultos, os comentários significam o apoio do público para com "eles, os
sujeitos criadores, e não suas obras entendidas como objetos criados". (p. 236).
Pensando nas falas das crianças, também podemos perceber essa grande necessidade de
ser querido, de ser curtido, de ser notado, de se fazer presente nessa grande rede, é o que
vai ajudando a formar a subjetividade das crianças que utilizam as redes sociais:

[...] Uma subjetividade que deseja ser amada e apreciada, que busca
desesperadamente a aprovação alheia, e para tanto procura tecer
contatos e relações intimas com os outros. [...] o que se é deve ser
visto - e cada um é aquilo que mostra de si. (SIBÍLIA, 2009, p. 235
grifos da autora).

Este cenário, em que o que importa é a aprovação do outro, proporciona uma


enxurrada de publicações parecidas, de blogs com o mesmo assunto, de canais do
Youtube onde o que importa é contar sobre o personagem “eu”. Segundo a autora, esse
show do mesmo, é proposital,

[...] pois se trata de um tipo de eu que se constrói na visibilidade –


tanto na exposição de sua vida supostamente privada como de sua
personalidade – e que se propõe como um estilo bem cotado ou uma
atitude a ser imitada, a fim de se aproximar do atraente campo
magnético das celebridades. (SIBÍLIA, 2009, p. 249).

Esta afirmação de Sibília nos ajuda a compreender a existência de posts como o


de Isadora em que cita 25 coisas sobre ela (conforme imagens das páginas 67 e 68). Há

127
alguns meses, surgiram muitos vídeos no Youtube com a seguinte proposta: o Youtuber
deveria dizer 50 coisas sobre ele. Esses vídeos fizeram muito sucesso e viralizaram82
durante alguns meses, mais uma vez contribuindo para a compreensão da importância
de haver essa exposição do personagem “eu”.
Manuela, ao criar seu blog, nos mostra a participação e o envolvimento do outro
desde a ideia de fazer um blog até a efetivação da parte prática que envolve a realização
de um blog. Seu blog, M@nulândia, criado em outubro de 2012 foi feito com a ajuda do
irmão, utilizando a conta de e-mail da mãe que tem acesso a seu blog. Conforme já foi
dito na página 109, Manuela disse ter feito o blog para “mostrar as coisas que eu
gosto”. Seu primeiro post foi:

Imagem 43 – Primeiro post Manuela.

Nesta publicação, Manuela escreve diretamente para o leitor do blog com dois
pedidos: para ser compartilhada e para ser compreendida sobre sua falta de habilidade
na tarefa de colocar um blog online, já que esse é seu primeiro blog. Desta forma, fica
claro, mais uma vez, a importância do outro nessa relação das crianças com as
produções online.
Já Caio, ao ser questionado sobre quem comenta os desenhos de seu blog, não
soube responder. Fomos ao blog para descobrir e, quem mais comentava era o pai dele.

Joana – Seu papai sempre comenta, né?


Caio – É.
Joana – E seus amigos da escola, sabem que você tem um blog?

82
Viralizar, se tornar viral, significa, se espalhar de forma muito rápida, como um vírus, na internet.

128
Caio – Acho que alguns sabem, mas eu acho que eles não comentam.
Joana – Mas, você sabe se eles veem os desenhos que você coloca?
Caio – Ah, eu acho que não.
Joana – Você ía gostar se os seus amigos entrassem no seu blog?
Caio – Ah, sim.

Joana – E assim, vocês acham que tem alguma relação, que vocês conseguem
estabelecer alguma relação com quem lê o blog, com quem curte a página no
Facebook, com quem segue no Instagram. Como é que é, vocês conhecem as
pessoas do lado de fora, da vida real também?
Isadora – Às vezes a gente recebe visualizações de pessoas que são famosas, que
são blogueiras e aí a gente, eu já recebi um comentário de uma menina que ela é
blogueira, e elas escreveu lá que gosta muito dos meus vídeos e eu escrevi: “Ah,
eu também gosto muito dos seus, beijos!” É uma relação mais longe, porque ela
mora em São Paulo, mas posso dizer que a gente tem uma pequena relaçãozinha.
Joana – E as suas amigas da escola? Elas interagem com o seu blog, como é que
é?
Isadora – Uma amiga minha a Gabriela, e uma outra que é a Elisa, elas fizeram
vídeo comigo, aí é isso, elas já fizeram vídeo comigo e aí às vezes elas vem aqui
em casa e a gente grava vídeo.
Joana – Mas, elas comentam no seu blog, não?
Isadora – Não... Ah, a Elisa comenta e eu não lembro se a Gabriela comenta ou
não, mas a Elisa já comentou no meu blog.

4.4 Estratégias para ser visto

Este item pretende analisar como se dá o usa das técnicas oferecidas na internet
pelas crianças e quais as formas de divulgação que elas utilizam para suas produções.
Que tipo de postagens são feitas pelas crianças e que demonstram a forma de utilização
dos recursos disponíveis para postagem por elas? Pretendemos apresentar as
explicações, dúvidas e dificuldades das crianças para suas produções online, para lidar
com as ferramentas disponíveis. Quais recursos disponíveis pelas plataformas são
utilizados pelas crianças? Que postagens mostram o domínio da técnica? Quais

129
postagens nos mostram o contrário? Quais crianças se destacam no uso dessas técnicas?
Quais crianças não querem nem saber como utilizar as técnicas? Essas são as perguntas
que ajudam a pensar nas formas de produção utilizadas pelas crianças.
João, com seu grupo no Facebook, chamado Dona Feijão, realizou postagens
entre fotos engraçadas, links para vídeos no Youtube e utilizou bastante um recurso
disponibilizado por esta rede social, onde podemos fazer uma pergunta e colocar opções
de respostas, conforme vemos abaixo:

Imagem 44 - Exemplo de postagem feita por João no grupo Dona Feijão.

Imagem 45 - Página inicial canal do Youtube João, que foi alterada por ele para destacar
o assunto do canal.

130
Manuela, com seu blog, costumava postar muitas coisas diferentes: vídeos,
mensagens, piadas, imagens, músicas. Quando perguntei o que ela posta no blog,
Manuela respondeu:

Manu – Fotos, tipo, eu termino um jogo daí tem alguma foto, tem um jogo de
beleza, é um exemplo, daí quando termina, aparece a pessoa como era antes,
aparece a menininha como era antes e como ela ficou. Daí eu tiro uma foto disso e
posto no meu blog. E eu também, tipo, faço umas dicas de como pentear o cabelo
da boneca, posto uma piada, umas músicas.

Imagem 46 - Post Antes e depois

Joana – E você fez sozinha?


Manu – Fiz, mas o meu irmão me ajudou a fazer.
Joana – Aí seu irmão te ajudou a fazer as coisas que você não conseguia, é
isso?
Manu –É, tipo, colocar meu nome. Fazer a conta do blog.

Joana – Fala, porque você não quer postar os vídeos?


Isabela – Porque, deixa eu ver, ah, sei lá, no começo a Isadora pode até me
ajudar, mas depois eu vou ter que aprender a editar, vou ter que aprender...

131
É muito divulgada a facilidade e a desenvoltura das crianças ao lidarem com as
tecnologias, mas Caio não demonstra interesse em aprender a lidar com as ferramentas
que envolvem a publicação de um blog, conforme observamos no diálogo abaixo:

Joana – E alguém te ajudou a fazer o blog?


Caio – Ah, eu acho que foi minha mãe.
Joana – E hoje para botar as coisas lá, alguém te ajuda ou é você que bota?
Caio – É a minha mãe que bota.
Joana – Ah, e como é que você coloca os desenhos aí? Que você faz no
papel, que não é no computador? É sua mãe que coloca, né? Como é que
ela coloca você sabe?
Caio – É, ela coloca na impressora e aí depois vai no paint ou sei lá e aí ela
coloca no blog.
Joana –Ah, tá. E você não tem nem noção de como é que coloca aí no blog,
né?
Caio – Ah, eu sei que também tem que colocar o nome.
Joana – Mas, você já tentou botar você?
Caio – Eu? Não.

Ou seja, no caso de Caio, ele é o autor dos desenhos, mas quem administra o seu
blog é sua mãe. Segundo ela, Caio demonstra preguiça em conhecer e apropriar-se das
ferramentas necessárias para a utilização do blog.

Joana – Você escreve pra ele o nome (do desenho)?


Raquel – Escrevo porque ele pede, mas é por preguiça. Mas, ele consegue
usar o teclado, mas como ele usa devagar, ele pede pra eu escrever pra ele.
Mas, assim, eu só escrevo o que ele pede. O texto, tudo o que ele pede pra
eu escrever.
Joana – E botar também lá, também é mais complicado, né?
Raquel – É, porque eu tenho que escanear e fazer as coisas que ele ainda
não domina. [...]

Isadora, com seu blog, tem um movimento de domínio total sobre a técnica: ela
criou o blog sozinha, sem a ajuda de adultos, e ainda ajudou várias amigas a criarem
blogs também. Todo o conteúdo é publicado por ela que demonstra entender

132
perfeitamente as ferramentas necessárias para o funcionamento ideal do blog: ela
publica fotos, links, textos, grava, edita e publica vídeos.
Uma das ferramentas disponíveis nas plataformas de publicação online, são as
que envolvem o lucro. Isadora, consciente dessa possibilidade, utilizou o recurso de
Afiliações e Parcerias em que ela colocava a propaganda de duas lojas que vendiam
maquiagem e dependendo do número de acessos que fossem feitos através de seu blog,
poderia vir a ganhar algum dinheiro ou produto.

Imagem 47 – Afiliações e
parcerias blog Isadora

Isadora retirou o item Afiliações e Parcerias de seu blog por que, segundo ela,
“não estavam dando certo, aí achei melhor tirar”. Ainda neste contexto de lucrar algo
com o blog, Isadora nos conta sobre o Google adsense.
Isadora - Por que existe um sistema no google que se chama Google Adsense 83 que
você coloca o número da conta aí eles botam anúncios no seu site e você ganha um
dinheiro com isso.
Joana – Mmm. E botam que tipo de anúncio?

83
http://www.lucrei.com/o-que-e-o-google-adsense-aprenda-e-de-os-seus-primeiros-passos-tutorial/
https://support.google.com/adsense/answer/65065?hl=pt-BR

133
Isadora – Tipo anúncio de loja, de geladeira, dessas coisas que tem em qualquer
site.
Joana – E é você que decide qual anúncio ou são eles?
Isadora – Não, são eles. Mas, eu não tenho ainda.
Joana – Não tem nenhum anúncio ainda?
Isadora – É, quando eu for maior eu vou colocar.
Joana – Como assim? Você vai colocar o que? Esse google Adsense? E porque
você ainda não coloca?
Isadora – Ah, por que, o meu pai ele fala que é perigoso colocar o número da
conta, né?
Joana – Ah, vai ter que ser uma conta corrente? Entendi. É verdade. Aí ninguém
quer colocar ainda?
Isadora – É, mais aí quando eu for maior eu vou colocar.

Uma matéria recente, de outubro de 2016, publicada no jornal online Público,


intitulada “Google perdoa dívida de 100 mil euros a criança de 12 anos” 84, conta a
história de um menino de 12 anos, que muito se aproxima dos meus interlocutores, e
principalmente, de Isadora: sonhando tornar-se uma estrela do Youtube e enriquecer
com os vídeos que postava em seu canal e a publicidade que associava aos mesmos,
José Javier, contraiu uma dívida enorme com o Google, pois ao invés de anúncios pagos
pelo Google, José contratou o Google para inserir anúncios em seus vídeos. O que mais
nos aproxima desta reportagem é o seguinte parágrafo: “José Javier é um rapaz de 12
anos que, como muitos de sua idade, se maravilha com as notícias sobre seus ídolos
youtubers: facturam milhares de euros diariamente, acumulam milhões de visualizações
e seguidores, tornam-se estrelas da televisão e da música. Tudo com a maior das
facilidades”. Ou seja, há esse pensamento de que ter um blog ajudará as crianças a
terem sucesso, ganharem dinheiro e tudo de modo fácil, descomplicado e rápido.
A propagada facilidade em colocar um blog ou canal do Youtube online e
ganhar dinheiro com eles, pode esbarrar em dificuldades menos onerosas, mas que ainda
assim, se mostram de difícil solução como vemos nos exemplos abordados a seguir: o
blog e o canal de Youtube de Isabela. Ela conta que quem a ajudou a criar seu primeiro
blog foi sua irmã, Isadora, e que a sua dificuldade em lidar com a técnica, a fez desistir
do primeiro blog que ela criou: “É, mas, eu fiz, mas eu ficava chamando ela pra me

84
https://www.publico.pt/tecnologia/noticia/ele-so-queria-ser-uma-estrela-do-youtube-e-agora-deve-100-
mil-euros-a-google-1746150

134
ajudar por que eu não tava sabendo muito. E aí, na verdade, eu fiz primeiro um blog
que se chamava “E aí, tá na moda?”. E eu não postava nada nele, nada mesmo. E aí
um dia, no mesmo dia que eu criei, eu quis apagar por que eu não sabia mexer a
Isadora não queria me ajudar, tá. E aí eu fiz um blog e agora eu tô usando ele”.
Ela não usa o canal do Youtube, pois nunca consegue escolher um vídeo para
colocar. Segundo Isadora conta: “Mas, é, o canal no Youtube dela (Isabela), não tem
nenhum vídeo por que a gente já gravou tipo um monte, só que eu falei Isabela, vou
começar a editar o vídeo, qual vídeo que você quer? Ela: não quero que edite esse
vídeo, não vou postar esse vídeo, não quero, não quero, não quero. Mas, Isabela você
fala que vai postar o seu primeiro vídeo. Todo vídeo ela fala: então gente, esse é meu
primeiro vídeo, e ela não posta!”. Segundo Isabela, ela não posta nenhum vídeo em seu
canal por que não quer aprender a editar: “No começo a Isadora pode até me ajudar,
mas depois eu vou ter que aprender a editar, vou ter que aprender...”. Ou seja, é
necessário um investimento para o qual Isabela ainda não está preparada. Fernandes
(2009), nos ajuda a expandir essa linha de raciocínio quando apresenta a dificuldade de
seus interlocutores em lidar com a escrita, seja no caderno ou no computador,
ressaltando que a dificuldade não depende do suporte “o investimento que a escrita
demanda trazendo com cada suporte desafios específicos. Cada suporte ou tecnologia
vem com o seu ‘calo’ junto, ou seja, as dificuldades próprias deste...” (p. 155 – grifo da
autora).

Joana – O layout, como é que é para fazer o layout, muito difícil?


Isadora – O layout eu tentei fazer uma vez, mas é muito difícil porque você
tem que usar aquele negócio que se chama HTML e eu não sei usar isso.
Minha mãe, ela é designer gráfico, mas eu não sei se ela consegue, a gente
tá tentando.
Joana – Mas, tem layout no seu blog, né?
Isadora – Tem. O layout do meu blog é o layout do google. O google sugere
alguns de graça e você pode personalizar eles pela cor, pela letra do título.
Joana – Ah, então aí fica fácil de fazer, né?
Isadora – Sim.

Mas, e as formas de divulgação? O que queremos dizer com isso? Quais formas
as crianças encontram para divulgar seus blogs ou outras produções que fazem na

135
internet? Quais as estratégias criadas pelas crianças para que seus blogs etc. ficassem
mais conhecidos? Uma das estratégias interessantes utilizadas pelas crianças é a
utilização de uma plataforma para divulgação de outra. Isabela e Isadora, por exemplo,
criaram páginas no Facebook com os mesmos nomes de seus blogs como forma de
divulgar os mesmos. Em suas páginas, elas apresentam o blog e trazem os links para as
postagens. Sempre que postam novas coisas no blog, há um post no Facebook para
avisar. Outras estratégias adotadas para a divulgação do blog foram a tentativa de fazer
cartões de visita e a distribuição de papeizinhos com o endereço do blog dentro de sala
de aula, conforme veremos nos exemplos abaixo.

Joana – E como é que você faz para divulgar o blog?


Isadora – Pelo Facebook, pelo Instagram, pelo Twiter. É, eu queria criar
cartões de visita, minha mãe tava tentando fazer. Quase todo mundo que eu
conheço conhece o meu blog, então todo mundo vai falando e vai
conhecendo.
Joana –E você também divulga na página do Facebook, no Instagram você
também divulga igual sua irmã não?
Isabela – Divulgo, só que eu só botei uma foto sobre ele, aí tem a parte que
você escreve se você gosta ou, no seu perfil assim. Aí você, tipo, você pode
escrever, ah, oi meu nome é sei lá quem e eu gosto muito de moda e de
maquiagem e adoro ver decoração e lálala.

Joana - Você já está estudando aí, já tá na escola?


Isadora – Já. Todo mundo já conhece o meu blog porque lá tem projetor de
internet, de imagem, e aí a professora colocou o meu blog lá no primeiro
dia de aula. Maior sorte!
Joana – Que legal! Ela botou pra todo mundo ver, é, na sala? E você ficou
com vergonha?
Isadora – Mais ou menos... Ela colocou uns vídeos que eu não achei que
tava legal e uma hora do vídeo eu virei a câmera de cabeça pra baixo sem
querer, e aí eu fiquei assim.
Joana – Risos. Ai que engraçado! E todo mundo gostou, vc acha?
Isadora – Sim. Uma amiga que eu tenho já, ela falou que visitou meu blog
inteiro!

136
Joana – Que legal, né, Isadora? Nossa, que gente receptiva, né? Que bom!
Muito legal!

Manuela - Eu já distribui papelzinho com o nome do meu blog pra minha


classe, mas...
Joana –Ah, é? Você distribuiu papelzinho com o nome do seu blog?
Manu –É mas, ninguém nunca entra mesmo.
Joana –Porque você acha que ninguém entra?
Manu –Ah, não sei porque nunca entram... Vai ver tem mais blogs mais
legais ou o meu tá chato.

Joana –E twitter, você usa?


João – Eu tinha criado um pro meu canal, mas nunca peguei eu só usava
aquilo pra anunciar se eu postei um vídeo novo porque fazia isso
automaticamente.

Joana – E ter seguidor no Instagram é importante, né?


Isadora – Eu coloco no meu Instagram embaixo ... Blogger, daí coloco
embaixo www.gostosemculpa.blogspot.com.br e o pessoal entra bastante e
eu acho que eu tenho quase 10 mil visualizações no blog.

Isadora conta que já apareceu em dois jornais: “Eu já apareci no jornal


Estadão85 e também no jornal de tablet de Belo Horizonte que se chama O tempo”. Em
seu blog, Isadora fez um post com imagens das duas aparições.

85
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,blogs-feitos-por-criancas-se-espalham-pela-web-imp-
,955395

137
Imagem 48 – As aparições do blog Gosto sem Culpa em jornais.

Conforme relatado nas páginas 133 e 134, Isadora tem planos de ganhar dinheiro
com seu blog, através das propagandas do Google. Porém, para isso, ela precisa ter
muitas visualizações, sendo essa uma de suas preocupações.
Em julho de 2015 a mãe de Isadora me mandou uma mensagem inbox pelo
Facebook para contar que Isadora teria um post seu publicado em um livro didático de
português com distribuição nacional. Segue a mensagem:
Oi Joana, tudo bem? Quanto tempo! Como estão suas crianças? Quando nasce seu
bebê? Passando para contar que Isadora foi convidada a ilustrar com um post do
seu blog um livro didático de língua portuguesa de distribuição nacional. Ficou
super feliz. Ainda mais que será sua primeira remuneração rs. Está radiante. Bjs

Procurei Isadora pelo Messenger do Instagram e perguntei para ela qual seria o
post, mas ela disse que não sabia e que eu deveria perguntar a sua mãe, o que eu fiz e
ela prontamente me mandou um arquivo em .pdf com a página do livro.

138
Imagem 49 – Blog Gosto sem Culpa em livro didático.

139
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução desta tese, mais especificamente na página 14, apresento uma


pesquisa que fiz no Google, em 2012, utilizando as expressões “blog feito por crianças”
e “blog de criança” refiz essa mesma pesquisa em novembro de 2016 e é bem
interessante perceber o aumento no número de blogs categorizados como feitos por
crianças. Não posso deixar de comentar a emoção que senti ao encontrar a matéria do
Estadão86 em que Isadora e seu blog aparecem. Por mais que eu já soubesse dessa
reportagem, ela foi citada na página 138, a sensação que tive ao me deparar com ela
nessa busca foi de ter, com a minha pesquisa, participado de uma mudança muito
grande em relação à participação das crianças na internet, houve uma mudança na forma
como a sociedade lida com essa produção infantil. Essa comparação nos resultados
deixa claro que se passou a ter a percepção da internet como lugar de autoria infantil.
Sendo assim, pude testemunhar, com minhas pesquisas de mestrado e de doutorado, o
surgimento e o crescimento de uma nova experiência das crianças com a internet e o
quanto a quantidade de reportagens e textos acadêmicos que atualmente abordam o
assunto, mostra que esta relação das crianças com a Web 2.0 está consolidada.
Precisamos compreender que as crianças sabem/querem/podem se relacionar
com a internet de forma produtiva/autoral/criativa; precisamos lembrar que as crianças
não são tão ingênuas quanto pensamos como nos ajuda a perceber Macedo (2014). Não
são apenas os riscos que envolvem essa relação, que é muito maior, não é única, em
linha reta, em via única, ela forma um emaranhado, uma teia. As facilidades
proporcionadas pela Web 2.0 permitem que as crianças ocupem esse lugar de forma
horizontal em relação aos adultos, como produtoras de conteúdo para a internet, ou seja,
conforme discutido na página 62, podemos perceber que a web 2.0 possibilita o
exercício da horizontalidade na relação entre adultos e crianças. Entretanto, não
podemos esquecer que as crianças, mesmo tendo essa possibilidade permitida pela
internet, continuam tuteladas. Essa tutela, que muitas vezes é necessária, aparece
bastante nas perguntas selecionadas por pesquisas estatísticas e no discurso de proteção,
atenção e cuidado destinado às relações das crianças com a internet. Essa tutela também

86
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,blogs-feitos-por-criancas-se-espalham-pela-web-imp-
,955395

140
fica clara ao percebermos que muitos resultados que aparecem no Google envolvendo as
palavras crianças e internet, estão relacionados às formas de proteção e educação.
Entretanto, sempre é bom lembrar que nem tudo o que é produzido pelas
crianças na internet pode entrar no âmbito da autoria, pois temos que ponderar se um
vídeo tutorial, de maquiagem ou de um jogo, entra no quesito autoria, já que, aquele
vídeo feito por aquela criança pode ser único, mas a ideia, o tipo de roteiro, o tema, tudo
o que envolve o vídeo, pode ser feito a partir da inspiração de outros tutoriais que
existem no Youtube. Conforme já discutido no capítulo 2, item 2.3, a questão da criação
e da reprodução, nesta tese, é pensada em diáologo com Vygotsky. Desta forma,
podemos afirmar que o vídeo tutorial, ou qualquer outro tipo de publicação que se torna
viral, como por exemplo, o post “25 coisas sobre mim” ou o vídeo “50 coisas sobre
mim”, entram no que Vygotsky chama de criação reprodutiva, ou seja, ela é uma
criação que surge de coisas que já vimos. Portanto, acredito que a autoria existe, mas na
forma de unicidade pela criança que postou o tutorial e não no ineditismo da postagem.
Ou seja, aquela criança fazendo aquele vídeo específico, confere uma criação única,
mas o tipo de vídeo está no âmbito da reprodução. Mas, de qualquer forma, fica a
questão: até onde vai a autoria na internet? Qual o limiar entre autoria e reprodução?
São questões que perpassam esse trabalho para as quais ainda não encontramos
repostas.
E quais foram as mudanças entre as crianças que participaram da minha
pesquisa? Afinal, a pesquisa realizada no doutorado, mostrou-se longitudinal, ou seja,
acompanhou o desenvolvimento das criançass. Que diferenças podemos perceber entre
os primeiros posts, de 2013 de quando estavam começando a postar e os últimos posts
analisados? Para além das diferenças percebidas nos perfis (conforme descrito a partir
da página 91), há algumas postagens bastante simbólicas.
Um bom exemplo é a fala de Isadora sobre o porquê da escolha do nome de seu
blog “Gosto sem culpa”:
Joana – Por que você escolheu esse nome para o blog?
Isadora – Ah, por que eu pensava assim que criança gostar de maquiagem,
seria uma coisa... tipo alguém podia falar tipo assim: ah, não ela gosta de
maquiagem, ela não tem idade pra fazer isso. Aí eu pensei assim: gosto sem
culpa por que não é minha culpa que eu tenho esse gosto por maquiagem.

141
Revisitando seus primeiros posts, de 2012, destacando que seu primeiro post é
com dicas de livros, temos “dicas de roupas para o verão 1 e 2”, “Look do dia”, o
anúncio de parceria com uma loja de venda online (o link da loja não está mais ativo) e
um post que promete virar uma série de dicas de Youtubers legais. Em 2013, Isadora
posta várias vezes sobre culinária, maquiagem, decoração e faz algumas resenhas de
produtos e publica vídeos. Em 2014, Isadora segue postando sobre tendências da moda,
fazendo análise de produtos, postando vídeos no seu canal e dando sua opinião sobre
vários assuntos ligados à moda, livros, etc. Entretanto, seu último post de 2014, chama
muito a atenção, pois nele Isadora apresenta uma música que fala sobre a beleza sem
maquiagem, (conforme podemos ver a seguir) onde defende que beleza não é tudo, que
cada um é belo do jeito que é. Após esse post, que é muito forte e reflexivo, Isadora
ficou sete meses sem postar. Este post chama a atenção, pois em um blog que se propõe
a falar de maquiagem e que, em sua origem, era bastante voltado para isso, a autora
coloca um post em que afirma que a maquiagem não é tão importante assim. Podemos
compreender, ao ler este post, que Isadora teve uma mudança de interesse ou uma
mudança de compreensão do mundo. Quando perguntei sobre o post, por que ela quis
colocar esse assunto no blog, obtive a seguinte resposta: “Porque hoje em dia as
pessoas se importam muito com o que está fora da gente, e queria abrir a mente das
pessoas sobre esse assunto”.
Percebi nesse post um divisor de águas: a sensação que temos ao observar seu
blog após esta postagem é a de que Isadora mudou. Em primeiro lugar ela ficou de
setembro de 2014 até maio de 2015 sem postar nada. Depois fez um post pedindo
desculpas (09 de maio de 2015), um com imagens retiradas do Pinterest sobre comidas
fofas (29 de maio de 2015), um em que ela fala sobre sua paixão por Harry Potter (em 5
de julho de 2015) e por último, em 19 de outubro de 2015, o post, já citado aqui na
página 70, “25 coisas sobre mim”. Sem pretender psicologizar a análise de suas
postagens, podemos perceber que ao reconhecer a beleza para além da maquiagem,
Isadora parece ter perdido o encanto sobre o mundo da maquiagem, tanto que na sua
lista de 25 coisas sobre ela, em nenhum momento aparece o gosto por maquiagem.

142
Imagem 50 - Post Isadora sobre beleza

Outra criança que demonstra uma mudança bastante visível é Manuela, que ao
ser perguntada sobre o que postava no Instagram, respondeu:

Manu - O que eu posto no Instagram, são, por exemplo, piadas que eu


tiro da internet, sabe aquelas piadas com memes? Então. Eu posto
fotos de mim, tipo quando eu tô com tédio eu tiro uma foto de mim
com olho fechado deitada na cama e posto tédio, tédio, tédio. Eu
posto foto de desenhos meus. Eu posto fotos de quando eu mando
cartões pras minhas amigas.

143
Podemos verificar algumas mudanças apenas analisando seu perfil e as
alterações que Manu fez no mesmo. Entretanto, quero destacar aqui, três postagens que
evidenciam as mudanças de Manuela e seus reflexos nas redes sociais.

Imagem 51 – Post com brincadeira. Dezembro de 2014.

Imagem 52 - Manuela ensinando a fazer


penteado: "É só vc colocar uma tiara enquanto
seu cabelo tá molhado que ele fica assim."
Imagem de 2015.

Imagem 53 - Manuela em passeio com as amigas. Agosto de


2016.

144
A partir de 2016, a maioria das postagens de Manuela em seu Instagram gira em
torno dos amigos: fotos em momentos com eles ou como forma de dar os parabéns a
algum deles. Esse tipo de postagem é bastante comum entre Manuela e seus amigos:
Manu publica uma foto com o amigo aniversariante e escreve um texto que descreve o
amigo e as experiências singulares que caracterizam a história da amizade entre eles.
Sabemos que a entrada na adolescência faz com que as crianças comecem a curtir muito
mais a companhia dos amigos, a andar em grupos, portanto, analisando as fotos
postadas por Manuela em seu Instagram, essa mudança é bem visível.
Enquanto escrevia essa conclusão, perguntei à Manuela e à Isadora 87 quais eram
as interfaces e softwares sociais que elas estavam usando com mais frequência, neste
momento, novembro de 2016. Isadora, em conversa por WhatsApp, me disse que está
usando as seguintes interfaces e softwares sociais: WhatsApp, Facebook, Tumblr,
Skoob e Pinterest. Interessante perceber que Isadora não destacou nenhum site diferente
dos que ela já acessava. Manuela, em conversa por Direct do Instagram, me disse que
utiliza o Instagram, o Musical.ly88, o Snapchat89, o Instasize 90 e o Afterlight91. Ou seja,
Manuela cita novidades como o Musical.ly, que é um aplicativo em que podemos
“dublar” uma música; o Instasize (que é um aplicativo para o Instagram) e o Afterlight
que são aplicativos para o tratamento de fotos. Mas nenhuma das duas cita uma nova
rede social. Também podemos perceber, nas falas das duas, as diferenças de cada uma
ao utilizar os softwares e interfaces disponíveis: enquanto Manuela tende a um uso mais
voltado para a publicação de fotos, Isadora demonstra gostar mais de instefarce que
disponibilizem conteúdos. A que se deve essa diferença entre as duas? Teria Isadora
uma relação mais amadurecida com a internet em razão de seu blog, de seus anseios
para o futuro como escritora famosa?
Caio, que tem o blog onde publica seus desenhos também passou por uma
transformação ao longo desses quase quatro anos em que acompanho suas publicações.
Desde o seu primeiro post, publicado em maio de 2012, feito em grafite, passando por
uma história criada e desenhada por ele em programa específico de computador até o

87
João e Isabela não me responderam. A mãe de Caio disse que ele mantém o blog e o canal do Youtube
e tem jogado com amigos que fez online e que isso o fez até ler um livro sobre Minecraft.
88
http://musical.ly/ Exemplos de vídeos feitos com o aplicativo:
https://www.youtube.com/watch?v=q3UmiR2Bg4Q
89
https://www.snapchat.com/l/pt-br/
90
http://instasize.br.uptodown.com/android
91
http://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/afterlight.html

145
lançamento de um canal no youtube, Zilla Craft, em que ele cria animações em
Stopmotion com bonecos do jogo Minecraft.

Imagem 54 – Primeiro post Caio.

Imagem 55 – Canal do
Youtube Caio.

Cabe destacar que das crianças participantes da pesquisa Caio e Isadora são os
únicos que ainda mantém seus blogs. O que os diferencia em suas relações com seus
blogs? Isadora é uma criança que sempre afirma que quer ganhar dinheiro com seu blog
ou que quer ser uma escritora famosa e começar com um blog seria uma estratégia para
alcançar esse sucesso. Caio utiliza seus desenhos como forma de expressão de seus

146
sentimentos, ele se relaciona com o mundo através deles. Acredito que para os dois, o
blog seja algo mais profundo e por isso tenha ido para além da curiosidade inicial e
ultrapassado a barreira do cansaço que pode envolver a produção e manutenção de um
blog.
Pereira, em artigo chamado “O menino, os barcos e o mundo” (2010), defende
que as crianças lidam com a técnica de forma lúdica, na forma de jogo. “Para as
crianças, os aparatos técnicos são brinquedos e a relação que estabelecem com eles é de
jogo.” (PEREIRA, 2010, p.7). Em minha pesquisa de mestrado, percebi que as crianças
tendem a desistir de um jogo que esteja muito difícil. Seguindo essa linha de racícionio,
podemos concluir que algumas crianças da pesquisa de doutorado desistem de seus
blogs por não darem conta de lidar com a tecnologia, ou seja, quando o “jogo” fica
difícil, eles desistem, como podemos perceber na fala de Isabela em que ela conta que
desistiu do primeiro blog que criou por não saber mexer (p. 133 e 134). Percebi que
nem sempre as crianças estão disponíveis para aprender a utilizar um recurso e que às
vezes a vontade de ter um blog ou de publicar um vídeo no Youtube pode esbarrar na
dificuldade em lidar com a técnica. Por isso, alguns aplicativos que tem o seu uso mais
facilitado, como o Instagram, podem fazer mais sucesso entre essas crianças.
Isadora demonstra lidar de forma diferenciada com a tecnologia: a relação dela
com o blog se assemelha a uma relação de trabalho. Aparentemente, Isadora chegou à
técnica de forma lúdica, mas percebeu o potencial e investiu nele. A importância que
Isadora dá ao manejo correto da técnica pode ser percebida no diálogo que apresento na
página 135, onde ela conta que a professora da escola nova divulgou seu blog, mas que
colocou um vídeo em que ela aparecia de cabeça para baixo o que a deixou com
vergonha pelo fato de o vídeo não estar perfeito.
Compreender que as publicações das crianças estão diretamente ligadas aos seus
interesses é uma das primeiras coisas que se destaca em minha tese. É preciso gostar, ter
interesse por um assunto para querer se aprofundar nele e isso, para algumas crianças,
pode ser traduzido na publicação de um blog ou de imagens sobre esse intresse. Cabe
destacar que os temas de interesse mudam ao longo do desenvolvimento de uma criança
e isso também se reflete nas suas publicações online.
Seguindo esse raciocínio da horizontalidade, cabe destacar que a participação
das crianças de forma autoral fortalece e coloca em evidência a importância que a
cultura de pares assume para as crianças: estar onde outras crianças estão, compartilhar
com, ser visto e comentado por outras crianças é muito significativo para elas.

147
Para finalizar essas conclusões destaco dois assuntos que costumam apareceer
quando pensamos em crianças e tecnologias: a escola e o abandono de outras formas de
leitura/escrita.
Sobre a escola, apesar de as crianças colocarem nas tarefas escolares a culpa
pelo sumiço dos posts em seus blogs, convém destacar a fala de Isadora em que ela
explica como faz para continuar pensando no que irá postar mesmo durante a semana
quando não pode acessar a internet (esta fala está na página 115); também é bom
destacar que das crianças que continuam com seus blogs, mesmo que as postagens
diminuam ou até parem totalmente em aguns períodos, normalmente, há postagens
anuais, ou seja, a criança acaba dedicando algum tempo ao blog. Portanto, percebi,
conforme já foi dito, que a falta de interesse ou o surgimento de um novo interesse é o
que mais pode causar o abandono de um software social.
E sobre o uso das tecnologias digitais em detrimento de outras formas de
tecnologia e de interação com a cultura (ler livros, escrever em papel, escutar música,
assistir televisão, brincar), existem vários exemplos que mostram que essas formas
todas podem continuar existindo, interagindo e se complementando. Alguns exemplos
são: Manuela e sua forma de divulgar o blog através da distribuição de papeis com o
nome do blog em sua sala de aula (página 138); Isadora em seus vários posts com dicas
de leitura; alguns canais do youtube em que as crianças filmam as brincadeiras com as
bonecas; os aplicativos em que é possível fazer um vídeoclipe de sua música preferida;
e por fim, Isadora com seu caderno onde anota as ideias que tem para o blog ao longo
da semana.
Por último, mas não menos importante, gostaria de dizer que muito me
surpreendeu constatar que as crianças têm a possibildade de autoria na internet e
acredito que cabe a nós, adultos, educadores, pais, percebermos a potência que as
crianças possuem em sua relação com a internet, encontrando um discurso que vá para
além da segurança no que se refere à essa relação, porém, compreendendo que
reconhecermos essa potência da autoria na internet não desvaloriza as outras formas
autorais e de expressão cultural que acontecem quando a criança utiliza outros recursos
que não digitais. Afinal, a potência autoral da criança existe na vida: desde os pequenos
tesouros encontrados pela rua até a criação de um canal do youtube, em tudo a criança
pode ver possibilidades de criação autoral.

148
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