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Mônica Ester
Resumo: O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre os diferentes cenários que
compõem - e compuseram ao longo dos anos - a teoria da fotografia, tomando como ponto de
partida reflexões fomentadas por teóricos como Vilém Flusser, Roland Barthes, Walter
Benjamin e Jacques Rancière. São considerados nesta discussão, os aspectos filosóficos da
imagem fotográfica em suas múltiplas implicações, sendo evidenciadas, porém, suas
diferentes formas aplicação e receptividade no campo das artes e da fotografia de rua
contemporânea.
Abstract: The present article aims to discuss the different contexts that have composed - and
composed over the years - the theory of photography, taking as a starting point reflections
fomented by theorists such as Vilém Flusser, Roland Barthes, Walter Benjamin and Jacques
Rancière. The philosophical aspects of the photographic image in its multiple implications
are considered in this discussion, but its different forms of application and receptivity in the
field of contemporary art and photography are evidenced.
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1
O autor frisa aqui a relação original do teatro com o culto dos Mortos: “Caracterizar-se era designar-se como
um corpo ao mesmo tempo vivo e morto”.
Dessa maneira, quando critica as imagens técnicas - se de fato há uma crítica -, o
observador o faz enquanto visão de mundo, e não simplesmente como imagens. Imagem e
mundo, estão, nesse contexto, no mesmo nível do real: “são unidos por cadeia ininterrupta de
causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ser símbolo e não precisar de
deciframento” (FLUSSER, 2011, p.30). Na visão de Flusser, no entanto, as imagens técnicas
são símbolos tanto quanto o são as imagens tradicionais - como no caso do pintor (agente
humano) que elabora símbolos “em sua cabeça” e transfere-os para a mão munida de pincel, e
de lá, para a superfície da imagem” - com o diferencial de que estas resultam de um
complexo aparelho-operador difícil de ser penetrado e decifrado: “é caixa preta, e o que se
vê é apenas input e output” (FLUSSER, 2011, p.32).
Contudo, algumas coisas podem ser afirmadas a respeito do universo das imagens
técnicas. Emana delas, assim como de toda imagem, um certo tipo de magia que encanta o
observador, fazendo com que este busque projetar essa tal magia no mundo que o cerca. É
inegável, à vista disso, afirmar o fascínio que as imagens técnicas vem exercendo a todo
instante à nossa volta, onde, em função dessa “magia imaginística”, cada vez mais vivemos,
valorizamos e agimos em função de tais imagens. Enfatizo aqui também uma declaração do
próprio Barthes (1984) que, revelando sua postura realista, refere-se à fotografia como uma
forma de “magia”, e não como uma arte.
Outro aspecto relevante da imagem fotográfica na visão do semiólogo é aquilo que ele
define como um tipo de “loucura”. A fotografia carrega em si própria um tipo de alucinação,
como um “medium” estranho, onde aquilo que foi fotografado - o objeto - “não está lá” mas
ao mesmo tempo “realmente esteve”. Reside então, na fotografia, não somente uma sensação
de “ausência do objeto [...]” mas também, “de um mesmo movimento e no mesmo nível”, a
ideia de que “esse objeto realmente existiu e esteve onde eu o vejo”. Por conseguinte, a
imagem fotográfica compele o observador a adentrar num labiríntico jogo de assimilações,
revelando-se “falsa no nível da percepção e verdadeira no nível do tempo” (BARTHES,
1984, p.169).
Martins e Voigt (2016), ao apresentarem um possível diálogo entre as visões de
Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière, discorrem também - baseando-se na visão
destes teóricos - sobre o entendimento das práticas fotográficas como uma legítima forma de
arte. Na visão de Barthes (1984), tentar transformar a fotografia em arte acaba por provocar
uma anulação de suas singularidades, haja vista a necessidade de compará-la com outras
imagens na busca de sua sensatez. Seguindo por esta linha de pensamento, a imagem
fotográfica deixaria de ser “um testemunho seguro do passado” para se afogar na “inundação
de outras imagens”, dificultando “a capacidade do homem moderno de conceber a sua
duração. Numa sociedade onde imagens são produzidas e consumidas em excesso, “a
fotografia perde todo e qualquer sentido” (MARTINS, VOIGT; 2016, p.253).
Walter Benjamin, assim como Barthes, não enxerga a fotografia como sendo uma
obra de arte. Na visão do filósofo alemão, o debate centrou-se demais na visão da “fotografia
como arte”, enquanto poucos se mostraram interessados em notar o fato que era mais
evidente: “a arte como fotografia”. Segundo ele, “se alguma coisa caracteriza a relação
moderna entre a arte e a fotografia, é a tensão ainda não resolvida que surgiu entre ambas
quando as obras de arte começaram a ser fotografadas” (BENJAMIN, 1987, p.104). As
técnicas de reprodução, nesse contexto, interferiram diretamente na concepção das grandes
obras, que, destituídas da visão de “criações individuais”, transformaram-se em diminuídas.
“criações coletivas”:
[...] a importância da reprodução fotográfica de obras de arte para a função artística
é muito maior que a construção mais ou menos artística de uma fotografia, que
transforma a vivência em objeto a ser apropriado pela câmera. No fundo, o amador
que volta pra casa com inúmeras fotografias não é mais sério que o caçador,
regressando do campo com massas de animais abatidos que só tem valor para o
comerciante (BENJAMIN, 1987, p.104).
Nesse sentido, Benjamin frisa que, muito além de debater sobre a legitimidade da
fotografia enquanto prática artística, é necessário observar as implicações que seu advento
provocou no campo das artes em geral. Tanto para Barthes como para Benjamin, “a intensa
produção e reprodução de imagens interferiu não somente “na interação em arte e público,
mas também na vida do homem moderno e na sua relação com o tempo histórico”
(MARTINS, VOIGT; 2016 p.256).
De qualquer forma, o debate arte versus fotografia parece não estar sujeito ao
esquecimento, sendo as interrogações sobre o estatuto da fotografia enquanto criação artística
tão antigas quanto a própria. Do ponto de vista de uma antropologia das artes, “ela não
merece mais do que um dar de ombros”, mesmo quando, de acordo com Jean-Marie
Schaeffer2 (1995), ela comporte duas das condições que geralmente associamos à uma noção
2
Jean-Marie Schaeffer é diretor de pesquisas no CNRS, membro do Centre de recherches sur les arts et le
langage (EHESS-CNRS) e autor de A imagem precária (Papirus, 1996).
de obra de arte: “ser um artefato e ser suscetível de dar lugar a uma função estética
intencional ou não” (SCHAEFFER, 1995, p.2). Por outro lado, a grande questão do debate é a
aplicação da fotografia em finalidades pragmáticas como reportagem, publicidade ou
fotografia de moda, o que, “do ponto de vista da arte dos museus”, a torna “sem contestação,
uma arte impura” (SCHAEFFER, 1995, p.2). Na visão de Schaeffer, porém,
É dentro desse contexto que Rancière apresenta, partindo de uma tradição ocidental
referente ao que definimos como arte, três grandes regimes de identificação: o regime ético, o
regime poético/representativo e o regime estético (RANCIÈRE, 2005, p.28-34). Esses três
regimes, em conjunto com a política, determinam os modos de “pensatividade da arte” e
maneira como estes interferem na concepção de uma “organização política dentro da
comunidade” (MARTINS, VOIGT; 2016, p.257). As imagens, por sua vez, como “mediações
entre homem e mundo” (FLUSSER, 2011, p.23), são parte integrante desse comum
partilhado, e a fotografia, como um “jogo complexo de relações entre o visível e o invisível, o
visível e a palavra, o dito e o não dito” (RANCIÈRE apud MARTINS, VOIGT; 2016, p.259),
toma sua parte no sensível como um importante agente de revoluções estéticas e políticas,
visto que suas formas de visibilidade abarcam - e constróem - um infinito universo de
significações.
Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao mesmo tempo todo critério
dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a autonomia da arte e a identidade de suas
formas com as formas pela quais a vida se forma a si mesma [...] o estado estético é
pura suspensão, momento em que a forma é experimentada por si mesma. O
momento de formação de uma humanidade específica (RANCIÈRE, 2005, p.34).
3
1802-1870. Pintor e fotógrafo escocês. Trabalhou em conjunto com Robert Adamson (1821-1848) utilizando a
fotografia como base para um corpo substancial de trabalhos artísticos.
Estendendo a discussão aos nossos dias, faço necessária uma conexão dos conceitos
apresentados ao modo como produzimos e percebemos a fotografia hoje. É fato que estamos
cercados de uma quantidade imensurável de imagens aplicadas em diversos usos, resultando
em múltiplas interferências nos núcleos sociais e políticos. Os inúmeros métodos pelos quais
as imagens circulam e afetam seus receptores, cria nesse cenário uma sensação de desordem e
irreconhecimento, resultando em uma interpretação pessimista de toda essa profusão.
Mas, como já mencionado anteriormente a respeito da visão de Rancière (2012), o
problema das imagens não reside exclusivamente no excesso, e sim na forma como somos
instruídos a percebê-las e interpretá-las. A questão central, nesse sentido, é a lógica
dominante da informação que faz com que essas imagens funcionem de acordo com um
sistema previamente determinado, onde a “construção” da imagem é uma condição
terminantemente decisiva para sua compreensão final. Creio ser interessante, neste ponto,
relembrar o regime ético das imagens estabelecido por Rancière (2005) e exposto no tópico
anterior, onde o teor - e por conseguinte, os usos - das imagens estavam diretamente ligados
ao caráter e à maneira de ser dos indivíduos, desempenhando uma função política.
Partindo do uso das imagens no regime ético para suas possíveis aplicações dentro de
um regime estético, o papel da fotografia pode ser discutido para além de sua ratificação
como uma forma de criação artística, sendo pertinente considerar a prática fotográfica como
um poderoso - e útil - fragmento no que se refere à uma construção da partilha do sensível.
Tomemos como base para essa análise a fotografia de rua. O ato de registrar o cotidiano
urbano dos indivíduos comuns passou por diversas formulações ao longo dos séculos XIX e
XX, tornando-se uma das modalidades fotográficas mais recorrentes a partir da década de
1990.
Retratar as coletividades urbanas, a vida pulsante da cidade e seus habitantes
desconhecidos, implica na captura de cenários percebidos não somente em sua totalidade,
mas resulta também na apreensão de cada microaspecto relativo à realidade fotografada. Mais
do que um gênero fotográfico dotado de características particulares, a fotografia de rua age
como “um instrumento documental e poético do cotidiano”, registrando com um olhar
criativo a “diversidade, o caos, a velocidade das ruas” e as banalidades do dia a dia
(CARVALHO, 2016, p.84).
Em vista disso, a presença do anônimo e do comumente ignorado parece ser o
elemento-chave dessas fotografias; mas faz-se oportuno salientar, porém, que não se trata
puramente de anônimos que são fotografados, mas também de anônimos que fotografam: é “a
glória do qualquer um”. O caso Vivian Maier (figura 01) - descoberto cerca de uma década
atrás -, pode servir de ilustração à assertiva: um homem chamado John Maloof descobriu por
acaso em uma leiloeira de Chicago os negativos de uma fotógrafa misteriosa, cujos registros,
ambientados nas cidades de Nova York e Chicago, datavam das décadas de 50/60.
As centenas de fotografias - que mais tarde desdobraram-se aos milhares (cerca de
150.000) - retratavam o cotidiano das cidades na sua mais pura fluidez, capturando desde os
transeuntes que “cruzavam o caminho” da objetiva aos detalhes arquitetônicos que
compunham os cenários registrados. Maloof divulgou parte do material encontrado na web e
viu a situação tomar um rumo assombroso, atraindo diversos olhares fascinados ao redor do
mundo. No entanto, ao passo que Vivian ascendia ao patamar de renomada fotógrafa de rua,
nada se sabia sobre sua trajetória. Foi necessário um certo tempo de pesquisa para que
Maloof descobrisse que a mulher responsável pela produção de todas aquelas fotografias era,
na verdade, uma babá.
Maier exerceu a profissão por cerca de 40 anos, e durante esse período fotografou
todos os lugares por onde passava. Ser babá lhe conferia esse tipo de liberdade, pois sair às
ruas com as crianças era algo bastante habitual em sua rotina. Utilizando uma Rolleiflex de
médio formato, Vivian produziu milhares de fotografias que descortinaram sua visão a
respeito do mundo, e sua particular afeição por fotografar pessoas desconhecidas - quando a
própria também era uma - é o que torna sua história tão fascinante. Geoff Dyer4, responsável
pelo prefácio do livro Vivian Maier: Uma fotógrafa de rua, editado por John Maloof e
lançado pela Autêntica Editora em 2014, descreve que Vivian é “alguém que existe
unicamente nas coisas que viu”, pois é somente através de suas fotografias que podemos nos
aproximar de sua realidade.
Retornando, nesse contexto, ao exemplo da imagem de Hill - a vendedora de peixes
de New Haven (figura 02) - e à forma como Benjamin discorreu sobre a beleza desse
indivíduo anônimo que reclama seu papel na sociedade, podemos ter um vislumbre de como
a fotografia de rua pode ser grandiosa, ainda “que não tenha muito” a dizer ou apresentar.
Maier retratou em suas andanças muitos moradores de rua - alguns nem sabia que estavam
sendo fotografados (figura 02) -, e da mesma forma que Benjamin viu na vendedora anônima
“algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali,
que também na foto é real” (BENJAMIN, 1987, p.93), podemos ver nas fotografias de Vivian
um reflexo desse belo, que nasce do desconhecido para reclamar e afirmar o seu lugar na
partilha do sensível.
Figura 02: A vendedora de peixes de New Haven | New York, NY © Vivian Maier
Isso diz respeito não somente às pessoas que Maier fotografou ao longo desses 40
anos, mas corresponde também à sua própria escalada como fotógrafa. Seu trabalho, exposto
4
Romancista, crítico e ensaísta britânico. Sua escrita reparte-se entre estudos críticos, coletâneas de ensaios e
títulos sobre fotografia, cinema e literatura.
em inúmeras galerias de arte ao redor do mundo, figura hoje no panteão das grandes obras
fotográficas do século XX, e seu anonimato - algo que ela parecia prezar como a própria vida,
aliás - deu lugar a um frenético reconhecimento por parte do público. Maier morreu antes que
pudesse experimentar a recompensa de toda essa glória; mas, mesmo sendo uma “simples”
babá, seu lugar na história da fotografia nunca será esquecido.
Ademais, inúmeras amostras de outros renomados fotógrafos poderiam ser elencadas
aqui, como por exemplo Robert Doisneau, que registrou a vida das pesssoas que viviam em
Paris e seus arredores; Joel Meyerowitz, um dos pioneiros na fotografia colorida que
registrou a cena cotidiana da cidade de Nova York; Mary Ellen Mark, com seu
fotojornalismo que buscava dar voz aos que eram ignorados pela sociedade… incontáveis
exemplos poderiam servir para elucidar o papel dessa arte na imensa fábrica de
sensibilidades. Mas não se trata, por hora, de relacionar todas as manifestações fotográficas
que evidenciaram o homem comum no decorrer dos anos, e muito menos discorrer sobre as
múltiplas funcionalidades que essas imagens tiveram.
A questão aqui, é reconhecer a maneira como tais fotografias promovem - para além
de seus aspectos iconográficos - diferentes formas de se compreender as inervações humanas,
partindo “das características da vida dos homens comuns, vivenciadas sob a forma da
fragmentação, da descontinuidade e da efemeridade” (CARVALHO, 2016. p.85). Dessa
forma, tais imagens ilustram o regime estético a partir do momento em que desenham,
desprovidas de toda forma de hierarquização, novas configurações “do visível, do dizível e
do pensável”, (RANCIÈRE, apud, MARTINS, VOIGT; 2016, p.263) reconfigurando a
partilha do sensível por meio de uma lógica estética que implanta novas maneiras de fazer
arte e novos modos de visibilidade.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: ______.
Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história
da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196.
_____________. Pequena História da Fotografia. In: ________. Obras escolhidas. Vol. 1.
Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 91-107.
DANTAS, Eugênia Maria; Fotografia e complexidade: a educação pelo olhar. 2003, 229 p.
Originalmente apresentado como dissertação de mestrado, Centro Ciências Sociais
Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2003.
FLUSSER, Vilém; Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
São Paulo: Annablume, 2011.
KOSSOY, Boris; Fotografia & História. 2. Ed. Ver. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
MARTINS, Miriam M; VOIGT, Andre F.; Arte, imagem e fotografia: Um diálogo possível
entre Roland Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière. Artigo vinculado ao projeto
História, arte, imagem: o conceito de “regime estético da arte” na obra de Jacques Rancière.
Oficina do Historiador, EDIPUCRS, 2016, p.250-264.
MALOOF, John; Vivian Maier: Uma Fotógrafa de Rua. Autêntica Editora, 2014.
RANCIÈRE, Jacques; O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012b.