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L’Oeil Cacodylate
Francis Picabia,
artista dadaísta
3
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
PROFª.DRª. CECÍLIA MARIA ALDIGUERI GOULART – Orientadora
UFF
______________________________________________________________________
PROFª.DRª. ARACY ALVES MARTINS
UFMG
______________________________________________________________________
PROF. DR. MARCELO KRAISER
UFMG
______________________________________________________________________
PROFª.DRª. LUDMILA THOMÉ DE ANDRADE
UFRJ
______________________________________________________________________
PROF. DR. ARMANDO MARTINS DE BARROS
UFF
Dedico esta tese a meu pai, sábio narrador, com quem aprendi a contar histórias
5
Agradecimentos
- À minha madrinha Nair, que alimentou, com seu afeto irrestrito, meu corpo e minha
alma.
- À Aracy Martins, com quem tudo começou: primeiras publicações, discussões e um olhar
diferenciado para o trabalho.
- Aos meus parentes de Friburgo, com quem pude recuperar um pedaço da minha história.
- Aos meus amigos do Rio de Janeiro e de Paris, junto aos quais me senti protegida e
afagada.
- À Inez do Espírito Santo, que me cuidou do coração e da alma, não transigindo na fala
leve e delicada.
- Ao Pedro Henrique, meu sobrinho, com quem idealizei o projeto gráfico da tese e que me
orientou no seu formato e na sua estética.
- Ao meu filho Marcos, que soube entender minha necessária solidão e que me animou
com seu olhar silencioso de admiração.
- A todos da minha família que me acolheram no Rio e que acreditaram no meu trabalho
todo o tempo.
Agradecimentos especiais
A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o tio atribuía a uma única carência: a
falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a
nossa alma inteira. Era o que dizia Jaime.
O Beijo da palavrinha
Mia Couto
8
Sumário
1. Apresentação da Tese.................................................................................................... 16
○ 1.1 Histórico da pesquisa ............................................................................................. 16
○ 1.2 Apresentação da pesquisa ...................................................................................... 23
2. A Questão ....................................................................................................................... 26
○ 2.1 Contextualização da pesquisa ................................................................................ 26
○ 2.2 A especificidade do ensino-aprendizagem da escrita e as linguagens visuais ....... 35
○ 2.3 As metodologias de aprendizagem da escrita e os usos das imagens .................... 40
2.3.1 O contexto de estudo .......................................................................................... 48
2.3.2 Por que cartilhas de alfabetização ...................................................................... 51
2.3.2.1 A noção de letramento e algumas implicações para o estudo ..................... 52
2.3.2.2 Mudanças de paradigmas e suas decorrências no ensino de língua materna
................................................................................................................................. 57
2.3.3 A relação imagem/escrita em cartilhas francesas: uma investigação exploratória
..................................................................................................................................... 60
2.3.3.1 Sobre o material investigado ...................................................................... 63
2.3.3.2 A análise exploratória................................................................................. 68
○ 2.4 Questão de linguagem ............................................................................................ 94
LISTA DE IMAGENS
Fig. 65 O livro dos pés, p.25 f.192 Fig. 95 Coração de ganso f.216
Fig. 66 O livro das cabeças, p.10 f.192 Fig. 96 Você sabe gritar? f.217
Fig. 67 O livro das cabeças, p.20 f.192 Fig. 97 Você sabe gritar? f.218
Fig. 68 Cocô de passarinho, p. 3 f.193 Fig. 98 Você sabe gritar? f.218
Fig. 69 Cacoete, p. 10 f.194 Fig. 99 Você sabe gritar? f.219
Fig. 70 Cacoete, p. 11 f.194
Fig. 71 Minha mãe é um f.195 Fig. 100 Cacoete, p. 25 f.219
problema, página dupla
Fig. 72 Cacoete, p. 5 f.196 Fig. 101 A linha, página dupla f.220
Fig. 73 Rodolfo, o carneiro, p. 13 f.196 Fig. 102 A linha, página dupla f.221
Fig. 74 Rodolfo, o carneiro, p. 11 f.197 Fig. 103 O Equilibrista f.221
Fig. 75 Amor índio f.200 Fig. 104 O Equilibrista f.222
Fig. 76 Da Pequena toupeira que f.201 Fig. 105 O que o coração mandar, página dupla f.223
queria saber quem tinha
feito cocô na cabeça dela.
Fig. 77 Desertos f.202 Fig. 106 O que o coração mandar, página dupla f.224
Fig. 78 Desertos f.203 Fig. 107 O que o coração mandar, página dupla f.225
Fig. 79 Desertos f.204 Fig. 108 Poeminha em língua de brincar f.227
Fig. 80 Desertos f.205 Fig. 109 Poeminha em língua de brincar f.229
Fig. 81 Da Pequena toupeira que f.207 Fig. 110 Poeminha em língua de brincar f.229
queria saber quem tinha
feito cocô na cabeça dela.
Fig. 82 Da Pequena toupeira que f.207 Fig. 111 Poeminha em língua de brincar f.231
queria saber quem tinha
feito cocô na cabeça dela.
Fig. 83 Da Pequena toupeira que f.207 Fig. 112 A princesinha boca-suja, página dupla f.236
queria saber quem tinha
feito cocô na cabeça dela.
Fig. 84 Da Pequena toupeira que f.207 Fig. 113 A princesinha boca-suja, página dupla f.237
queria saber quem tinha
feito cocô na cabeça dela.
Fig. 114 A princesinha boca-suja, p. 9 f.237
Fig. 85 Cocô de passarinho, p.25 f.208 Fig. 115 A princesinha boca-suja, p. 10-11 f.237
Fig. 86 Cocô de passarinho, p.26 f.209 Fig. 116 A princesa boca-suja, p. 20 f.237
Fig. 87 Cocô de passarinho, p.27 f.209 Fig. 117 A princesa boca-suja, p. 27 f.238
Fig. 88 Minha mãe é um f.210 Fig. 118 O beijo da palavrinha, página dupla f.239
problema
Fig. 89 Livro dos corações f.212 Fig. 119 O beijo da palavrinha, página dupla f.240
Fig. 90 Livro dos corações f.212 Fig. 120 O beijo da palavrinha, página dupla f.241
Fig. 91 Rodolfo, o carneiro, p. 8 f.213 Fig. 121 O beijo da palavrinha, página dupla f.243
Fig. 92 Rodolfo, o carneiro, p.16 f.213
12
Fig. 122 O Jantar Fantasma, p. 12 f. 244 Fig. 137 O ratinho que morava no livro f. 260
Fig. 123 O Jantar Fantasma, p. f. 244 Fig. 138 O ratinho que morava no livro f. 260
13
Fig. 124 O Jantar Fantasma, p. f. 246 Fig. 139 O ratinho que morava no livro f. 260
27
Fig. 125 O Jantar Fantasma, p. f. 247 Fig. 140 O ratinho que morava no livro f. 260
32
Fig. 126 O Jantar Fantasma, p. f. 247 Fig. 141 O ratinho que morava no livro f. 260
33
Fig. 127 O Jantar Fantasma, p. f. 247 Fig. 142 O ratinho que morava no livro f. 260
39
Fig. 128 O Jantar Fantasma, f. 249 Fig. 143 O ratinho que morava no livro f. 260
página final
Fig. 129 Esquisita como eu, f. 251 Fig. 144 O ratinho que morava no livro f. 260
página dupla
Fig. 130 Esquisita como eu, f. 251 Fig. 145 O ratinho que morava no livro f. 261
página dupla
Fig. 131 Esquisita como eu, f. 252 Fig. 146 O ratinho que morava no livro f. 261
página dupla
Fig. 132 Vizinho vizinha, f. 254 Fig. 147 O ratinho que morava no livro f. 261
página dupla
Fig. 133 Vizinho vizinha, f. 254 Fig. 148 O ratinho que morava no livro f. 261
página dupla
Fig. 134 Vizinho vizinha, f. 256 Fig. 149 O ratinho que morava no livro f. 261
página dupla
Fig. 135 Vizinho vizinha, f. 257 Fig. 150 Cíclico, página dupla f. 265
página dupla
Fig. 136 Vizinho vizinha, f. 258 Fig. 151 Cíclico, página dupla f. 265
página dupla
13
Resumo
BELMIRO, Celia Abicalil. “Um estudo sobre relações entre imagens e textos verbais em
cartilhas de alfabetização e livros de literatura infantil”. Orientadora: Cecília Maria
Aldigueri Goulart, NITERÓI-RJ/UFF, 27 de março de 2008. Tese (Doutorado em
Educação), 283 páginas. Campo de Confluência: Linguagem, subjetividade e cultura;
Linha de Pesquisa: Linguagem: Processos de produção de linguagem, identidades
culturais e práticas educativas; Projeto do orientador à qual a tese está vinculada: A
história da alfabetização do município de Niterói no século XX: em busca de
determinantes e condicionantes políticos e metodológicos.
Abstract
This thesis is inserted in the joint field of Language, subjectivity and culture in the Post-
graduation Program on Education of Universidade Federal Fluminense-UFF, and aims at
understanding how relations between verbal text and image are established and create a
dialogue in the reading primers and infant literature books. It is grounded on the concept of
language formulated by Bakhtin as the axis of possibilities to produce different relations.
Categories as hybridization, interdiscourse, plurilinguism, among others, have shaped
methodological procedures. Christin´s study on ideogram language and its influence on
western literature have guided the perspective of image/word interplay, beyond the linear
aspect of alphabet writing, thus opening a way to let us think about both the image of
writing and the writing of image. Based on studies I have been developing in the
educational field concerning verbal and visual languages, I indicate the question comprised
in the research, and analyze the theoretical and methodological context of areas that pass in
between the question. I approach different faces of writing and images and present studies
elaborated by Bakhtin on the prosaism of novel discourse and on the monologism of the
poetic discourse as the source to understand the position of authors and illustrators of the
infant picture storybooks analyzed. This study also develops theoretical grounds based on
some concepts of the literary theory and of the plastic arts, such as iconotext, surface, inter
text. The material analyzed is presented in two moments of the research: in Chapter 2, I go
through three French primers analyzing the relation between image and verbal text; in
Chapter 5, I analyze Brazilian and foreign infant picture storybooks, revealing multiple
situations where text and image interplay. Although placed in distinct chapters, the analysis
of the two groups of materials establishes an intense dialogue supported by the conceptual
basis built along the thesis. Different possibilities to conceive the relation between image
and verbal text, worked on in this study, contribute to understand the different ways to
access knowledge, cultural asset in general, although these ways do not become free from
the format that organize them – their use in the school setting: when they become
pedagogical material, especially in the first school years, images and texts define ways to
face social meanings, and to face also the chosen dissemination support and style.
Attention to this fact can be one more aspect to be considered in the formation of a critical
awareness of materials and methods used in classroom.
Résumé
Mots-clé :
○1 ○
Apresentação da Tese
Esse capítulo situa, em primeiro lugar, os motivos principais que geraram interesse na
realização da presente tese, indicando os caminhos das produções que tenho elaborado e
que têm suscitado a necessidade de prolongamentos, seja em forma de projetos de
extensão, de ensino ou de pesquisa. Faço uma breve reflexão sobre a importância das
relações entre imagens e textos verbais no âmbito escolar, para situar nas cartilhas de
alfabetização e nos livros de literatura infantil o desenho da pesquisa. Uma segunda parte
expõe o desenvolvimento da tese, o conteúdo dos capítulos e as considerações finais.
Há dez anos, venho trabalhando com pesquisas acadêmicas na perspectiva das relações
entre a linguagem verbal e as imagens nos ambientes escolares, especialmente em alguns
gêneros e suportes. Pela inevitável limitação criada pelo modo de organização das
disciplinas e das áreas de estudo, ao teorizarem e se fazerem Ciência, senti necessidade de
buscar diálogo com outras áreas, além da Lingüística, que pudessem fornecer conceitos e
enfoques para uma amplitude de perspectiva, como a Semiótica, a Comunicação, a História
da Educação, entre outras, e nesta tese amplio a discussão com conceitos das artes plásticas
e da literatura. E nesse percurso, ora em contato com uma, ora com outra, fiz interrogações
que motivaram a construção de um tecido teórico que venho tentando aprofundar e polir.
Principalmente dois aspectos me instigavam: por um lado, a variedade de textos verbais e
visuais produzidos culturalmente, como espaço de forças políticas e ideológicas, e que
eram absorvidos por diferentes materiais educativos para todos os segmentos da Educação
Básica, como, por exemplo, os livros didáticos de Português (doravante LDP); por outro
lado, a necessidade de constituição de uma crítica acadêmica para a compreensão de
noções e conceitos sobre a temática da relação imagem e texto verbal, posta no interior de
projetos político-pedagógicos que eram, algumas vezes, elaborados por formadores de
professores.
17
Considero a importância de refletir sobre as relações entre imagens e textos verbais por seu
uso na escola e, em vista disso, nesta apresentação, faço um recorte de minha produção
privilegiando as ações de pesquisas mais do que a cronologia dos estudos. Certas vezes,
tendi para um estudo mais de natureza semiótica; outras, com características
historiográficas; e algumas, destacando aspectos metodológicos. O que os reúne é um
permanente desejo de descobrir as possibilidades de interlocução das imagens com a
linguagem verbal em aspectos do ensino e aprendizagem da língua portuguesa, em suas
diferentes dimensões: leitura, produção de textos, gramática. Uma questão de base esteve
sempre presente em meus estudos: o que distingue os usos de imagens e textos verbais em
materiais escolares de língua portuguesa? E, como decorrência, a seguinte pergunta: Qual
seria a potência das imagens e seu impacto na aprendizagem da escrita alfabética?
mesma maneira, na esteira do debate sobre as relações da língua e as práticas sociais, abre-
se um caminho para uma interessante discussão no campo das relações escrita / imagem e
entre imagem e texto literário.
Também na mesma direção, publico o artigo Uma educação estética nos livros didáticos
de português (Belmiro, 2003), onde pretendo discutir, nos livros das séries finais do Ensino
Fundamental, a multiplicidade de conteúdos ensinados que convivem nesse suporte e que
se mesclam com o ensino da Língua Portuguesa.
Um viés desses estudos permitiu a retomada de uma interrogação para se transformar num
dos pilares da tese: que efeitos de escolarização sofrem os textos e gêneros de texto que
circulam na sociedade e se transformam em materiais didáticos? Ou, se é possível melhor
delimitar a questão: há confronto (e, se há, como?) entre processos pedagógicos e
processos estéticos na elaboração de materiais didáticos ou nos livros de literatura infantil?
As propostas de desenvolvimento de uma competência estética encontram dificuldades de
convivência junto a processos didáticos? Ou é o sentido de aprendizagem e suas formas
que devem ser repensadas e recolocadas no campo educacional?
Para isso, precisei delimitar o contexto em que o tema se situa, definindo os horizontes da
pesquisa. Apresento inicialmente duas perguntas sobre as quais desenvolvo algumas
reflexões contextualizando teórica e metodologicamente os campos de pesquisa que
perpassam a interrogação. A primeira questão é assim apresentada: Como se constituem as
especificidades da aprendizagem da escrita a partir da sua relação com as linguagens
visuais? Assim posta, essa pergunta aborda os aspectos lingüísticos que podem determinar
a presença das imagens nos diferentes suportes e gêneros. A segunda pergunta é formulada
da seguinte maneira: Como as propostas metodológicas se aproveitam da relação imagem x
texto verbal para pensar uma alfabetização mais enriquecedora e eficiente? As ações
didáticas aqui estão sendo privilegiadas, filtrando o campo das expressões da linguagem.
algumas investigações que realizei com cartilhas francesas durante os estudos realizados na
França e que se justifica porque são similares, no geral, às propostas de cartilhas
brasileiras.
A terceira pergunta que dará a direção da pesquisa pode ser assim descrita: quais as
relações entre imagem e texto verbal em cartilhas de alfabetização e livros de literatura
infantil do ponto de vista da linguagem? Minha intenção com essa formulação é manter a
tensão que a discussão enseja para estabelecer elos da linguagem verbal com as imagens,
como plasticidade e linguagem, nos processos de leitura e escrita. Portanto, a linha de
reflexão que desenvolvo acresce aos aspectos lingüístico e metodológico, pertinentes às
duas primeiras questões, uma perspectiva discursiva que valerá a ampliação dos horizontes
de possibilidades de relações imagem/texto. Essa apresentação pretende situar livros de
alfabetização e livros de literatura infantil, apostando numa extensão de relações
imagem/texto que podem superar as características clássicas de cada gênero.
flexibilidade e extensão de usos aos textos e às imagens nesses dois gêneros e suportes de
que trato. A direção investigativa é no sentido de constituir categorias que possam
fundamentar as análises do material de pesquisa que desenvolverei adiante.
Nas considerações finais, proponho uma reflexão sobre a base conceitual elaborada ao
longo da tese e as injunções de sua utilização em espaços escolares. O que explicitam as
formas em que imagens e textos são postos na escola? É possível um tratamento dessas
linguagens de maneira a que a escola não precise ser reativa às imagens e tomá-las como
empecilho para a aprendizagem da língua escrita. Acredito que assim seja possível poder
pensar as dimensões do estético e do pedagógico voltadas para a formação da consciência
crítica sobre materiais e métodos utilizados em sala de aula.
26
○2 ○
A Questão
Este capítulo tem como finalidade formular a questão que justifica a presente pesquisa.
Para isso, realizo inicialmente reflexões sobre certas interrogações que naturalmente
podem surgir, pois o trabalho que venho desenvolvendo situa-se na interseção de algumas
áreas de conhecimento, contextualizado no campo educacional. Introduzo duas questões
preliminares, uma de cunho lingüístico e outra de cunho pedagógico, para, então,
especificar o escopo do trabalho: o estudo das relações entre imagem e texto verbal do
ponto de vista do conceito bakhtiniano de linguagem, as riquezas que resultam dessas
interações e a amplitude do alcance que esse ponto de vista permite para olhar de modo
renovado questões no âmbito educacional.
Pesquisas na área da história da leitura e da escrita têm mostrado 1 que os usos, as funções e
os modos de apropriação da escrita têm se transformado ao longo da sua história devido às
demandas sociais e culturais de cada momento histórico. Por exemplo, a função do copista
foi fundamental para a sobrevivência do texto escrito, até praticamente o século XVIII: sua
caligrafia, de certa forma, dava consistência e estabilidade visual à leitura; também, nessa
1
Viñao Frago faz uma boa síntese desse assunto no capítulo 12: Por una historia de la cultura escrita:
observaciones y reflexiones em Leer y escribir: historia de dos prácticas culturales, 1999. Além dele,
pesquisadores da história cultural propõem um olhar renovado sobre o objeto da História na busca
etnográfica, a exemplo de Darnton.
27
época, se supunha o traço como marca de estilo e de autoria. Portanto, a escrita poderia ser
vista – e não lida/ouvida – e poderia igualmente ser contemplada como algo oferecido a
um espectador, ainda como lembrança das iluminuras da Idade Média. Outra marca
histórica é a generalização do texto escrito que, reforçada com a cultura tipográfica
renascentista, ajudou a afirmar certo tipo de leitura, silenciosa e solitária. Além disso, a
disseminação do texto propiciada pela imprensa institui um leitor que se habitua à
linearidade, seqüencialidade das letras, palavras e frases, uma visão controlada pela linha
que indica o caminho de leitura. A letra, a palavra, enfim, a escrita concebe o branco do
papel como um vazio, um oco, um nada, onde depositar os sentidos contidos no interior do
texto; ademais, os tipos da imprensa generalizam um padrão de letras que dissolve a marca
da identidade e da singularidade do traço da mão de quem escreve.
2
“ya no constituirá...el modelo de referencia socialmente más valorado. Una nueva mentalidad y un nuevo
soporte han nacido”.
Todas as citações no corpo do texto, com o original em francês, inglês e espanhol no rodapé, foram
traduzidas por mim.
28
Acredito que essa discussão, posta em outros moldes, relativiza também os suportes de
imagem, assim como se faz com os suportes da escrita. Todas as imagens não são as
mesmas da televisão, nem as imagens da TV são a realidade naturalizada de qualquer
suporte imagético. Alguns desses suportes oferecem possibilidades de criação de relações
próprias, inclusive com a presença freqüente do texto verbal. Diferentes áreas de estudos
sobre imagem vêm concordando com a idéia de que a imagem não é somente reprodução
do real, ou uma representação calcada em modelos que lhe são exteriores. Imagem é
também criação, e isso traz a possibilidade de construção de outras cadeias de significação,
superando uma definição parcial de imagem como descrição do real. Algumas das imagens
mais contundentes da história foram criadas por fotógrafos que não faziam da sua arte um
documento do real, ou, mais que isso, superando a qualidade de documento, levavam o
espectador a outros mundos, onde ele poderia ficcionar o real, além de dar entendimento ao
visto pelas relações que ele, o espectador, poderia estabelecer. Imagens submarinas, por
exemplo, apenas facilitaram o acesso a um mundo em que se construiu, com elas e por
meio delas, uma possível realidade, pois se sabe que as cores no fundo do mar não são as
mesmas que nos são dadas a ver pelas objetivas submersas dos fotógrafos; que a luz das
lanternas que iluminam o fundo do mar construiu também um recorte de mundo que, junto
com lentes poderosas, adaptadas para esse ambiente especial, nos deram uma certa
tonalidade, intensidade e profundidade. Esses procedimentos não nos impedem, pela visão,
3
Cap.10: Cultura tipográfica y cultura televisiva. Lecturas intensivas y extensivas. In: Leer y escribir:
Historia de dos prácticas culturales. México: Fundación Educación, voces y vuelos, I.A.P., 1999.
4
“En ella, tanto la imaginación como la realidad – o sea, la percepción sensorial de lo real- son suplantadas
por una realidad virtual de imágenes tecnológicamente construidas. Unas imágenes que no son la realidad ni
promueven la imaginación”.
29
de imaginar e criar esse mundo, de lhe construir uma memória ficcional que agencia a
imaginação. Outro exemplo são as fotos espaciais inimagináveis para os olhos humanos, a
dimensão planetária apresentada por uma tecnologia que supera os dados com os quais os
homens se orientam e que solicita processos cognitivos complexos para configurar uma
temporalidade, uma espacialidade e organizar novos conceitos para situar o homem na
virtualidade.
Frago 6 afirma que a imagem controla a imaginação, pois não deixa espaço vazio para que
seja preenchido pelo sujeito. Acrescenta ainda que, nesse caso, se “a imaginação cobre os
vazios, o faz a partir das representacões conhecidas”. Em parte, sim, embora seja relevante
lembrar que a imagem pode suscitar também o seu inverso, isto é, a construção de um
modo diferenciado de ver, se tomarmos, por exemplo, o conceito de perspectiva como um
constructo epistêmico da plasticidade da imagem. Diversos estudos promovidos pela
história da arte são referência para o entendimento das imagens e suas formas de
5
OLSON, David R. O Mundo no Papel. As implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São
Paulo: Ática, 1997.
6
FRAGO, opus cit., p.228: “la imaginación cubre los vacíos, lo hace a partir de las representaciones
conocidas.”
30
representação 7 . Como fato científico, que tem seu apogeu na Renascença, o descobrimento
da perspectiva refaz todo o conhecimento medieval sobre as artes plásticas. A Ciência
Matemática e a Física na Modernidade ajudam a elaborar um olhar renovado sobre a
realidade e construir outro modelo de visualidade. Com o desenvolvimento dos
procedimentos digitalizados, nenhum contato com o real é preciso para trazê-lo a um
suporte: nem as mãos do homem frente à natureza, na tentativa de trazer o mundo para o
papel, nem os raios luminosos captados pelas objetivas dos fotógrafos, que marcam, na
emulsão do filme, a emissão de luz dos objetos e os capturam fisicamente. O conceito de
representação, pois, passa por um constrangimento, uma vez que não se representa, mas se
apresenta um real, criado nas telas da computação, ou manipulado, feito virtualmente.
Além disso, a ênfase no texto escrito, como uma forma estável para melhor desenvolver o
pensamento e a imaginação, relativiza as formas orais da narrativa, adequando-as à nova
modalidade. Nesse caso, a escola tem exercido papel primordial, tanto no que tange ao
desenvolvimento de diversos gêneros de escrita, quanto ao emprego de diferentes formas
de oralidade para o enriquecimento das interações verbais in presencia. Todavia, a falta de
uma percepção mais aguda sobre os inúmeros eventos de linguagem em que predomina a
imagem faz deslocar as dificuldades internas da escola, no seu processo de ensino-
aprendizagem da leitura e da escrita, para fatores fora do seu âmbito de ação, absolvendo-a
da gravidade de resultados negativos.
7
HOCKNEY, David. O Conhecimento secreto: redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres.
São Paulo: Cosac&Naify, 2001.
8
Não intento aprofundar essa discussão, dados os objetivos da tese e os limites de meu objeto de estudo. No
capítulo 3, apresento uma discussão sobre essa temática, por necessidades de contextualização da pesquisa.
31
9
HÉBRARD, 1991.
10
As décadas de 1970 e 1980 representam um importante tempo, pela Escola e seus professores, de
assimilação das teorias da comunicação e de suas ferramentas tecnológicas, por um lado, e, por outro, de
reação às condições sociais que determinam quem pode se tornar seus usuários.
11
HÉBRARD, 2001.
12
« L’image, avant le texte, est donc, sans doute au principe du succès de la Reforme. »
32
Por outro lado, Darnton (1986, p. 287-288), em seu comentário sobre a fabricação de uma
sensibilidade romântica nos escritos de Rousseau, mostra a importância dada ao portador
de texto, indicando uma relação estreita do objeto com o conteúdo por ele veiculado. A
percepção do aspecto material na leitura, influenciando a relação do leitor com a leitura
mesma, integra os protocolos de leitura, participando ativamente das condições de
produção de sentido que envolvem o leitor e o ato de ler. Diz Darnton:
Darnton, com essas evidências, mostra que os leitores do século XVIII têm, com o livro,
uma relação de prazer que vai além do caráter informacional ou emotivo advindo das
mensagens dos textos. O sabor/saber contido no livro instiga o prazer dos sentidos que,
verdadeiramente, é dado por uma perspectiva estética que acompanha a produção do
conhecimento abstrato, sendo-lhe complementar, ou mesmo suplementar, de qualquer
forma integrando duas dimensões que são da essência do ser humano, conhecimento e
estética. Essa é a postura do leitor do séc. XVIII frente ao objeto.
Embora Darnton afirme que essa consciência tipográfica desapareceu com os livros
produzidos em massa, para uma audiência maciça, considero que esse aspecto ainda está
presente nas produções editoriais, nas diferentes maneiras de ler e nas relações que são
estabelecidas no ato de leitura. Mesmo deslocada no tempo e no espaço, a perspectiva
estética surge em outros modelos ou mesmo sob outras formas que designam seu tempo,
mas sempre constará de um modo de apropriação e criação de significados. Essa tensão
entre o conteúdo e seu suporte está presente nas questões teóricas que desejam conceber o
conhecimento, não de forma abstrata, mas a partir da sua relação com o entorno, seja
33
material ou imaterial, isto é, nos simbolismos, nas ideologias, nos valores de uma época. A
poesia brasileira concretista do século passado, por exemplo, foi uma importante retomada
dessa consciência tipográfica, uma literatura que põe em jogo o artesão da palavra, a
desconstrução da linearidade do texto, do aprisionamento do significado, para lapidar a
forma da palavra e dela surgir o sentido do poema. Mais radicais foram os seguidores dos
poemas-processo, construídos de total grafismo: linhas, pontos, formas geométricas postas
em encaixes ou em folhas soltas, abrindo amplamente a leitura em todas as direções, sem
princípio, sem ponto derradeiro, para onde o olho e o imaginário levarem o
leitor/espectador.
Sabe-se também que a litografia e a xilogravura do século XIX reintegram texto e imagem,
criando novos espaços gráficos, como os cartazes tão em moda na Europa, os livros
ilustrados, o livro de literatura romântica, para “leitores que nutrem seu imaginário com
produções do desenhista como daquelas do escritor” 13 . Mais adiante, abordarei esse
expediente em livros de leitura escolar. Outro fato relevante para compreender a história da
leitura é tomar consciência de que o livro concorre com outra mídia de transporte da
palavra à distância, o rádio, que se generaliza rapidamente entre as duas guerras mundiais
do século XX. Hébrard (2001) lembra a importância da emissão radiofônica, anterior às
imagens da TV, que implica uma outra sociabilidade, qual seja, interdita a palavra viva do
interlocutor, colocando-o na posição de ouvinte, e lhe põe na situação de não ter que errar
na sua interpretação individual e solitária da palavra escrita; por isso, lhe desobriga do
trabalho da leitura. Cito Hébrard (2001, p. 112):
O rádio, bem antes da televisão, fez existir um mundo onde cada um,
qualquer que fosse seu lugar no território, podia, no mesmo instante, na
imediatez absoluta da palavra, vibrar com a mesma emoção, se
entusiasmar pela mesma opinião, ser persuadido a saber o que uma voz
autorizada acabava de lhe ensinar. 14
13
(Hébrard, idem, p. 111) : « des lecteurs qui nourrissent leur imaginaire des productions du dessinateur
comme de celles de l’écrivain ».
14
« La radio, bien avant la télévision, a fait exister un monde où chacun, quelle que soit sa place sur le
territoire, pouvait au même instant, dans l’absolue immédiateté de la parole, vibrer de la même émotion,
s’enthousiasmer pour la même opinion, être persuadé de savoir ce qu’une voix authorisée venait de lui
enseigner. »
34
Não nos surpreendemos mais, a partir dos anos 1970, que um aluno não
tenha lido Molière nem Camus, nem Hugo nem Char. Surpreendemo-nos
simplesmente que ele não leia ou que ele não leia mais. O verbo ‘ler’,
tornando-se intransitivo, faz da leitura um valor estético ou moral que se
basta ele mesmo. 15
Portanto, a complexidade da temática permite pensar que os que vêem TV podem ser
aqueles que escrevem e-mails, constroem uma comunidade nos blogs, descrevem e
argumentam quando criam os seus próprios sites, oralizam a escrita por msn etc., o que
quer dizer que escrevem por outros caminhos, com outros formatos, sem os procedimentos
tradicionais da escrita, utilizando-a em outros meios, de outras formas. Certamente os
analfabetos de antigamente não são os analfabetos de hoje e, no caso brasileiro, os dois
coexistem no mesmo tempo e espaço, sendo que o que os distingue é a dimensão do
letramento, este, sim, marcando a diferença na autonomia de uso e domínio de linguagem,
e, portanto, entre os analfabetos e os novos analfabetos, que são os não letrados. Para isso,
é preciso situar o contexto em que esse conceito é utilizado, posto que sua apropriação é
circunscrita, nesse caso, histórica e antropologicamente. O conceito de cultura pós-
tipográfica ou cultura eletrônica, proposto por W. J. Ong, aproxima justamente duas áreas,
Lingüística e Semiologia, cujos campos de pesquisa têm sido cada vez mais solicitados a
contribuir com conceitos e noções. A interface entre oralidade, escrita e imagem, por
exemplo, pode ser um índice dessa aproximação.
Isso pode ser confirmado por pesquisas na área da etnografia de sala de aula que vêm
propondo, pela busca das tramas urdidas entre professor e aluno nas suas interações em
classe, novos significados aos sujeitos e à experiência do conhecimento. Também se
observa hoje o fluxo de algumas ciências na direção de outras, na busca de
complementação, ou mesmo de outros aportes epistemológicos, produzindo novos campos
de pesquisa para explicação das diferentes realidades em que vivemos. É o caso, entre
outros, da Lingüística, Sociologia, Antropologia, História, Semiótica.
Dessa forma, os problemas relativos à utilização das imagens na educação podem e devem
ser relativizados, para que a discussão não se restrinja à contestação pertinente, porém
reativa e insuficiente, das conseqüências dos usos da televisão, seu suporte, suas
linguagens e seu acesso. Um dos exemplos freqüentes para o baixo rendimento na
capacidade de utilização da linguagem verbal pelos alunos é a dificuldade que eles
encontram para compreender textos acadêmicos, ou para escrever gêneros textuais, como
resenhas, resumos; enfim, uma dificuldade para lidar com outras formas de escrita
diferentes da narrativa, e justificar essa impossibilidade pela desqualificação dos jovens
devido ao seu constante contato com as imagens desde pequenos, até antes mesmo do
início da alfabetização. Na década de 1960, Osman Lins (1977) angustiava-se com a
possibilidade de as imagens matarem a capacidade imaginativa dos alunos, mas não
antevia a importância de propor uma escola mais atenta ao mundo lá fora. Com isso, ele
não entendia que as crianças não só são fruto, como também são produtores de um
complexo conjunto de processos culturais cujas vivências delimitam e dão forma ao
conhecimento. Apostava, naquele momento, na capacidade de o texto escrito bastar aos
processos imaginativos.
Para iluminar as reflexões que pretendo realizar neste estudo, é preciso, antecipadamente,
refletir sobre algumas questões que pretendo superar ao longo da exposição para poder,
então, indicar o foco de meu interesse de pesquisa. Uma delas pode ser formulada da
seguinte maneira: Como se constituem as especificidades do ensino-aprendizagem da
escrita a partir da sua relação com as linguagens visuais?
36
16
Trabalhos marcantes na pesquisa brasileira têm trazido contribuições fundamentais para o estudo da
oralidade, escrita e o ensino da língua, tais como: CASTILHO (1990, 2000), Projeto NURC, A gramática do
Português Falado 5 vols. Campinas, Editora Unicamp; São Paulo, FAPESP, 1990-1996; MARCUSCHI
(2001), RAMOS (1997), entre muitos.
37
Do ponto de vista da história da educação, Frago 18 aponta, em 1989, três grandes fases de
estudos da história da alfabetização em contraponto à história do pensamento: 1ª- Estudos
tradicionais sobre alfabetização – centrados no analfabetismo (e não, na alfabetização
como processo); 2ª- Fase iniciada na década de 1960 com seu auge na de 1970. O estudo
deslocou-se para o processo de alfabetização, seus agentes e modos de atuação, resistências
e apoios. Essa inversão supôs o recurso a novas fontes e a ampliação do campo de
investigação aos fatores ideológico-culturais, às relações oralidade-escrita, aos aspectos
tecnológicos, à história da comunicação oral e escrita, assim como mediante outras
linguagens (numérica, musical, icônica, gráfico-não alfabética, gestual, etc.) e às análises
comparadas ou transculturais. A tarefa do historiador da alfabetização confluía em muitos
aspectos com a do historiador da literatura, com a dos lingüistas e antropólogos, mas
sobretudo com a do historiador da cultura; e 3ª- Fase que se abre a considerações mais
complexas e profundas. Não é mais história da alfabetização strito sensu, mas história dos
processos de comunicação, da linguagem e do pensamento, quer dizer, da mente humana.
Um aspecto relevante para essa discussão são as mútuas influências dos sistemas de
comunicação e o pensamento, o que cria motivações para uma pesquisa voltada para
aspectos cognitivistas, superando tanto as estruturas como o relativismo cultural. Enfatiza-
17
Darnton, 1988.
18
Frago, 1999, cap.3, p. 71. Texto com primeira publicação em 1989. Edição brasileira de 1993.
38
se, nesse viés, o papel que as trocas nos modos de comunicação representaram nas
transformações operadas nas estruturas e nos processos cognitivos 19 . Destaca Frago:
19
Comento essas implicações na educação de jovens e adultos no artigo A Leitura na educação de jovens e
adultos. In: EVANGELISTA et all (org.) A Escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e
juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.117-128.
20
“Aun reconociendo que ‘el mensaje no puede ser razonablemente reducido al medio’, sí es cierto que
‘cualquier cambio en el sistema de comunicación humana’, en su tecnología, tendrá ‘grandes consecuencias’
en su ‘contenido’, en los ‘modos de pensamiento’, o sea, en las actividades cognitivas o, como dice Goody,
tomando la expresión de Luria, Scribner y Cole, en ‘los sistemas cognitivos funcionales’”. (p. 94).
21
Frago, 1999, cap. 1. Análisis de una mutación antropológica e historiográfica.
39
alfabetização funcional, nos termos originais, voltada para habilidades diferentes segundo a
cultura ou grupo de referência; b- alfabetização funcional, do ponto de vista econômico-
produtivo, ou alfabetização para o trabalho; c- alfabetização cultural, que se dirige aos
conhecimentos e saberes que o cidadão deve possuir, para participar da vida em sociedade;
d- alfabetização de orientação político-ideológica, voltada para a massa, de índole social,
cultural e participativa; e- retomada da alfabetização funcional, com uma perspectiva
utilitária e cotidiana, que tem sido realçada pelas pesquisas lingüísticas sobre os gêneros de
texto, relativizando o peso da avaliação escolar no uso das capacidades de leitura, quando
voltadas para textos de sobrevivência imediata dos aprendizes de leitura, como bulas,
carnês, boletos de pagamentos, fichas de matrícula etc. Sendo todas as acepções passíveis
de críticas e restrições, essas tendências são uma mostra de diferentes períodos de
organização do conhecimento por que passam as sociedades e as necessidades de inserção
da população analfabeta, as ações das instituições para definirem suas prioridades e a visão
política que transparece dessas ações. Por isso, a impossibilidade de se pensar uma
alfabetização, mas alfabetizações.
A preocupação do autor, portanto, é como construir uma tipologia das alfabetizações nas
sociedades de escolarização e alfabetização generalizada, a exemplo da espanhola, uma
vez que seu interesse não está voltado para as diferentes realidades das sociedades
periféricas, como a brasileira. Sua análise consegue espelhar, através de um modo
particular de organizar diferentes tendências subjacentes aos diferentes programas de
alfabetização, uma grande totalidade das propostas de alfabetização, seus fundamentos e
seus escopos. O pesquisador considera três aspectos: 1- o de índole lingüístico- cultural; 2-
o que leva em conta a pluralidade de códigos, sistemas ou tecnologias de armazenamento,
transmissão e recepção de informação, assim como suas diferentes funções, usos e
valorização social; e 3- o de âmbito da língua escrita, da alfabetização no sentido estrito,
usos escolares e sociais da leitura e da escrita. Uma questão geral aos três aspectos é que
todos os códigos ou linguagens descritos oferecem, alguns, usos simples, e outros, usos
mais complexos, sofisticados e com graus de dificuldade.
Meu interesse nesta pesquisa será desenvolver um espaço de reflexão que configure uma
tentativa de recriar alguns pressupostos teóricos no campo da educação e indicar alguns
procedimentos de análise para que as relações entre imagem e texto verbal tenham trânsito
mais dinâmico no espaço escolar.
40
Trato nesta seção de outra questão que toma, como fato concreto, as relações entre imagem
e texto verbal como inevitáveis e enriquecedoras, e que pretendo superar na sua
formulação. A questão pode ser assim enunciada: Como as propostas metodológicas se
aproveitam dessa relação para pensar uma alfabetização mais enriquecedora e eficiente?
Esse viés escolhe as ações didáticas como o eixo que estruturará o campo em que se
definirão e se alcançarão os objetivos da alfabetização. Vale lembrar as diferentes
abordagens do ensino-aprendizagem da leitura e da escrita ao longo da história da
alfabetização, para perceber que as transformações ocorridas nessa noção apresentam
diferentes causas e objetivos, de acordo com demandas externas ao processo estrito.
22
Frago, opus cit. p. 177-178.
41
23
“Así, mientras la educación preescolar se convertía, en algunos países, en laboratorio donde nacerían
muchas innovaciones posteriores, mientras en ella predominaba una concepción de la escritura como dibujo o
trazo, como posibilidad y juego, abierta a cualquier polisemia y figuración, incluso antropomórfica, por las
similitudes y las diferencias de las letras entre sí o con objetos, animales o personas, mientras, en las últimas
décadas se han impuesto los términos de prelectura y preescrita y se tiende a poner el acento en los
conocimientos previos, la impregnación por lo escrito y la conformación de aquellas estructuras mentales y
corporales sobre las cuales basar el aprendizaje posterior, la educación primaria ha seguido considerando la
escritura como disciplina y límite, y la palabra como sonidos a desagregar y agregar y, a la vez, como
significado a comprender... y circunscribir en todo caso la polisemia y la posibilidad, en el ámbito de la
escritura, al área de la enseñanza artística (caligramas, dadaísmo, collages, decoración, publicidad,
caligrafía). La escuela retoma así el primer objetivo de la escuela griega: evitar la vuelta a la polisemia picto
e ideográfica, a la concepción de la escritura como trazo que guarda alguna relación con aquello que
significa”.
42
As chamadas novas linguagens – a meu ver um termo inadequado, pois inclui, na mesma
indefinida denominação, linguagens que são antigas e antecessoras da escrita da palavra,
como as imagens da pintura ou as histórias em quadrinhos, cujas origens são as pinturas
das cavernas, as tirinhas, que vieram dos grafismos primordiais, e a tela do computador
como um suporte que, disseram alguns, mataria o livro –, juntamente com os fatores acima
mencionados, têm sido consideradas como uma das causas da crise da alfabetização. Seja
pela diversidade de meios e suportes que carregam as imagens contemporâneas, seja pelos
processos cognitivos que desenvolvem, o argumento de que elas não acionam os processos
superiores da escrita alija-as para outra área, a das artes visuais. O termo novas linguagens
carrega implicitamente uma explicação, portanto, pelo que não contém e pela limitação de
alcance.
Essa nova mentalidade formula, assim, uma outra questão, sobre a qual a escola ainda não
tem instrumentos para refletir. Frago (1999, p. 182) é decisivo ao afirmar:
24
“La noción de aprendizaje cubre de este modo, sin interrupciones, desde la escuela infantil hasta non se
sabe bien cuando. Pero, en el fondo, lo que se persigue es lo mismo que ya perseguía aquella primera escuela
nacida con la escritura misma: modelar la mente de acuerdo con los supuestos de la razón gráfica y la cultura
escrita”.
43
Além da Educação Infantil, observa-se que, nos demais níveis de ensino, o tratamento dado
pela escola às relações entre as linguagens verbal e visuais tem mostrado uma forte
tendência para o uso de funções didáticas muitos semelhantes, isto é, a imagem substitui o
texto verbal mas as perguntas de interpretação mantêm o mesmo formato, com os mesmos
objetivos, supondo que uma linguagem possa substituir a outra sem alterar
substantivamente o alcance e as especificidades das capacidades leitoras 25 . Chartier (2003)
analisa a importância dos atos de leitura, que dão aos textos significados plurais e móveis.
Além das diferentes maneiras de ler, que incluem os leitores e os diversos contextos que
conformam uma certa forma de ler, os protocolos de leitura estão dispostos no objeto lido.
Dessa forma, a substituição de linguagens e a manutenção dos mesmos procedimentos de
leitura criam dificuldades não só do ponto de vista da abordagem do texto como de
processos cognitivos específicos que são solicitados nas diferentes leituras.
Seguindo o eixo de considerações desse texto e afastados os dois enfoques iniciais, isto é,
ênfase na teoria da língua ou nas metodologias, cabe definir um ponto de partida que possa
investigar e integrar tanto a escrita quanto as imagens como modos de apreensão da
realidade que tenham significado para o aprendiz.
É preciso, antes de enunciar a questão que deverá conduzir a pesquisa, refletir acerca de
uma antiga relação que, associada como está, deixa a escrita impermeável a outros
25
Em algumas publicações venho abordando esse assunto, como em BELMIRO, Celia Abicalil. A
Escolarização da imagem nos livros didáticos.In: Presença Pedagógica. Belo Horizonte: Dimensão,vol.16,
nº31, jan/fev.2000. p. 29-37.
44
relacionamentos que dão frutos interessantes no fluxo da cultura. Os estudos que dissociam
a aprendizagem da leitura da aprendizagem da escrita podem gerar algumas novas buscas
para compreender melhor a presença das imagens no ambiente escolar. Em palestra sobre
leitura, aprendizagem e cidadania, Freitag (1994) põe em dúvida a certeza generalizada de
que escrever e ler seriam duas faces da mesma moeda e aponta uma relativa autonomia dos
processos de produção de texto (ao escrever) do processo de decifração de um texto (ao
ler). Traz as contribuições dos anos 70/80 do lingüista David Elkind para afirmar que ler e
escrever, do ponto de vista lógico, são duas operações distintas. A forte presença do
construtivismo de Emília Ferreiro no contexto brasileiro das últimas décadas induziu a que
se desse ênfase ao acesso à escrita, através de processos de produção de textos,
negligenciando a interpretação como possibilidade de alcançar a construção do sistema da
língua. A teoria da construção dos estágios da leitura apresentada por Elkind faz parte do
contexto da teoria desenvolvida por Piaget. Diz Freitag (1993, p. 31):
A historiografia proposta por Frago corrobora a idéia de que aprender a ler e a escrever não
estão obrigatoriamente vinculados, podendo ocorrer de forma autônoma. Em estudo sobre
o método de soletração que vingou até fins do século XVIII e início do século XIX, o autor
assinala que a leitura expressiva, muitas vezes, fazia o leitor decifrar as palavras mas não o
elevava a um leitor compreensivo. Na verdade, ele não sabia realmente o que lia. A
convenção do signo, sua arbitrariedade, induzia a leituras disciplinadas com seu sentido
submetido.
Minha atenção, nessa discussão, volta-se para essa abertura de foco, cuja amplitude
permite envolver a presença das imagens e suas relações com a escrita nos processos
escolares de aquisição da escrita. Aprender a escrever não significa obrigatoriamente
aprender a ler compreensivamente e vice-versa. As imagens no ambiente escolar podem
estar a favor da leitura e/ou a favor da escrita? Ou, em termos de linguagem: as imagens
podem ser mais bem compreendidas quando se trabalha com a escrita ou com a leitura, se é
26
Cap.8, p. 175. “En los finales del siglo XVIII y primeros del XIX ambos aprendizajes experimentan una
triple ruptura. En primer lugar, se introduce con lentitud la enseñanza simultánea de la lectura y la escritura.
No se trataba, en un principio, de aprender a leer escribiendo viceversa. Ambas enseñanzas seguían
configuradas de modo independiente, pero ahora se relacionaban y llevaban a cabo en el mismo curso o en
cursos sucesivos. Con el tiempo no será ya necesario dominar la lectura para iniciar el aprendizaje de la
escritura”.
46
que é possível fazer essa distinção nos espaços de aprendizagem da escrita e em relação às
imagens?
Outra entrada nesse campo de reflexão pode fazer emergir outras formas de relações entre
oral x escrito x imagem, pela consideração de que as sociedades contemporâneas se
constroem por uma oralidade secundária, cuja natureza é marcada pela escrita. Pode-se,
assim, considerar uma nova mentalidade, mista, pela inclusão simultânea de linguagens 27 .
Assim, a pesquisa, voltada para essa relação, não tratará da oralidade como uma
modalidade de expressão, como um elemento do processo de produção de sentidos, como
sistema organizado que terá ajuda nas imagens para o processo de domínio do sistema de
escrita, mas considera a oralidade secundária que marca esses novos tempos do texto
escrito. Acredito, porém, que este estudo, ao relacionar imagem e texto nos processos de
alfabetização, poderá evidenciar que a textualização28 realizada pela criança trata com
elementos que, além de assumir a idéia da escrita e seus processos lógicos específicos,
propõem a significação estabelecida na relação entre sujeitos e entre o sujeito e o texto,
tornando insuficiente a relação convencional grafema e fonema.
27
No artigo ‘Imagens e Práticas intertextuais em processos educativos’, em co-autoria com Delfim Afonso
Jr. e Armando Martins de Barros, analiso as injunções dessa nova realidade no interior da escola. In: PAIVA,
Aparecida, MARTINS, Aracy, PAULINO, Graça, VERSIANI, Zélia. Literatura e Letramento: espaços,
suportes, interfaces. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
28
COSTA VAL, Maria da Graça. Texto, textualidade e textualização. IN: CECCANTINI, J.L. Tápias;
PEREIRA, Rony F.; ZANCHETTA JR., Juvenal. Pedagogia Cidadã: Cadernos de formação: Língua
Portuguesa. v. 1. São Paulo: UNESP, Pró-Reitoria de Graduação, 2004. Nesse artigo, Costa Val esclarece a
atualidade do termo textualização em relação ao termo textualidade,largamente utilizado por todos os
lingüistas. Diz ela: “O termo textualidade foi definido por Robert-Alain de Beaugrande e Wolfgang Dressler,
no livro Introduction to Text Linguistics, de 1981, como o conjunto de características que fazem com que um
texto seja um texto, e não apenas uma seqüência de frases ou palavras. Mais recentemente, num livro de 1997
(New foundations for a science of text and discourse: cognition, communication and freedom of access to
knowledge and society), o próprio Beaugrande rediscutiu essa definição, propondo não se perdesse a estreita
relação entre a textualidade e o processo de “textualização”. Atualmente, outros estudiosos, como Jean-Paul
Bronckart e Bernard Schneuwly, focalizando os processos de produção e interpretação de textos, também têm
usado o termo textualização. Quando se fala em textualidade, muitas pessoas podem compreender que se
esteja considerando o texto como um produto lingüístico que traz em si mesmo o seu sentido e todas as suas
características. Pensar assim significaria acreditar que todos aqueles que ouçam ou leiam um determinado
texto, mesmo que em circunstâncias diferentes, vão entendê-lo exatamente do mesmo jeito. E isso a gente
sabe que não é verdade. Todos nós já vivenciamos situações em que textos literários, ou jurídicos, ou
religiosos, ou noticiosos, ou da conversa cotidiana, foram interpretados diferentemente por pessoas
diferentes. Essa diversidade de interpretações acontece porque cada texto pode ser textualizado de maneiras
diferentes por diferentes ouvintes ou leitores. Por isso é que se tem preferido, atualmente, falar em
textualização.” p. 2-3.
47
transformações dos usos das imagens, por exemplo, nas cartilhas de alfabetização. Essa
perspectiva enriquece e dá base para uma pesquisa desejosa de compreender a história dos
usos das imagens no contexto das metodologias, não só no período de aquisição da leitura
e da escrita, como também nas séries mais avançadas 29 . Em texto publicado em 2003 30 , já
percebia uma forte tendência dos livros didáticos para utilizar uma abundância de imagens
de diversos tipos e funções, suplantando a predominância da função comunicativa dos anos
1970 e acrescentando um aspecto bastante contemporâneo, que é a dimensão estética como
elemento formador do sujeito aprendiz, no mesmo contexto e mesmo suporte em que se
ensinava leitura, produção de texto e conhecimento lingüístico. E, para isso, as imagens,
junto com a literatura, assumem o lugar a partir do qual se pensa e se propõe uma educação
estética.
A seção a seguir apresenta uma parte dos resultados de meus estudos realizados em Paris,
França, no período de bolsa PDEE/CAPES (doutorado sanduíche), 2005-2006, quando tive
a oportunidade de investigar a organização de algumas cartilhas francesas, tanto do ponto
de vista teórico quanto metodológico. Considero a importância deste estudo para a
pesquisa, uma vez que são encontradas muitas semelhanças de estruturação e concepção
entre as cartilhas francesas e as cartilhas brasileiras. Discussões sobre métodos e a
hegemonia, no momento, da proposta de perspectiva fônica nas metodologias para a
aquisição do sistema alfabético de escrita têm sido palco de debates na área da educação e
ocupado espaços da mídia, com declarações definitivas por parte das autoridades
governamentais em território francês, conforme se lê no jornal francês abaixo.
29
Ver estudos de Belmiro, 2000a, 2000b, entre outros.
30
Belmiro, 2003, “Uma educação estética nos livros didáticos de Português”.
48
Também no Brasil este debate tem aberto polêmica tanto na área acadêmica, quanto na
área governamental das políticas públicas voltadas para a alfabetização. Com isso, é
explicitada a hegemonia de uma tendência de teorias anglo-saxônicas, que deseja imprimir
à relação grafema/fonema a essencialidade e a suficiência no domínio da escrita.
Parmegiani (1989) estuda um período de ouro das ilustrações de livros das edições
francesas – de 1860 a 1940 –, cuja relevância fez com que o livro infantil se assumisse
como um gênero de sucesso. O desejo da autora é indicar os motivos do sucesso, as
metamorfoses ocorridas para, enfim, poder justificar as criações atuais. Trata dos editores e
ilustradores como pioneiros de uma trajetória de descolamento da criança da imagem de
pequeno adulto. Para isso, os livros devem adaptar seu enredo e ilustrações às necessidades
da infância, à conformação de seu mundo. Contudo, modelam-se esses sujeitos com
atributos gerais, instituindo-se paradigmas infantis. São livros desejosos de eleger um novo
sentimento de infância, uma utopia de um modo de vida, uma estética dedicada, diz a
escritora, à felicidade. A antropomorfização de bichos realiza, na narrativa para a infância,
histórias e imagens tanto expressivas quanto estéticas, aproximando o mundo encantado
dos bichos dos valores preconizados pelo Ocidente. Portanto, esses livros ilustrados, que se
estruturam paulatinamente em livros de literatura infantil – termo perigoso porque
49
Por sua vez, Le Men (1984) estuda os abecedários franceses ilustrados do século XIX,
explorando as condições e a prática educativas, a aprendizagem técnica da leitura, os temas
das leituras correntes. Apresenta diferentes utilidades da imagem 32 (como memorização,
documento, tornar a aprendizagem agradável, cativar o olhar e evitar a distração etc.), bem
como introduz três tipos de alfabetos ilustrados. Garante a pesquisadora que os alfabetos
ilustrados podem ser considerados a origem de muitos livros de literatura infantil, “que são
ilustrados e semantizados” 33 . Discorre sobre uma pedagogia pela imagem, em que
apresenta os títulos dos abecedários, a noção de imagem pela criança nos abecedários e a
utilidade pedagógica da imagem. A sua observação de que a relação arbitrária da primeira
articulação da língua – som/letra – passa a ser tematizada com a ingerência das imagens –
ilustração, com letras em forma de figura (“lettre figurée”) (fig.3), indica que as imagens
daquele tempo têm uma função análoga às imagens atuais, a de ilustração de uma história e
seus personagens. São letras-imagens fundadas no princípio analógico que vão buscar, no
real, formas de representar o mundo, um sonho da motivação do signo alfabético, arbitrário
por excelência. 34 Por isso, a pesquisadora define o abecedário ilustrado como um gênero
intersemiótico 35 e avança em seus procedimentos de análise, dividindo a combinação do
texto com a imagem em três variantes principais, com numerosas nuances: por
aproximação (“voisinage”), elo semântico e sobreposição imagem/letra.
31
« Il faut donc attendre la grande rupture de la représentation classique pour que l’illustration pour enfants,
après avoir pris conscience de la nature intrinsèque de son publique, trouve enfin les moyens de répondre à
ses besoins ».
32
Le Men (1984 :141-145).
33
A análise que Le Men (1998) faz da obra de Vitor Hugo define um painel da ilustração romântica do
século XIX francês. No capítulo “Ceci tuera cela” (“Isto matará aquilo: O livro matará o edifício”) a
pesquisadora discute sobre a importância da impressão em oposição à arquitetura, no séc. XV, no
deslocamento da arquitetura como arte maior, para analisar as ilustrações nos cartazes, nos livros do séc.
XIX. Para ela, o momento romântico é propício ao aparecimento de ilustradores que refazem, no livro
romântico, a função arquitetônica de decoração, dos frontispícios arquitetônicos. No decorrer do séc.XIX, a
ilustração aparecerá em vários livros, a exemplo do renomado Gustave Doré.
34
Discussão efetivada no capítulo II do livro citado.
35
Idem, p.146.
50
O tema da arbitrariedade do signo versus signo motivado será um aspecto fundamental nos
detalhamentos do estudo de Le Men, considerando a carga semântica da analogia como o
ponto inicial para cumprir o trajeto até o conceito, este abstrato e lógico.
Figura 3
Les abécédaires français ilustres, p.5
Cabe, no caso da pesquisa, indicar as obras de Parmegiani e de Le Men como algumas das
que podem contribuir para a compreensão do aparecimento das imagens ditas infantis, em
situações artificiais, organizadas em leituras para criança em fase de alfabetização, ou para
adultos que lêem para crianças (os interlocutores secundários, mas igualmente importantes)
e, mais ainda, para adultos curiosos com a metamorfose que vive esse período. Considero
importante poder avançar nessas reflexões, lembrando que as imagens, mesmo com traços
do real, não lhe são necessariamente submetidas, cumprindo sua liberdade de linguagem
(sintática e semanticamente) e de discurso (do ponto de vista bakhtiniano).
51
Por outro lado, a dimensão histórica e lingüística dos usos educativos das imagens em
processos de apropriação da escrita deu-me aporte teórico para analisar algumas cartilhas
francesas contemporâneas. Vale lembrar que, sendo a intenção primeira do livro de
alfabetização a utilidade, pois ser útil é servir objetivamente a algum objetivo, e a marca
essencial dos livros de literatura infantil é a perspectiva estética, pois nela a linguagem
reconstrói o mundo, sem a intenção primeira de ensinar, proponho, na pesquisa, reavaliar a
rigidez de análise que não permite trânsito entre esse dois mundos (o educativo e o
estético), e apostar em interferências mútuas de projetos editoriais, projetos educativos,
projetos estéticos, resultando em variadas formas de atividades de linguagem e
plasticidade.
36
Bakhtin, 1998, cap.2.
53
Um dos interesses dessa pesquisa, e cuja tensão tem sido mostrada nos estudos sobre
letramento, é a necessidade de considerar a leitura e a escrita como habilidades e
conhecimentos específicos; isso porque, ao lhes somar habilidades e conhecimentos
específicos para ler imagens, me proponho a aproveitar a discussão acerca do letramento
para compreender as relações de leitura com e entre linguagens.
Da mesma forma, a produção escrita deve expressar capacidades próprias, distintas das
solicitadas pela leitura. Analisando a leitura e a escrita sob a dimensão individual do
letramento, Soares (idem, 68-70) assim define: “leitura é um processo de relacionar
símbolos a unidades de som e é também o processo de construir uma interpretação dos
textos escritos”, utilizando habilidades cognitivas e metacognitivas. E continua: “a escrita é
um processo de relacionar unidades de sons a símbolos escritos e é também um processo
de expressar idéias e organizar o pensamento em língua escrita”. Portanto, ambas se
constituem de habilidades lingüísticas e psicológicas, complementando-se umas às outras.
E também, acrescento eu, mesmo na dimensão individual, constituem-se em habilidades
sócio-culturais na medida em que a construção de interpretações dos textos e a expressão
de idéias se dão balizadas por coordenadas sócio-culturalmente construídas pelos sujeitos,
conformando seus universos de referências.
Soares inclui a habilidade motora – a caligrafia – como uma dentre várias outras
habilidades da escrita. Entretanto, deve-se observar a possível e necessária relação com o
desenho infantil que constitui uma caligrafia que expressa o pensamento da criança ágrafa.
Assim pensando, a caligrafia é mais que uma questão motora, pelo menos, no seu gérmen;
é expressiva e, portanto, estética. Esse traço anterior à aquisição do sistema alfabético e
ortográfico, e que espelha sentidos propostos pela criança, é um traço conceitual, um tipo
específico de material conceitual (e, no caso, talvez até textual) produzido pela criança e
54
que está na base das competências que constituem a “variável ‘contínua’ do letramento”,
utilizando definição de Soares.
A esse modelo de letramento, Street (idem, p. 21) denomina “modelo ideológico”, social e
culturalmente determinado, em que as práticas orais e práticas letradas se constituem como
grandes interfaces.
37
Apud Kleiman,1995, p. 38.
55
Tomando como ponto inicial o letramento individual, o enfoque dado às demandas por
habilidades de leitura de imagens da mídia, hoje, necessita de mais complexidade do que
no passado. A impossibilidade de comparar as estruturas cognitivas exigidas no tempo das
iluminuras, desenhadas à mão, com as estruturas cognitivas das crianças e dos jovens,
demandadas pela computação gráfica, produzida a laser, não é suficiente para finalizar a
discussão sobre as relações imagem x texto verbal. Além do seu caráter formal e
psicológico, o letramento visual também exige uma discussão extensa e profunda a partir
do contexto sócio-histórico e econômico em que se desenvolve. E, para isso, o ponto de
partida é a integração do indivíduo no tempo e no espaço, marcos fundadores da história da
mentalidade do homem.
Opondo-se à idéia do que seja funcionalmente letrado, isto é, o indivíduo que responde
minimamente às solicitações de grupos majoritários da sociedade, Paulo Freire (1983, p.
109) explica sua opção metodológica a respeito da alfabetização de adultos:
O uso das pinturas de Brennand vem confirmar uma importante afirmação de que, mesmo
que não se explorem esteticamente as pinturas retratando as dez situações propostas por
Freire, a exposição dos alunos às obras de arte é um procedimento que exemplifica a
dimensão formadora e ideológica deste modelo de letramento social, eminentemente
política e explicitamente voltada para a transformação social.
56
A presença das imagens nas práticas sociais de leitura e escrita no sistema escolar não é
nova; porém, hoje, a presença intensa da mídia na vida social e, portanto, na vida dos
alunos tem possibilitado questionamentos muitas vezes defensivos, indicando o
conseqüente afastamento do aluno do texto verbal. Essa discussão deve ser restabelecida
por outras vias, a contar com nomes proeminentes como Paulo Freire.
Uma outra abordagem, permitida pela utilização do modelo de letramento social de base
ideológica, supera o dilema (ou falso dilema) do uso das imagens como promotoras de
apagamento da consciência crítica. Na verdade, o que se deve ter em conta são exatamente
os usos sociais das práticas de leitura de imagens. A constatação é de que são os fatores
oriundos da própria cultura e os fatores que determinam o enfoque dado à leitura que
podem contribuir para uma visão mais questionadora das normas, tradições e valores de
práticas socialmente construídas.
As relações nem sempre estáveis entre letramento e alfabetização são analisadas por Soares
(2004), que mostra algumas causas e modalidades do atual fracasso escolar. Uma delas é a
perda da especificidade da alfabetização, exatamente pelo excesso de especificidade. Vale
dizer, “a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico (...) ou
58
seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da aprendizagem da língua escrita”
(p.9). Entre as diversas causas atribuídas a essa perda, como a reorganização do tempo
escolar em ciclos, interessa a esta pesquisa uma delas, a que abre caminho para a
introdução de diversos e diferentes mecanismos da ação pedagógica e que poderá ajudar a
justificar a presença cada vez maior de múltiplas linguagens nos processos de ensino-
aprendizagem da língua escrita: as mudanças de paradigmas teóricos. Cito Soares (idem, p.
9-10):
Justamente nos anos 1960/1970, acontece uma explosão das teorias da comunicação e da
informação e sua absorção nos meios escolares. Sabe-se que desde os anos 1920 o Brasil
produz cinema educativo; que a explosão dos quadrinhos nos anos 60 redimensiona as
leituras proibidas das revistinhas no espaço escolar; e, finalmente, que a TV convive dentro
da escola desde os anos 70 através dos canais UHF e VHF. Portanto, o fluxo de imagens na
escola não é recente, só para permanecer no séc.XX. Pesquisando manuais didáticos do
ensino fundamental, Belmiro (2000a, p. 12) analisa a presença das imagens nos livros
didáticos de Português (LDP) dos anos 1960/1970 e 1990 e sinaliza:
A autora aponta a incorporação de toda sorte de imagens para diferentes práticas de leitura.
Vale a pena interrogar sobre um possível sufocamento, pelas imagens, do texto verbal e,
em contrapartida, de uma total falta de critério no uso de imagens nos materiais
didáticos 38 . Faz lembrar as atuais inclusões nos livros de bulas de remédio, receitas de
38
Sobre imagens nos LDP, ver BELMIRO, 2000a e 2000b.
59
É importante destacar as singularidades que marcam essa entrada das imagens nos anos
1990, em oposição ao paradigma de 1960/70, quando o conteúdo programático voltava-se
para o modelo da teoria da comunicação e da informação, intensificando o estudo do
código e dos mecanismos de decodificação. Um bom exemplo é o livro de alfabetização
“Caminho Suave – Alfabetização pela Imagem”, publicação iniciada nos anos 1970, cuja
perspectiva funcionalista se ajusta bem ao modelo acima citado.
Propondo a reinvenção da alfabetização, com todos os perigos que dela podem decorrer,
Soares (idem, p.14) mantém os elos necessários e indissociáveis entre alfabetização e
letramento, um sendo complemento do outro:
Sendo esses, então, dois processos indissociáveis, a ingerência aí das imagens, seja de
qualquer tipo – gravura, desenho, pintura etc. – propicia uma participação ativa da criança
no seu desenvolvimento da escrita e do letramento, sendo a educação visual uma parte de
60
É bom lembrar, porém, que educação visual não se conforma somente à educação estética;
é a educação que inclui o nosso cotidiano visual, com o qual construímos a significação
para o mundo que nos cerca. A videosfera, ou “era do visual”, proposta por Debret, suscita
uma boa polêmica sobre o nosso tempo tomado por imagens que refletem um modo de
conceber o mundo. Educar o olhar não se restringe a trazer para a sala de aula obras de arte
que se consagraram na história da arte ocidental. A esse aspecto do valor de universalidade
de uma obra, deve-se agregar um olhar que nós, adultos, não construímos quando jovens,
porque não tínhamos certas próteses do olho que nos permitiriam construir algo novo.
mesmo, as imagens, que representavam uma grande força para o entendimento do mundo
na história da Idade Média, perdem prestígio e devem estar longe do processo educativo
pela via do raciocínio lógico. Todavia, os recursos tipográficos – que são ideográficos e,
portanto, imagéticos – permanecem como instrumento de facilitação da leitura, como, por
exemplo, a pontuação separando as sílabas, as palavras, as letras mais grossas para os
títulos, etc.
A novidade do método de Port-Royal (quase dois séculos antes) inaugura uma nova
maneira de alfabetizar: substitui o processo de soletração nomeando as letras e as sílabas,
pela pronúncia imediata dos sons das letras e sua ligação a um conjunto. O século XIX
aprende a adequar, na escola, as regras de análise cartesiana na direção de uma facilitação
e sua conseqüente simplificação para a aprendizagem da leitura. Le Men (idem, p. 120) é
incisiva na afirmativa:
Essa novidade põe em jogo, na verdade, a tensão entre a educação dos colégios cristãos,
que conformava uma criança sem razão, instintiva, e que deveria aprender a ler sob os
princípios da religião, e uma educação laica, cujo fim é em si mesmo, que permite um
aperfeiçoamento do indivíduo e, conseqüentemente, da sociedade. A oposição apresentada
pela autora permite compreender melhor a multiplicidade de formas tipográficas que
auxiliam a leitura, seja no conjunto de letras para produzir somente um som, seja no
tamanho e na forma das letras, seja no apoio visual para distinção das sílabas dentro da
palavra.
Por que, então, o método global favorece o aparecimento de imagens, sejam elas de
qualquer tipo? A explicação de Le Men (idem, p. 138) aponta uma concepção moderna de
língua como um sistema orgânico e, ao mesmo tempo, um novo conceito de criança.
Portanto, prevalece a contextualização, a relação cujos níveis são interdependentes: não
40
“Cette règle herméneutique de l’analyse, qui resume la démarche simplificatrice de l’esprit face au réel
complexe, est en réalité celle de la grammaire, à laquelle le raisonnement des méthodes de lecture préfère la
règle pédagogique opposée et complémentaire de la synthèse, qui reconstitue le réel à partir d’une
combinaison d’unités simples”.
62
existe sentido nas letras e sílabas em si, mas só em relação a palavras inteiras, que são
unidades de significação. A preocupação com o método é dar margem para que se
desenvolvam os mecanismos associativos que facilitem a memorização das unidades de
significação, que são as palavras. A brincadeira, o jogo, a curiosidade estão a serviço da
instrução não fatigante, pois a criança tem dificuldade de fixar a atenção.
As relações que podem ser estabelecidas entre os métodos de leitura e o uso das imagens
mostram como elas são praticadas nos diferentes casos. O comentário da autora esclarece
alguns aspectos, dando importância à progressão das dificuldades na leitura de silabação,
com o intuito de tornar a atividade mais inteligível para o aluno (idem, p. 134-135):
A relação com as imagens, nos processos descritos acima, tende a buscar contextualização,
motivação, prazer, para o trabalho intelectual. E a cartilha de alfabetização construirá uma
direção a priori, determinada pelo método e pelo suporte (não é demais lembrar a
relevância de outros pontos de partida para o domínio da escrita).
Mais do que enfocar métodos, interessa-me, nesse estudo, abrir caminho na direção de
outras questões que são do interesse da pesquisa, explorando aspectos das relações entre
imagem e texto em cartilhas francesas. A utilização dessas cartilhas se justifica pelo papel
desempenhado nos estudos por mim realizados na França e porque suas propostas são
similares, no geral, às de cartilhas brasileiras.
41
“ ... la méthode phonétique s’efforce de motiver l’arbitraire de l’expression écrite du français. Le discours
motivé de l’image renforce cette quête « mimologique », pour employer le terme de Genette. Mais l’image
est là surtout parce qu’elle plaît aux enfants, et parce qu’elle sert une pédagogie du jeu qui veut amuser
l’enfant avant de le raisonner”.
63
a- Ratus et ses amis: méthode de lecture é a cartilha mais usada pelos professores. Sua
proposta pedagógica é apresentada em quatro livros: Méthode, Cahier d’expression 1 e 2,
Cahier de lecture;
b- Abracadalire: méthode de lecture é a mais antiga. Compõe-se de vários documentos:
dois manuais (um para aprendizagem da leitura e outro com páginas consagradas à
descoberta do mundo e à educação artística – pages consacrées à la découverte du monde
et à la education artistique) ; dois cadernos de atividades que correspondem aos dois
manuais, respectivamente; o livro do professor; material coletivo (quadros de grafemas para
o estudo das relações grafo-fonológicas; etiquetas-palavras para a construção de frases;
pôsteres: alfabeto, textos de base das duas primeiras historias); outros instrumentos que os
autores se interessam em preparar: cassete com textos de base lidos por atores etc.; uma
coleção de pequenos álbuns nos quais as crianças reencontrarão os universos das cinco
histórias; testes permitindo avaliar as aquisições das crianças ao fim de cada período;
c- Lire avec Léo et Léa : méthode de lecture é a cartilha mais recente. É composta por
vários livros: Lire avec Léo et Léa: Méthode de lecture; Je lis et l’écris avec Léo et Léa :
cahier d’exercices (CP) ; 14 livrets de Léo et Léa (histórias referentes às lições: os fonemas
e sua aprendizagem); CD-ROM de apresentação do trabalho.
ações com o material proposto no livro, a partir de uma tendência para o método global,
para o chamado método natural, para uma tomada mista clássica e para o método fônico.
Por fim, fazem sua própria proposta de uso.
Vale a pena observar a preocupação dos autores em destacar a importância das imagens no
processo de aprendizagem:
Por outro lado, fica claro que os desenhos estão a serviço da aquisição do sistema de escrita
e que, por isso, sua função é de apoio pedagógico.
Méthode de lecture: A página da esquerda é dividida em duas partes, sendo que a superior
apresenta uma gravura colorida com uma cena dos personagens que compõem a história do
livro (fig.4). As imagens são temáticas. Na metade inferior, segue o texto referente à cena.
Ao longo do livro, a página da direita mostra o personagem principal em alguma atividade,
como que retomando a temática da página da esquerda. A primeira página do livro já
apresenta o modelo de estruturação do manual: uma cena, apresentação do fonema,
diferentes formas de escrita da letra: imprensa maiúscula, imprensa minúscula, bastão e
cursiva.
A forma de apresentação também destaca o lugar da letra na palavra: dentro do boxe não
existe preocupação com a margem, o que poderia dar já uma noção de organização de texto
escrito (pelo menos nessa primeira página), mas destaca a letra em meio às palavras, de
forma que seja a letra a o eixo de organização espacial dentro do quadrado. Ao mesmo
tempo, ao lado e em destaque na cor amarela, estão o verbo e o artigo que serão utilizados
imediatamente nas frases que aparecem na parte de baixo. É uma frase escrita de duas
formas distintas (letra de imprensa minúscula e letra cursiva), apresentando para o aluno,
assim, um conjunto de informações, a saber: a palavra, a letra na palavra, as palavras na
frase, as formas de escrita do fonema em destaque, no caso, a letra “a”.
42
“Dans les exemples cités, on notera que les maîtres s’appuient toujours sur le dessin et sur les aventures des
personnages. C’est une puissante motivation à l’expression orale, qui améne très facilement les enfants à
s’intéresser à l’écrit” (p. 25).
65
Figura 4
Ratus et ses amis, p.8
• 43 “autres mots à partir du dessin: arbre, ballon, sac, nappe, tartine, fromage... Bien faire observer les
deux dessins possibles du « a » minuscule ”.
• “Ne pas confondre le graphème « a » (qui correspond au phonème /a/) à lettre « a », dessin qui peut se
combiner avec d’autres lettres (ai, au, ay, an...) ”.
É notável como, também nas cartilhas francesas, trata-se de conceitos altamente abstratos como se o
professor (e a criança em fase de alfabetização) tivesse facilidade no trânsito de teorias lingüísticas. Por isso,
é relevante a declaração de Bagno (2008, p. 6) sobre a carga teórica de livros brasileiros que, mesmo
reportando-se ao ensino da gramática em livros do segundo segmento do Ensino Fundamental brasileiro,
comporta aproximação com o caso francês.
66
Proposta declaradamente baseada no método global, essa cartilha propõe uma seqüência de
ações na seguinte ordem: escuta, leitura, retenção de uma palavra, colocação da palavra na
estrutura da língua; compreensão oral, visão, escrita, descoberta de frases. É a primeira
cartilha que usa ícones para as ações a serem realizadas pelos alunos. Assim, escutar, ler,
reter, funcionar, etc. são ações apresentadas pelo ícone – um pássaro da história – com
algum objeto nas mãos, como um livro, uma máquina fotográfica, uma chave de fenda.
Esses ícones, consignes, são senhas para os alunos.
44
“Si Abracadalire propose des prolongements thématiques dans diverses disciplines, c’est parce que le CP
se caractérise aussi par la place charnière qu’il occupe au sein du système éducatif. Assurer la liaison avec la
grande section nécessite la prise en compte du fonctionnement interdisciplinaire de l’école maternelle” .
67
Figura 5 Figura 6
Ratus et ses amis, p.16 Ratus et ses amis, p.35
Vale destacar que essa exploração de trabalhos de artistas consagrados junto com os
trabalhos dos estudantes tem sido uma maneira bem contemporânea de reconhecer a
qualidade de expressão dos alunos e tornar pedagógico o trabalho com a arte. Alguns livros
brasileiros também vêm recorrendo a esse expediente, inclusive em níveis de ensino mais
elevados, como o Ensino Médio.
As imagens são enfatizadas nos livrinhos de literatura, separando de forma clássica os usos
pedagógicos da imagem para a aquisição do sistema de escrita de um lado e, de outro, das
imagens junto ao texto literário.
68
Figura 7
Léo et Léa, p.16 e 17
Tanto na leitura como na escrita, o uso pedagógico da imagem como simples representação
do real vem facilitando a entrada do aluno na arbitrariedade do signo verbal. Vistas por
esse ângulo, as imagens criam interlocuções com a oralidade e com o domínio do sistema
de escrita, ora substituindo um, ora substituindo outro (oral ou escrito), dependendo do
aspecto (ler ou escrever) no qual é dada a ênfase. Dessa forma, nesse primeiro nível de
linguagem, as figuras apresentadas ao aluno valem, ou como unidade fonética, ou como
unidade gráfica, vinculando seu uso à sua relação com o código verbal. Deve-se lembrar
que o conceito de imagem vale tanto para a figura, como para o uso tipográfico das letras
que ajudam a sua legibilidade.
70
Proponho, então, nomear esses dois grupos pela relevância de suas funções: 1°- relação
com o sistema fonológico; 2°- relação com o sistema semântico-discursivo.
A palavra desenhada não é o traço das letras, mas a representação visual do objeto. A
solicitação para que o aluno coloque um artigo antes do desenho mostra o caráter de apoio
dado ao desenho. Este substitui a palavra e vale por ela, e não pelo desenho mesmo. O
enunciado do exercício diz “palavra desenhada” (mot dessiné), o que equivale a dizer que a
imagem cobre totalmente a relação significante/significado do signo verbal, assumindo, na
proposta dos autores, as prerrogativas do signo verbal e suas características morfológicas.
Por isso, a solicitação do gênero masculino não leva em conta que não é a imagem que tem
gênero, mas o nome do objeto que a imagem representa.
71
Figura 8
Ratus et ses amis, p.4
Figura 9
Ratus et ses amis, p.49
O ditado mudo utiliza o desenho como uma ponte da fala do professor, é uma imagem que
retoma uma oralidade implícita nos processos de nomeação do mundo, recuperando na
memória auditiva, e exercendo na escrita, a capacidade de nomeação do mundo: primeiro,
vemos; depois, nomeamos e, por fim, escrevemos o nome. Essas figuras, portanto,
significam associando-se aos sons da língua. O exercício faz, então, uma analogia à dupla
articulação da língua (nível fonológico e nível semântico), e a imagem assume um papel de
signo completo. Este exercício difere de 1.3, uma vez que lá a atividade é de oralização da
imagem/palavra.
Figura 10
Léo et Léa, p.70
A posição da imagem em relação à palavra é bem significativa, uma vez que sua função é
de ilustração da palavra. Uma imagem tem o valor de uma palavra. Estabelece-se, aqui,
uma ponte com o conceito de signo saussuriano, sendo a palavra, o significante, e a
imagem, o significado. De uma maneira geral, as cartilhas que usam esse tipo de exercício
se apropriam do conceito clássico de representação visual como semelhança com o real,
abolindo qualquer hipótese de a imagem poder tratar de outras dimensões, além de uma
suposta cópia do real. Uma apresentação sobre alguns problemas da representação será
feita em capítulo posterior, mas importa aqui lembrar a conformação arbitrária e
universalizante que é imposta à imagem, explicitando um olhar pressuposto para um
objeto. Foucault apresenta uma longa discussão sobre esse conceito no seu livro Ceci n’est
pas une pipe (Isto não é um cachimbo). Para esse autor, a semelhança difere da similitude,
uma vez que aquela constrói a representação, enquanto que a similitude a desconstrói,
oferecendo uma multiplicidade de variáveis de sentido, na medida da sua repetição. A
maioria dos manuais didáticos para alfabetização não faz destaque para a hipótese da
diferença, já que sua preocupação é com o ensino da regularidade do sistema. Essa
abordagem pedagógica que opera com a idéia de transparência do signo icônico é afeita
aos princípios lingüísticos de homogeneidade e de estrutura, o que engessa o diálogo
74
Assim, a imagem, tomada como figura, se aproxima da palavra, se sobrepõe a ela, ou lhe
acompanha, para facilitação da apreensão do sistema lingüístico.
46
“Cette thèse apparentement limpide souleve cependant plus de difficultés qu’elle n’en résout, dans la
mesure où elle interprète la relation de représentation, qui est d’ordre logique (sur le mode du valoir-pour),
comme une relation de ressemblance, qui est d’ordre perceptual (sur le mode de l’être-comme), la relation
sémiologique entre l’image et son référent étant confondue avec le « rapport visible » qui les unit”.
75
disposição de aprender. São os casos das páginas 9 e 11 (figs.11 e 12), em que o desenho
representa o diálogo entre a protagonista e o pássaro. Ou, como na p. 9, na seção “Eu faço
funcionar” (Je fais fonctionner), a protagonista está de costas para a atividade que o menino
realiza, como que aguardando o fim da tarefa. O desenho não acrescenta nada à informação
da frase, plasmando um real ficcional do mundo infantil.
Figura 11 Figura 12
Abracadalire, p.9 Abracadalire, p.11
Por outro lado, uma função interessante é a de indicar para o leitor-mirim o que ele deve
fazer. Na p. 80 (fig.13), na seção “Eu entendo” (J’entends), as ilustrações servem mais para
pedir atenção à audição das palavras; por isso, uma menina tocando piano, um rapaz
tocando flauta. Fora isso, a situação permanece aleatória à situação.
76
Figura 13
Abracadalire, p.80
Na primeira lição, a imagem ocupa a meia página superior da folha e é nela que está a
significação. O texto-legenda ocupa duas linhas, nomeando os personagens.
Progressivamente, o texto vai tomando espaço e construindo história, dividindo com a
77
Figura 14
Ratus et ses amis, p.48
O texto é uma narrativa com diálogo. Como nas demais lições, a imagem conta toda a
história, explicitando, dessa forma, sua natureza discursiva e sua capacidade narrativa.
Ainda nessa página, a narrativa está no passado, até a etapa final da história, que está sendo
apresentada na imagem.
Figura 15
Ratus et ses amis, p.60
Figura 16
Ratus et ses amis, Caderno de leitura, p.8
79
Parte do centro (onde estão as imagens) para as laterais (onde estão as palavras que devem
ser identificadas). Dessa forma, aproveitam-se novas possibilidades de agrupar os
elementos e concentra-se no centro da página a orientação do olhar, daí propondo um
deslocamento para a direita e para a esquerda, em busca das palavras que melhor se
adequam ao enunciado do exercício. Essa outra organização de formas, seja figura ou letra,
permite redirecionar o olhar e a atenção e deslocar a linearidade da leitura alfabética para
uma leitura que inclui a espacialidade como elemento fundamental na proposição dos
sentidos.
Esse uso da espacialidade permite atrair o conceito de superfície e fazer dele um meio de
compreender o “pensamento da tela” (la pensée de l’écran), que Christin (1995, p. 6)
define para ampliar a noção de imagem como figura + superfície. Discorrendo sobre este
pensamento, ela afirma que “ele procede por interrogação visual de uma superfície a fim de
deduzir as relações existentes entre os traços que aí se observam e, eventualmente, seu
sistema” 47 . E segue apontando a presença importante de
seu suporte que permitiu conceber essas figuras como signos, e signos
suficientemente ambíguos e dominantes para que não os interroguemos
somente em termos de significação mas associando-os igualmente, como
a um sistema de um outro tipo, aos sons da língua 48 .
Assim, essa proposta reúne figura e palavra através de um processo associativo facilitado
pelo tipo de representação que a metodologia do livro didático escolheu. Esse assunto será
aprofundado nos capítulos seguintes, quando tratarei dos sistemas de escrita.
47
“Elle procède par interrogation visuelle d’une surface afin de déduire les relations existant entre les traces
que l’on y observe et, éventuellement, leur système”.
48
“leur support qui a permis de concevoir ces figures comme des signes, et des signes suffisamment ambigus
et prégnants pour que l’on ne les interroge pas seulement en termes de signification mais en les associant
également, comme à un système d’un autre type, aux sons de la langue”.
80
Figura 17 Figura 18
Ratus et ses amis, p.48 - detalhe Ratus et ses amis, p.56 - detalhe
Uma questão para pensar é saber que fato importante há (se é que há) na permissão para
colorir, uma vez que, no Manual de Leitura, essa gravura já vem, de antemão, colorida.
Qual é o objetivo pedagógico dessa sugestão? Frente a um projeto didático tão ordenado e
controlado, a tentação do aluno para copiar as cores é forte e isso o defende e o protege de
uma possível desaprovação por iniciativas individuais. Dessa forma, dificilmente o aluno se
lançará para a criação. Esse exercício é um exemplo explícito da presença da instituição
Escola em atividades aparentemente livres dos alunos.
81
Figura 19
Ratus et ses amis, p.48 e detalhe
Figura 20
Ratus et ses amis, p.52 e detalhe
82
Figura 21
Livro Abracadalire – p.80 e 81
83
De qualquer forma, cabe fazer aqui algumas observações em relação a certas atividades: na
p. 11, no início do livro (fig. 22), a evidente preocupação com o desenvolvimento motor do
aluno transgride uma questão de lógica: em primeiro lugar, a bola roda objetivamente na
direção oposta ao movimento desenhado no livro, que é o do lápis que vai
escrever/desenhar a letra a.
Figura 22
Abracadalire – p.11
O desenho da bola redonda quer dar relevo à forma, reunindo as letras que fazem o
movimento na mesma direção. Por isso, as letras d,q,g,o,e,c,e,x são apresentadas aos alunos
sem outra motivação que não seja a direção do movimento do lápis. Dar a uma técnica o
sentido da escrita é artificial e não ajuda a compreensão infantil, já que essas letras ainda
não são do conhecimento da criança.
II.7 Ícone
Na cartilha Léo et Léa, o ícone da p. 1 (fig. 23) orienta o que fazer nas tarefas. No caso,
serve de ligação entre as letras: as vogais a, o, e, mais a letra L. Nenhuma presença nem
uso de imagens que pertençam a um sistema de significação. Também a cartilha
Abracadalire é plena desses ícones (ver, como exemplo, fig. 22). Nos dias atuais, tanto no
Brasil quanto na França, é vasto o uso de ícones nos livros didáticos, inclusive no Ensino
Fundamental, numa demonstração da presença disseminada de figuras e imagens que
povoam o universo infanto-juvenil.
84
Figura 23
Léo et Lea – p.1
Figura 24
Léo et Lea , p.2 e detalhe
Figura 25
Léo et Lea , p.42
86
A seqüência do exercício sugere que os alunos olhem, leiam, escrevam e ilustrem imagem
e texto, de forma alternada. A ordem em que aparecem as ações do enunciado também é
significativa: primeiro, olhar; depois, ler; em seguida, escrever e, por último, a ilustração
como atividade lúdica. Nessa medida, olhar, para os autores, tem duas direções: uma, como
forma de reconhecimento, no sistema de representação cultural do aluno, de um objeto de
seu mundo e, outra, como o primeiro movimento na direção do reconhecimento das letras,
do texto que será lido. No espaço do livro, o projeto gráfico posiciona a imagem à
esquerda, seguida do texto à direita, indicando, assim, a direção final do aprendizado, que é
o texto escrito; no espaço da representação, o texto exerce uma função dêitica, isto é,
designa, aponta, dentro do modelo imagem/texto, a sua referência, a imagem. A dêixis é
que vai permitir, pela linguagem que designa, mostrar o objeto. Retomando a análise sobre
o quadro de Magritte, Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), o paradoxo entre
o que a imagem mostra (um cachimbo) e o que o texto diz (isto não é um cachimbo) é
apontado por Foucault pela intencionalidade do pintor de desvelar a soberania de um real
ideal, solidamente amarrado num espaço escolar 49 . Para alguns teóricos, o valor de
existência da imagem depende da capacidade de ela poder ser referida no mundo da
linguagem, isto é, poder ser dita. Esse é o viés da maioria das propostas de alfabetização,
que utilizam a imagem na direção dos processos de aquisição da escrita. Essa questão
também foi amplamente abordada por Roland Barthes 50 , quando situa o princípio de
designação inerente à fotografia, quer dizer, sua qualidade de mostrar a força da presença
do real que adere na foto: o “eis aí”.
Na cartilha Ratus et ses amis, ampliando as atividades para a aprendizagem do fonema /gn
/, na p.53 do Caderno de Leitura (Cahier de Lecture) (fig.26 e detalhe), a atividade
apresenta uma pequena narração e, ao lado, três enquadramentos em que são reproduzidas
cenas para que o aluno identifique a que está de acordo com a narrativa. Difere e amplia a
proposta da cartilha Léo et Léa, de forma bem significativa. Enquanto em Léo et Léa
49
1981, p. 43.
50
BARTHES, Roland. A Câmara clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
87
dispõe-se a ler narrativas sem imagem, restringindo seu uso ao texto descritivo, em Ratus et
ses amis ela está a serviço da história e a explicita.
Figura 26
Ratus et ses amis, p.53 e detalhe
Todavia, o exercício também prepara o aluno que se alfabetiza para entrar no mundo
ritualizado da aprendizagem, em que entender o enunciado da atividade para realizá-la é
condição de escolarização. Essa atividade é um exercício de compreensão do texto, com
resposta de reconhecimento das informações através da escolha de imagem: escolher a cena
certa entre três possíveis é um exercício de múltipla escolha. Finalmente, colorir o desenho
é o espaço de participação lúdica do aluno. Embora a cartilha Abracadalire use a imagem
como cenário, tal qual o item anterior, aqui há uma pequena variação, uma vez que seu uso
é mais decorativo (p. 8), (fig.27) como uma ilustração do texto, não fazendo da imagem
uma forma de entrada na história, como em Ratus. Por isso mesmo, diferentemente de
Ratus, o texto é disposto primeiramente na página, para ser seguido pela ilustração. Embora
ocupe um grande espaço na página, a imagem é mais lúdica e decorativa. Também na p. 9,
(ver fig. 11) a imagem funciona como uma ilustração do diálogo entre Lucie e o pássaro.
88
Figura 27
Abracadalire, p.8
Figura 28
Abracadalire, p.63
89
Pensando nos dias de hoje, pode-se supor que essa seja uma forma revolucionária das
relações texto-imagem para a juventude e para a infância, em que a narrativa é apresentada
de forma mista, com duas linguagens complementares. Caberia averiguar a eficiência desse
tipo de texto para o processo de alfabetização, no conjunto com as demais atividades. De
qualquer forma, a contextualização proposta por essa narrativa para o estudo do fonema da
unidade apresenta novas formas de leitura, sejam elas oblíquas, implícitas, pressupostas,
podendo reaproximar as duas linguagens – visual e verbal - por um viés até então não
enfatizado pela racionalidade da escrita alfabética. Assim, essa proposta transforma a
imagem em texto também.
Cada cartilha toma direção teórica específica e, conseqüentemente, define uma metodologia
própria. Abracadalire se apropria das relações grafema/fonema, mas se fundamenta também
nas diretrizes do método global, com a tomada fotográfica da palavra, das imagens. Um
aspecto que chama a atenção é os autores se interessarem por desenvolver na criança, já na
fase de alfabetização, procedimentos estéticos próprios da visualidade, que vão além da
ludicidade tão explorada nessa fase. Nas seções onde “não se ensina a escrever”, as fases
sugeridas ao professor vão desde a feitura de um desenho pela criança à exploração de
características técnicas (um código de visualidade) – como a relação forma x fundo, a
silhueta, as cores, a divisão do enquadramento –, que resultam em categorias estéticas,
como o deslocamento de uma representação realista do objeto para uma irrealidade
proposta na sintaxe visual, o conceito de grafismo etc. (fig.29,30,31,32,33,34,35,36,37).
90
Figura 29
Abracadalire, p.16 , papel manteiga, p. 17
Figura 30 Figura 31
Abracadalire, p.16 Abracadalire, papel manteiga
91
Figura 32 Figura 33
Abracadalire, papel manteiga Abracadalire, papel manteiga
Figura 34
Abracadalire, papel manteiga
Figura 35
Abracadalire, papel manteiga
92
Figura 36
Abracadalire, papel manteiga
Figura 37
Abracadalire, papel manteiga, p.17
expressão artística do seu semelhante para melhor desenvolver a sua própria expressão e a
escrever o mundo a seu modo, por imagens. Pergunta-se, então, sobre as injunções de um
projeto pedagógico que deseja alfabetizar no sentido estrito, isto é, domínio do código
escrito, e, ao mesmo tempo, alfabetizar visualmente. É um livro de linguagem ou de
língua? Ou é um livro de língua e linguagem? Em que medida essa proposta facilita ao
aluno compreender o mundo e que, por outro lado, pode criar obstáculos para o professor
em relação ao entendimento de uma metodologia clara e precisa? É de interesse desse
manual tratar a imagem como um recurso dos processos alfabetizadores, ou a imagem é,
por si, o discurso visual pelo qual a criança aprende a se constituir? É um conteúdo a
aprender?
Figura 38
Léo et Léa, p.72
94
De qualquer forma, vale lembrar a afirmação de Le Men (1984, p. 175), nos seus estudos
sobre o abecedário ilustrado, de forma a relativizar a impossibilidade de convivência entre
imagem e palavra no ambiente alfabetizador.
O que significa que, para escolher um método, não é preciso eliminar as cores, as imagens,
as propriedades relacionais que as imagens propõem. Interessante observar esse jogo de
posições da imagem: ora como significante, ora como significado, ora como signo
completo para ser lido pela criança. Por isso mesmo, os jogos de linguagem dos quais os
projetos pedagógicos se apropriam mesclam freqüentemente as ordens de entrada das
linguagens, seja visual, seja verbal, como que uma traduzindo a outra, uma explicando a
outra, uma servindo de apoio para o conhecimento da outra. De qualquer forma, é sempre
claro que o ponto de chegada é o conhecimento do código escrito.
Nesse ponto, pode-se pensar uma terceira questão, que servirá de base para o
prosseguimento da pesquisa. Que relações entre imagem e texto verbal são propostas em
materiais escolares, a partir da natureza de sua constituição? Os estudos de Christin (1995)
buscam, nas origens da escrita, justificativas para entender a lógica constitutiva da escrita
ocidental, na relação com outros sistemas de escrita que lhe são até mesmo antagônicos,
caso da escrita ideogrâmica chinesa. A presença gráfica é o eixo sobre o qual Christin
incidirá suas reflexões e a partir do qual reconhecerá outros modos de expressão escrita.
Analisando pesquisas sobre os pictogramas 52 , vê uma confirmação de que eles “não
51
“Si l’image de l’abécédaire illustré est un auxiliaire de la méthode analytique puisqu’elle conduit au mot
qui sert de relais pour mettre en évidence le son de chaque lettre, elle indique aussi, par l’importance conférée
au mot, le principe de la méthode global ou synthétique et, dans la mesure où le mot peut être développé par
un texte plus long, oriente l’abécédaire vers la lecture courante”.
52
Christin, 1995, p. 42.
95
serviam de ligação entre ‘as coisas’ e ‘as palavras’, nem entre a realidade e a escrita.”
Havia, na verdade, na sua notação, já uma análise sintagmática. Além disso, mostra que o
importante é que, na aparência de figuras que indicavam seu pertencimento ao mundo dos
ícones, os pictogramas significavam outra coisa, como é, por exemplo, uma placa com a
figura de uma bicicleta coberta por um xis: não é sinal da ausência do objeto (como seria a
natureza do signo), mas de uma ordem, uma interdição. Mais que uma ausência, eles
indicam um sentido, mesmo nos dias atuais. A absorção dos pictogramas pelos ideogramas
é sentida na escrita egípcia dos faraós: tornados signos verbais, vê-se, na sua constituição,
o produto dessas imagens absorvidas (1995, p. 42):
Aqui, portanto, está o cerne dessa história ambígua e aparentemente polarizada das
relações imagem e palavra. Explica a autora que a leitura desses pictogramas não seria um
deciframento, nem a tradução verbal desses textos, mas uma outra forma que utilizasse as
figuras para sugerir, inspirar o leitor na sua leitura criativa, diferentemente da nossa
concepção de leitura que pretende extrair um sentido do texto. Para o “texto” pictográfico,
diz Christin, a “palavra-que-é-leitura” não se apresenta jamais como um comentário do
visível, ela é uma retomada, um encadeamento, um prosseguimento dele. Oposta ao uso de
que faz o Ocidente, quando falar da arte tornou-se uma norma, esse comportamento, típico
das sociedades orais, sinaliza a alternância enunciativa que lhe é típica. Significa, portanto,
integrar a imagem a uma concepção aberta da palavra, num evento enunciativo vivo, que
se dá na oralidade. O dinamismo das relações entre essas linguagens e a importância de
diferenciar essa relação não só por palavras, mas por frases, determinam, por exemplo, que
uma imagem-palavra, associada a duas ou mais conotações, passe à imagem-sintagma.
Essa perspectiva, encontrada modernamente, por exemplo, no cinema eisensteiniano que
aproveitou para criar seu conceito de montagem, e que a linguagem do vídeo chama de
edição, posteriormente pôde ser superada, dando à imagem ela mesma o poder de conotar.
É o caso de fotografias que trazem nelas próprias um conteúdo que vai além do descritivo,
conotando o significado imediato. Caso, por exemplo, de fotografias de Sebastião Salgado
53
“Certes, la complexe architecture syntactique de l’écriture proprement dite est absente du stade
pictographique, mais ces figures, loin d’adhérer aux choses ou au réel, sont en fait l’amorce originale d’une
verbalisation des images, c’est-à-dire d’une lecture”.
96
Isso significa que essa aderência da palavra lhe permite penetrar surdamente no mundo dos
signos, para explicar-lhes os sentidos ou possibilitar uma interlocução sígnica capaz de
constituição dos sentidos. Vale lembrar que essa nova formação sígnica pode, hoje, nos
ajudar a compreender certos gêneros do discurso e suportes textuais inimagináveis e que se
concretizam em orkut, site, ou na literatura visual.
54
Apud Guimarães, 1997, p. 77.
55
Cap. VII, “A imagem escrita”, 1997, p. 193-231.
97
Essa imagem pura é obtida – e aí reside seu gesto inovador – por meio de
uma escrita que modifica o fazer cinematográfico no seu interior mesmo,
e que nos permite inverter a fórmula que Dominique Nogues encontra
para Duras: não o “cinema da literatura”, mas a “escrita do cinema” (Do
mesmo modo, também podemos modificar a fórmula de Serge Daney:
não mais o que ver na imagem, e sim o que ler na imagem).
Para Marguerite Duras, a legibilidade no cinema pode estar aproximada “da escritura, mas
de ‘escritura em voz alta’ (segundo a expressão de Roland Barthes), tal o privilégio dado à
voz, desgarrada da imagem, autônoma, mostrando o que o olho não vê” (p. 196). É o
mesmo que dizer a “escuta da imagem recitada” (p. 198), para observar a possibilidade
mesma de a imagem ser lida, independente do texto literário que a acompanha.
limitação descritiva da imagem, a imagem ilustração como uma categoria que melhor
definiria sua presença nos livros didáticos, ou a crença de que os livros didáticos de
português se limitam a ensinar a língua portuguesa e seus discursos decorrentes. Dessa
forma, o movimento desta pesquisa é considerar pressupostos pedagógicos, mas ir ao
encontro de instâncias e níveis discursivos mais abrangentes; também enfatizar a
estranheza que poderia (ou deveria) causar essa presença num contexto essencialmente
lingüístico, em que a questão semiótica é muitas vezes sublimada, seja por descuido, por
excesso de atenção ao objeto de ensino, seja por desconhecimento, ou mesmo pelo fato de
que o objetivo primordial contido nesse suporte é a aprendizagem da escrita. Há inúmeras
pesquisas, por exemplo, sobre a importância do desenho nos processos de aquisição da
escrita. Muitas delas tomam por base estudos em arte-educação, ou estudos sobre a
psicogênese da escrita, ou abordam um diálogo entre a psicanálise e a educação; de
qualquer forma, é evidente que não se tem uma única linha a respeito de qual a abordagem
mais adequada ou mesmo mais reveladora das múltiplas conexões entre imagem e escrita.
Tenho clara, entretanto, a finalidade de enfocar a pesquisa nas interações possíveis entre
imagem e escrita, ampliando o contexto de ação no âmbito da cultura.
Em seu estudo sobre Fenollosa, Haroldo de Campos (2000) mergulha nos estudos da
linguagem, de corte lingüístico, apoiando-se especialmente nos estudos de Saussure.
Mostra também que a passagem para a semiótica permite que se estudem os signos do
ponto de vista da sua iconicidade, isto é, da percepção, da sua similaridade com o real,
“embora essa ‘qualidade representativa’ possa não decorrer de imitação servil, mas de
diferenciadas configurações” ( p.48), e do seu gradativo afastamento da similaridade à
convencionalidade.
99
Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três
aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém;
como palavra alheia dos outros, cheia de ecos dos outros enunciados; e,
por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela
em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada,
ela já está compenetrada da minha expressão.
Bakhtin sustenta enfaticamente que nos dois aspectos finais a expressividade da palavra
não pertence à própria palavra, mas nasce no ponto de contato da palavra com a realidade
concreta e nas condições reais de enunciação que se realizam pelo enunciado individual.
Além disso, a palavra denuncia a posição valorativa do homem individual investido de
autoridade.
56
Vale a pena retomar as discussões acerca da palavra como ferramenta do pensamento, posição que enfatiza
o caráter cognitivista de abordagem sobre a linguagem, em contraposição à perspectiva bakhtiniana da
palavra como instrumento da consciência, esta de natureza social, determinada pelas tensões próprias da
comunicação discursiva.
101
de apenas um dos aspectos apontados por Bakhtin limita a pluralidade das ações
pedagógicas, fixando a aprendizagem, ora nos seus aspectos neutros não pertencentes a
ninguém, voltados para a estruturação do sistema lingüístico, ora intensificando a
tendência a ver na comunicação discursiva apenas a expressão da palavra minha,
perdendo-se a dimensão da interação que constitui a linguagem. Vale lembrar que, para
Bakhtin ( p.295), a expressividade de determinadas palavras “não é uma propriedade da
própria palavra como unidade da língua e não decorre imediatamente do significado dessas
palavras; essa expressão ou é uma expressão típica de um gênero, ou um eco de uma
expressão individual alheia...”
Outro conceito caro a Bakhtin é o de “comunidade semiótica” (2004, p. 46), a que utiliza
um único e mesmo código ideológico de comunicação. E ele avisa que não se deve
confundir comunidade semiótica com classe social, posto que o peso das tensões do
sentido situa-se a partir da plurivalência social do signo ideológico. Por isso o signo é a
arena das lutas de construção de sentidos possíveis e realizáveis. Pensar a constituição de
uma comunidade de falantes a partir da utilização de signos significa aceitar que diferentes
formas de comunicação (artística, religiosa etc.) constituem uma tendência em estabilizar o
signo, por si volátil, fluido, arisco. Essa é a dialética interna do signo. É o que se pode
perceber com metodologias de aprendizagem da língua escrita que tendem a apagar essa
tensão, sugerem a morte da dialética e a permanência do metafísico e da imanência,
102
fazendo com que a comunidade à qual freqüentemente nos referimos seja a comunidade
que idealizamos, nem sempre concretamente existente.
○ 3○
A Linguagem, as Imagens e a Construção da Subjetividade
Manoel de Barros
O interesse deste texto é explicitar alguns marcos teóricos que singularizam modelos de
construção do conhecimento e os sujeitos neles postos; além disso, há o empenho em
propor algumas questões que estão no interior de suas estruturas e discutir o sentido de
subjetividade que ampara tais modelos. Assim, as relações entre imagem e texto verbal
podem se apresentar de forma renovada e tomar corpo no contexto das produções
artísticas, bem como nos processos pedagógicos que assimilam essas linguagens. A direção
investigativa é no sentido de constituir categorias que possam fundamentar as análises do
material de pesquisa que desenvolverei adiante. Para tanto, historicizo previamente alguns
pontos relevantes dessas relações que deflagram uma cisão radical nos modos tradicionais
de conhecer, cuja estética explicita a marca de um certo olhar sobre o mundo, como a
pintura, a fotografia, a literatura. Dessa forma, acredito poder facilitar a reflexão sobre
algumas das questões posteriores a respeito das relações imagem e texto verbal em
ambientes escolares, seja do ponto de vista estético, seja do pedagógico.
104
A modernidade criou novos rumos para o homem se pensar e pensar as coisas deste
mundo, a partir de um conjunto de parâmetros que, sob diversos pontos de vista, poderia
orientar essa construção lenta e sólida de uma certa humanidade. A Filosofia e a
Matemática, por exemplo, vieram, desde a Renascença, apontando caminhos que
definiriam posteriormente uma oposição à superstição, à fé, à tradição, tão ao gosto
medieval, e que auxiliaram na construção do pensamento racional e crítico da ciência, com
ênfase nos séculos XVII e XVIII.
As artes se apropriaram dessa lógica de organização e desse ponto de vista sobre o mundo
e para ele devolveram um olhar que o espelha, a exemplo da perspectiva renascentista: fora
do quadro, o artista tudo vê e é ele quem delimita o cenário; os objetos são organizados na
tela a partir de um fundo que origina e orienta o olhar na direção de um ponto de fuga, isto
é, um ponto infinito que capta a atenção do nosso olho e para onde tudo converge. Esse
olho da arte pictórica é o de uma perspectiva centrada no homem e para ele voltada. O
ponto de fuga é um bom tema para exemplificar o arranjo dado pelas artes e pela ciência ao
novo contexto epistemológico. A proporcionalidade das formas dos objetos está presa às
relações entre os objetos, e todas as retas imaginárias presentes na imagem convergem para
um mesmo ponto, conduzindo o olhar do espectador para a mesma direção proposta pelo
ponto de vista do artista. Essa construção, medida matematicamente, dá a base para a
coerência interna do espaço. O modelo de visualidade se definirá a partir desse conjunto de
conhecimentos em torno do século XV, consonante com o paradigma da racionalidade que
o sistema estruturador do conhecimento oferece. Além desses aspectos, os meios técnicos e
o desenvolvimento da ciência, propiciados pela revolução industrial, fariam da relação
entre a pintura e a fotografia, já no século XIX, um tema profícuo para o debate acerca da
origem da criação ótica e seu compromisso com a realidade.
grandes pintores desse período. Numa monumental pesquisa sobre o uso de espelhos e
lentes na criação plástica da história da pintura ocidental, Hockney (2001) analisa
exaustivamente uma grande variedade de pinturas nas quais denuncia o uso de ferramentas
óticas já a partir da Renascença. Num quadro comparativo, Hockney (2001, p. 17) aponta
uma série de indícios que confirmam a presença de estudos óticos: “Tudo o que estou
dizendo é que, bem antes do séc.XVII, quando acreditamos que Vermeer estivesse usando
uma câmara escura, os artistas dispunham de uma ferramenta e a utilizavam de forma antes
desconhecida pela história da arte”. Em sua pesquisa documental, o autor sinaliza a
primeira referência à câmara escura com uma lente, realizada por Girolano Cardano, em
1550. Além disso, recupera documentos que provam que o conhecimento ótico foi
secretamente guardado por estudiosos receosos do peso da Inquisição. Mesmo trezentos
anos antes dela, a Igreja mantinha sob controle Roger Bacon (1212-1294), cujas idéias
eram consideradas perigosas. Algumas das análises de Hockney são bastante elucidativas:
Vale a pena, mesmo que extensa, conhecer as observações feitas por Hockney a respeito da
obra do pintor Hans Holbein (p.56-57):
Essas são observações fundamentais, entre muitas outras (como o quadro de Van Eyk de
1434, o Casamento dos Arnolfini), que indicam um caminho que já vinha sendo traçado
106
pelo homem e resulta, ao fim, de uma nova construção do homem e seus valores, do
homem e sua consciência, do homem e a natureza.
A Era Moderna do séc. XVI propõe um certo modelo teórico de concepção de mundo. Os
grandes descobrimentos, por exemplo, ampliam os horizontes do homem ocidental para
outros e novos espaços e passam a necessitar de que se pense geograficamente o mundo,
isto é, obrigam-no a tomar uma posição intelectual em relação ao que o circunda. Não
somente um novo constructo teórico está sendo postulado e concretizado, mas também
uma nova compreensão do mundo e dos homens é solicitada. As experiências das grandes
navegações produzem uma notória mudança de enfoque dos homens dessa época: os
mapas foram refeitos a partir de um outro referencial de localização, distância, tamanho,
proporção, vale dizer, um reposicionamento mental para designar-se, em relação aos
outros, no espaço. Os pontos cardeais como referência e os mapas, portanto, eram
desenhados sem uma base comum: o norte e o sul, por exemplo, não tinham a obrigação de
estar, respectivamente, em cima ou embaixo no mapa. Olson (1997, p. 222) sinaliza:
Por outro lado, as atuais imagens via satélite nada mais são do que o retrato da
impossibilidade humana de alcançar, com a extensão física de seu campo visual, as
imagens propostas. A distância degenera o entendimento tradicional do homem, mas lhe
adianta uma experiência visual renovada em relação aos objetos do mundo virtual.
Outro importante fato que marca essa mudança de rota é a expressão estética produzida
pela arte no século XVII: com os contornos sociais e políticos da época exigindo a
assunção pelo homem de novos papéis sociais, o retrato toma conta da pintura holandesa,
tendência de arte que se interessa por mostrar os homens e seus papéis sociais, os homens e
seu cotidiano, os homens e suas relações de e com o poder. Rembrandt é o símbolo maior
de uma expressão realista que pretende ser crítica em relação ao seu tempo.
O caráter científico do racionalismo moderno toma por base, entre outros, os princípios
matemáticos da clareza, exatidão, unicidade, imutabilidade, para a concretização da
verdade universal comum a todos. O pensamento filosófico cartesiano é símbolo dessa
perspectiva universalizante, numa época de uma Europa necessitada de um consenso em
que se devem apoiar os indivíduos que lutam por causas religiosas, políticas, para afirmar
seu caráter nacional. Pessanha (1997, p. 26) discute a direção dada por Descartes na
construção do modelo matemático da trama da verdade lógica e absoluta, optando por uma
racionalidade que impediu, de certa maneira e a longo prazo, a discussão que hoje se faz
sobre a capacidade e a importância da linguagem natural como um sistema aberto,
histórico, concreto:
57
Rouanet (1993) faz uma consistente análise sobre o assunto.
108
Quando Descartes fez aquela ruptura, estava abrindo mão de uma coisa
muito séria. Estava abrindo mão daquilo que o Renascimento chamava
de Humanidade, aquilo que daria ao homem a dimensão humana do
próprio homem: a sua capacidade de falar, usar essa linguagem que
estamos usando e com ela persuadir, conquistar, seduzir, comandar,
dirigir, subjugar os outros.
A direção certa da educação era não só a ignorância, mas o que dela adviria, a cegueira do
obscurantismo, considerado por muitos como um elo ao encantamento servil da
humanidade. Portanto, a idéia de desencantamento do mundo é marcada por fortes cores
anti-religiosas e por um ideal filosófico de emancipação dos preconceitos. Os três pilares
da modernidade – a universalidade, a individualidade e a autonomia – estão sendo
edificados e serão consolidados nos séculos seguintes. Por isso mesmo, os teóricos da pós-
109
O positivismo do século XIX, tanto na filosofia quanto na ciência, explica a evolução das
espécies fazendo uso da linearidade temporal como categoria de base. Seu tempo histórico
e sua área de conhecimento assim delineavam o constructo teórico do momento. Está aí a
justificativa do trabalho minucioso dos estudos da medicina sobre o corpo humano, vendo-
o essencialmente como um conjunto de aparelhos e sistemas. O corpo feminino, por
exemplo, foi exaustivamente explorado e esmiuçado nos séculos XIX e início do século
XX, denotando um profundo sentimento de experiência científica. O que se verificou, nos
anos 60 do século XX, foi um movimento feminista tão intenso 58 , que possibilitou a
proposição de novas significações aos movimentos sexuais e culturais das minorias.
A revolução industrial, por sua vez, solicita uma transformação radical nos hábitos e nos
costumes dos cidadãos, advinda tanto de um novo projeto social e político para as
populações, quanto de uma nova perspectiva para o homem que movimenta novas técnicas
e ferramentas. Anderson (1999, p. 48), comentando a modernidade estética, em especial a
arquitetura, traça resumidamente o quadro da época e ao final cita Habermas:
O Pós-modernismo não nasceu como uma bandeira ou como um manifesto. Os estudos que
vieram a consolidar esse termo como síntese de um conceito foram posteriores aos eventos
58
Ver o comportamento do corpo feminino nesse período em Belmiro (1992)
110
Essa arte que enfatiza o espaço e que é sintoma da prevalência de uma cultura do visual
sobre o projeto narrativo da história como condição de humanidade, essa arte é exemplar
de uma cultura do espetáculo pós-modernista, dos quinze minutos de fama, do cotidiano
pasteurizado em olhares bigbrothers observadores vinte e quatro horas ao dia. A realidade,
que permite às práticas sociais dar sentido concreto à vida, torna-se um jogo de construção
que dá margem ao aleatório e ao enfraquecimento de alguns temas valorizados no
ambiente moderno.
uso dessacralizado da chamada arte superior, mesclando música clássica com música
popular, filmes de segunda classe citando clássicos da filmografia internacional. O remake,
o retrô, a nostalgia figuram como uma postura do artista que tudo assimila e devolve os
objetos artísticos e os objetos do cotidiano indistintamente num mesmo patamar.
Para Sontag (1981, p. 7), a produção de imagens fornece também uma ideologia
dominante. A transformação social é substituída por uma transformação de imagens. A
fotografia, que tem como material o mundo, traz como conteúdo todos os processos
ideológicos que organizam a vida social e da qual faz parte. A imagem impalpável, mas
sempre presente, faz-nos participar com o olho que, por sua vez, recriará na imaginação o
espetáculo do mundo. O homem contemporâneo constrói sua cosmovisão a partir daquilo
que a imagem estabelece e reproduz como valor: é assim que se constitui a sua
112
representação social. O mercado não prescreve leis, mas imagens cuja linguagem
normatiza a estética.
Por isso mesmo, é preciso formular um novo conceito para esclarecer este acontecimento
humano: o de desterritorialização 59 . Agregada a isto, a linearidade temporal estruturadora
das narrativas clássicas está no fim e, com ela, um modo de organizar a vida. O conceito
religioso de Deus entra em crise como um ente virtualizado, tal qual os homens comuns. É
o tempo da simultaneidade, da ubiqüidade e esse caráter virtualizante produz efeitos
radicais principalmente em algumas áreas de conhecimento e nos seus operadores, como os
“da tecnociência, das finanças e dos meios de comunicação. São também os que estruturam
60
a realidade social com mais força, e até com mais violência”. O individualismo, que
marcou a trajetória do sujeito, descaracteriza-se como tal, isto é, o estilo pessoal, o mundo
que permitia esse estilo pessoal, o espaço privado, a família nuclear, entre outras marcas.
59
Termo proposto por Felix Guattari em Mil Platôs, escrito em parceria com Gilles Deleuze, para designar
uma sociedade pós-moderna marcada pela mobilidade e desenraizamento cultural.
60
Lévy (1996, p. 21)
113
Foucault afirmou a instância discursiva como lugar de existência do homem, como sujeito
e como objeto, a partir do século XVIII, diferentemente do homem pré-capitalista. Para
ele, o homem é:
Essa empresa de desconstrução do primado do homem moderno tem, na sua base, germes
de uma nova episteme, cujo modelo se vale de referendar as partes, os pedaços, o local, os
pequenos grupos – por isso, as etnias, os gêneros, os sexos. Ao mesmo tempo, se vale do
outro como instância avaliadora de quem eu sou. Não é à toa que as fotografias
publicitárias se aproveitam da inversão da posição do sujeito, fazendo-nos supor que nós,
espectadores, somos os sujeitos que surpreendemos algo imanente do real. Essa inversão
transfere para a imagem da fotografia a idéia do outro como modelo de quem eu sou 62 .
Contudo, resta lembrar que o peso do modelo de modernidade e suas expressões nas
diversas modalidades artísticas marcam tão fortemente a contemporaneidade, que esta dá
61
Apud Cardoso (2001, p. 87).
62
Essa discussão está apresentada em Belmiro (1992), a respeito das análises de fotografias de nu grávido
que circularam na mídia na década de 1980.
114
sinais do peso da existência moderna: nas referências, na negação. Por isso mesmo,
Cardoso (2001, p. 89-97) faz uma análise crítica da epistemologia pós-modernista para
compreender o lugar das ciências sociais, especificamente a História. Para esse autor, na
epistemologia pós-moderna não há teoria, mas sistemas discursivos. Baseando-se em
Lawrence Cahoone, faz um mapeamento conceitual dos cinco temas pós-modernistas,
apontando, em cada um, suas falácias. São eles:
Por outro lado, é novamente Jameson que dá volume a esse debate, contrapondo a desrazão
pós-modernista com alguns temas no seu próprio bojo:
63
Apud Anderson (1999, p. 127).
115
Uma questão que lhe é imposta deriva justamente das condições atuais de convívio entre os
sujeitos no espaço escolar: a crise do homem moderno e os múltiplos desenhos das
diferentes formações sociais obrigam a escola a se pensar como espaço de interação onde
se produzem diferentes discursos, entre eles, o das imagens.
Na seção seguinte, tomarei a linguagem como ponto de partida para estabelecer as relações
necessárias na constituição dos sujeitos e suas modalidades de expressão. Os conceitos
bakhtinianos de linguagem, signo neutro, signo atual, dialogismo, plurilingüismo, entre
outros, facilitarão a aproximação com a imagem, cujas perspectivas teóricas estão
submetidas à discursividade verbal, mas com ela dialogam na direção de interações entre
discursividade e plasticidade, questão para a qual a escola deverá estar atenta.
64
Em comovido texto sobre as imagens nos livros, Imagens iluminando livros, Ricardo Azevedo relembra a
importância das imagens na sua formação. www.ricardoazevedo.com.br/Artigo14Imagens.htm (acessado em
30/1/2008): “... se fosse um texto sobre o assunto eu, menino ainda, teria dormido antes de terminar o
primeiro parágrafo. As imagens fotográficas, entretanto, eram implacáveis. Não respeitaram minha idade,
meu grau de instrução, minha inocência, nada. Entraram em mim como uma espécie de luz [...] pretendi falar
da força poderosa, e muitas vezes esquecida, das imagens como transmissora insubstituível de conhecimento;
da importância das imagens na formação intelectual e ética das pessoas; da influência imensa e difícil de
medir das imagens na construção da ‘visão de mundo’ de cada um de nós”.
116
Em escrito de 1929, Volochinov 66 faz a pergunta que dá título a seu texto, O que é a
linguagem?, e procura orientar suas argumentações com a finalidade de compreender a
criação artística, em especial a linguagem literária. Para isso, traça um percurso do
aparecimento da linguagem articulada, mostrando que ela surge não como uma
necessidade de comunicação social, uma vez que a linguagem dos gestos já cumpria
suficientemente essa função. São as ações mágicas 67 a base comum tanto para a dança, o
canto e a música, juntamente com a expressão fônica, para acompanhar os trabalhos
coletivos do homem primitivo e que ajudarão a desenvolver futuramente os órgãos da
fonação para que seja possível a linguagem fônica articulada. Contrapondo diferentes
materiais – como argila ou mármore – com o material verbal, o autor observa uma
diferença substancial: é que existem leis lingüísticas que não se podem infringir, caso
65
Diversos estudos e publicações têm proporcionado uma ampla discussão e um vasto campo de
interpretações a respeito das obras do Círculo bakhtiniano: Faraco (1993); Faraco et alii (orgs: 2001, 2006);
Brait (2005); Fiorin (2006), entre outros.
66
Volochinov (1929), Qué es el lenguaje?
67
Debret (1993) desenvolve estudo sobre a imagem e o uso mágico que o homem primitivo faz dela.
117
O autor apresenta algumas etapas do desenvolvimento humano a partir de uma base que
funda todo o seu pensamento, a organização social do trabalho e, por isso mesmo, toma em
consideração a atividade verbal também como trabalho. Não propõe, portanto, uma
definição de linguagem sob uma perspectiva sobrenatural (divina) ou natural, de qualquer
forma, sobredeterminada. Por isso, afirma (1929, p. 227) sobre a linguagem: “É o produto
da atividade humana coletiva, e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica
como a sócio-política da sociedade que o gerou”. 68
O mesmo grupo social que deu a uma pessoa a língua, que lhe orientou as
idéias, os gostos, os juízos, que, em uma palavra, determinou o tom e o
caráter de sua vida interior, agora se contrapõe a ele como ambiente
exterior, como massa de leitores, como grupo de saboreadores e críticos
de sua obra artística. Por isso, se conflitos ou contradições nascem entre a
linguagem interior e exterior do escritor, existem razões sociais
particulares que causam este conflito 69 .
68
“Es el producto de la actividad humana colectiva, y refleja en todos sus elementos tanto la organización
económica como la socio-política de la sociedad que lo ha generado”.
69
El mismo grupo social que ha dado a una persona la lengua, que le ha orientado las ideas, los gustos, los
juicios, que, en una palabra, ha determinado el tono y el carácter de su vida interior, ahora se le contrapone
118
Nesse texto de Voloshinov, observa-se o intento de não fazer da polarização de idéias uma
redução de argumentação. A interação é um traço característico não só como categoria de
análise, mas também como metodologia de argumentação. É o caso das relações entre
ideologia cotidiana (o conjunto de sensações cotidianas e das expressões exteriores
imediatamente ligadas a ela) e os sistemas ideológicos (a ciência, a arte, a filosofia, as
teorias políticas). Uns se nutrem dos outros exercendo domínios e influenciando-se
mutuamente. É o mesmo caso das relações entre linguagem interior e linguagem exterior
no fazer artístico. O “intercâmbio comunicativo do autor com seus leitores” (p. 239) é o
lugar onde se elabora sua língua comum, é onde se estabelece o plano extraliterário
comum, enfim, onde se formam e estandardizam seus mundos interiores. É o lugar do
entrecruzamento.
como ambiente exterior, como masa de lectores, como grupo de gustadores y críticos de su obra artística. Por
eso, si nacen conflictos o contradicciones entre el lenguaje interior y el exterior del escritor, existen razones
sociales particulares que causan este conflicto.
119
observar essa relação como um enunciado, cuja estrutura precisa ser entendida como um
todo, no entrecruzamento de linguagens, para poder deixar aflorar a riqueza de sentidos
que emerge desse olhar; caso contrário, cai-se no incômodo de polarizar a relação, fixando
lugares e funções, ou antagonizando linguagens que são, muitas vezes, complementares.
Vistos como enunciado, os textos verbais e visuais adquirem uma vitalidade que permitem
reconhecer os interlocutores implícitos, as situações de uso e as condições de produção.
Com isso, é possível identificar diferentes suportes como um dos estágios da criação
artística que certamente determinam sua realização. Contudo, essa visão não elimina a
força de compreender o objeto e de nele reconhecer um enunciado. Assim, a obra explicita
uma orientação social, se organiza intelectualmente em um suporte, se constitui como um
enunciado que, por sua vez, pertence a um gênero. Portanto, a direção que tomo para
entender o material que analisei (livros de alfabetização) e que analisarei (livros de
literatura infantil) leva em consideração que tais objetos se constituem em gêneros, cujos
enunciados estão carregados de conteúdos ideológicos que determinam, de certa maneira, a
orientação de leitura e de resposta do leitor ao material.
Vale salientar que essa tendência nega o positivismo lingüístico que se satisfaz com as
formas lingüísticas acompanhadas do ato psicofisiológico. Outro fator fundamental é o
caráter ideológico significante da língua, isto é, “a relação do signo com a realidade por ele
refletida ou com os indivíduos que o engendram” (p. 83), resultando no gosto lingüístico,
variedade particular do gosto estético. Isto faz com que a expressão seja a marca dessa
concepção, seja porque o fenômeno essencial é o ato de criação individual da fala
(Vossler), seja porque a lingüística, como ciência da expressão por excelência, coincide
com a estética (Benedetto Croce). A lógica da língua é a renovação constante e a
heterogeneidade, uma vez que “a realidade da língua constitui também sua evolução” (p.
82).
120
A outra tendência é a do objetivismo abstrato, que se pauta pela organização da língua num
sistema fechado em que cada signo se refere a outro signo, mantendo uma lógica interna ao
próprio sistema. Suas leis são-lhes específicas e, por isso mesmo, os atos individuais de
fala constituem variações ou deformações das normas. Seu principal teórico, Saussure,
formulou as bases para o desenvolvimento desse modelo que desconhece as injunções
ideológicas advindas do sujeito produtor de signos. Nessa linha, a questão a discutir não
está na expressão do locutor e tampouco no locutor, conseqüentemente deixando de lado a
evolução do pensamento e do psiquismo subjetivo explicitado pela palavra; seu caráter
homogêneo, fechado, nega qualquer historicidade. Por isso, Saussure abandona o trabalho
metódico com a parole e concentra-se na langue, que lhe permite desenvolver seu estudo
sem a instabilidade da criação individual. O racionalismo positivista dessa tendência nega
o sujeito histórico e seu contexto social e afirma o modelo matemático como pólo
dialogante, numa confirmação das estratégias de neutralização do mutável, do concreto, da
polissemia, do fluxo constante que há na comunicação verbal, em favor da imutabilidade,
do abstrato, da univocidade.
70
Capítulo II do livro Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, 4ªed., São Paulo: Unesp,
1998.
121
Em oposição à língua abstrata, para Bakhtin as normas são relativizadas pela força criadora
da vida da linguagem. A linguagem comum e única do sistema de normas lingüísticas cria,
no interior do plurilingüismo, um núcleo sólido e resistente da linguagem literária
oficialmente reconhecida, pondo em confronto forças centrípetas e centrífugas que são da
natureza da linguagem. Por isso ele afirma a necessidade de construir outra concepção de
discurso e de gênero, em que caiba a vitalidade plural plurivocal do discurso romanesco
(1998, p. 81):
71
Essa crítica dirige-se principalmente aos formalistas, cujo método para a análise literária utilizava a
retórica formal e seus enquadramentos de classificação para o estudo da Estilística, como, por exemplo, os
tropos, que são procedimentos estilísticos e lingüísticos inerentes ao discurso do orador.
122
Ora, se pensarmos que alguns projetos pedagógicos de alfabetização não trabalham com
essa hipótese discursiva, abrem-se possibilidades de uma tendência de orientação para a
exterioridade do discurso, sua forma composicional, absolutizando e neutralizando sua
ocorrência, situando-o na convencionalidade. Assim, é erradicada nessas metodologias de
aprendizagem da escrita qualquer outra presença que desestruture a convencionalidade.
Linguagens que circulam histórica e socialmente nos contextos dos aprendizes e que
participam do multidiscurso social não têm acesso, no espaço desses projetos educacionais,
para compor a imagem do objeto, isto é, sua apresentação, impregnada que é naturalmente
pelo plurilingüismo que caracteriza o discurso. No máximo, suas presenças garantem uma
grande dose de modernidade. Bakhtin considera o plurilingüismo como um conjunto de
diferentes linguagens que compõem o discurso do prosador-romancista (1998, p. 107), e
acrescenta que, devido à diversidade de seleção e constituição dos falares do
plurilingüismo, as linguagens não se excluem umas às outras, mas se cruzam e se
entrelaçam de diversas maneiras. Essa perspectiva permite ampliar o conceito de
plurilingüismo, nele incluindo, além das linguagens verbais, as visuais, as
sonoras/musicais, as gestuais etc., para a construção do discurso, já por natureza plural.
Nesse capítulo do livro que comento, o autor desenvolve uma teoria do estilo poético e do
estilo de prosa romanesca, polarizando algumas posições antagônicas, contrapondo outras,
e deixa claro que, ao fim e ao cabo, há um plano comum, o plano do romance, em que o
plurilingüismo e a pluridiscursividade das linguagens se relacionam, o que equivale a dizer
que há uma intencionalidade na linguagem literária que ultrapassa os índices puramente
lingüísticos, no dizer de Bakhtin, resíduos fossilizados que perderam sua força intencional.
Criada essa dimensão de coexistência, é possível situar numa mesma ordem fenômenos
aparentemente díspares e metodologicamente heterogêneos, como dialetos profissionais e
sociais, concepções de mundo e obras individuais, entre outros. Esse aspecto é vital para a
perspectiva metodológica do projeto bakhtiniano, uma vez que a diversidade e a amplitude
são marcas de seu pensamento, essência de um olhar panorâmico e abrangente, atento à
orientação intelectual do plano em que atua.
...tão logo se descobriu que estas línguas não só eram diferentes, mas
também múltiplas, e que os sistemas ideológicos e as abordagens do
mundo, indissoluvelmente ligados a elas, se contrapunham entre si ao
invés de permanecerem lado a lado, terminou seu caráter peremptório e
124
Considero essa análise bakhtiniana sobre a vida estilística concreta do discurso um ponto
fundamental para sua incorporação à minha perspectiva sobre as linguagens visuais,
trazendo-as ao conjunto múltiplo de línguas do discurso e integrando-as à presente
discussão.
A possibilidade de a obra literária poder conceber e traduzir os seres comuns deu uma
dimensão significativa às individualidades e, conseqüentemente, um valor social ao
indivíduo, à sua intimidade. Esse modo de elaborar e dar sentido à subjetividade direciona
a perspectiva bakhtiniana para uma sutil, mas crucial, diferença do olhar sobre a
construção do sujeito mesmo pós-estruturalista, ou seja, o sujeito em Bakhtin não é um ser
móvel e constituído pelo lugar que ocupa. Além disso, a proposta pós-moderna de que a
linguagem não constitui realidade, mas suas versões, quantas forem as leituras sobre ela, e
que o sujeito se realiza pelo outro, não encontra (infelizmente para alguns) inteiro respaldo
no pensamento bakhtiniano, uma vez que, para ele, a subjetividade individual está em
constante processo de acabamento, ou, mais precisamente, há sempre um ser inacabado
que se faz na interação com o outro, portanto, em exercício com uma parte de si que já
existe, mas que está em constante processo de se fazer. Eis aí o duplo movimento,
centrípeto e centrífugo, de forças constitutivas da subjetividade.
125
Prova dessa importância é a interdição, pelos cânones religiosos do século XIX e início do
XX no Brasil, da leitura de romances que poderiam iluminar os desejos femininos 72 . Ainda
na Europa, lembre-se dos romances de Rousseau no século XVIII, que fisgavam os leitores
mais comuns e lhes traziam a vida em livro. Há interessantes pesquisas 73 sobre a forte
influência do romancista nas decisões da família pequeno-burguesa oitocentista na França.
No Brasil contemporâneo das décadas de 1960-70, a perda da autoridade poética tem sua
outra face na forte presença da crônica, como o gênero literário que poderia traduzir, não
só a opção do leitor comum que se afastava gradualmente de uma leitura mais demorada e
complexa – seja porque a sociedade se organizava cada vez mais em torno de mídias mais
ágeis, seja por questões econômicas de acesso ao livro –, como também pela natureza do
gênero, que retrata o indivíduo como herói, num cenário com poucas situações, em forma
de paródia ou não, podendo nele incluir-se um valor moral, um ensinamento na vida
cotidiana. A verdade é que a crônica é a face literária do jornalismo impresso, e assim
estabilizou-se com certas características e propriedades de um gênero capaz de reconhecer,
nas suas personagens e situações, o leitor comum. Ocupavam um lugar de relevo, nos
grandes jornais brasileiros de época, as esperadas e deliciadas crônicas de Carlos
Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Otto Lara
Resende, Clarice Lispector, Stanislaw Ponte Preta e outros tantos seletos escritores, vários
desses com obras nos gêneros romance ou poesia. Como conseqüência natural, o gênero
crônica foi sendo apropriado pelos processos de ensino-aprendizagem e, assimilado
inteiramente como um material didático, foi introduzido nos livros escolares de língua
portuguesa, principalmente e a partir da década de 1970 74 , tempo de influência
determinante dos estudos sobre as teorias da comunicação e da informação.
Hoje essa marca do prosaísmo cotidiano de que nos fala Bakhtin (1934-1935) é sentida na
escola também pelos estudos de jornal, como suporte que apresenta uma variedade de
gêneros e tipos de texto para escolha dos leitores; além disso, acrescentem-se os textos de
Internet, dos orkuts, dos blogs, toda forma de escrita que assimila a vida diária e faz desse
prosaísmo o lugar de existência do sujeito comum. Da mesma maneira, esses textos estão
sendo assimilados no interior da escola em formas renovadas de escrita.
72
Ver a esse respeito PAIVA (1997).
73
Ver, por exemplo, DARNTON (1986) (1996).
74
Ver a esse respeito trabalho apresentado na XXII Reunião Anual da ANPEd (Associação de Pós-graduação
e Pesquisa em Educação) de 1999 e posteriormente publicado em Belmiro (2000).
126
E a poesia?
A contraposição entre discurso prosaico e discurso poético, que esse autor revela do texto
bakhtiniano acima citado, aponta para um aspecto valioso para a análise que faço das
múltiplas possibilidades de relação da palavra escrita com as imagens, na medida em que
se renova a compreensão à autoridade da palavra e permite, com isso, relativizar o poder
dos usos sociais da escrita frente a outras linguagens. Bakhtin informa que as palavras
autoritárias podem encarnar conteúdos diferentes: o autoritarismo como tal, a autoridade, o
tradicionalismo, o universalismo, o oficialismo etc. Tezza, em primeiro lugar, observa que
Bakhtin define o signo como signo duplo e, para isso, recupera o sentido de dialogismo
interior como um traço duplo da vida da linguagem, em que há pelo menos dois pontos de
vista ideologicamente estranhos em ação. Em seguida, lembra que a unidade lingüística,
defendida por lingüistas, é uma construção social e histórica, não sendo um dado natural da
linguagem. Portanto, essa dialogicidade natural da linguagem se realiza mesmo com um só
enunciador gramatical. Ademais, confirma que a palavra escrita é o lugar da “centralização
da linguagem”, ação das forças centrípetas, e carrega consigo a idéia de permanência e
eternidade que lhe confere um valor de verdade, resultando, daí, sua autoridade. Se, por um
lado, o discurso romanesco, nascido da palavra escrita, refrata e relativiza a autoridade a
127
ela imposta, por outro lado, o discurso poético procura justamente o seu lugar como a
palavra da autoridade.
Para compreender essa autoridade – “Na poesia, o discurso sobre a dúvida deve ser
indubitável”, palavras de Bakhtin (Tezza, p. 247), – e não confundi-la com a idéia de uma
autoridade imanente que a todos causa aversão, Tezza lembra que a poesia ritualiza a
linguagem, sendo essa a sua superioridade e, implicitamente, sua autoridade. Essa
ritualização pode advir de uma perspectiva de sacralização da palavra (vínculo com Deus,
com a Natureza), de irrealidade no modo de aproximação com o mundo concreto (a poesia
é o irreal, o não-ser 75 ), de uma visão do poeta como um ser mais velho (os velhos são
sábios, na palavra do poeta Elliot), mas o que a torna encantada é o poder de a palavra
poética dizer o homem, centralizando sua força justamente no homem que fala sua palavra.
Para Bakhtin, porém, o plurilingüismo que marca esse homem descentrado do poder de sua
linguagem é que dá vida e reconhecimento à linguagem artística da prosa romanesca como
expressão de autoridade. Essa perspectiva bakhtiniana tem sido apropriada pelos teóricos
da pós-modernidade, dando-lhe uma feição política e filosófica na compreensão do
movimento de fragmentação do sujeito ocorrido no último século, e matizando sua posição
privilegiada e autoritária em relação ao conhecimento. A dessacralização da imanência
como conceito que define a base do conhecimento humano faz a linguagem ter que buscar
outro lugar onde possa ser explicada e se reconhecer. Se o sujeito se constitui pela
linguagem (pois é ela que lhe dá acesso ao entendimento do mundo), essa crise da
75
Lima (apud Tezza, 2006, p. 248).
76
Campos (2000), já citado na introdução da tese. Além disso, para uma abordagem desse assunto em relação
aos materiais didáticos de Língua Portuguesa, ver Belmiro (2004).
128
Tezza (2006, p. 252) lembra que o meio verbal, por parecer insuficiente, nos últimos anos,
para sustentar a autoridade poética, leva a poesia a tomar outras áreas de empréstimo,
convívio e auxílio para continuar presente (como os gêneros de poesia visual, videopoema,
poemas na Internet etc.): “a palavra poética, sempre ameaçada de um prosaísmo que nos
cerca de todos os lados, vai buscar refúgio em outros códigos e sistemas onde possa
sustentar sua autoridade isolada e isolante”. Essa afirmação explicita uma categoria
bakhtiniana que, ajustada às condições de existência de linguagens no mundo
contemporâneo, justifica e dá sentido à multiplicidade de formas próximas e/ou
entrelaçadas que fazem parte dos processos de criação de linguagem. Bakhtin (1998, p.
156-163), a propósito do modelo de criação de linguagem no romance, reúne todos os
procedimentos em três categorias: hibridização, inter-relação dialogizada de linguagens e
diálogos puros. E lembra que essa divisão é para efeito teórico, uma vez que elas se
realizam sempre mescladas num tecido literário único.
Acrescenta ainda que, para atualizar a linguagem no hibridismo literário, é preciso mais
que duas vozes (bivocal), mais que dois acentos individuais (como na retórica); o
hibridismo é bilíngüe, pois inclui duas consciências, em duas épocas, e um enunciado no
qual essas consciências se enfrentam e lutam. Dessa forma, o autor amplia o campo de
abrangência dessa categoria, de forma que as diversas línguas que participam da cena
literária possam existir no romance:
129
Do ponto de vista das relações entre as linguagens artística e literária, Arbex (2006, p. 17-
62) analisa diferentes tendências teóricas e indica uma inclinação original para a superação
de uma abordagem marcadamente polarizada por uma conceituação que preza a relação
binária. Cito Chazaud & Sichère:
O descortinar de um novo gênero entra em conformidade com as inquietações por que vêm
passando as práticas literárias e artísticas no último século, sinalizando condições próprias,
desejadas por um ponto de vista exploratório, que vem aos poucos se tornando mais
sistemático e intenso. Essa situação permite descortinar horizontes mais maleáveis aos
projetos de interdisciplinaridade, em que escrita e imagem sejam abordadas por uma
atividade estética que atravesse o caráter irredutível de cada um desses pólos. A
hibridização, aqui indicando um tipo de atividade aberta para um novo gênero entre, abre
um campo de interrogações que permite o livre pensamento sobre novas modalidades
estilísticas, o acesso a diferentes materialidades que traduzam a riqueza gráfica de ambas
as linguagens e a experimentação de linguagens a partir da superação dos procedimentos
lógicos da escrita ocidental. É o que nos confirma a pesquisadora Arambasin (apud Arbex,
2006, p.40):
130
Essa mudança de perspectiva vem ao encontro de alguns dos meus pontos de vista 77 sobre
a hibridização contemporânea em diferentes produções culturais e educacionais. As
relações cada vez mais próximas entre a linguagens verbal e a visual, seja no cinema, nas
instalações de artes plásticas, nos livros de literatura infantil, além de variados materiais
didáticos, mostram uma interessante diversidade na combinação dos conteúdos temáticos e
das formas composicionais, como, por exemplo, a recuperação do texto poético no interior
das imagens visuais, bem como a poesia implícita nas imagens dos livros de literatura
infantil. A contaminação poética na prosa e a interferência da prosa na poesia penetraram
nas imagens de livros infantis, fazendo desse gênero um ponto de encontro, no sentido
mais essencial do poético. Meu interesse em usar essa categoria, portanto, se justifica pela
sua importância em ampliar o horizonte de inclusão, não somente lingüístico, mas de
outras linguagens, como, por exemplo, as imagens das artes plásticas, da propaganda, das
histórias em quadrinhos e todas as que dialogam entre si e com a linguagem verbal, nos
textos (seja verbal ou visual) de literatura infantil e nos livros organizados com a clara
finalidade de alfabetização infantil.
77
Ver Belmiro et alli (2003).
131
a estilística sociológica proposta por Bakhtin e que vem construindo uma visão mais ampla
acerca dos discursos literários e extraliterários que são incorporados pela prosa romanesca.
É nesse caminho e sob esse ponto de vista que as linguagens visuais, ou mais precisamente
as diferentes imagens, podem ser vistas e incorporadas ao processo analítico dos materiais
que utilizam as imagens e os textos verbais nos ambientes escolares e que dão margem a
pensar numa possível renovação de textos e outras linguagens em projetos pedagógicos de
alfabetização. Na linguagem literária, essa diversidade intencional torna-se plurilíngüe, isto
é, um diálogo entre linguagens; por outro lado, a ampliação e a transposição dessa
perspectiva podem conferir plausividade ao diálogo entre as linguagens existentes num
mesmo contexto, o pedagógico, e, em especial, num mesmo gênero, o didático.
A pesquisa que ora desenvolvo quer buscar, justamente na nova dinâmica decorrente da
insuficiência da autoridade prosaica, o elo que faz com que outras linguagens (e, no caso
de minha pesquisa, a linguagem imagética) assumam uma co-participação nos processos de
produção do conhecimento, nos movimentos de expressão artística, nas atividades práticas
concretas da vida e nos processos de aprendizagem da escrita. A mútua influência dos
espaços de autoridade que definem a natureza da linguagem em Bakhtin – mesmo que ele
afirme que a linguagem poética tende a se fechar em casulo – deixa emergir uma extensão
e um aprofundamento de usos que vão desde o monologismo da linguagem poética ao
plurilingüismo do discurso prosaico (não vendo nisso uma postura evolutiva e em linha
reta, mas elos intercambiáveis que apresentam diferentes possibilidades de tornar as
relações entre as linguagens algo vivo e representativo do momento em que vivemos).
A gradação que vai do pólo mais inflexível da linguagem a um outro o mais aberto
possível, que com gosto absorve as manifestações contextuais, não significa que os dois
não sejam plurilíngües, mas, sim, que o modo de relação muda. Com isso, quero dizer que
é preciso atenção para verificar se a pluridiscursividade natural dos livros de literatura
infantil, por exemplo, sempre resulta em formas de linguagens renovadas e se, na outra
ponta, é tendência dos livros didáticos se constituírem como um gênero mais reativo a
inovações. Seria uma atitude precipitada polarizar a discussão nos dois gêneros e uma
tendência redutora, frente à riqueza de linguagens, situar o problema confrontando formas
acanhadas e formas vigorosas de recriação do sentido, embora o suporte/gênero seja uma
instância importante de constituição de linguagem. Aposto, contudo, na idéia de que a rica
extensão de usos entre as linguagens verbal e visual e as ações com as linguagens
132
○4 ○
Os Sistemas de Escrita
Poema desenhado
No meio da página escrevo ao acaso a palavra MENINA
E, à sua magia, um caminho abre-se
Para ela andar.
Mas a menina
agora parou
e do meio de uma ponte namora encantadamente nas águas
a graça inacabada de seu pequeno rosto feito às pressas.
Às pressas...
(nem tive tempo de lhe dar um nome...)
Mário Quintana
Este capítulo tem a finalidade de elaborar um caminho reflexivo sobre as relações entre a
escrita e a imagem, com o intuito de compreender os sentidos dos atuais embates sobre as
conseqüências da predominância de uma cultura visual. Com isso, talvez se possa
contribuir para explicar dificuldades por que vem passando a escola, no seu exercício de
tornar os alunos reais produtores de texto.
Apresento uma questão polêmica, mas que considero fundamental e atual, no âmbito da
alfabetização. Refiro-me ao que se vem considerando como o mito da origem verbal da
escrita, em detrimento da presença da imagem na sua formação. A conhecida perspectiva
que aceita a evolução do pictograma ao ideograma, indo para o fonograma e, finalmente,
para o sistema alfabético tem recebido severas críticas por parte dos pesquisadores que
desejam renovar um olhar marcado pelo etnocentrismo, que outorga distinção ao
conhecimento ocidental, principalmente o europeu. Isso não impede, porém, de haver
concordância com o fato de que a etapa determinante da formação da escrita é a conversão
do ideograma em fonograma.
78
Anotações feitas a partir de participação em seminário realizado em 25 de outubro de 2005, na disciplina
Antropologie de l’écriture, coordenada pela professora Béatrice Fraenkel, na École des Hautes Études en Sciences
Sociales, Paris. Ver seu livro L’Invention du cunéiforme: écrire à sumer. Paris, Edition du Seuil, 2000.
135
Michalowski continua seu investimento numa outra abordagem acerca dos sistemas de
escrita, mostrando que o vazio de explicações que há na passagem da escrita suméria para
o sistema grego não outorga a essa escrita a supremacia do alfabeto, devido a uma possível
superioridade de acabamento do sistema. E acrescenta (p. 60):
Entre outras questões, o pesquisador declara que essa nova tecnologia, a escrita, foi vista
indevidamente durante muito tempo como uma bandeira da democracia grega – e do
mundo ocidental –, que permitia a qualquer um dominar o alfabeto simples e escrever.
Ressalta que a oposição entre oralidade e escrita é ultrapassada, justificando tal redução
por uma educação institucionalizada que enfatizava a escrita como um componente
prioritário. A dicotomia entre oralidade e escrita, conseqüentemente, significava a presença
ou ausência de uma aprendizagem institucionalizada. A separação de palavras no fluxo da
escrita é um aspecto de suma importância para o começo da quebra do elo que sustentava a
lógica da relação entre escrita e oralidade. Sem precisar ler em voz alta para dar sentido ao
texto, podia-se olhar para as palavras separadas e lê-las silenciosamente, como uma
imagem compreensível que se tornava inteligível para o leitor (p. 63).
Por outro lado, Michalowski afirma que, no momento, as crianças japonesas têm
apresentado freqüentemente uma intensidade muito maior de usos da escrita, em relação
aos jovens norte-americanos, e que parecem ser menores os problemas de leitura entre as
crianças japonesas. Esse fato atual revela a medida histórica em que o problema está posto,
indicando que essa questão parece ainda estar esperando um maior volume de juízo crítico
para sustentar um novo desenho teórico. Todavia, a posição do pesquisador tem o mérito
de não apontar o melhor ou o pior sistema de escrita, mas perceber que as vantagens e as
79
“In the Near East, and I suspect elsewhere, writing was not used primarily as a vehicle for the preservation of
one’s own oral tradition: quite the opposite, it was a new form of communication that brought about a new
semiotic and new forms of discourse (Michalowski, 1990). This, I believe, is the fundamental problem that lies at
the root of any discussion of early literacy. The difference among Mesopotamia, Egypt, or Mesoamerica and
Greece lies not so much in the technology of writing, “hieroglyphic” vs. alphabetic writing, but in the way in
which writing was used”.
136
desvantagens dos diferentes sistemas de escrita e seus relativos méritos técnicos não são
tão importantes quanto as atitudes sociais sobre a escrita mantidas pelo povo que a usa. O
autor complementa (p. 64):
Foi difícil para ele, assim como para qualquer homem de letras espanhol,
entender que as narrativas que registram o passado podiam funcionar
independentemente da fala e de seu controle pela escrita alfabética e que
a linguagem visual e as relações espaciais podiam ser perfeitamente
80
“the differences between the nature of literacy in early states lay not in the technologies themselves, but in the
social construction of literacy, in the manner in which writing was used as a method of communication and control
in various societies”.
81
Idem, p. 104.
137
Portanto, pensar outra forma de fazer narrativa significa aceitar que a escrita dos
ameríndios, pictoideográfica, não significa somente coisas (eventos, crenças, idéias,
memórias), mas que, sem o agenciamento das letras, também pode fazer história. O
antropólogo aponta três formas escritas dos astecas de registrar o passado: a Tira de la
peregrinación, as árvores de família e genealógicas e, por fim, a demarcação espacial.
Esses três tipos eram usados como narrativas para a configuração da memória e da
localização. Por outro lado, concordar com a afirmação do pesquisador, de que os seres
humanos parecem formular conceitos de acordo com a regionalidade e a materialidade de
suas práticas culturais, é evitar incorrer no erro de perguntar, diz ele, como os astecas lêem
seus textos e de procurar um equivalente à leitura alfabética de textos escritos. Não existe,
para o povo Nahuatl, o verbo ler, mas algo como estar olhando as figuras enquanto alguém
conta uma história oralmente. Provavelmente os sentidos podem variar de acordo com
quem interpreta e para quem o intérprete trabalha, explicitando a importância das
condições de leitura e das relações de poder para a produção de sentido.
Essa também é a crítica de Christin (1995, p. 18) a Leroi-Gourhan que afirma que, para a
leitura das seqüências mitográficas arcaicas, havia comentários pronunciados frente aos
afrescos enquanto eles eram contemplados. Comentar enquanto se contempla parece ser
uma prática constante nas sociedades orais, mas parece ser uma afirmação ambígua, no
mínimo, que esses enunciados sirvam de tradução das imagens em palavras, por não haver
outro modo de compreendê-las. Christin lembra que essa prática se encontra menos nas
sociedades em que a fala e a imagem se completam segundo modalidades, algumas
variáveis, mas sem jamais se redobrarem em forma de redundância.
Acredito que esse modo de completude entre as imagens e a oralidade pode indicar duas
coisas: uma, que não havia uma sobredeterminação do oral sobre a imagem, mas uma
retórica própria da oralidade e uma organização própria de assentamento espacial das
figuras; outra, que a carga semântica das imagens e a retórica do texto oral fazem a história
dos ameríndios. Futuramente ver-se-á que a ideologia educacional da correção fará mesclar
a prática oral e a prática escrita, ambas baseadas na gramática e na retórica.
82
“It was hard for him, as well as for any Spanish man of letters, to understand that narratives recording the past
could function independently from speech and its control by alphabetic writing and that visual language and spatial
relations could be perfectly understandable to those familiar with the pictorial conventions”.
138
O estudo do padre jesuíta Acosta permite que ele faça, no séc. XVI 83 , em meados de 1590,
duas afirmações: a primeira, a de que o homem tem três diferentes modos de registrar suas
lembranças: pelas letras e escrita (cujos primeiros exemplos são o grego, o latim e o
hebreu), pela pintura (cujos primeiros exemplos Acosta descobriu em quase todas as
civilizações conhecidas) e pelas cifras e caracteres; a segunda, a de que nenhuma
civilização indígena usou letras, mas empregava tanto imagens quanto figuras. Sua
perspectiva, contudo, mostra uma linha evolutiva da história da escrita, localizando os
astecas depois dos chineses e os dois, anteriormente às letras e à escrita alfabética.
Essa discussão se insere dentro dos estudos sobre a escrita que propõem uma abordagem
mais ampliada das relações da escrita com diversas áreas do conhecimento. É o caso das
pesquisas de Anne-Marie Christin, que relaciona artes plásticas e literatura, para ir à raiz
dos estudos sobre a origem da escrita e propor um recorte teórico a partir da sua dupla
natureza: verbal e gráfica. A autora privilegia os estudos sobre o ideograma para contrapor
à escrita logocêntrica e mostrar como o Ocidente, principalmente a França dos sécs. XIX e
XX e as diversas propostas poéticas do séc. XX em outros países, redescobre a escrita
83
Apud Mignolo (1994:101)
84
Hoje, vemos pesquisadores que querem compreender as novas formas de escritas contemporâneas,
pensando também possíveis letramentos alternativos ou uma nova era midiática, como Gunther Kress e
J.L.Lemke, entre outros.
85
“They read the world instead of reading the word”.
139
ideográfica e solicita novas funções cognitivas aos leitores, novas práticas de leitura, pela
quebra da linearidade da escrita alfabética, pelo aproveitamento do espaço que participa
semanticamente da imagem, pela simultaneidade de entradas de leitura, constituindo,
assim, uma mobilidade de produção de sentidos inesperados e possíveis.
Em seus estudos, discute a idéia já cristalizada da origem verbal da escrita, além de não se
satisfazer com a mitografia antropológica de Leroi-Gourhan, e abre um campo de pesquisa
sobre a escrita que abarca a presença de ambos os sistemas, o gráfico e o verbal. Para ela, a
tese da filiação verbal da escrita ocultou por muito tempo as funções gráficas do sistema. O
que Christin quer dizer é que procurar uma origem da escrita na imagem, privilegiando aí
as imagens, é não compreender a imagem no que ela tem de específico, de característico,
de próprio como linguagem, e projetar sobre ela um modelo de explicação que se torna,
uma vez mais, linguageiro. É submeter as imagens a uma explicação de orientação verbal,
pois o espaço físico se torna invisível e as figuras, como representação do real, se
organizam em sistema como uma sorte de utopia paraverbal (p. 5). Deve-se, portanto,
entender a escrita como uma linguagem de dupla entrada: verbal e imagética, um estudo
semiótico ampliado, tendo cada uma as suas especificidades. Por isso, lança a proposta de
recuperar a importância da categoria superfície, aparentemente um espaço cego, e amplia a
concepção de escrita por dupla origem. Cito (1995, p. 11):
A experiência a seguir é exemplar do seu ponto de vista: a série de instalações feita por Jim
Hodges, numa exposição em Santiago de Compostela / Espanha, em dezembro de 2005.
Uma delas, chamada "New AID drug, 1988”, é uma pilha de papéis com fotocópias de
uma notícia de jornal sobre um novo produto farmacêutico contra a Aids. O artista faz
tantas fotocópias que o texto vai se apagando nas linhas, nas palavras, nas frases
decompostas que também abandonam seu sentido. Gradativamente, a natureza lingüística,
verbal do texto se transfigura esteticamente em formas dispersas, aleatórias, até encontrar
uma outra natureza e nos dar a olhar alguma coisa que acreditamos identificar: uma flor.
86
“Ce qui caractérise essentiellment la structure de l´écriture est sa mixité : parce que son système s’appuie
sur deux registres à la fois, celui du verbal et celui du graphisme, mais aussi parce que ces registres sont
foncièrement hétérogènes l’un à l’autre”.
140
Porém, são restos de letras, pedaços de parágrafos, rastros de pontuação, espaços vazios e
arrastados no papel, traços que vão recompondo formas imprevistas. Puro grafismo.
Essa característica gráfica não é vista somente na poesia, nas artes. A banalidade da
presença gráfica da linguagem nos lugares sociais, nas formas cotidianas do dizer
ultrapassa o patamar do que se imaginaria como o futuro da poesia, isto é, a ruptura da
linearidade fônica e da seqüência silogística aristotélica (sujeito, cópula/combinação,
predicado), para se encarnar nas formas juvenis de rebeldia, na internalização de uma outra
gramática, a verbovisual, na montagem cinematográfica que solicita do espectador
velocidade para exploração dos cortes e para criação de hipóteses no exercício pleno de
reconstrução de sentidos, enfim, uma orientação intelectual que se firma no solo do
diagrama / configuração.
Em seu livro L’Image écrite (1995), Christin abre uma discussão sobre a existência do
grafismo como constitutivo da escrita, ao lado do fonetismo, permitindo, com isso, o
investimento de semantização nas figuras, com valor de símbolo, e não como substituto
das coisas. Ela nos lembra 87 , por exemplo, que uma placa representando uma bicicleta e
sobre ela um xis não é compreendida como tal, e também não indica uma ausência, mas
significa uma interdição, uma ordem. Os pictogramas não serviam de ligação entre as
coisas e as palavras, mas sua abordagem destaca o fato de que, tendo conservado uma
aparência de figura, eles não sejam mais isso. O milagre da escrita, diz ela, começa a partir
desse momento. Sua tese, portanto, nega a origem da escrita como representação da fala e
reafirma seu nascimento por uma estrutura elaborada a partir da imagem na qual a fala
integrou os elementos de seu sistema compatíveis com ela 88 . Abordando diferentes autores,
tanto da Filosofia e da Antropologia, quanto das artes plásticas, a autora firma-se com um
ponto de vista que quer recuperar, da cegueira do espaço vazio, uma presença que
hierarquiza formas variadas, a ponto de tornar, esse vazio, um outro. Contrapondo épocas
em que o conhecimento humano propõe novas epistemes, a pesquisadora analisa o espaço
representado na imagem da pintura renascentista como expressão de uma metafísica, é o
invisível que se coloca pela presença do espaço. Além disso, o trompe l’oeil, a ilusão de
ótica que a perspectiva renascentista provoca, é, para ela, uma perversão das figuras,
embora uma definição científica do fenômeno refira-se a “um conflito perceptivo”. De
87
Le signe introuvable, p. 42
88
Arbex, p. 64
141
qualquer forma, há uma preocupação em mostrar que o estudo da imagem inclui não só a
figura, pois não revelaria a importância que o intervalo empresta na constituição de uma
escrita (1995, p. 20): “É esse pensamento do ‘fundo’, esse pensamento do vazio não ponto
neutro mas capaz de engendrar a seu turno uma ‘forma’ inédita, própria ao homem, e que
se inscreve como tal no mundo, que inventou a escrita” 89 .
Portanto, o intervalo que separa as figuras, longe de ser um tempo morto de que fala
Derrida, constitui sua dinâmica semântica, sua sintaxe. O que determina o valor semântico
do vazio pictural, isto é, dos espaços entre as figuras, é que, mesmo que as figuras sejam
inteiramente polissêmicas, ele mesmo é polissintático, permitindo variadas formas de
relação. Dessa forma, ao lado de uma polissemia das figuras, tem-se uma polissintaxe do
espaço, constituindo assim uma semântica espacial. Um exemplo significativo é a pintura
de Giotto que se traduz, junto com uma leitura narrativa das escrituras, por uma lógica
espacial que dá relevo aos elementos da cena. O efeito de presença que exercem os
marcadores espaciais atrai com ele o intervalo também como presença.
89
“C’est cette pensée du ‘fond’, cette pensée du vide non point neutre mais capable d’engendrer à son tour une
‘forme’ inédite, propre à l’homme, et qui s’inscrit comme telle dans le monde, qui a inventé l’écriture”.
90
“Ce qui l’intéresse dans la ligne est ce qu’il déduit de sa génese telle qu’on la lui fait supposer: qu’elle soit une
marque sensible de l’absence”.
142
narrativa prevê um sistema fixo de signos e de sintaxe, que garante um ordenamento linear
e temporal, próprio do sistema alfabético. Em contrapartida, a escrita que credita
mobilidade de signos e de sintaxe autoriza diferentes leituras, umas até antagônicas a
outras, ou mesmo ambíguas. Christin (2006, p. 73) lembra adequadamente: “é notável, por
sinal, que a literatura chinesa tenha ignorado a epopéia e que tenha produzido romances
somente quando sua escrita explicitou um fonetismo que, em princípio, não lhe era
indispensável”. Se o vazio é necessário entre as figuras pintadas para que se constitua uma
história, é porque, em primeiro lugar, é uma marca de inteligibilidade, índice de uma co-
presença que reenvia o espectador, não à realidade dos seres pintados na tela, mas à sua
própria memória, humana, da qual a imagem propõe um testemunho (1995, p. 18-19). É
essa memória que é evocada pela tela que produz narrativa, que capta e devolve um modo
particular da forma como a cultura se preserva.
Outra questão de interesse refere-se à descrição pictural nos textos literários. Louvel
(2006) define iconotexto 91 para organizar um modelo retórico de descrição pictural. Afasta
qualquer função pedagógica que se aproprie dos procedimentos da descrição em geral e
investe no que ela define como uma figura da figura, isto é, uma analogia entre artes, em
que a imagem no texto – a que vai ser descrita – será tratada por um procedimento de
translação, de passar de um lugar para outro, de uma linguagem para outra, de um código
semiológico a outro. A pesquisadora (2006, p. 196) afirma:
91
Iconotexto: presença de uma imagem visual convocada pelo texto e não somente a utilização de uma
imagem visível para ilustração ou como ponto de partida criativo. (nota da autora, p. 218)
143
imagem. Recupera os estudos de Derrida sobre a pintura para entender o efeito da moldura
que ele chama de efeito-parergon: “nem dentro, nem fora da obra: a moldura efetua a
passagem entre eles, aponta a obra como de-marcável” (p. 196).
É freqüente, na história das relações entre essas artes irmãs, uma servir de modelo para a
construção da outra, isto é, artistas pintam a partir de descrições literárias ou escritores
apresentam suas leituras das obras de arte através de textos poéticos, seja em prosa ou
poesia. Nesse caso, o que se faz ultrapassa a simples descrição de uma arte pela outra e
afasta a idéia da ilustração como tradução do legível. É claro que não se devem esquecer os
múltiplos exemplos da História da Arte que apontam inúmeras obras de arte que tomam
outra como parâmetro e que realizam comentários, referências, paródias, verdadeiros
estudos a partir das interlocuções travadas.
Isso justifica o empenho com que as imagens da Idade Média foram usadas para traduzir
textos e orientar os analfabetos na leitura das escrituras cristãs, com o peso do
convencimento retórico. O interesse evidentemente pedagógico da substituição da narrativa
composta por letras e palavras – alfabética – em narrativa com figuras muda o modelo
verbal por outro que também se organiza em torno do verbal. A preocupação com uma
explicação literal do mundo faz as imagens desse período, principalmente dos séculos XI e
XII, se submeterem à lógica do discurso. Do ponto de vista educativo, o uso das imagens
92
Vorona & Sterligov (1996): “L’élaboration d’un nouveau langage artistique –acquisition de l’espace, rendu des
masses, du volume, du mouvement etc. – s’effetua pour beaucoup dans les ateliers des enlumineurs. Les fonctions
d’illustration poussèrent les auteurs de miniatures vers la narration, le récit, les détails du réel, vers une tentative de
rendre en image non seulement l’espace, mais aussi la durée”.
144
Para a pesquisa em questão, desejo destacar que o processo por que passaram as imagens,
de intensa absorção de algumas qualidades discursivas, como a descrição, a narração e a
argumentação retórica, se espalhou por diferentes modalidades expressivas e de variadas
maneiras; o corte que proponho para o século XIX quer enfatizar o movimento ao
contrário, de as palavras se apropriarem, na visibilidade, do modelo da espacialidade:
principalmente a litogravura, por um lado, e a poética de Mallarmé, por outro, devolveram,
sob formas artísticas do plástico e do verbal, um modelo de visualidade letrada ou, dito de
forma condensada, verbovisual 93 . Se as imagens serviam para, na sua origem, o homem se
comunicar com os deuses; se, depois, o homem se serviu da imagem para tornar visível o
invisível; se a imagem da sociedade Ocidental absorve o logocentrismo e suas estruturas
discursivas; e se, mais ainda, o sistema de escrita alfabético se apropria das imagens para
seu uso no nível fonológico, em substituição às letras; então, expõem-se formas dinâmicas
de convivência e sempre renovadas no âmbito das diferentes formas de comunicação, das
expressões plástica, gráfica, literária, contribuindo para o aprendizado da cultura. Resta às
finalidades pedagógicas entender a importância de como melhor interpretar o momento
atual e traduzi-lo em ações didáticas.
Outro conceito que deve ser compreendido a partir do vazio intercalar é o de representação
do espaço. A profundidade de campo, que na Renascença tinha como desejo uma certa
forma de organização do mundo, é substituída pelo olhar do homem do século XXI, que
vê, por imagens, um mundo reproduzido via satélite e impossível a olho nu. Não está mais
dentro do mundo para recortá-lo com sua lógica matemática, mas o vê de fora, numa visão
totalizante dada pelo holograma 94 . No caso desta pesquisa, vale lembrar que o grande
espectro de perspectivas que abarca o tema dessa discussão tem na sua base o conceito de
ilusionismo, tantas vezes revisto, mas sempre em tensão. De qualquer forma, Kac 95
esclarece que esse termo nunca significou que o espectador seria enganado por uma
93
A proposta de retomar obras do século XIX não significa esquecer as origens dessas relações
intersemióticas que datam da época Clássica. Usa-se o termo ecfrase para definir, a partir de trabalhos
poéticos, o modo de coexistência entre dois sistemas de significação, suas mútuas influências e apropriações
e suas transposições intersemióticas. Ecfrase vem do grego EKPHRASIS e significa, por sua origem,
descrição ou ek: fora + phrasis: frase, fora da frase. Ver a esse respeito trabalhos na área dos estudos
literários, como por exemplo, Cordeiro (2003), Santos (2006), entre outros.
94
Para maior aprofundamento do tema, ver Kac, 2006.
95
Kac, opus cit. p. 340, entre outros artigos em Fabris & Kern, 2006.
145
imagem e pensaria estar olhando para o objeto mais do que para uma representação. Hoje,
frente à irrealidade proposta pela realidade pós-moderna, os homens já reconhecem a
dimensão ilusionista não como um mimetismo, mas algo destoado e recriado por imagens
sem fundo, sem margem, sem preenchimento. No mundo de hoje, os homens não precisam
decifrar mais a mensagem divina, mas a dos próprios homens, transformados em ciência,
em arte, em virtualidade. Vale lembrar os estudos de Gombrich para quem os mecanismos
psíquicos de que dispomos nos fazem compreender organizadamente os elementos de
alguma imagem dentro de um dado contexto cultural, mesmo que saibamos ser uma ilusão.
Presença e memória, marcas da inteligibilidade humana, acompanham a ordem do suporte.
Com o intuito de localizar suas pesquisas no cenário dos estudos sobre a escrita, Christin
discute dois teóricos que reavaliam a origem da escrita, tentando liberá-la, embora
parcialmente, de seus apriorismas lingüísticos: I.J.Gelb e A. Leroi-Gourhan. O primeiro
enfrenta filólogos que ignoram “a etapa inicial da história da escrita sob o pretexto de que
96
os sinais então utilizados não estavam em correspondência exata com a língua” , e se
tornou o promotor apaixonado da criatividade de seu grafismo (p. 12). Mas mantém o
grafismo como uma proto-escrita e afirma que só uma adequação ao fonetismo verbal
constitui a verdadeira escrita. Outro problema desse estudo está na manutenção do ponto
de vista quanto a uma reflexão autêntica sobre a imagem e suas origens. O modelo que
orienta suas reflexões é o da linguagem, e a referência à enunciação, isto é, à fala
concebida como origem de um poder, guia sua teoria do traço. Christin vai chamar a
atenção para o que ela considera renovador no modo de conceber a escrita e sua origem,
alertando para o fato de que Gelb se esquece de que, sem suporte sobre o qual se inscreve,
o traço não é nada.
A seu turno, A. Leroi-Gourhan constrói a hipótese de que os desenhos feitos pelo homem
nas paredes das cavernas já tinham um cunho simbólico, não eram simples substitutos das
coisas. Chama essa escrita de mitografia e seus estudos confirmam o papel da imagem na
gênese da comunicação escrita:
Mitologia e grafismo multidimensional são [...] normalmente
coincidentes nas sociedades primitivas e se eu ousasse usar o estrito
conteúdo das palavras, seria tentado a equilibrar a ‘mito-logia’ que é uma
construção pluridimensional repousando sobre o verbal com uma
96
“L’étape initiale de l’histoire de l’écriture sous prétexte que les signes que l’on y utilisait n’étaient pas en
correspondence exate avec la langue”.
146
Mesmo assim, contesta Christin, seu raciocínio manteve-se próximo ao de Gelb, uma vez
que Leroi-Gourhan acredita que a mitografia não teria sido suficiente para criar a escrita.
Por uma ruptura misteriosa, o sistema da escrita fonética se constitui forte, mas também
débil o suficiente para não anular certos benefícios da mitografia original. De qualquer
forma, há uma mudança no modo de repartição dos signos e a liberdade espacial de
assentamento do grafismo no seu suporte se subordina à linearidade dos signos. Essa
sucessão é resultado não só do fonetismo da língua como da lógica do raciocínio contábil,
que conferem uma utilidade social. Vê-se ainda hoje como a história da subordinação
gráfica pela expressão fonética, mostrando a conquista da escrita, tem paralelo nas
instituições escolares que reforçam esse mecanismo de apagamento, quando as crianças
deixam de desenhar para começar a escrever.
Leroi-Gourhan também retoma uma distinção feita no século XVIII por Lessing para
confirmar sua hipótese de que a escrita logocêntrica seria a mais útil. Lessing afirma que a
poesia e a literatura de ficção são a arte do tempo, enquanto a escultura e a pintura são
artes do espaço, tomando a materialidade como categoria: essa divisão dá à literatura a
capacidade de, no tempo, revelar o invisível; o espaço domina o visível e, para que também
domine o invisível, é preciso que se dobre a convenções e a constrangimentos. Além disso,
para que uma imagem na pintura seja vista, como afirma Christin, é preciso que seja
percorrida por um certo tempo. Mas, para tanto, desconsidera qualquer hipótese de que
haja sentido no vazio aparente e supõe que as figuras emergem de um lugar sem interesse e
sem consistência. Na verdade, o espaço não existe. Só na escultura, cuja materialidade não
lhe permite recorrer ao tempo, como a pintura permite. Essa é uma discussão sobre
representação da arte que só terá uma proposta de revisão no século XX. Nesse início de
século XXI, pode-se considerá-la uma afirmação fraca e duvidosa.
97
“Mythologie et graphisme multidimensionnel sont [...] normalement coïncidents dans les sociétés prmitives
et si j’osais user du strict contenu des mots, je serais tenté d’équilibrer la ‘mytho-logie’ qui est une
construction pluridimensionnelle reposant sur le verbal par une ‘mythographie’ qui en est le strict
correspondant manuel.”
98
Essa discussão de Andrade foi aproveitada em artigo sobre literatura infantil e imagem, em Belmiro, 2004.
147
Percebe-se desse modo que, mesmo libertando o desenho da comparação com o prosaísmo
– que absorve, longamente no tempo, sentimentos, pontos de vista, enfim, condicionantes
que organizam a forma –, mantém sua delimitação, mesmo que intelectualmente o traço
não lhe aprisione o sentido, na esteira da linearidade da escrita alfabética. Supera essa
dualidade, todavia, pela caligrafia; dito de outra forma, pelo estilo.
148
Portanto, o traço para Gelb é sinal da escrita alfabética; para Leroi-Gourhan significa
também uma transposição gráfica da linearidade verbal, considerando o traço a etapa
fundadora da escrita; para Andrade é uma convenção desenhística. Christin avança a
discussão, apontando um outro elemento anterior à combinação de figuras: o seu suporte.
Diz ela (2006, p. 66):
Ora, a autora mantém-se firme na sua proposição: o ponto de tensão não é o que é visível,
mas o que dá a ver o visível. É fundante essa tomada de posição de Christin para enviesar a
questão: o traço é o que o homem realiza, mas o fundo é a superfície de que ele se utiliza e
não explicita, embora ele saiba da sua existência. Cito (2006, p. 68):
Traço, gesto, escrita, a mão do homem que enuncia. Mas Christin está preocupada com
alguma coisa a mais. O sedentarismo em que a vida agrícola resultou fez o homem
conjugar a sua observação e sua comunicação com o além numa outra instância de
comunicação, a escrita, através de formas específicas que utilizaram tanto o traço como a
adivinhação. Na China, por exemplo, o traço serviu mais para “transcrever as marcas da
natureza, não significa a vontade de uma palavra: a memória sobre a qual repousa a
civilização chinesa é a do visível, não do verbo” (p. 69). O interesse da pesquisadora
aponta, portanto, para as múltiplas possibilidades de realização simultâneas que o vazio
sugere, compreendido, não como o nada, mas com o todo da tela, onde são pintadas as
imagens e em que igualmente sobram, isto é, respiram, nos vãos, os sentidos.
Recuperar o fundo coloca toda a história das relações entre artes plásticas e literatura num
patamar que revigora a discussão sobre a natureza da escrita, uma vez que nem palavra,
149
nem figura são, isoladamente. Desde o fim do séc. XIX (1897), com Un coup de dés
n’abolira jamais le hasard, Mallarmé redesenha a poesia do século seguinte e toda a
literatura integrando os elementos visuais perdidos. Sempre a literatura avançando na
revisão de suas premissas e propondo, neste caso, uma retomada da imagem pela escrita
alfabética. O espaçamento da leitura, como ênfase da imagem poética, o caráter gráfico das
letras 99 e figuras desenhadas na página, criam uma aproximação, segundo Mallarmé, com a
partitura musical, como o tempo fraco ou o forte, a pausa, vista não como ausência de som,
mas como presença de ritmo e de leitura, são aproximações com uma visualidade ainda
impensada ou esquecida pela história da escrita alfabética. Nesse aspecto, aproxima-se da
oralidade pelo ouvido que reconhece o ritmo, a cadência, a toada. A leitura simultânea da
página dupla oferece uma nova forma de ler similar à da imagem e, nesse caso, distante da
palavra oral. Por isso, a linguagem se aproxima da escrita e se afasta da palavra viva, como
mostra da existência material do verbo.
Arbex (2006, p. 22-23) informa que “as teorias sobre o valor ‘positivo’ da escrita repousam
sobre três pontos: seu caráter unitário (por espelhar a linguagem, a qual não seria apta à
mistura); seu caráter útil (conserva a linguagem oral); sua simplicidade (o alfabeto é o
sistema mais simples, por isso é útil)”.
99
Ver o artigo, em Belmiro (2004), que trata da caligrafia como presença de uma parte visual da escrita.
100
“L’écriture y est comprise dans son sens strict de véhicule graphique d’une parole” (p.5).
150
valores modernos, como a comunicação, clareza, eficácia e abstração, são perpetuados nos
ambientes da educação escolar, como qualidades e graus de acesso ao conhecimento. Vale
lembrar Barthes 101 , para quem “a escrita às vezes (sempre?) serviu para esconder o que lhe
foi confiado, sendo a criptografia a própria vocação da escrita e a ilegibilidade sua
verdade”. Esse é um dos aspectos que será fundamental para o trabalho de análise do
corpus.
Esse caráter didático, que hoje encontramos em livros escolares e em outros não destinados
obrigatoriamente à escola, já era visto em obras, como já citado, desde a Idade Média e,
por essa razão, inibia uma aproximação estética. Basta observar como certos processos de
alfabetização se apropriam das imagens 102 : não somente como ilustração, isto é, como
contextualização de uma narrativa, mas como ícone que comporá, com o significante
verbal, o signo verbal. Tal qual o ícone bizantino, cujas imagens de santos retratam o
universo específico da cristandade ortodoxa oriental: são imagens de santos sem fundo,
sem contexto, um mesmo rosto santificado de caráter abstrato, como ícones que acessam o
invisível; por outro lado, a arte popular das cruzes bizantinas reproduzem, verticalmente e
fora da linearidade alfabética, as histórias da vida de Cristo (fig.39).
Figura 39
Ícones Bizantinos
101
Apud Arbex 2006, p. 24
102
Remeto essa discussão à análise sobre cartilhas apresentada no cap.2 desta tese.
151
italiano, um espaço que poderia se chamar “matéria ótica da superfície, que mostra e
transmite” 103 .
Essa dificuldade de convivência entre o didático e o estético merece uma reflexão mais
aprofundada que supere as exigências de um saber escolarizado. Parece que o problema
está no pólo da produção de materiais escolares e, não, no pólo da recepção 104 . Talvez
esteja mesmo nas relações estabelecidas. De qualquer forma, é fundamental que se
compreenda, nessas relações, o que o conceito de aprendizagem pode gerar. A questão
deve avançar por um caminho que defina o que é aprender, em que ponto o embate de duas
posições pode indicar novos rumos: de um lado, uma criatividade solta e aparentemente
libertária, e, de outro, uma cópia inicial do que já existe, como um estágio do
conhecimento que proporcionará sua inserção na cultura, não significando
obrigatoriamente que o aprendiz se limite ao modelo. Dessa forma, a escola escolariza,
mas os sistemas de aprendizagem 105 devem permitir sua comunhão com a estética, sem
que isso restrinja o seu caráter criador e sem o qual o homem torna-se apenas reprodutor.
Contemporaneamente, alguns estudos vêm priorizando certas abordagens sobre uma área
que, de alguma forma, é exemplo dos mais recentes da discussão que estou apresentando.
Trata-se do design gráfico 106 , que integra a imagem e o texto verbal numa outra
concepção, mais visual, mais plástica, enfim, uma retomada da figura e da palavra tendo
como eixo comum o espaço. A história do design vem de longe e tem sua origem na
Antiguidade, mas a Modernidade e o conceito de Belo do séc. XVIII trouxeram uma
maneira nova de ver o objeto, reformulado pelos usos de que dele se fazia. Zarur (2000),
analisando a possível inserção da ilustração no âmbito do design gráfico, comenta a falsa
dicotomia entre belas-artes e artes-aplicadas, tomando a segunda como uma atividade
prática e uma função objetiva, diferenciando-as das puramente expressivas. Esse rigor
mostra bem o lugar de onde se analisam as figuras (e não imagens, que, na diferenciação
proposta por Christin, traz consigo a superfície), vistas como ilustração. As pesquisas na
103
Christin (2006, p. 94)
104
Um tratamento bem estruturado do tema das relações entre linguagem e imagem e que visa a um caráter
didático pode ser encontrado em Walty et all, 2000.
105
Para a presente discussão, é bastante útil o artigo de Gomes (2007) sobre a aprendizagem sob o ponto de vista
antropológico, no qual analisa alguns conceitos de cultura e sua relação com os processos de aprendizagem da
própria cultura.
106
Não é meu interesse aqui aprofundar o debate sobre essa área de conhecimento, que tem apresentado uma
discussão rica e complexa nos seus fundamentos; apenas me reporto a ela pela semelhança de elementos e
características que podem iluminar as questões que proponho.
152
Penso que essa discussão põe em evidência o grafismo atual que vem sendo aproveitado na
área da educação, seja como aplicação prática, seja como arte, não só na ilustração de
textos verbais, como também tomado como texto visual, o que possibilita aproximar o
design gráfico de sua função utilitária e expressiva, ao mesmo tempo. Portanto, resta
redefinir que aspectos distinguiriam o grafismo como uma área de atuação específica na
educação. Essa mistura de funções, ou melhor, essa desformatação de funções ajuda a
reinventar formas de relação e formas de apresentação, o que pode aproximar a poesia do
design, as artes da literatura, e a prosa romanesca, que contempla o cotidiano dos seres
comuns, teria essa dupla entrada. A proposta de uma interrogação visual seria bem acatada
nos ambientes nos quais caberia interpretar as relações existentes entre seus traços e,
eventualmente, seu sistema.
Zarur (2000) faz uma síntese da história do design gráfico desde a sua origem, buscando
situar a ilustração não só como design gráfico, mas também como linguagem. O design
gráfico mostra uma preocupação com a reprodutibilidade técnica tão presente, que talvez
seja o que realmente o caracteriza como atividade diferenciada. Nesse sentido, diz ela, a
ilustração pode ser vista como algo que se insere no âmbito do design gráfico, pois
107
Ernst Gombrich, em seu clássico Arte e ilusão, faz um percurso da história da arte procurando uma base ótica e
psicológica da pintura. Ver também os trabalhos de Hauser, Débret, Chartier, Christin (2006, p. 88-89), Vouiloux,
entre tantos.
108
Ginzburg, 2001, p. 102 apud Makowiecky, 2003, p. 20.
153
qualquer que seja sua origem, ela, invariavelmente, passa por um processo de impressão.
Essa qualidade de reprodução faz com que pinturas que ilustram um livro, seja didático ou
não, percam sua aura: “Nesse sentido, Mona Lisa que ilustra um livro histórico certamente
não é igual à Mona Lisa exposta no Museu do Louvre; ela perde seu caráter de pintura e,
dentro de outro contexto, passa a ser design” (p.207). Vindo de direção oposta, mas
chegando a um ponto de convergência, os desenhos da Mônica das histórias em quadrinhos
de Maurício de Souza, travestida de Mona Lisa, aparecem nos livros didáticos,
configurando um elo entre o grafismo, a arte, e resultando no pedagógico.
Por outro lado, para tratar as imagens como linguagem, a pesquisadora se apóia na
pragmática da enunciação de onde retirará os subsídios para sua metodologia: “imagens
escolhidas para ilustrar determinado texto são enunciados visuais utilizados pelo emissor
como instrumentos de determinadas ações comunicativas, convencionadas com o receptor”
(p.207). Sua preocupação mostra uma tendência atual de superar uma visão meramente
funcionalista das figuras/dos objetos/das imagens e considerar os interlocutores e as
condições de produção, além das possibilidades de impressão. Apresenta operações, que
chama de modalizações da enunciação, baseadas em Milton José Pinto. São elas:
declarativa, representativa, declarativa-representativa, expressiva, compromissiva, diretiva.
Interessada em reconhecer as múltiplas condições de uso e as situações de produção das
imagens, isto é, sua natureza gráfica e sua qualidade de linguagem, Zarur recorre, como
tantos que fizeram aproximações entre imagem e texto verbal, a dois pilares distintos,
todavia sem estabelecer paralelo de equivalência e valor: um pilar no seu modo de
produção (sua reprodutibilidade) que lhe garantirá funcionalidade e outro em categorias
lingüísticas para se constituir como linguagem.
Um exemplo concreto de como as artes gráficas assumem o diálogo com as artes plásticas
é a exposição do artista plástico Mário Arreguy Amostras do terreno, em Belo Horizonte-
MG, outubro/2007: são trabalhos com diferentes materiais e uma mesa com “um enorme
volume de material pesquisado/catado ao longo de uns dezoito anos”, 109 diz ele. E
acrescenta: “a escrita e a imagem andam juntas, uma beleza, uma liberdade, posso propor
ao espectador ler uma idéia visual e ver um texto, na mesma configuração
plástica/gráfica!”
109
Depoimento dado à pesquisadora em conversa informal e por email.
154
Outro caso exemplar, entre muitos projetos e eventos, são as revistas de design gráfico, que
tomam assento no espaço das artes, com publicações de pequeno, médio e grande porte,
para públicos diferenciados. Algumas pretendem apresentar, como atividade acadêmica,
uma arte gráfica universitária em que palavras, desenhos, guache, letras, reprodução
fotográfica, nanquim, frases, tintas, todos juntos realizam uma arte livre, relacionando
design, música, poesia, entrevista. É o caso da revista Traça 110 , que trata de práticas desde
o graffiti (questionando a perda de sua força subversiva) a temas como a preocupação com
o critério de valorização do suporte (figs.40a - 40b).
110
A revista ‘Traça’, em seu segundo número em 2007, é uma arte gráfica universitária, publicação da
Universidade Fumec, Belo Horizonte-MG. É um projeto acadêmico extracurricular, desenvolvido por alunos
do curso de Design Gráfico e funciona como um espaço aberto para pesquisas gráficas. Para acessar, ver site
www.revistatraca.art.br
155
Nesta seção, apresento algumas abordagens sobre a relação entre o icônico e o verbal e,
para isso, valho-me dos estudos sobre literatura e artes plásticas realizados por Arbex, que
oferece, em seu artigo Poéticas do visível: uma breve introdução 111 , uma revisão da
literatura sobre as propostas teóricas e os níveis de relação entre o icônico e o verbal, a
partir da leitura de dois números da revista Textuel. A autora propõe dois grandes eixos de
análise: os estudos que se baseiam no conceito de paradoxo e os voltados para o conceito
de paralelo. Vale lembrar que, a partir de Christin, a escrita aqui é vista como uma
estrutura mista, apoiada em dois registros, verbal e gráfico, e a imagem, entendida como
um conjunto de figura e suporte.
4.3.1 O Paradoxo
111
Arbex (2006, p. 17-62) é um artigo que resume seu relatório de pós-doutorado.
112
Apud Arbex, p. 31
156
confundir o visível e o legível sob a categoria (...) do inteligível, mas a manutenção das
interrogações que persistem na dupla de códigos.
Essa é uma questão difícil de ser assimilada, por exemplo, pelo conceito bakhtiniano de
signo neutro que, de alguma forma, permite e facilita o passeio da linguagem verbal por
entre as imagens, ajuda a compreendê-las e propõe o retorno ao mundo dos conceitos para
tornar inteligíveis os seus conteúdos; todavia, não há, coerentemente, aliás, nenhuma
referência ao espaço entre as imagens.
Ademais, questiona-se o termo relações, que supõe uma lógica, uma economia binária ou
uma síntese pacífica. Na verdade, há uma questão de dilema, de alienação, de fratura, de
heterogeneidade, de contato impossível; são relações dinâmicas e não fixas,
transformadoras e não estáveis. Acredito estar aí um grande problema para a escola, uma
vez que a questão teórica de não polarizar posições deveria ter ressonância no modo de
operar a realidade escolar, ampliando (e não reduzindo) a riqueza dos diferentes contatos
produzidos por essa dinâmica. Acostumada à estabilização, à conformidade e à ordenação,
o espaço escolar tende a falsear a tensão, não explicitando a presença, por vezes
dominante, do discurso visual nos processos de aprendizagem.
Arbex apresenta outro conceito importante de que autores vêm se apropriando, para dar
corpo ao conjunto teórico da perspectiva do paradoxo: é o de corte semiótico, a partir do
qual os autores pensam as relações sob o signo da plasticidade. Para isso, se aproveitam
das pesquisas de Pierce que, propondo uma triádica, amplia a relação binária saussureana
que supõe uma lógica e permite realizar contatos que não sejam obrigatoriamente estáveis,
mas transitórios e múltiplos. Frente a isso, o conceito de corte semiótico quer pensar as
relações sob o signo da plasticidade. Muitos teóricos têm proposto uma revisão do conceito
de mimese, além de estudo da materialidade da escrita e articulação de diferentes
modalidades tipo-estilísticas. Parece que, com isso, propõe-se, ao fim e ao cabo, uma
forma original de pensar e abordar o tema: aceitando uma diferença irredutível, surge a
possibilidade de um novo gênero entre a pintura e a literatura, que a atividade estética tenta
descobrir e atravessar. Mais do que natural, a seqüência de incômodos recai sobre o modo
de organização das disciplinas que tornam suas margens mais fluidas: de um lado, a
história da arte e a reflexão estética e, de outro, a história e teoria literárias. Hoje,
observam-se diálogos profícuos nas suas fronteiras, numa evidente necessidade de
157
113
PRUDON, Montserrat apud Arbex (2006, p. 35).
114
Essa preocupação está exposta no artigo Práticas intertextuais em processos educativos , em Belmiro (2003).
115
Vouilloux, apud Arbex, p 36.
158
É claro que a base do percurso, pelo qual todos os estudiosos adeptos do paradoxo optam,
está, antes de mais nada, em quem fará o percurso. Importa dizer que os pesquisadores da
história da arte, ou os adeptos da semiótica, ou os que querem ressaltar a autonomia da
imagem em relação ao texto, conferem valor na radical heterogeneidade da imagem, para
instaurar uma discussão que contraponha os poderes da escritura.
4.3.2 O Paralelo
Outra perspectiva de estudo apresentada por Arbex é aquela a partir da noção de paralelo
entre literatura e pintura. Esse enfoque comparativista, proposto por Nella Arambasin 116 ,
legitima uma proposta, pensada em 1947, de a literatura abrir-se “a uma estética
comparada”, para apresentar textos e escritas interdisciplinaridade, decorrentes de uma
reflexão própria às diferentes expressões artísticas. Sua origem encontra-se desde a
Antigüidade com o ut pictura poesis, fundada sobre o paralelo baseado no princípio
mimético, “que não apenas rege todas as artes, mas conduz também a aproximá-las até o
amálgama.” Essa perspectiva horaciana vingou até o século XVIII, quando Lessing,
historiador da arte, construiu um arcabouço teórico que se manteve até o século XIX. Dizia
que era preciso mantê-las distante e redefini-las, as artes e a poesia, dentro de seus limites,
apresentando, conseqüentemente, a clássica depuração entre artes do espaço e artes do
tempo. Por sua vez, o século XIX é portador de uma experimentação estético-literária que
permite escrever sobre pintura e elaborar uma reflexão sobre a prática literária. Ora, essa
presença constante da arte como temática de artigos, ensaios, textos de ficção, propicia um
olhar que amalgama os lugares dessas experiências estéticas, criando certas dificuldades
para a modernidade que afirma a autonomia das artes, essa noção tão cara ao processo de
assentamento do sujeito. Mesmo assim, o princípio do paralelo é mantido, como afirmação
116
Apud Arbex, p. 38-40
159
Vale a pena pensar o que essas relações ou, como querem, esses rompimentos e fraturas
entre essas artes podem significar para o estudo em questão. Não é o caso de optar
necessariamente por uma ou outra noção, mas dizer da impossibilidade de se manter
distante da discusssão e, mais ainda, de estar atento para os impasses por que passam a
convivência entre esses dois domínios. Chamar a pintura de linguagem é submetê-la ao
padrões de conformidade verbal; chamar o texto de imagem (como querem os estudiosos
do design gráfico) é submeter o texto à plasticidade da figura. Mais do que o quê, vale
aproveitar o como se dão essas relações para que se possa depreender, em materiais que
circulam na escola, as diferentes formas de aproximação entre imagem e texto. Talvez
fosse mais proveitoso recuperar o tanto de linguagem e de imagem que há nos dois
domínios. Por isso é que Arambasin continua apontando, no século XX, alguns
movimentos de substituição e deslocamento dos antigos paralelos, redundando em
propostas de gêneros, como, por exemplo, os híbridos.
Tal como a tensão que permanece no gênero entre a pintura e a literatura, na perspectiva
do paradoxo, o ponto de vista do paralelo entre as artes e a literatura recria essas novas
possibilidades de gêneros. Vale lembrar que o hibridismo em Bakhtin aponta para a
resultante de misturas que ampliam a dialogicidade inerente ao discurso. São pequenas
alterações e interferências no modo de estruturar o conceito que fazem essa situação de
enfrentamento tomar pequenas variações fundamentais, que ajudarão essa pesquisa a
recolocar as relações entre imagem e texto nos ambientes escolares. Portanto, paradoxo,
paralelo, corte semiótico, descrição, narrativa são alguns conceitos nos quais me apoiarei,
a eles me rementendo implícita ou explicitamente para estruturar as análises do material.
Um dos critérios de base considera a natureza das obras118 , apontando três categorias de
obras: 1°- “criadas em fusão artística” (mistura de vários códigos artísticos numa mesma
obra, como a ópera, os romances com desenhos do autor etc.); 2°- “criam uma fusão” e as
“adaptações” (a partir de elementos parciais pré-existentes, cria-se uma nova obra, que
realiza ou não a fusão das artes); 3°- as que incluem citações. Além disso, essas categorias
apresentam quatro principais eixos críticos: a relação com o autor, a relação com o
contexto de produção, a relação com o contexto de recepção (esses três questionando a
obra do ponto de vista pragmático) e a relação da obra com as artes (a relação da mudança
de código, com as outras artes, é o eixo da estética comparada, já mencionada
anteriormente). Há uma tendência para compreender como essas formas artísticas marcam
a existência umas das outras, ou seja, se pode haver prevalência de uma delas e, se houver,
como se dá essa tensão. Críticos dizem que são quatro os pontos abordados: a- duas formas
artísticas para uma mesma interrogação, “... escrever e pintar, ou fazer da pintura o objeto
do discurso literário, são abordagens inscritas numa pesquisa formal ou filosófica” (p.42);
b- a pintura como fonte de inspiração para o escritor (o autor forma uma estética própria a
partir da observação da pintura); c- a pintura como motivo do texto (o autor se serve do
quadro como motivo de descrição); d- a pintura inspirada pela literatura.
118
MONCLAIR, Florent apud Arbex, p. 41-42
161
fossem da mesma natureza, pois não são marcadas as formas próprias de se constituírem.
Muito menos marcada a natureza da relação que essas formas estabelecem, como se
bastasse aproximação física no suporte para se constituírem como obras dialogantes. Sabe-
se que a linguagem constitui o sujeito, como afirma Bakhtin e, aqui, quero reafirmar que as
naturezas constitutivas dessas outras linguagens também constituem os sujeitos,
contemporâneos e híbridos, detentores de uma diversidade de modos de expressão que
precisam ser, primeiramente, reconhecidos pelo sistema escolar e devolvidos aos sujeitos-
alunos em forma de atividades didáticas. O alfabeto, por exemplo, que os gregos
organizaram de forma a retirar a instabilidade através da relação grafema/fonema, tem
apresentado formas renovadas que, mesmo que não alterem seu sistema, reintroduzem
imagem como um elemento de significação. A diagramação, a fonte, o subsistema de
acentuação e o de pontuação etc. são apenas alguns recursos de visualidade que interferem
significativamente no sentido da escrita alfabética. Outro aspecto que tem demonstrado
certa falta de clareza de exploração é a preocupação em transformar os elementos
constitutivos dos gêneros do discurso, como o tema, a forma composicional e o estilo do
autor, em exercícios que se dirigem às pinturas, gravuras, desenhos, mapas, etc., mas que
não obtêm como resposta dados relativos às características dessas linguagens. Ao
contrário, o viés da plasticidade é anulado em detrimento do viés da linguagem verbal.
Outro caminho de análise parte da hipótese de que os tipos de relação entre imagem e texto
dependem de sua situação de comunicação e não da natureza intrínseca do texto e da
imagem. Hoek 119 estuda textos que se inspiraram em obras de arte e que têm um referente
119
Hoek apud Arbex p. 43-44
162
pictural. Sua proposta de classificação indica uma dada situação de comunicação (de
produção ou de recepção), a relação imagem/texto que é proposta (se primazia da imagem,
se do texto, se simultaneidade, se co-referência) e a tipologia das obras (multimedial,
transmedial, discurso misto, discurso sincrético). Parece ser possível aproveitar alguns
elementos desse quadro classificatório como base para um mapeamento mais amplo das
formas em que se apresentam textos e imagens. Na pesquisa que desenvolvo, não há
interesse, por exemplo, na observação da situação de recepção, mas é rica a possibilidade
de destacar, na relação texto/imagem, se há ou não primazia de um sobre o outro. Por outro
lado, a tipologia das obras merece atenção, pois sua caracterização implica a presença de
ambos, ou a anterioridade de um sobre o outro, isto é, se imagem ou texto serve de base
para a realização de um deles.
Louvel prioriza a descrição como forma de explorar diferentes graus de saturação pictural
do texto, e não somente como imagem visível para ilustração ou como ponto de vista
criativo. Assim, diz ela 121 : “... relação entre texto e imagem, jamais totalmente
estabilizada, mas sim movimento perpétuo entre ver e ler, donde a produção dessas ondas
120
A esse respeito, ver Olson, 1997, cap. 10.
121
Apud Arbex, p. 48
163
do visível que não param de perturbar a superfície do legível ...” Por isso, ela define o
iconotexto como uma imagem visual convocada pelo texto, que se desloca na situação de
“‘duplo desligamento’: na ‘translação pictural’, diferentemente da tradução lingüística
(passagem de um significante a outro, de mesma natureza, lingüístico), efetua-se a
passagem de um significante (pictural) a outro significante (lingüístico) de natureza
122
diferente” , o que equivale à translação transmidiática. A autora observa que a descrição
traz um efeito de expansão do texto, resistindo à linearidade e acrescentando um espaço, o
da imagem mental, que terá como limite a capacidade de memorização do leitor. Cria uma
série de recursos que mostrarão as ofertas de efeitos de enquadramento, isto é, seus
dispositivos específicos: deve realizar uma série de operações, ser organizada (por um
focalizador), motivada pela intriga, ter uma ou várias funções, que são efeitos plásticos.
Penso que não só a descrição, mas a argumentação pode ser tomada como parâmetro para o
paralelo entre imagem e texto. Por exemplo, as capas de revistas de circulação nacional
como Veja, Isto é, Carta Capital, entre outras, além de explicitar sua postura ideológica,
também argumentam quando selecionam modos de colocação das imagens na superfície do
papel: apostando em diferentes níveis de leitura, orientam o leitor para a descoberta da tese
que desejam defender, suas hipóteses, na maioria das vezes apenas indicadas, resultando
numa conclusão pelo leitor, dada pelos vãos de leitura e pelo tempo que é dado ao leitor
para absorver e concluir. A forma de apresentação da argumentação é simultânea, mas a
leitura, não. Eis a aproximação com as obras de arte. Alguns estudos sobre a relação
imagem e escrita têm mostrado os traços de argumentação na imagem, especificamente o
desenho infantil 123 , embora considerando a imagem como etapa inicial da escrita e, de
certa forma, não aprofundando as tensões decorrentes da persistência da imagem nos
processos de significação desenvolvidos pelos alfabetizandos. Algumas vezes, observa-se
que a tendência em priorizar a escrita na escola traz conseqüências danosas para o trato
com as imagens, supondo que seria simplesmente a presença da escrita, e não o valor que
lhe é dado, o motivo principal pelo desinteresse no uso de imagens.
Novamente a tensão entre as artes do tempo e as artes do espaço volta a ser criticada, dessa
vez por meio da presença de um sujeito, que relativiza a aparente autonomia da arte pela
122
Louvel, p. 196
123
Ver estudo sobre as relações do desenho e da escrita no processo de aquisição da escrita, em Paula, 2007.
164
necessidade de um leitor/espectador para lhe dar sentido. A compreensão desse sujeito traz,
no seu bojo, toda a bagagem de sua formação construída. Louvel afirma 124 :
Para a presente pesquisa, a afirmação acima vem ao encontro de algumas das preocupações
já citadas, como a formação dos professores. Parece fundamental que, para se ensinar,
deve-se, antes de qualquer devaneio, saber fazer o que se ensina. Assim, o professor que
tem interesse em construir uma competência estética tem mais facilidades no trato das
questões estéticas propostas nos livros didáticos, nas revistas de arte, nos livros de
literatura infantil, em qualquer veículo em que a sua sensibilidade e sua competência sejam
solicitadas. Seja em texto literário – romance, crônica, poesia –, seja em artes visuais e
gráficas – pintura, escultura, fotografia, desenho etc. –, seja na relação dos dois, é com o
intuito de aprender, entendido como um tipo de habilidade que deve ser cultivada nas
práticas cotidianas e experimentais, que o professor – e na sala de aula com o aluno – situa
sua ação de saber 125 . Tanto desejo para aprender, quanto disposição intelectual para
apropriação de novas formas de organização do conhecimento, refletem a afirmação de
Olson (1997, p. 246-247): tanto palavras quanto imagens se tornam recursos conceituais e
técnicos que permitem a aprendizagem de distintas propriedades do mundo e de formas
que as tornem visíveis, pois não bastam “um olho sincero e uma mão fiel para ver tudo o
que há; é preciso, além disso, uma mente educada.”
Outro aspecto importante é a atenção para o fato de que a relação entre o texto e a imagem
nem sempre é feita de forma rígida, nas palavras de Louvel (apud Arbex, 2006, p. 48),
“jamais totalmente estabilizada, mas sim movimento perpétuo entre o ver e ler, donde a
produção dessas ondas do visível que não param de perturbar a superfície do legível”
(p.48). Uma situação exemplar é a instalação Grande sertão: veredas, concepção da
diretora Bia Lessa, outubro de 2007, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Uma
124
Apud Arbex, p. 48
125
Gomes (2007) apresenta, entre outras concepções, o conceito de cultura relativizado pelo conceito de
habilidades (skill) na forma de lidar com o mundo, e a idéia de aprendizagem como educação da atenção. Essa
perspectiva ilumina o entendimento sobre a formação cultural do professor e de suas ações em sala de aula, na
direção de suas ações educativas.
165
verdadeira explosão de letras, palavras e textos que vão sendo remontados na medida em
que o leitor/espectador estabelece uma ponte de sentido com o mundo de Guimarães Rosa.
Como diz a proposta no folder: “Optamos por não dividir o ambiente, mas dividir o olhar.”
Mais adiante: “No caso do espectador seguir a trilha de Riobaldo, encontraria palavras
ilegíveis jogadas em restos do mundo – lixos. De um único ponto, o texto se tornaria
claro...” ou: “Se seguissem a trilha de Diadorim, encontrariam frases (escritas no avesso)
cobertas por uma lâmina de água e contidas em galões... Para ler, o visitante teria que fazer
uso de um espelho, estabelecendo um diálogo com o ilegível...” Letras que faltam, palavras
cortadas, frases quebradas, mas tudo realinhado num certo ponto do espaço por quem
deseja enxergar. A linguagem sendo construída, como Rosa o fez em seu romance, e as
palavras e letras sendo remontadas, refeitas, textos sendo reconstruídos pela interferência
do espectador no visível, para torná-lo legível. Sobe-se uma escada para se alcançar um
lugar de onde se tem um ponto de vista que permitirá organizar o olhar, na medida em que
os sentidos do que se vê são redescobertos, a saber, o texto. Dessa forma, pedaços de
palavras e letras, lixos do espaço, se organizam em linguagem. Um sonho da artista Bia
Lessa que concretizou, em espaço, a literatura de Guimarães Rosa. Na concepção da
autora, a produção da instalação se deu a partir do legível para o visível que, na experiência
do espectador ao vivenciar a instalação, completará o circulo interpretativo, do visível ao
legível. Isso dá a medida tênue da operação de translado de um domínio ao outro, mesmo
sendo o visível visual (imagem) ou textual (linguagem), mesmo que sempre falte alguma
coisa que se perdeu nessa translação, ou que sempre se acrescente algo a mais no momento
da conquista da significação.
166
○5 ○
Análise do Material
A escolha dos livros infantis deu preferência a um grupo de 29 livros, assim divididos: 19
livros são parte integrante dos livros do PNBE (2006 e 2008) 126 e 10 livros fazem parte do
acervo do PROALE 127 . Alguns critérios determinaram a escolha dos livros: 1°- em relação
à quantidade, o número de livros, tanto nacionais quanto estrangeiros, que apresentam
126
Trata-se do Plano Nacional de Biblioteca Escolar, que avaliou e selecionou obras de literatura, no intuito
de compor acervos para escolas públicas das áreas finais do Ensino Fundamental – PNBE 2006 – e da
Educação Infantil e escolas públicas que atendem as séries iniciais do Ensino Fundamental – PNBE 2008 –,
ambos coordenados pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Faculdade de Educação da
UFMG, em convênio com a Secretaria de Educação Básica do MEC.
127
PROALE - Programa de Alfabetização e Leitura, vinculado à Faculdade de Educação/UFF.
167
O artista plástico Mário Arregui foi outro profissional contatado, em situações informais
de conversa entre amigos, quando ele me presenteou com um número da revista “Traça”,
edição universitária de Belo Horizonte, cujo projeto Arregui coordena. A continuação dos
contatos se deu por correio eletrônico, abrangendo discussões sobre o material apresentado
na revista, que vêm mostrando trabalhos de vanguarda no âmbito do design gráfico.
em algumas produções. Contudo, é preciso esclarecer que elas têm um caráter mais
didático de apresentação e que meu interesse é mostrar que são o legível e o visível que
atravessam os trabalhos classificados didaticamente e como o fazem. Dessa forma, acredito
poder seguir um caminho que responda à questão fundamental dessa pesquisa, sem a
limitação do lingüístico ou do pedagógico, discussão apresentada no segundo capítulo
dessa tese. Não há uma pretensão de classificar os livros de forma a obter uma regularidade
de uso, mas de compreender possibilidades expressivas que podem ocorrer no trânsito
entre a imagem e o texto, destacando-lhes algumas possibilidades de intercâmbio. Para
isso, penso ser viável a transposição das afirmações de Bakhtin (2002, p. 102) sobre as
manifestações lítero-verbais do sujeito que, numa dada circunstância, se orienta para o
pluridiscurso e elege uma linguagem, a depender das diversas circunstâncias em que se
situa o evento de linguagem:
Na verdade, também esse homem não tem relação com uma, mas com
várias linguagens, sendo que apenas o lugar de cada uma é estabelecido e
indiscutível, a passagem de um lugar para outro é prevista e automática
como aquela que vai de um quarto para outro. Essas linguagens não se
chocam entre si na consciência deste homem, e ele não tenta
correlacioná-las ou olhar para uma delas usando os olhos de outra
linguagem.
O modo como a análise é encaminhada respeita a própria elaboração dos livros, uma vez
que algumas argumentações serão apresentadas ora em conjunto, ora separadamente,
permitindo a estruturação de um texto mais fluido e que dê orientação de percurso ao
leitor. Muitos tópicos referentes ao mesmo livro não podem ser desmembrados, sob pena
de dificultar o entendimento da própria organização da obra. Exemplos de alguma
categoria poderão estar deslocados e comentados em outro lugar, com o intuito de iluminar
uma visão mais íntegra do livro. A opção por esse encaminhamento apenas reflete a
intenção de apresentar a inteireza da obra, privilegiando os embates discursivos a ela
inerentes.
Vale destacar o interesse de vários trabalhos sobre produções brasileiras, tanto do ponto de
vista histórico 128 quanto do ponto de vista da temática e linguagem 129 ; alguns estudos
128
A dissertação de Mestrado de Graça Lima, O Design Gráfico do Livro Infantil Brasileiro, defendida na
PUC/RJ, em setembro de 1999, estuda algumas produções brasileiras dos anos 1970: Ziraldo, Eliardo França
e Gian Calvi.
129
A dissertação de Mestrado de Ana Paula Zarur de Andrade e Silva, Por um Significado da Ilustração no
Livro Infantil Brasileiro, defendida na PUC/RJ, em março de 1997, faz aproximações da ilustração como
171
design e como linguagem. Outro trabalho é a dissertação de Mestrado de Luís Camargo, “Poesia Infantil e
ilustração: estudo sobre Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles”, defendida na Unicamp, 1998, onde estuda a
relação entre poesia e ilustração de três poemas, em cinco diferentes edições. Cito ainda a dissertação de
Mestrado de Nilton Gambá Junior, O Sedutor Design do Livro de História Infantil e sua Relação com a
Narratividade, defendida na PUC/RJ, em maio de 1999, que procura desenvolver um parâmetro crítico para a
avaliação das interferências realizadas pelo designer no livro de histórias infantil quanto à narratividade. A
dissertação de Bárbara Jane Necyk, defendida pela PUC/RJ, em março de 2007, Texto e imagem: um olhar
sobre o livro infantil contemporâneo, deseja encontrar parâmetros para a análise das diferentes possibilidades
de condução da narrativa do livro infantil, efetuada pelo texto e pela imagem. Outra dissertação
130
Estudos sobre projeto gráfico dos livros infantis são encontrados, sobretudo, em pesquisas na área de artes
e design. Outro exemplo é a publicação de Guto Lins, sobre projeto gráfico, metodologia e subjetividade em
livro infantil, Livro Infantil?
131
No âmbito dos programas e documentos oficiais que orientam o ensino fundamental em materiais
didáticos, a dissertação de Mestrado de Ronan Cardozo Couto, A Escolarização da Linguagem Visual: uma
leitura dos documentos ao professor, defendida na UFMG, 2000. Para um ponto de vista do leitor mirim
sobre o livro de imagem, ver a dissertação de mestrado de Mara Rosângela O Livro de imagens e as múltiplas
leituras que a criança faz de seu texto visual, UNICAMP, Faculdade de Educação, 2001.
172
Assim, nada escapa na elaboração da obra. As condições, que envolvem os eventos, fazem
parte dos acontecimentos e participam ativamente na constituição da linguagem, e os
sentidos, para Bakhtin, realizam-se através das interações que as atividades de linguagem
propiciam. Por isso, acredito poder tratar de aspectos aparentemente distantes, como a
descrição e a narração, de forma integrada, constituindo um modo de compreender o
mundo que esfacela com a dicotomia espaço e tempo.
Tanto a descrição quanto a narração têm sido tratadas como tipos de texto que permitem
maior ou menor aproximação com as imagens. Justificada historicamente pela sua natureza
tipicamente verbal, a narrativa passa a ter existência em escritas ideográficas a partir do
momento em que estas assimilam o fonetismo como um elemento de sua escrita. As
imagens, a seu turno, assumem essa capacidade de contar algo, em seu conjunto ou mesmo
individualmente, desde há muitos séculos. Almeida (1999, p. 3-66) nos mostra, através de
seus estudos sobre os afrescos da Capela delli Strovegni, o uso da cronologia para marcar o
grau máximo do naturalismo no tempo, indicando que a antiga narrativa por imagens da
Idade Média prenunciava o cinema do século XX. O movimento não estaria nas imagens,
mas em nós, ao caminhar pela capela, seguindo-as. As imagens ali apresentadas são a
preservação de uma história, um drama visual, cuja função para uma sociedade ágrafa
constitui uma forma de organização da memória coletiva, da guarda de valores, de
tradições e de crenças.
o que come, sua atitude elegante com os mais velhos, enfim, a inscrição do personagem
numa narrativa totalmente explícita, apenas indicada por imagens. Depois dessa obra,
muitas outras se seguiram e fizeram do chamado livro sem texto uma categoria específica,
o livro de imagens, também álbum de imagem, ou o que chamo de literatura visual.
Figura 41
Ida e Volta , Capa do Livro
Por sua vez, a descrição, um tipo textual através do qual as imagens têm sinalizado seu
naturalismo poderoso, oscila de uma visualidade plana, simples, até, na outra ponta, uma
proposição complexa de caráter visualmente metafórico. O acúmulo descritivo, mais que
tornar fixo o tempo para a contemplação do espectador, são gestos percebidos do devir,
que convocam o espectador a lhes dar consecução. É a história-duração das cenas que
ganha continuidade na história-cronologia do espectador. Sobre os afrescos de Giotto e
todas as imagens fixas, Almeida (p. 37) comenta:
... o tempo nunca está pintado, parado e isolado em cada quadro. Em cada
um há um tempo em trânsito presente, sendo o e ao mesmo tempo
passado, presente e futuro. Um tempo que não se faz tempo que
transcorre, mas tempo que dura. Duração. Eternidade em movimento.
Imagem e palavra, descrição e narração são pólos dentro dos quais podemos compreender
o caráter extensivo dos usos do texto e das imagens nos livros de literatura infantil. Os
limites que definiam tanto um quanto outro têm-se tornado tênues, próximos do desejo de
Barthes para quem tudo são textos, só se diferenciando pelo meio material – limito essa
discussão, todavia, pois vai além dos propósitos desta pesquisa.
Observa-se que há uma forte tendência em fazer de muitos materiais de leitura algo que
possa repercutir os processos de estruturação do texto verbal, ao mesmo tempo em que o
174
texto se apropria de modos de realização plástica. Tanto imagem no texto, ou texto como
imagem, seja o iconotexto de que nos fala Louvel ou o estudo da ecfrase, ambos discutidos
no capítulo anterior, indicam um processo já sinalizado no início do século passado por
Bakhtin, sobre a flexibilidade e a democracia da narrativa literária, conforme foi aqui
apresentado. Naquele tempo, essa afirmativa definia um posicionamento teórico-analítico
crítico e renovador, abrindo o discurso do narrador para a existência de falas alheias. Hoje,
muitos críticos analisam negativamente esse regime da narrativa literária, considerando
uma fragilidade a excessiva abertura à fala do cotidiano, cujo mau aproveitamento muitas
vezes é percebido à mínima investigação sobre a literariedade do texto. Confunde-se,
segundo esses críticos, uma fala cotidiana com um discurso literário que se apropria da
linguagem do cotidiano 132 .
132
Ricardo Azevedo trata da distinção entre literatura para crianças e literatura infantil e assinala a
importância da arte (e da ficção) para a manutenção do caráter ficcional da linguagem, mesmo com as mais
variadas temáticas, desde que sejam vistas “pelo ângulo da ficção, da subjetividade, da poesia”. In: Livros
para crianças e literatura infantil: convergências e dissonâncias. www.ricardoazevedo.com.br
133
Goulart, C.M.A. Argumentação a partir dos estudos de Bakhtin: em busca de evidências teóricas e
balizadoras para a análise de interações discursivas em sala de aula. Trabalho apresentado no GT
Argumentação e explicação, Simpósio Nacional da ANPEPP, Vitória, ES, 2004.
134
Goulart, 2007, p. 2.
175
Para o estudo que ora apresento, a extensão das possibilidades de aproximações entre texto
e imagem faz com que procedimentos próprios da linguagem sejam assimilados pela
imagem, sem que ela perca sua capacidade plástica. Essa ampliação de ações que são feitas
pela e com a imagem incorpora alguns temas caros aos estudos da linguagem que, para
Goulart, ajudam na consideração de que enunciar é argumentar: “o princípio dialógico, a
organização de enunciados como gêneros do discurso e linguagens sociais e as categorias
de palavras de autoridade e internamente persuasiva” 135 . Em seu artigo, a pesquisadora
trata de conceitos importantes para sua arquitetura teórica. A palavra de autoridade e a
palavra internamente persuasiva bakhtinianas são elementos que explicitam o jogo de
persuasão social e assimilação pelo interlocutor da palavra alheia, contudo sem esquecer o
sistema da língua e a anterioridade de enunciados ao enunciado do locutor. A rede
estabelecida no e pelo processo interlocutivo definirá, dessa forma, a escolha do gênero do
enunciado, os procedimentos composicionais e o estilo do enunciado, vale dizer, a seleção
dos recursos lingüísticos por parte do usuário (Bakhtin, 1992, p. 321):
A atitude responsiva ativa do locutor está espelhada, portanto, no enunciado proferido. Sua
entonação expressiva faz parte dessa atitude e denuncia o juízo de valor dado às suas ações
com as palavras. Esse é um dos aspectos que permitem a Goulart 136 afirmar que a
argumentação
Inclui, nesse caso, as áreas de saber que vão institucionalizando formas de expor seus
conhecimentos, em diferentes textualidades. Analisando interações discursivas em uma
aula de História de 5ª série do Ensino Fundamental, a autora sugere aprofundar o trabalho
exploratório, compreendendo processos enunciativos como processos argumentativos, uma
135
Opus cit. p.2
136
Opus cit.p.6
176
vez que se manifestam “no discurso pelo tom apreciativo, pelos tempos-espaços e pelo
estranhamento de palavras alheias nos enunciados, como palavras citadas, entre outras
possibilidades” 137 .
Goulart 138 lembra que a natureza dialógica da linguagem postulada pelo autor, por um
lado, e as textualidades características das linguagens sociais e gêneros do discurso do
cotidiano e as textualidades das linguagens sociais e gêneros trabalhados na escola, por
outro, muitas vezes não se assemelham e podem gerar conflitos nas aprendizagens das
137
Opus cit.p.13
138
Opus cit., p.13
177
Optei por uma metodologia que pudesse inicialmente tratar de situações mais gerais, como
os projetos gráficos, as temáticas e uma apresentação de proposta de análise, para que o
leitor tenha acesso e compreenda que tipo de material tenho em mãos e, conseqüentemente,
a linha de trabalho que pretendi desenvolver.
139
Os livros comentados serão anunciados pelo título e, eventualmente, pelo autor, com base na ficha técnica
já apresentada.
178
Num segundo momento, apresento dimensões de análise, assim consideradas pela sua
abertura a atravessamentos de olhares e interrogações e que podem e devem ser ampliadas,
na medida em que o material de pesquisa se avolume e que a pesquisadora se apodere de
novos elementos teóricos. Portanto, são propostas de enfrentamento do material para
análise, mais do que o interesse em circunscrever os livros em categorias que limitem
condições de novos acabamentos, no sentido bakhtiniano.
Essa proposta de aproximação das relações entre discurso verbal e imagético nos livros de
literatura infantil não descarta a importância de aprofundar o tema sobre a conveniência ou
adequação do termo infantil à literatura (verbal e visual) a que tanto crianças quanto
adultos têm acesso e prazer na sua leitura. Até porque se sabe que o sentido dialógico que
constitui os discursos não deseja excluir os leitores privilegiados desse gênero. Contudo, é
uma discussão que poderá ser enriquecida mais adiante, num tempo/espaço propício.
Alguns comentários preliminares devem ser feitos sobre a contribuição dos projetos
editoriais ao conjunto interpretativo da obra. Pensando no chamado livro de literatura
infantil dos nossos dias, observa-se a forte presença do projeto gráfico como criador de um
produto que, em muitas circunstâncias, pode superar sua função primordial, a produção de
um objeto bonito e que contribua para o entendimento da leitura, facilitando a entrada do
leitor, ou pelo texto ou pela imagem. Essa é uma função de nossa época. Contudo, algumas
obras privilegiam de tal forma a existência do projeto gráfico, que ele passa a competir
com a elaboração discursiva do texto e com a plasticidade da imagem. Muitas críticas ao
uso exagerado da imagem em livros de literatura que pretendem se dirigir à criança
179
Primeiramente, uma característica do suporte que vem sendo reforçada ultimamente e que
indica atenção especial com a visibilidade de leitura é a opção de numeração das páginas.
É notável o cuidado de alguns livros em não numerar as páginas sobre o desenho nela
contido que, às vezes, ocupa página inteira. Alguns projetos não se importam em marcar as
páginas com números, outros organizam texto e imagem de tal forma que o numeral ficará
em espaço em branco, e outros ainda não numeram folha alguma, pois possivelmente
considera-se que estariam infringindo o espaço ficcional da história. Percebe-se, contudo,
que essas opções estarão, na maioria das vezes, em harmonia com as demais opções do
trabalho gráfico do livro. No livro Cocô de passarinho de Eva Furnari, as páginas são
numeradas, mantendo-se os números destacados tanto da imagem quanto do texto e
incorporados ao fundo da folha; em seu outro livro, Cacoete, os números assumem funções
de inteligibilidade textual: dividem os parágrafos (p. 13), as cenas (p. 13), (fig.42), blocos
de texto como pequenos capítulos (p. 14, 15) (fig.43) (fig.44), dão visibilidade às
transformações da narrativa (p. 20 em diante, sem que a numeração das páginas volte ao
normal).
180
Figura 42 Figura 43
Cacoete p.13 Cacoete p.14
Figura 44
Cacoete, p.15
A série de livros que fala das partes do corpo humano – Pés, Cabeça, Coração –(fig.45)
(fig.46) (fig.47) , apresenta páginas numeradas. Em alguns deles não se tem o menor pudor
em interferir no desenho com os números, como para ajudar a ordenar o que está sendo
apresentado
181
.
Figura 45 Figura 46
Livro dos pés p.23 Livro das Cabeças , p.7
182
Figura 47
Livro dos Corações - página dupla
Como sua intenção é educar com prazer, apenas o livro mais recente, Coração, não tem
numeração, indicando a inclusão da numeração no trabalho gráfico. Mais um exemplo é a
obra Grande ou Pequena? (fig.48): da mesma forma, as páginas são numeradas e a
proposta educativa começa a aparecer nesses pequenos sinais de enquadramento de
condução de leitura.
Figura 48
Grande ou Pequena? , p.18
Figura 49
O Rinoceronte Ri – Página dupla
Figura 50
O Beijo da Palavrinha - Página dupla
O papel não é uma folha em branco onde se depositam textos, figuras e numeração de
página, mas uma superfície constituída por vazios e cheios, como quer Christin, todos
constituindo significados. O mesmo acontece com Esquisita como eu, de Martha Medeiros,
bem como Poeminha em língua de brincar, de Manoel de Barros (entre outros), não há
numeração de páginas, talvez para não danificar os quadros em que cada página se
transforma separadamente, ou para impedir os sinais de uma seriação que não tem
compromisso com a história do livro, uma vez que já é dada pela ordem de apresentação
das folhas.
184
Figura 51
Esquisita como eu - Página dupla
Outro aspecto a ser notado é o formato das folhas, que variam de acordo com a proposta de
apresentação da história: pequenos e quadrados, retangulares e verticais, de bolso, médio,
grande, todos participam da construção dos sentidos como uma das condições de
possibilidades de leitura. Essa é uma marca distintiva de produção desse objeto livro,
mostrando que o suporte, nesse caso, contribui intensamente para os sentidos possíveis que
a obra oferece. Esse aspecto, que se transformou em um dos componentes de originalidade
de muitos livros, não tem merecido relevância em relação aos livros didáticos da Educação
Básica brasileira, uma vez que obedece ao formato padrão de orientação do Ministério da
Educação.
Figura 52
Poeminha em língua de brincar
No livro Meu amigo, o Canguru, de Ziraldo, a proposta de separar as páginas de texto das
páginas das imagens já indica a importância atribuída a cada dimensão expressiva: tanto
185
texto quanto imagem contam a história do Gugu, amigo do narrador, e cada um à sua
feição: à esquerda, o texto, à direita, os desenhos, que vão se harmonizando em narrativas
às vezes paralelas, às vezes coincidentes, mas que são determinadas por uma linguagem
específica e autônoma.
E agora? Vão tomar o meu lugar? (Fig54.), livro de imagem sem texto, a intenção estética
subentendida nos traços do ilustrador mantém-se subordinada ao projeto pedagógico da
autora psicóloga, mesmo que as imagens componham um conjunto harmônico.
Figura 54
E agora? Vão tomar o meu lugar?
Por outro lado, mantendo uma intencionalidade de cunho educativo em livros com texto e
imagem, é freqüente o uso das imagens como ilustração do texto escrito, como no caso de
Grande ou pequena? (fig.55). Contudo, no diálogo que se estabelece entre imagem e texto,
as qualidades estéticas da obra se destacam em diferentes níveis: cores como branco, rosa,
azul claro, azul forte, amarelo, são o fundo onde se sobrepõem as peças para o cenário
infantil.
187
Figura 55 Figura 56
Grande ou Pequena? p. 19 Grande ou Pequena? p. 28
As figuras parecem ser de massinha, o que lhes ajuda a dar volume nas cenas representadas
em cada página. Sem se preocupar com a perspectiva ou a adequação ao enquadramento,
os elementos são dispostos na página de forma harmoniosa, mas livre, para que a criança
possa totalizar o ambiente. Alguns recursos textuais e gráficos aproximam o ficcional ao
mundo infantil (Fig.56): o texto escrito em quadrinhas – redondilha maior - propõe um
ritmo mais popular, de fácil assimilação, tal como batatinha quando nasce..., também
encontrada no livro Coração; a letra de imprensa, modelo padrão para todo o livro, é a
mesma usada em livros do período de alfabetização; e, finalmente, a maioria das páginas é
dupla, ampliando os objetos e o campo de leitura.
texto escrito em preto. Estes dois elementos (imagem e palavra) obedecem a uma ordem
rígida de apresentação: cada elemento em uma página separada (tal como nos primórdios
de impressão do livro) e a poesia centralizada na página. Todos os elementos gráficos se
propõem a facilitar o reconhecimento da escrita que a criança conhece, a escolar.
Retomando o enunciado bakhtiniano, acredito poder considerar a importância desses
elementos verbais e o que ele chama de extraverbais (os não lingüísticos) como
fundamentais para a produção de sentidos. No caso dos livros infantis contemporâneos, os
projetos gráficos atuam fortemente na orientação do processo de leitura. Os desenhos
também observam a relação de proporcionalidade, explicitando a intencionalidade do
exagero pelo destaque ao pequeno tamanho da formiga em relação aos objetos e ambiente
da casa.
Figura 57
Formiga Amiga, p. 4
Figura 58
As patas da vaca
Figura 59
As patas da vaca
Essa divisão propicia, ademais, fazer uso da linha do corte como superfície de apoio, que
até poderá vir a ser rés do chão. A solução plástica do ilustrador abre a possibilidade de
jogar com o tamanho dos elementos (proporção), cor (como destaque para as partes
recortadas), leitura do texto (fig. 60).
Figura 60
As patas da vaca
Outros livros procuram inovar nas formas de diálogo que o suporte e o gênero permitem,
mantendo certo padrão editorial para a identificação visual de coleções. A finalidade
educativa da coleção Pés, Cabeça, Coração etc. anda pari passu com a presença de uma
elaboração estética refinada. Arriscando uma inversão de prioridades ou, mesmo, de níveis
de aproximação com o leitor, a coleção pode ser considerada um livro didático ao
contrário, pois a natureza do gênero literário permanece íntegra e não se deixa sobrepor
pela finalidade educativa, não há uma intencionalidade de leitura fora deles mesmo:
contendo quadrinhas infantis, adivinhas, frases-feitas, provérbios e metáforas, os textos não
se constituem em narrativa. A página ciência divertida, por exemplo, lembra revistas de
divulgação científica, como Superinteressante; é poesia, brincadeira, informação, tudo que
poderia ser aprendido com leitura e prazer, com imaginação e apuro na exploração
lingüística, no estranhamento da linguagem do cotidiano e em busca de novas
interrogações, através do jogo de linguagem que faz divertir. Isso requer um afrouxamento
dos cânones literários para incluir outros textos que não circulam no campo específico da
literatura, mas que podem ser tratados como jogos de linguagem. A distribuição dos textos
não obedece a nenhuma ordem pré-estabelecida, e eles circulam pelas páginas com total
liberdade ao leitor, que determinará seu caminho de leitura; de qualquer forma, o caráter
educativo está presente, e a intenção educativa convive com a literatura. As imagens são
ilustrações dos textos, sem serem arrojadas e sem pretenderem ir além de uma explicação
do conteúdo do texto (Fig.61,62,63,64,65,66,67).
Figura 61
Livro dos Corações, página dupla
192
Figura 62
Livro dos Corações, página dupla
Figura 63
do Livro dos Corações, página dupla
Figura 64
Livro dos Pés, p. 27
193
Figura 65
Livro dos Pés, p.25
Figura 66
Livro das Cabeças, p.10
Figura 67
Livro das Cabeças, p.20
194
Outro exemplo da relação do texto com as imagens vê-se em O Rinoceronte ri, em que
cada imagem representa um animal, tema das poesias, sempre em dupla página, o que dá
uma folga espacial para propor um trabalho gráfico mais elaborado e que possa sintetizar a
temática do poema. Pretende-se, desse modo, compor uma ambiência para que a inserção
da poesia, tanto na temática, quanto no conteúdo, seja exitosa nos seus efeitos. As
estruturas dos poemas não são fixas, caso do poema A Pulga (ver fig.49), mais visual,
brinca com o pulo da pulga, sempre móvel, enfatizado pela separação das sílabas como
marcas do pulo, que dará ritmo à leitura. Resultado interessante até no último pulo da
pulga, que, de tão impaciente, acaba caindo. (o te de impaciente vira tóim!, já no chão); ou
dos dísticos, dos tercetos, das quadras em redondilha menor ou não, enfim, uma
multiplicidade de formas ao dispor do poeta que realiza gráfica e lingüisticamente a
construção poética imprimindo os sentidos ao poema, além do seu desejo de fazer rir,
sugerido na dedicatória do livro.
Todavia, algumas obras superam imposições de outra ordem que não a literária e a plástica,
e sua realização gráfica torna-se peça essencial para o entendimento do projeto ficcional,
como é o caso de Cíclico, Rodolfo, o Carneiro, Minha mãe é um problema, entre tantos
outros trabalhos de artistas que conseguem tratar o projeto gráfico-editorial como um
projeto ético-estético no âmbito da formação dos sujeitos leitores.
Figura 68
Cocô de Passarinho, p. 3
195
Figura 69 Figura 70
Cacoete, p.10 Cacoete, p.11
Figura 71
Minha mãe é um problema, página dupla
Cocô de passarinho, de Eva Furnari, propõe um layout de página padrão para todo o livro,
destacando texto e imagem por um fundo branco sobre a página amarela. Isso dá uma
aparência de colagem, como que destacando imagem e sua legenda, um texto (o verbal)
não interferindo, nem atravessando a composição do outro texto (o visual). Até mesmo a
disposição de todos os elementos é simetricamente organizada na página, dialogando com
o texto: a repetição dos dias numa cidadezinha pequena, sem alteração alguma na vida dos
seus moradores, como, por exemplo, na p. 5-6: três personagens à esquerda e, logo, três
personagens à direita; três passarinhos de um lado e três passarinhos do outro. Essa
apresentação visual da história permite desdobramentos de sentidos, deixando que os
leitores vão confirmando a regularidade do cotidiano que não permite interferência externa.
Coerente com o público-alvo intuído, tudo que há no livro se dirige para o leitor novato. A
capa e a quarta capa não apresentam texto verbal, a não ser o título, e os desenhos são bem
estilizados (por exemplo, a árvore), indicando o estilo do ilustrador: brincalhão, sem ser
canônico; engraçado, sem perder a originalidade do seu traço; não é uma leitura difícil para
as crianças, e isso mantém o livro distante do óbvio.
Outro livro de Furnari que brinca com a distribuição é Cacoete: as imagens e o texto
caminham juntos, marcando, um e outro, as mudanças de comportamento, as ações trágicas
da bruxa, transformando o mundo ao contrário: a simetria na imagem equivale a
comportamentos regrados, nas p. 3,4,5 (fig.72); o enquadramento centralizado tem sua
197
Figura 72
Cacoete, p. 5
As letras são próprias para cada tipo de uso, como discurso direto, fala do narrador, letreiro
da quitanda, legenda de desenhos, fala de personagens encantados etc. Essa especificidade
serve como orientação de leitura, marcando núcleos narrativos próprios.
Figura 74
Rodolfo o Carneiro, p. 11
Tudo isso dá chance de poder contrastar com a palavra que quebra esse conjunto. Na ponta
da direita embaixo, isto é, no último lugar de escrita, pronto para virar a página, a palavra
exceto suspende a tranqüilidade e a harmonia do conjunto do quadro para preparar o
conflito: “exceto...”: Rodolfo, o carneiro, não consegue dormir.
Um fator a mais que contribui para a estruturação do projeto gráfico-editorial dos livros é a
concepção de capa. Na maioria das edições, tanto para o público adulto como para o
infanto-juvenil, a capa reflete o modo como se quer apresentar o conteúdo do tema ao
leitor. Nos livros de literatura infantil, esse aspecto é vivamente trabalhado, assumindo
uma linguagem lúdica que atraia o leitor mirim. A capa traduz o conceito implícito do
projeto gráfico do livro. No livro Vizinho, vizinha, por exemplo, a capa explicita o tema a
ser desenvolvido, apresentando os dois protagonistas de costas um para o outro, indo em
direções opostas, tendo ao fundo o prédio onde moram inserido no cenário urbano. Na
segunda e terceira capas, como uma seqüência de informações preliminares, mostra-se um
desenho, espécie de mapa de uma cidade, com lagoa, praia, praça, prédios, favela etc.,
atraindo o leitor para o campo simbólico em que se dá a história.
Outro exemplo, dentro de todos os livros analisados, é o livro Esquisita como eu: a capa
traduz a concepção do conteúdo do texto. As máscaras dispostas em círculo admitem
interpretações que vão desde o reconhecimento dos personagens citados – meu pai, minha
mãe, meus irmãos, eles – às persona de que a protagonista se investe. Todos os papéis são
200
válidos, toda a diferença é possível, todos olhando para o centro onde a frase Esquisita
como eu dará a orientação ética da leitura. Além disso, o apuro estético dos recortes está
em consonância com a proposta do texto, como verdadeiros quadros que expressam o
modo de ser da protagonista.
Os livros analisados refletem temáticas bastante freqüentes nos livros de literatura infantil
e seus diferentes tratamentos variam de acordo com suas finalidades. Uma delas é a
preocupação com a subjetividade infantil, com a construção do seu imaginário; temas
como a rejeição têm sido explorados de diferentes facetas, mostrando a superação do
problema através do amor da família – como uma linha moralizante –, ou através da
afirmação da diferença como valor, refletindo formas contemporâneas de sociabilidade –
caso do livro Esquisita como eu. Dessa forma, o tema da normalidade e da dificuldade de
conviver com a diferença sempre encontrou e continua encontrando espaço para estar na
arena dos debates (como no livro Você sabe gritar).
O livro E Agora? Vão tomar o meu lugar?, de Bel Linares, com ilustração de Alcy
Linares, exemplifica bem a prevalência da intencionalidade educativa: é um livro que
pretende orientar pais e educadores sobre como é o comportamento da criança que deixa de
ser filho único para receber em casa outro irmão. Organizado só com imagem, limita-se a
propor situações que sirvam como estímulo para a expressão das emoções da criança frente
à situação-problema. Sendo educativo, não é disciplinar, mas imprime um sentido
pedagógico de comportamento. O projeto editorial é simples, com todos os elementos que
o compõem voltados para um só objetivo, que é o de auxiliar pais e professores,
principalmente. Não existem muitos paratextos, apenas uma orelha e a quarta capa. O texto
da orelha se dirige a pais e educadores, orientando-os sobre como lidar com uma situação
difícil que a criança mais velha poderá viver quando chegar um novo irmão. Descreve
também uma série de situações vivenciadas pela criança e lembra a importância da atenção
a essas questões cruciais para uma pessoa que sente que deverá ceder seu lugar a um outro.
Diz: “Esse livro procura auxiliar pais e educadores a lidar melhor com as reações da
criança que vive essa situação e a compartilhar com ela suas emoções. Valendo-se de
imagens diretas e simples, que retratam vivências comuns no cotidiano de uma família,
aborda algumas questões importantes relativas á chegada do bebê.” Na quarta capa, há
201
momentos em que o texto é explicitamente dirigido aos pais. Diz: “Como lidar com birras?
Como fazer meu filho entender que o amo?” Continua informando aos adultos sobre a
autora e a ilustradora, com isso garantindo aos leitores adultos qualidade na orientação
imprimida ao livro, explicitada pelas imagens que poderão ajudar psicologicamente a
criança a compreender sua experiência e a crescer nesse nosso mundo. Assim, o texto
verbal se dirige aos professores e pais, os adultos que deveriam se esclarecer para tratar
com a criança sobre esse problema, enquanto as imagens se voltam para as crianças.
Outra temática igualmente presente nos livros que compõem o corpus da pesquisa, e que
parece ser uma herança dos anos 1970-80, é o tratamento do tema do ‘sobrenatural’ sem
medo ou, melhor dizendo, o trágico destituído do simbolismo clássico das histórias
infantis. Paródias de histórias infantis, como a do Chapeuzinho Vermelho, foram marcas
de uma época em que o mundo se afirmava pelas teorias da comunicação e da informação,
que criava um cotidiano desmistificado pela mídia globalizada. Novas formas de
encantamento são estudadas por teóricos que desejam compreender a rede mundial que
instaura outros laços de sociabilidade 140 . Fez muito sucesso o livro Chapeuzinho Amarelo,
de Chico Buarque, que trata do medo do lobo e o transforma em bolo. Nos livros
analisados, o medo é trazido para o racional e não se deixa abalar pelas forças obscuras do
desconhecido, como em Minha mãe é um problema. Em conseqüência desse modo de
enfrentar os problemas do mundo, a atitude da menina em A princesa boca-suja se
distancia do modo de ser das princesas tradicionais e se aproxima dos movimentos
feministas de afirmação do gênero.
Essa postura é bem diferente do amor trágico romântico, impossível de se realizar na terra,
como Amor Índio, de Rui de Oliveira: foi preciso que a Terra se tornasse um grande
oceano e que a índia Cuillac escapasse com seu filho para que Conyra os reencontrasse
vivendo numa ilha (fig.75). “E juntos voaram para a eternidade até se transformarem na
mais brilhante das estrelas” é uma maneira de procurar outros mundos para se viabilizar,
traduzindo o mote “viveram felizes para sempre”.
140
Ver essa discussão no cap.3.
202
Figura 75
Amor Índio
Em contrapartida, esse mundo de encantamento nem sempre é visto nas ações dos
personagens, na história que mantém tenso o fluxo narrativo, mas nas ações com a
linguagem, que dão significação à enunciação. Este é o lugar da construção da palavra de
autoridade poética, que Bakhtin tanto preza. O que pode ser observado nos textos de
Manoel de Barros e Mia Couto, que, ao elaborarem a linguagem, com ela mantêm o fio de
encantamento no mundo criado. Como não admitir plausível a contação do menino: “Disse
que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um bentevi sentado
na telha” (Manoel de Barros). Ou a certeza de Jaime de que “há coisas que se podem fazer
pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma inteira: - Quem nunca viu o mar não
sabe o que é chorar!” (Mia Couto). Portanto, o mundo narrado no livro torna-se mundo
comentado, que se desdobra uma segunda vez em mundo encantado, pela participação da
enunciação que comenta, articula os dois mundos, aproximando-os, na dimensão da
linguagem.
Uma tendência que vem sendo muito explorada nos livros infantis é a ênfase nos assuntos
do cotidiano, criando uma empatia com a criança nos temas que lhe são próprios. É o caso
de Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela: o
conteúdo temático nada tem de estereotipado, uma vez que o assunto, cocô, não é
freqüente nos livros. O tratamento do tema transcorre de forma o mais trivial possível,
recolocando o assunto, de uma esfera familiar e privada, em uma esfera pública, o que
possibilita uma total identificação com a criança: quem fez cocô na cabeça da pequena
toupeira? (fig.76). Excetuando o início da história, que começa pela fala do narrador, o
203
texto é todo estruturado em discurso direto, com as falas dos animais seguidas da
enunciação entre parênteses.
Figura 76
‘Da pequena toupeira que queria saber quem tinha
feito cocô na cabeça dela
Observa-se, portanto, uma variedade temática nos livros analisados, o que é marca dos
livros infantis, de uma maneira geral. O interesse da pesquisa, no entanto, detém-se em
aprofundar as diferentes possibilidades de como se articulam texto e imagem dentro do
desenvolvimento temático. Esse assunto será desenvolvido na próxima seção.
Considero produtiva a abertura dessa seção com a análise de um livro que poderá fornecer
meios para melhor focalizar a análise a seguir. Discutindo a relação de prevalência (ou a
falta de privilégio) do texto ou da imagem, a postura imprimida no fazer plástico/literário
de alguns livros infantis melhor explica os caminhos da estética, seja verbal, plástica,
gráfica, na produção para crianças que ainda detêm o frescor do uso múltiplo de formas de
significação.
204
Figura 77
Desertos
Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais
forem) de que são os veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso
lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão
participam profundamente da construção de seus significados. O
‘mesmo’ texto, fixado em letras, não é o ‘mesmo’ caso mudem os
dispositivos de sua escrita e de sua comunicação.
Nesse caso, além do suporte livro, o conceito gráfico se desdobra na realização do material
impresso, buscando no modo de seqüenciar os desenhos e no formato retangular e
horizontal, com duas fitas nas capas enlaçando as folhas, uma atitude de leitura. Na
verdade, este objeto propõe um gênero que permite o envolvimento de forma especial e
única: é um Caderno de Viagem, aonde o autor vai anotando, a seu modo, tudo o que vê.
Bakhtin (2000, p. 279) define os gêneros do discurso, aproveitando-se das esferas de
comunicação das línguas sociais que sedimentam formas comuns de enunciado: “Qualquer
enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que
denominamos gêneros do discurso.”
205
A compreensão desse tema tem sido fundamental para uma abordagem ampliada das
relações discursivas e tem propiciado a elaboração de uma grande diversidade de trabalhos
cada um imprimindo um olhar próprio sobre a produção do Círculo.
Figura 78
Desertos
Acredito, pela linha de argumentação que venho traçando ao longo desse estudo, poder
associar os estudos de Bakhtin e seu Círculo sobre os gêneros do discurso 141 ao trabalho
que esse Caderno propicia com desenhos e textos, pois permitem reconhecer nesse relato
visual a especificidade discursiva do gênero, mostrando sua indissociabilidade com o
estilo: “quando há estilo, há gênero”, afirma o autor. Murray lembra, no prefácio do livro
Desertos, vários escritores viajantes que nos permitiram sonhar: Marco Pólo, Stevenson,
Maupassant, Guimarães Rosa, entre outros, “nos levam juntos, nas entrelinhas do texto,
nas margens, entre um adjetivo e uma exclamação de assombro”. E, acrescento, na
suavidade ou vigor dos traços, nas cores, na distância entre os elementos, enfim, na
superfície significativa apontada por Christin para incluir os entre como valor de leitura
fig.79.
141
Bakhtin, 2000, p. 277-326.
206
Figura 79
Desertos
O que Mello nos oferece é um conjunto arquitetônico de ruas, janelas, vitrais, muros,
portas, cabos de energia, postes de iluminação de Marrocos, suas mulheres e o vento, o
homem e suas orações, seus tapetes, as especiarias, tudo isso com traços leves através dos
quais compreendemos os sentidos do deserto retratado. A marca temporal da narrativa nos
é dada pela seqüência de nomes das cidades que organiza os conjuntos de desenhos –
Settat, Rabat etc. – e pela numeração de 1 a 24, certamente os dias de sua viagem: duas
207
Figura 80
Desertos
No entanto, observa-se uma sutil situação de impasse do ponto de vista da edição, pois são
mantidas as referências catalográficas clássicas para imagem e texto: Desertos: autora
Roseana Murray, ilustrações de Roger Mello, enquanto a escritora nos informa que ela é a
ilustradora dos desenhos de Mello, escritor.
Outro exemplo de explicitação dessa nova relação de autor e ilustrador está em Você sabe
gritar?: a capa apresenta os autores sem especificar a linguagem criada por cada um,
somente sendo discriminados na referência catalográfica, ao final do livro, e nas
informações finais dirigidas ao público adulto. Esse nivelamento, na capa, entre os autores
do texto verbal e do texto visual explicita a importância dada pela editoria às imagens na
estruturação textual e discursiva desse gênero e enfatiza o conceito de autoria para o livro
infantil.
Acredito que a importância desse fato não se dê por possíveis relações de poder entre as
linguagens, mas por explicitar justamente a discussão que venho apresentando, numa total
superação de formas antigas de relação entre texto e imagem e de relações de autoria. A
208
declaração do artista plástico e ilustrador de livros Rui de Oliveira142 muito contribui para
o fortalecimento dessa postura: “Ilustrar foi um desdobramento natural do meu trabalho e
também uma escolha influenciada por minha paixão pela literatura. Pra mim ilustração é
um gênero de literatura. Acho que ilustrar é escrever por imagens”. Um (imagem ou texto)
sendo a oferta original, e o outro, a ilustração (texto ou imagem), derrubam a fixidez das
formas hierárquicas com que se constituíam padrões de classificação e propõem um novo
olhar para compreender a dinâmica das interações entre essas duas dimensões.
Esta seção se interessa por explicitar a importância que os livros de literatura infantil
assumem na construção dos sujeitos, das suas interações com o outro, constituindo valores
e orientando um olhar sobre o mundo, sem que isso caracterize uma perspectiva
pedagógica.
Por isso, a falta de álibi, que Bakhtin entende como a responsabilidade dos sujeitos pelos
seus atos na vida, aliada à posição exotópica, que significa estar num lugar fora, um
“‘fora’ relativo, uma posição de fronteira, posição móvel, que não transcende o mundo mas
o vê de uma certa distância a fim de transfigurá-lo na construção arquitetônica da obra
estética ou não” 143 , constitui a perspectiva ético-estética bakhtiniana que definirá os
processos de construção do mundo de modo sempre situado. Isso me permitirá olhar para
142
Entrevista concedida a Luciano Ramos e Gabriel Gianordoli em www.ruideoliveira.com.br.
143
Cabral, 2005, p. 109.
209
Vale a pena comentar duas tendências distintas em relação ao olhar sobre o mundo
declarado em dois livros: Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na
cabeça dela e Cocô de passarinho. O primeiro apresenta uma elaboração essencialmente
lúdica, oferecendo uma perspectiva de mundo do tipo toma-lá-dá-cá ou fez-levou, para que
a criança, ao aprender essa forma de comportamento social, o perceba como o modo de
relação com o mundo fig.81 fig.82 fig.83 fig.84.
Figura 81 Figura 82
Da pequena toupeira que queria saber quem Da pequena toupeira que queria saber quem
tinha feito cocô na cabeça dela tinha feito cocô na cabeça dela
Figura 83 Figura 84
Da pequena toupeira que queria saber quem Da pequena toupeira que queria saber quem
tinha feito cocô na cabeça dela tinha feito cocô na cabeça dela
Nada há que mobilize o leitor a fazer relações com outros textos na leitura. Mesmo que o
livro seja dirigido a crianças pequenas, dos primeiros anos das séries iniciais do ensino
fundamental, o espírito lúdico da história não se propõe a ampliar referências estéticas ou
210
Todavia, o lúdico presente na maioria dos livros de literatura infantil pode compor com
uma perspectiva ético-estética um modo de compreender e estar no mundo. O texto Cocô
de passarinho, de Eva Furnari, é estruturado pelo modelo canônico da narrativa, do tipo
“Era uma vez...”, com apresentação, desenvolvimento, clímax e desfecho, e as falas dos
personagens dão coerência aos personagens apresentados no início da história,
transfigurando-se no decorrer do enredo. Uma cidadezinha de seis habitantes é suficiente
para que as crianças transformem-na em tema. Seus personagens-tipo se anunciam pelos
seus textos: “Como vão os negócios?”, ou “O ano que vem vai ser pior”, ou os passarinhos
que colaboram para a mesmice do lugar: “Piu, piu? R: Piu.” O assunto do cocô, longe de
ser um artifício fácil e estéril para se aproximar do mundo da criança, é motivo de
mudança na cidade, pois cria novas formas de vida e de relacionamento. Sementes comidas
pelos pássaros e que saem na forma de cocô nos chapéus dos moradores se transformam
em árvores e flores que mudarão a vida da pequena cidade: - “Nasceram os filhotes.
Vamos escolher os nomes?” Os diálogos mostram pessoas com interesses e observações
renovadas sobre o mundo fig.85:
Figura 85
Cocô de Passarinho, p. 25
“Quatro meses depois: – Eu gosto mais quando eles dançam rumba. – Eu não, prefiro
lambada. Faz mais a minha cabeça”, numa brincadeira com palavras e imagens que
mostram a cabeça feita dos moradores.
211
Esse mundo possível para a infância propõe um terreno de preparação para reflexões sobre
a vida dos moradores, abrindo questões de ordem cultural e ética, como a importância da
coletividade para a sobrevivência de cada um, a possibilidade de poder observar o mundo e
construir outro ponto de vista para as coisas que nos atormentam etc. Além disso, os
desenhos são formosos e a brincadeira dos chapéus-árvore, o corte no enquadramento da
página (por exemplo, nas fig.86 e 87, quando as árvores crescem e não aparecem mais no
campo visual, mas sabe-se que os habitantes estão equilibrando-as na cabeça), desenvolve
implicitamente um gosto estético que ajuda a elaborar um olhar sobre o mundo.
Figura 86 Figura 87
Cocô de Passarinho, p. 26 Cocô de Passarinho, p. 27
Outro livro que utiliza tanto a linguagem verbal quanto visual para pensar uma ética das
relações é Minha mãe é um problema. Nesta obra, as dificuldades nas relações sociais
estão mais localizadas nos adultos considerados normais e que não admitem o contato com
a diferença. Um acontecimento inesperado faz com que a mãe do menino se responsabilize
pela salvação das crianças e pelo seu espaço coletivo, a escola. Essa é a solução clássica do
enredo infantil, que se apresenta nessa obra cheia de situações engraçadas com uma
212
mensagem ética contra a discriminação e pela conciliação. É um texto que foge aos
estereótipos saturados de caracterização de personagens e de argumento.
Você sabe gritar é outro exemplo que, dentro de uma forte carga expressiva, tanto visual
quanto temática, traduz um forte compromisso com uma linha de conduta mais reflexiva e
ativa socialmente.
O lúdico está presente em quase todos os livros dedicados à criança, seja como atenuação
do trágico, como desejo de explicitamente ensinar alguma coisa, ou como uma brincadeira
leve e jocosa para o divertimento na leitura.
O livro Minha mãe é um problema é um exemplo típico de como contar a história com
humor. A capa é divertida, com crianças rindo, embora o título seja minha mãe é um
problema. Isso já indica a forma escolhida para compor a história, que escorrega para a
quarta capa, também em tom de brincadeira. O texto escrito diz alguma coisa, mas são as
imagens que, interagindo com o discurso verbal, propõem sentidos de leitura, caso, entre
outros exemplos, da capa. A necessária correspondência com as imagens é que conota a
fala do narrador. Por exemplo: “minha mãe é um problema por causa dos chapéus que ela
usa” (fig.88).
Figura 88
Minha mãe é um problema
213
144
Em www.ruideoliveira.com.br/entrevista acessado em 9 de novembro de 2007.
214
Outro exemplo é a coleção que fala sobre partes do corpo, como pés, cabeça, coração, de
Liana Leão, autora e ilustradora: é uma série educativa e consegue atingir um grau de
literaridade na linguagem que busca agradar os leitores (fig.89).
Figura 89
Livro dos Corações
Na quarta capa, Maria Luiza O. C. de Leão declara: “Existe jeito melhor de aprender que
se divertindo? A criança não brinca à toa. Adulto feliz é aquele que brincou...” A intenção
educativa dá-se a ver pela formatação do livro: as primeiras páginas do livro dos corações
são apresentadas como um caderno escolar, pautado e horizontal (deitado), memória de um
espaço de aprendizagem (ver figura 47). A apresentação da autora e do ilustrador, ao final
do livro, participa do conceito do objeto, remetendo igualmente ao contexto escolar
(fig.90).
Figura 90
Livro dos Corações
215
Figura 91
Rodolfo o Carneiro, p. 8
Ou quando o texto nos informa que o travesseiro pula (fig.92) (p.16): “Rodolfo improvisou
um travesseiro... .mas o travesseiro pulou fora... dando pulos de raiva!”
Figura 92
Rodolfo o Carneiro, p.16
216
Mas é a imagem que nos informa que a perereca sai pulando, explicando o que é o
travesseiro que pulava...
Esse conceito bakhtiniano tem sua origem no cruzamento de enunciados que, por sua
própria natureza, são atravessados por diferentes vozes. Em texto sobre as idéias de
Bakhtin, Fiorin (2006, p. 51-55) apresenta o nascimento do termo intertextualidade, suas
apropriações e equívocos. Por isso, a preferência na pesquisa pelo termo
interdiscursividade, que dá condições de melhor compreender a discussão que pretendo
travar. Entendendo a materialidade do enunciado como texto e o enunciado como uma
posição assumida pelo enunciador, observa-se que o enunciado é da ordem dos sentidos e
que o texto é manifestação do enunciado. Além disso, Fiorin alerta que “o enunciado não é
manifestado apenas verbalmente, o que significa que, para Bakhtin, o texto não é
exclusivamente verbal, pois é qualquer conjunto coerente de signos, seja qual for sua
forma de expressão (pictórica, gestual etc.)”. Dessa forma, o que proponho é compreender
as relações entre o discurso imagético e o discurso verbal como possibilidades
interpretativas do conjunto da maioria das obras que analiso. Em diferentes momentos da
análise, acentuo essa marca dialogante e que abaixo especifico em uma das obras
abordadas.
Coração de ganso, de Regina Rennó, é um livro cuja temática se desenvolve com dois
grupos de personagens: de um lado, gansos, de outro, galinha e seus pintinhos. A história
se desenvolve quando um dos gansos se encanta pela galinha e seus pintinhos e resolve se
juntar ao grupo. Seus companheiros rechaçam qualquer possibilidade de aproximação e
aprisionam seu parceiro como castigo. Galinha e pintinhos o salvam e o ganso resolve ir
embora com os amigos, abandonando seus pares. Sua realização gráfica apresenta poucos
elementos, com formato de folha quadrado e toda a história é colorida a lápis de cor. Os
elementos são bem definidos, organizando uma estrutura narrativa canônica. O jogo de
leitura que está presente na obra é proposto pela relação de intertextualidade com a história
clássica infantil do patinho feio (fig.53). No movimento contrário, o protagonista não
busca a semelhança como fator de segurança e identificação para constituição da
subjetividade, mas a liberdade da escolha pelo amor favorece a convivência com a
217
Figura 93
Coração de Ganso, página dupla
Figura 94
Coração de Ganso, página dupla
218
Figura 95
Coração de Ganso
Esta seção se interessa por formas de tratamento das linguagens verbal e plástica, de modo
a compor uma dimensão gráfica, em que a palavra escrita assuma uma de suas naturezas,
que é dupla e heterogênea, como discussão apontada em capítulo anterior. As imagens que
compõem a natureza gráfica da escrita serão analisadas juntamente com as imagens na sua
plasticidade e narratividade. Esse momento quer destacar duas situações que considero
fundamentais no trajeto da pesquisa: a primeira, de ordem teórica, garante à dimensão
gráfica (e não apenas ao design gráfico do livro) constar como um dos elos possíveis entre
as duas instâncias enunciativas, a verbal e a visual, indicando influências mútuas na
constituição de cada uma. A segunda, de ordem pedagógica, explicita a relevância de abrir
espaços para muitas e possíveis leituras das crianças. O alcance da escrita, quanto da
imagem, é, em algum momento, ímpar e, por isso mesmo, singular no seu modo de
realização. Cabe aqui lembrar a importância dessas afirmações para a área da educação,
que pode ter o sentido da alfabetização revigorado se se lançar mão desses conceitos para
compreender outros olhares sobre o processo de aquisição do sistema da escrita alfabética.
Além disso, fica claro que, no momento em que se aprende a escrever, aprende-se, na
verdade, o discurso verbal escrito; apreendem-se, em conjunto, os sentidos não ditos
verbalmente, mas latentes na discursividade do texto e, finalmente, compreende-se o
mundo e suas múltiplas formas de expressão. O estudo apresentado sobre as cartilhas de
alfabetização podem servir de parâmetro para as considerações acima.
219
No livro Quem fez cocô na cabeça da pequena toupeira, as imagens são fundamentais para
a construção do jogo ficcional, da instituição da interação entre os personagens e da
criação do universo narrativo. A técnica em crayon interage com o leitor mirim, através de
uma realização mais próxima dos desenhos infantis. As imagens tomam tamanhos
diferenciados dependendo da relação com a personagem principal: a toupeira fica pequena
ou grande, se está próxima do cavalo ou das moscas. Participam também de um conjunto
expressivo, composto pelas letras, caso, por exemplo, da escrita do CACHORRO, ou das
pequenas observações feitas pelo narrador, entre parênteses. A conseqüência é um projeto gráfico que
busca requinte e acabamento. Alguns recursos são freqüentemente utilizados para dar mais
expressividade ao conteúdo abordado: as letras como imagem, além de estarem marcando
a fala das personagens, denunciam a presença da enunciação e suas onomatopéias, através
do tamanho menor das letras, da sua espessura e do sinal gráfico de parênteses. Essas são
presenças visuais que dão sentido ao texto, simples e objetivo no âmbito do narrado, mas
que brinca com a leitura visual, colaborando para tornar mais expressiva a história da
toupeira. Para uma criança que ainda é iniciante na aprendizagem da leitura, os recursos
gráfico-visuais elaborados no livro tratam da relação de proporção dos elementos (bichos)
e a intensidade emocional da fala. Aliás, tem sido bastante freqüente nos livros de literatura
infantil a utilização de recursos visuais da escrita tratada como imagem, numa clara
demonstração de absorção, pela escrita alfabética, de formas de tratamento não lingüístico
das escritas ideográficas de que nos fala Christin.
Em Você sabe gritar?, as condições para uma leitura expressiva pela criança se dão através
de diversos recursos: o tamanho, a cor e o formato das letras indicam quem são os
interlocutores e a ação proposta, como por exemplo: gritar, sapo, papagaio (fig.96);
Figura 96
Você sabe gritar?
220
ou, gritar, Hélio, gritar, tigre. Também variam de acordo com cada personagem e a
intensidade com que eles exprimem sua força: Saber, querer, girafa (fig.97); ou, quero,
não sei, pular, pulo etc. (fig.98)
Figura 97 Figura 98
Você sabe gritar? Você sabe gritar?
Figura 99
Você sabe gritar?
Figura 100
Cacoete, p.25
145
Ver site: www.ruideoliveira.com.br, no qual o autor é entrevistado sobre sua vida profissional e suas
concepções acerca do fazer da ilustração.
222
imagem podem se integrar numa leitura renovada, paradoxal, cujo padrão precisa se
apropriar de procedimentos de leitura. Com isso, posso considerar essa proposta de relação
icônico-verbal como uma área de ação do paradoxo, movimento de síntese texto/ imagem.
Figura 101
A Linha, página dupla
O conceito transmitido é uma síntese opinativa a respeito de determinado assunto, seja por
uma abordagem poética, política, ou filosófica. Por isso, o desenho de Vale não exagera,
não ultrapassa, nem fica a dever, mas brinca, duvida, reflete e sugere aos seus leitores
entendimentos sobre o mundo (fig. 102).
223
Figura 102
A Linha, página dupla
O traço realizado com a linha e que denuncia o gesto criador é percebido em diferentes
artistas, como é o caso do livro infantil O Equilibrista, de Fernanda Lopes de Almeida e
Fernando de Castro Lopes. O lúdico que subjaz à história é construído pela denúncia do
personagem de que o mundo está em suas mãos e que ele faz seu caminho, traçando fio a
fio seu caminhar (fig 103).
Figura 103
O Equilibrista
A leitura da página (e da história), portanto, prevê níveis de leitura que possam identificar
as metáforas da aventura e da construção do mundo com a flexibilidade necessária do
mundo dos possíveis (fig.104).
224
Figura 104
O Equilibrista
Essa dimensão merece atenção no processo de sua elaboração, uma vez que Bakhtin, seu
autor, arquiteta esse conceito juntamente com outros que lhe completam o sentido. O autor
apresenta a seguinte afirmação (2000, p. 43):
A essa situação ele chama de excedente de visão. Pois será esse excedente que permitirá a
Bakhtin arquitetar seu conceito de exotopia, uma posição exterior que condiciona o
excedente de visão (2000, p. 43):
Continua seu raciocínio, afirmando que “os atos de contemplação, que decorrem do
excedente da minha visão interna e externa do outro, são, precisamente, atos propriamente
225
estéticos” 146 , que são pensados como algo ativo e produtivo. Por isso, é possível, pela
atividade estética 147 , identificar-se com o outro primeiramente, para voltar a nós mesmos
com o material recolhido do outro e lhe dar forma e acabamento. Para ele, a criação verbal
mantém esses dois aspectos com dupla função: guia o processo de identificação e
proporciona o princípio de acabamento ao outro, sendo possível o predomínio de um
desses dois aspectos 148 .
Figura 105
O que o coração mandar, página dupla
146
Bakhtin, 2000, p.45.
147
O conceito de atividade em Bakhtin traduz uma instância produtiva, em que está intrinsecamente contida a
idéia de energia, dinamismo, e ‘identifica o agente [...] como sujeito detentor da iniciativa da ação’. Ver nota
de rodapé na tradução de Paulo Bezerra, p. 22.
148
Idem, p. 47.
226
A propósito de situações escolares, Elvira Vigna em entrevista 149 afirma que o educador
deve estar atento a esse fato, para melhor situar seus objetivos, sem perder de vista a
importância da palavra. Observa também que ler imagem não é necessariamente ler
conteúdo da narrativa e que os professores têm se detido nesse aspecto da leitura da
imagem. Apresenta três níveis da atividade do ilustrador: num primeiro nível, ele reproduz
o que está escrito; num outro nível, o objeto reproduzido tem um olhar do ilustrador; e num
terceiro nível, mais profundo, o ilustrador cria um clima, não precisa retratar o objeto
propriamente. Mas reafirma que isso não faz do ilustrador um co-autor. Sua crença é a de
que, se o trabalho do artista consegue estabelecer com o interlocutor um valor de afeto, ele
estará realizando um trabalho literário valioso. E se as crianças se relacionam afetivamente
com o objeto, tudo valeu a pena.
A história que Vigna ilustra é a de uma personagem que está voltando à cidadezinha de
Jequié/BA, sua figura é retratada com um lápis preto em volta (fig.106), destacando sua
ausência do cenário.
Figura 106
O que o coração mandar, página dupla
Na verdade, ele ainda está entrando na cidade e, por isso, não participa da história. A
artista não apresenta uma imagem acabada, tanto no formato quanto nos conteúdos
149
Entrevista de Elvira Vigna concedida à pesquisadora em novembro/2007. já citada no corpo deste
capítulo.
227
semânticos. O que ela propõe é a falha, a imperfeição, pois só aí, no seu dizer, é que ela
invocará a presença do leitor para construir os sentidos possíveis. “Tem que haver um
‘entre’. A rua acaba, não sei onde, o que tem atrás, não sei, a figura acaba, ela não se
completa, está solta no espaço, na capa a terra escorrega, está solta” (fig.107). 150 Esse
modo de compreender o mundo e sua arte aproxima-a do ato estético proposto por Bakhtin.
Figura 107
O que o coração mandar, página dupla
Esse acabamento ao outro é o que Elvira Vigna deixa para o leitor e permite melhor
compreender o trabalho de quem não concebe a ilustração com imagens perfeitas,
fechadas. A convocação à atividade estética de acabamento de sua obra é o que propõe a
ilustradora ao leitor, que terá espaço para ratificar o projeto bakhtiniano de produção de
sentidos.
O projeto discursivo que Bakhtin apresenta, vale dizer, uma proposta de tratamento da
linguagem como o foco de suas reflexões, abre caminho para que o conceito de dialogia
criado por ele dê pertinência à constituição dos sujeitos, estabelecendo um constante
campo de discursividade. A enunciação, para ele, é um discurso concreto que será sempre
interpelado pelo discurso de outrem, que tem a voz e a vez de participar da ação responsiva
do projeto interlocutivo (ainda que o diálogo não tenha sido estabelecido). Embora o
150
Idem.
228
interesse de Bakhtin seja a prosa poética, ele mostra que em outros discursos, como o
extra-artístico – tal como o científico, o retórico, o de costumes –, a presença do já-dito,
isto é, dos discursos já pronunciados e que integram o meu discurso, reafirma a dialogia
constituidora de todo projeto discursivo.
A diferença que Bakhtin impõe entre enunciado e oração lhe é bastante cara, sempre
ampliando a discussão. Em texto de 1952-1953, Estética da Criação Verbal (2003, p. 286-
287), enfatiza a posição responsiva do falante e a cadeia significativa em que os
enunciados se situam e adquirem sentido. Assim, mais uma vez afasta-se da perspectiva
lingüística saussuriana, alertando para seu caráter de convencionalidade e artificialidade, e
indiferente à posição e mudança dos sujeitos do discurso real. A orientação social do
enunciado e sua dependência ao outro, ao ouvinte, já é enfatizada no artigo de Voloshinov
A Estrutura do Enunciado 151 , em 1930, em que destaca a dificuldade de compreender o
que constitui a parte extraverbal do enunciado, quando é ela que lhe determina o sentido.
As considerações de Bakhtin acerca da enunciação e do enunciado têm recebido diferentes
críticas, assinalando a variedade e a indiferença de seus usos. Bezerra (2003, XI) 152 ,
tradutor do original russo, introduz a obra Estética da Criação Verbal com os seguintes
comentários:
Muito se tem falado de enunciação e enunciado na obra de Bakhtin.
Neste livro, o autor emprega um só termo – viskázivanie – quer para o ato
de emissão do discurso, que seria a enunciação, quer para um discurso já
pronunciado e até um romance, que seria o enunciado. Portanto, para ele
o discurso de um passado remoto, um texto filosófico ou a emissão de um
discurso são viskázivanie. Ele associa também o termo à parole
saussuriana, o que permite falar de enunciação. Empreguei ‘enunciado’
(com mais freqüência) e ‘enunciação’ sempre que percebi que as
circunstâncias requeriam um ou outro.
151
Texto de 1930 e tradução de Ana Vaz, para fins didáticos. (p. 10)
152
Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Original escrito em 1952-
1953.
229
A análise que apresento a seguir tem por objetivo destacar ora um aspecto, ora outro do
que Bakhtin considera um organismo complexo e dinâmico, que ultrapassa qualquer
enfoque objetal sobre a palavra, que a transforme em uma coisa, como a Lingüística, a
Retórica ou mesmo a Filosofia de sua época. Ao me referir ao enunciado ou à enunciação,
pretendo iluminar certas características que dão relevo ao trabalho estético nos livros de
literatura, no caso, os voltados para um leitor mirim, lembrando a preocupação de Bakhtin
em não perder a dimensão dialógica da linguagem (2002, p. 153): “O fato de que um dos
principais objetos do discurso humano é a própria palavra, até hoje não foi ainda
suficientemente tomado em consideração, nem apreciado em sua consideração radical”.
No caso desta pesquisa, acrescento a imagem e a consistência plástica de suas modalidades
expressivas, que estabelecem relações inovadoras e inesperadas com o texto.
5.5.1 Narração
O texto de Manoel de Barros é uma narrativa poética, ou uma poesia narrativa, tão ao gosto
da mestiçagem de gêneros, estilos e linguagens que caracteriza a produção literária
contemporânea. As fronteiras, em Manoel de Barros, se tornam impuras e avessas, o que
faz da sua aparente simplicidade uma arma contra o lugar-comum. O livro Poeminha em
língua de brincar se organiza com poucos elementos, sem muitos adereços paratextuais,
mas com imagens que fazem uma releitura do texto de Barros, mostrando que caminham
juntos, texto e imagem, com a mesma finalidade, como diz ele, de “chegar ao grau de
brinquedo para ser séria de rir” (fig.108) .
Figura 108
Poeminha em língua de brincar
230
Essas acepções são corporificadas no texto de Barros de forma definitiva, obrigando a que
sua leitura compreenda “essa mesma rarefeita consistência”. A elaboração de sua
linguagem dá consistência discursiva ao seu texto, com o frescor de deslocamentos
inesperados para alimentar a existência de seus personagens e de seus leitores: “E jogava
pedrinhas: Disse que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um
bentevi sentado na telha”. Essa outra ótica, que dispensa pensar, permite sentir, extravasar
o encantamento das palavras livres, que o pensamento solto em forma de pipa, com a linha
presa ao coração, faz-de-conta que é verdade. São imagens do texto poético que orientam
um modo de entender o mundo. Por isso é possível compreender, nessa outra ótica
(fig.109), “que certa rã saltara sobre uma frase dele e que a frase nem arriou. Decerto não
arriou porque não tinha nenhuma palavra podre nela”.
153
Para uma melhor compreensão do significado de leveza, ver texto de Ítalo Calvino Seis propostas para o
próximo milênio, capítulo ‘Leveza’, p. 13-41.
231
Figura 109
Poeminha em língua de brincar
Figura 110
Poeminha em língua de brincar
232
Barros fala das coisas da natureza como as coisas de um mundo mais palpável, mas nada
nele é palpável, o que resulta em uma concretude sem peso. Ao falar de Lucrécio, Calvino
o recoloca como o poeta em que o conhecimento do mundo se transforma em dissolução
da compacidade do mundo, na percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve.
Diz ele (1990, p. 21): “A poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades
imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nascem de um poeta que não nutre qualquer
dúvida quanto ao caráter físico do mundo”. Esse é o paradoxo que Barros quer nos ofertar.
Manoel de Barros não se preocupa só em ser entendido, mas em fazer de seus versos uma
“coisa-nada”, uma língua a ser criada, para brincar, como um evento próprio da poesia, um
233
Figura 111
Poeminha em língua de brincar
O texto começa pelo pronome pessoal ele: “Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada.
Falava em língua de ave e de criança”. Quem seria ele? Barros avança no seu discurso,
como se houvesse um contrato de antemão com o leitor, sendo aí o espaço de diálogo
instituído com o leitor; afinal, “dispensava pensar”. A consideração de que aí está implícita
a estrutura clássica do gênero conto, que se consagrou infantil, possibilita subentender o
“Era uma vez um menino”. Já no começo, pois, o autor anuncia o tom que o faz original,
distanciado do repetido, do já sabido. Mesmo mantendo a estrutura canônica do conto, a
sua linguagem poética transgride as normas clássicas da narratividade e seu texto começa a
desconcertar um leitor distraído, mais afeito a uma leitura mecânica. Esse mundo particular
da linguagem, em que o Nada é língua de brincar, é a própria casa do jabuti, a poesia, onde
o menino se interna e ali se salva: “E se internou na própria casca ao jeito que o jabuti se
interna”. E sendo o Nada língua de brincar, o é também na plasticidade oferecida ao leitor:
234
o desenho, altamente conceitual, traduz em seus traços, como que tocando levemente a
lembrança de um figurativismo, a manifestação de um Nada significativo.
Por outro lado, tomando um novo ponto de vista a respeito do projeto discursivo da obra,
as imagens assumem uma funcionalidade, mostrando plena interação com a proposta: a
técnica e o material dos desenhos, menos que reproduzir um modo infantilizado de
expressão, desejam cultivar um olhar que traduza a liberdade infantil da livre expressão e
do livre compreender. Vale a pena notar a única vez em que a ilustração interrompe o fluxo
narrativo e abre espaço para o destaque da enunciação: o comentário do narrador quer
justificar e dar coerência à existência do seu personagem – “Decerto não arriou porque não
tinha nenhuma palavra podre nela”.
O narrador, em Princesinha boca-suja, assume seu papel de autoridade que quer persuadir
o leitor e, para isso, usa dos expedientes da linguagem. A relação imagem e texto, nessa
obra, apresenta dois recursos fundamentais para sua realização: o primeiro, quanto ao texto
verbal, é a predominância da enunciação que introduz a força do narrador na orientação de
leitura. Todo o tempo o enunciador comenta, critica, relembra, reafirma situações passadas
em histórias de referência, para dar uma condução crítica às ações do presente: Por
exemplo, p. 8: “Até aqui, a história de Formosura é meio parecida com a da Bela
Adormecida, você notou? Isso não tem nada de mais. Todos os contos de fada são
parecidos uns com os outros. Mas as duas histórias se parecem só até este ponto. Daqui em
diante, as coisas vão ficando bem diferentes”. Outro trecho exemplar de colaboração do
narrador com o protagonista é o da p. 18: “A princesinha não entendia por que as pessoas
viam tanta maldade nessas palavras que todos diziam pelos cantos. Nem por que viviam
palpitando na vida dela. Palpitando, xeretando, espionando, fofocando e um monte de
outros andos”.
A menina cresce bonita e talentosa, mas não tem vocabulário da realeza e boas maneiras,
por isso seu nome Boca-suja; é uma criança sagaz, cheia de personalidade, que tem hábitos
diferentes das antigas princesas e que não se dobra às ordens reais. Os discursos diretos
fortalecem o texto que quer mostrar o embate entre duas realidades (p.17): “De vez em
quando, Formosura se enchia de tanta aula e gritava: “Que titica! Quero brincar um pouco
no jardim! Aí era sempre uma correria no castelo, um empregado cochichando no ouvido
do outro, ‘ela falou isso, ela falou aquilo’, como se ninguém jamais falasse as mesmas
coisas de vez em quando”. Além disso, é ela quem vê a carruagem e decide descer as
escadas para encontrar, sozinha, com o príncipe (p.26): “Certa noite, a princesinha estava
na torre do castelo observando o céu com sua luneta... A princesinha desceu a escadaria da
torre feito um foguete e foi ao encontro do príncipe já com uma pachouchada na ponta da
língua para enxotá-lo dali”; o príncipe e a princesa casaram-se e foram felizes para sempre,
“mas de vez em quando tinha umas briguinhas e a princesa mandava o príncipe plantar
batatas”.
Essa atualização moral do conto é acompanhada pela linguagem do narrador, cujo estilo
configura um olhar renovado para o mundo ficcional e dá o tom da narração: descontraído,
informal, linguagem distensa, como que, desde o início da história, mostrando de que lado
está (p. 7): “Para celebrar o nascimento da princesinha, o rei e a rainha resolveram dar uma
baita festa. Convidaram um monte de gente”. Ou (p. 12): “O rei, todo babão, passava o dia
olhando a filhinha no berço e dizendo coisas incompreensíveis como cuticúti, bambalalão,
tetéia". Até mesmo na caracterização da princesa, o vocabulário segue familiar, como “o
primeiro pum”. Por isso, quando a menina diz a primeira palavra, “meieca” (meleca), o
leitor já está preparado discursivamente para acolher a fala da princesinha, sem
preconceito.
Retomo a discussão proposta por Goulart (2007, p. 8-9) sobre os sentidos da enunciação,
em que a autora analisa a proposta de Weinrich acerca dos dois grupos de situações
comunicativas independentes, o mundo narrado e o mundo comentado, e propõe relacionar
esses conceitos aos conceitos bakhtinianos de discurso de autoridade e discurso
internamente persuasivo:
237
Em Você sabe gritar?, a história claramente se dirige a elaborar um conteúdo distante dos
estereótipos consagrados à moralização dos comportamentos sociais. Embora quase todo o
texto esteja estruturado sob a forma de diálogo dos personagens, alguns trechos indicam a
presença do narrador, como: a- o tempo verbal hipotético, criando uma suposição e,
portanto, uma reflexão do narrador (“os cabelos do sapo ficariam em pé”; “o queixo do
238
Figura 112
A princesinha boca suja, página dupla
239
Esse mundo narrado em que a criança está imersa se constitui como discurso de autoridade
legitimando o relato;
240
Figura 117
A princesinha boca suja, p.27
O projeto gráfico-editorial está inserido numa coleção da editora que se chama Abril
educação, o que potencializa o valor positivo dado às atitudes da menina princesa, mesmo
241
que não sejam aceitas pelos costumes do reinado, o que equivale a dizer que existe uma
intencionalidade na produção dessa obra que faz dialogar a dimensão ética/estética com a
dimensão educativa.
Seguindo na mesma trilha da relação verbal e plástico, entre outros aspectos, o livro O
Beijo da palavrinha, de Mia Couto e com ilustração do artista plástico moçambicano
Malangatana, evidencia a natureza dupla da escrita, de que nos fala Christin. E esse
encontro se realiza no discurso literário. Portanto, não é só o projeto gráfico que orienta as
imagens e a escrita verbal para criar novas formas de leitura, mas também a narrativa está
envolta por uma malha discursiva que propõe estratégias de entendimento do mundo que
ultrapassam o senso comum. Para salvar a menina que adoecera, seria preciso ir à costa,
para que ela “renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse
outras praias dentro dela”. Entra-se na realidade ficcional com o apoio da estrutura clássica
da narrativa, com a apresentação dos personagens e do problema (Fig.118) .
Figura 118
O Beijo da Palavrinha, página dupla
Aos poucos o leitor vai sendo levado para uma outra dimensão, junto com Zeca Zonzo, que
era desprovido de juízo, e que, por isso mesmo, conseguiu salvar a irmã: outras vias, outro
olhar, outra compreensão. Impossibilitada de ir de corpo ao mar, a salvação da menina
começa pela escrita: “– Vou-lhe mostrar o mar, maninha. Todos pensaram que ele iria
242
desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol
em cima, como vela de bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra
gorda a palavra ‘mar’. Apenas isso: a palavra inteira e por extenso”. A sua desrazão
consegue guiar os dedos da maninha para a leitura de um mundo que ela desconhece e que
vai construindo aos poucos pela relação tátil com o papel onde a palavra está escrita: “Zeca
Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os
ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel”. A seqüência da narrativa toda ela é um
momento mágico de construção e de apropriação de um mundo que, aos poucos, passa a
formar sentido (fig.119).
Figura 119
O Beijo da Palavrinha, página dupla
Figura 120
O Beijo da Palavrinha, página dupla
Figurar e representar, nesse caso, dão poder à imagem arcaica e contêm o perigo público
da sua presença como símbolo do poder, de poder significar. A relação grafema/fonema é
substituída pela sensibilidade tátil do desenho, como que refazendo com os dedos as
formas gráficas dos sentidos.
Régis Debray (1993, p.14), a propósito do seu estudo sobre a história das imagens no
Ocidente, comenta a preocupação de um imperador chinês em pedir ao principal pintor da
corte para apagar a cascata pintada em afresco na parede do palácio porque o ruído da água
impedia-o de dormir. E acrescenta que, ainda na Renascença florentina, Leon Alberti
sugere que “ver pinturas representando fontes, rios e cascatas faz muitíssimo bem aos
febris. Se alguém, durante a noite, não consegue dormir ponha-se a contemplar nascentes e
o sono há de chegar”. A potência da imagem, portanto, é poder apresentar, não um
sucedâneo de algo, mas esse algo transferido, como se sua alma estivesse ali presente.
Por outro lado, essa possibilidade de contar com a presença do mar através dos dedos da
menina se aproxima do modo como Samain (1998, p.13) entende a visualidade originária:
o que permitiu à protagonista Maria Poeirinha cumprir seu destino é esse caráter
constitutivo do ser humano que, mesmo no caso dela que não conhecera o mar, define um
modo de estar no mundo. Em um momento de reminiscência, ele faz o seguinte
comentário:
244
Tinha, primeiro, avistado o mar. Foi muito mais tarde que consegui
nomeá-lo e dele falar e precisei de muitos outros anos de alfabetização,
para que, enfim, pudesse escrever seu tão pequeno nome... Dessa
maneira, falar do fotográfico será, necessariamente, procurar situá-lo na
perspectiva e no traçado de uma visualidade originária e constitutiva do
ser humano, que teve de atravessar, ao longo de milênios, outros meios
de comunicação que foram e são ainda a oralidade e a escrita, antes de
poder constituir-se como fotografia. Não receio em dizer assim que o
fotográfico representa nossa visualidade primeira que, quase submersa,
durante séculos, nas águas da oralidade e da escrita, remontou, muito
recentemente, à superfície, dando-nos a ver o mundo através de uma
mediação técnica suplementar: o próprio dispositivo fotográfico e o signo
visual singular que ele proporciona.
Vale lembrar, sobretudo, que, mais do que objetos representados por dispositivos técnicos,
a imagem aqui descrita deve ser compreendida pela definição dada por Philippe Dubois 154 :
“apreender, desse modo, o ‘fotográfico’ como uma categoria que não se limitaria aos
únicos objetos-imagens, entender o ‘fotográfico’ como uma definição possível de uma
maneira de ser no mundo, como um estado do olhar e do pensamento”. Por isso, a menina
que precisava da salvadora viagem em direção ao mar, de sentir e respirar a maresia para
sobreviver, fez do passar os dedos a sua viagem, da escrita o seu mar e todos se calaram
para escutar o marulhar: “Foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha”. A imagem
reconhecida do mar está presente como um estado do pensamento, como a potência do
fotográfico que se concretiza na escrita do irmão Zonzo. As letras são o índice da presença
do objeto. E o índice é a mais primitiva relação como o real, a marca do objeto e da sua
existência. Quase cega, sua mão é a expressão tátil de conexão com o mundo, retornando
ao mundo do sensível a possibilidade de leitura e reconhecimento do mundo.
154
APUD Samain, 1998, p. 11.
245
Figura 121
O Beijo da Palavrinha, página final
São dez telas que ilustram cenas da narrativa (fig.121). A opção de apresentar todas elas ao
final do livro permite admirar o trabalho do artista, mesmo que em pequeno formato, de
uma forma inteira, autônoma, e libera a arte gráfica para compor e propor, ora com partes
dos quadros, ora com a tela inteira, diálogos entre o plástico e o verbal, iluminando
aspectos que dão sentidos de leitura. Seja brincando com frases, seja abrindo o branco para
o infinito, ou escrevendo sobre a tela, fica claro que são duas obras que se apresentam por
inteiro para leitura: literatura e artes plásticas.
explicitadas pela imagem. Em formato retangular de meia página, o tamanho deste objeto
livro torna-se de fácil apreensão, adequado à dimensão infantil. Deve-se analisar essa obra
observando o conjunto imagem e texto, pois o texto, aqui, não sobrevive sem as imagens:
são diálogos que remetem ao acontecimento retratado nos quadros, como na página 12: “-
Epa! A bandeja não passa”. E logo na página seguinte: “Ah, assim é melhor!” (fig.122 –
123).
Só se sabe qual o expediente utilizado para o sucesso da ação ao se olhar para o quadro;
portanto, a compreensão dada pela imagem explicita a importância da plasticidade na
constituição dos sentidos. Esse é o aspecto que dá originalidade à obra e indica a íntima
interação entre a leitura do texto verbal e as imagens.
Superando a discussão estabelecida por Lessing, que propõe uma divisão entre as artes do
tempo e as artes do espaço, esse livro vai numa direção mais inclusiva e oferece uma
forma de integração da espacialização na leitura; não uma forma de ler as imagens, como
queria Barthes – para quem tudo seria texto –, mas um jeito mesmo de ver o que há de
imagem, de plástico, no conjunto interpretativo da obra (lembrando sempre que imagem,
aqui, é definida de acordo com Christin, isto é, a figura e a superfície onde ela se assenta).
Dessa forma, a categoria dos dêiticos se torna chave para fazer essa interação, a ponte do
enlaçamento das duas dimensões, lingüística e visual.
índices, shifters, índices de enunciação ou indicadores de subjetividade (p. 41) são algumas
designações, de diferentes origens epistemológicas, para a definição do problema. Embora
não se interesse pela manifestação do fenômeno dêitico nas línguas, toma primordialmente
os pronomes marcados das pessoas eu/tu, o demonstrativo isso e os signos temporais como
categorias constitutivas de uma única classe que pode ser incluída na noção de dêixis.
Apresenta algumas direções de agrupamento, permitindo mostrar, de um lado, sua natureza
semântica e, de outro, a importância da relação que se estabelece com o referente. Estuda
processos históricos das diferentes funções dos pronomes pessoal e demonstrativo,
indicando que o demonstrativo, por exemplo, não só é concebido por alguns como uma
função puramente de substituição do nome, “para um nome”, como também pode ser visto
“como um nome”: esses se situam do ponto de vista semântico, conceitual. Informa a
necessidade de uma ampliação desse conceito, com idéias acessórias de natureza muito
diversa (p.53): “trata-se daquelas que o espírito extrai das circunstâncias do discurso, à
guisa de suplemento, quando a significação precisa de certos termos é geral demais”. É
isso que caracteriza sua natureza relacional. Esse aspecto é o que definirá, primeiramente,
as relações da dêixis com a significação e com a referência, embora sejam múltiplos os
valores associados a esses termos. Portanto, o problema assim posto por Lahud indica a
complexidade do fenômeno e as limitações a que me imponho para a crítica do material
ora analisado.
coquetéis, várias cores; sopa de abóbora, todos laranja; salada, eles folheados e verdinhos;
queijo, eles furadinhos; salmão, eles cor de salmão; sorvete, eles derretidos; café, marrom,
e, finalmente, leite quentinho, e todos voltam ao seu normal, branquinhos (Fig.124).
Figura 124
Livro O Jantar Fantasma, p.27
Por isso, a imagem funciona como um eis aí!, como dêiticos, cuja função de designação
indica mas também interpreta plasticamente os ditos e os subentendidos do texto. São, ao
mesmo tempo, elementos referenciais e semânticos, orientando, ou mesmo dirigindo, a
compreensão do leitor.
Esse recurso faz parte do conjunto de estratégias textuais que, constituindo os sujeitos-
leitores, constituem o discurso 155 . É o caso da seguinte seqüência: “- Que delícia!”, “-É de
derreter!” (fig.125 – 126), “- É de ficar derretido mesmo!”, “- Hmm...! É mágico!” e
desaparecem do quadro, existindo apenas através dos objetos que carregam, como os
talheres e o prato.
155
Umberto Eco, em Lector in Fabula, lembra que o texto é constituído por uma série de operações
interpretativas que supõe um leitor capaz de executá-las. Chama essa capacidade intelectual de compartilhar
o estilo do autor de leitor-modelo. Do outro lado, o autor-modelo é um feixe de estratégias textuais capaz de
estabelecer correlações semânticas, criando um estilo que será interpretado pelo leitor. (p. 45).
249
Nada foi dito sobre a possibilidade real de ser um sorvete, mas as circunstâncias
discursivas, constituídas pelo diálogo e pelas imagens, levam a intuir essa hipótese. A
participação efetiva das imagens como elementos de discursividade altera radicalmente a
posição dos valores das figuras na história: superam a sua função como simples ilustração
dos diálogos dos quadros e se impõem no campo discursivo como elemento-chave para o
estabelecimento de correlações semânticas. Sob esse ponto de vista, as imagens podem ser
observadas pelo que o círculo de Bakhtin caracteriza como interiorização da linguagem (cf.
Cap. 3), de forma que o dado comum, que dá base para a interação, possa sustentar a
interlocução em outro patamar, isto é, quando a linguagem (seja verbal, seja visual) está
afeita para a criação do estilo, da marca autoral. Por outro lado, a ambiência do jantar é
construída por índices que se referem ao mundo (para nós) mágico dos fantasmas. Por isso,
o apoio verbal da legenda nas imagens. É o caso, por exemplo, da p. 37, onde se vêem
pratos sendo lançados ao chão, sem uma motivação precedente. A legenda “- Cuidado com
o degrau!” informa uma suposta queda do fantasma. Ou na p.39, em que o diálogo da
legenda explica o evento (fig.127).
Figura 127
O Jantar Fantasma, p.39
250
156
Milton José de Almeida, em seu livro Cinema: a arte da memória, comenta as aproximações discursivas
entre o cinema e a memória artificial, tomando como eixo as pinturas da capela Scrovegni, Itália: mostra que
as pinturas são capazes de reconstruir, organizadas em um conjunto pictográfico, narrativas como no cinema,
bem como de propiciar a evocação da memória, como os instrumentos da memória artificial. “O cinema é
uma invenção moderna, no sentido material-técnico, porém, a forma como suas imagens são produzidas é
homóloga à produção da memória artificial. Assistir a um filme é estar envolvido num processo de recriação
da memória como o que estamos vendo dentro da Capella degli Scrovegni. O cinema, ao mesmo tempo, cria
ficção e realidades históricas, em imagens agentes e potentes, e produz memória.” (p. 56).
251
Figura 128
O Jantar Fantasma, página final
157
Arambasin apud Arbex, p. 39.
252
Do ponto de vista da classificação quanto à natureza da obra, pode-se dizer que esse livro é
uma fusão artística e que as suas contribuições estéticas e culturais só devem alimentar a
riqueza das diferenças: as falas dos fantasminhas, por exemplo, não indicam variáveis
sociais e/ou dialetais, mas culturais, pois é tipicamente francês o comportamento dos
fantasmas: a finalidade – o jantar; a comida – queijo; o lugar – o castelo. Isso tudo vindo
de uma tradição das histórias infantis que povoam o imaginário infantil.
Esta seção intenta contribuir com alguns movimentos de entendimento das relações entre
imagem e texto quanto à descrição, apresentando duas possibilidades de uso: como recurso
biográfico e como construção de narrativa. O biográfico no âmbito das identificações com
o leitor e a construção narrativa na organização do estilo.
também se apóia na paródia visual, que adiciona interpretação particular, cooperando com
a proposição discursiva verbal e visual.
Figura 129
Esquisita como eu, página dupla
Pelo fato de o texto não ser uma narrativa, imagens e textos são recortes do mundo da
criança-personagem e, por isso, os objetos tomam o espaço da página sem uma ordenação
pré-determinada. A orientação de leitura visual pode se apresentar às vezes circular, às
vezes da esquerda para a direita, como a direção de leitura do texto verbal, ou
centralizando o elemento principal (fig.130). O projeto editorial, portanto, acompanha o
ponto de vista do auto-retrato da personagem, que se apresenta de forma excessiva – ou
muito subjetiva – marcando, pelas cores, formas e traços, a identidade da criança.
Figura 130
Esquisita como eu, página dupla
A impressão de muito boa qualidade facilita a leitura do escrito sobre cores fortes. As
letras bastão distribuídas com bom espaçamento entre palavras e entre linhas estão
apropriadas para um leitor de 7 a 8 anos, idade aproximada da personagem. Entretanto,
254
esse é o limite do uso gráfico do texto verbal, integrado à proposta de leitura visual. A
definição do recorte quadrado para o formato do livro se mostra sensível às intenções
interpretativas da obra, pois contribui para a distribuição adequada dos elementos na
página dupla; o papel de qualidade (couché fosco) ajuda a manter as cores firmes e
definidas.
A seqüência de descrições que caracterizam a personagem cria uma série de atributos com
os quais a autora quer fazer o leitor mirim se identificar. A proposta da obra é apresentar
situações inusitadas, oferecendo uma possibilidade de leitura mais engraçada e, ao mesmo
tempo, reflexiva. Alguns procedimentos estilísticos são desenvolvidos no texto, como a
rima (“...Eu gosto de correr atrás de bicicletas no domingo. / Eu acho dia de sol feio, e dia
feio, lindo”.), o ritmo e o uso de figura de sintaxe (“Às vezes finjo que choro, e às vezes
choro de verdade”), a elaboração textual com elementos de coesão (fig.131) (“Não gosto
de usar vestido nem de nada preso no cabelo. / Uso calça comprida nas festas de
aniversário. / Melhor do que usar boné o dia inteiro, isso eles acham normal. / Eles, os que
fazem tudo igual”.).
Figura 131
Esquisita como eu, página dupla
A zona de estranhamento postulada pelo tema – ser diferente – acolhe qualquer postura que
possa dificultar uma interpretação imediata e automática: “Prefiro chá gelado em vez de
refri. / Fecho todas as janelas da casa para o vento não entrar./ Adoro tomar banho e chupar
limão. /E do pastel, como só as bordas, o recheio não”. O conteúdo se organiza em torno
do mundo infantil, estruturado pela comparação com tudo em volta, e as imagens são
255
agentes que enriquecem a leitura da obra, fazendo lembrar situações e vivências das
crianças em seus contextos culturais.
Para sair dos estereótipos fáceis, a autora constrói uma personagem também idealizada
pelo seu contrário. A primeira quadra do texto já indica essa disposição, lembrando as
inúmeras vezes que alguém disse para uma criança que ela foi achada no cesto de lixo, ou
que foi deixada na porta de casa, que foi adotada, enfim, que traz um estigma: “Dizem que
não nasci como as outras crianças. Minha irmã falou que vim dentro de um ovo de Páscoa.
/ Meu irmão, que me deram como lembrancinha de McLanche Feliz./ Eu sei que é
implicância, que foi minha mãe que me quis”. Ao final, depois de desfiar uma lista de
características inusitadas, a última quadra tende a querer recuperar uma normalidade muito
subjetiva: “Eu não vim dentro de um ovo de chocolate. / Nem vim de brinde de lanche. /
Nasci como todos, nove meses de barriga. / Esquisitos são os outros se não me querem pra
amiga”. Como é dito na quarta capa: “... cria uma personagem que, ao olhar para si mesma,
acaba achando os outros muito iguais”.
O livro Vizinho, vizinha, de Roger Melo, com ilustrações de Graça Lima, Mariana
Massarani e Roger Melo, propõe uma leitura múltipla, aberta, pelo trabalho com imagens,
palavras e imagem/palavra. São três ilustradores que assumem, cada um, os três
protagonistas do livro e definem seus modos de ser através de cores, de traços, de volumes,
enfim, de estilo próprio, único, estruturado pela linguagem, fundada socialmente. São as
marcas ideológicas na linguagem de que fala Bakhtin. Isso porque há tanto trabalho verbal
quanto imagético e uma proposta de interação entre essas duas dimensões, de forma a
construir um vasto campo de possibilidades de leitura. Uma dominante na proposta do
livro é a complementaridade permanente entre imagem e texto em forma de legenda; muito
do que dizem as imagens não tem paralelo no texto escrito, e vice-versa. Mas outra
proposta igualmente relevante é o diálogo entre as imagens, como que demarcando, pela
descrição constante, as personagens, seus modos de ser, seus atributos físicos e
psicológicos, enfim, uma composição visual que ultrapassa a transcrição denotativa do
texto verbal e amplia as conotações e implicações assumidas pela plasticidade das
imagens. Ex: “O vizinho coleciona discos da velha guarda”.
256
Figura 132
Vizinho Vizinha
Esse texto é complementado pela roupa do rapaz, suas calças largas e listradas, blusa
folgada, descalço, ele cantando emoldurado por um cacto e uma pintura na parede de um
músico violonista – o cenário mais perfeito para estar com os pés em um tapete rústico e a
voz solta na garganta. A simplicidade do rapaz opõe-se à extravagância da mulher do
apartamento em frente, que está em busca das coisas perdidas dentro de casa e nunca
achadas, uma parafernália: “A vizinha guarda coisas velhas que depois não encontra”.
Figura 133
Vizinho Vizinha
257
Outros elementos que orientam a leitura são as cores e o estilo de desenho de cada
personagem: rosa fúcsia para a página do homem, amarelo ouro para a página da mulher;
cada personagem foi desenhada por um artista, explicitando no estilo do traço e nos objetos
de decoração as marcas da singularidade de cada casa. O conjunto gráfico-editorial é bem
sucedido, sugerindo uma linguagem aberta e convidativa. O traço, o desenho, a técnica, a
mistura de técnicas – como a colagem –, as cores das páginas, os elementos selecionados,
tudo constitui o campo de significações dos personagens. Embora os conteúdos semânticos
estejam imersos tanto nas palavras quanto nas imagens, o elo significativo da existência de
cada personagem está no intercâmbio dessas duas dimensões.
Nesse livro, é através do conjunto descritivo que se apreende um estilo de vida. Em análise
sobre o conceito de estilo bakhtiniano, Fiorin (2006, p. 46-51) lembra que o estilo não
traduz a expressão da subjetividade, mas resulta de uma visão de mundo, e que estrutura e
unifica os enunciados produzidos pelo enunciador. Além disso, o estilo constitui-se em
oposição a outros estilos, sendo, portanto, dialógico. Tanto pela objetividade com que se
descrevem verbalmente as personagens, como pela suposta dependência da imagem ao
referente, a aparente transparência das imagens e das palavras esconde uma opacidade
orgânica que busca incessantemente o dito e o não dito, o implícito e o implicável, o
intraduzível, mas compreensível pelas fendas de leitura. Por isso, o tempo verbal é o
presente do cotidiano, que se desdobra indefinidamente nos mesmos atos diários: passeia
com o passarinho às quatro e quarenta, leva o relógio para consertar às vinte para as cinco,
ou alimenta um rinoceronte debaixo da pia – formas verbais que dão a dimensão do estar
no mundo de cada vizinho. O presente, que do ponto de vista filosófico é a ausência de
tempo, marca as histórias pessoais, contrastando o modo de ser de cada um; além disso,
não promove a transformação dos sujeitos, apenas fá-los se movimentarem. Esse recurso
lingüístico aponta na direção da realização de tarefas que enclausuram os personagens no
seu mundo interior, como círculos que se repetem. Por isso, o texto se assemelha à
estrutura de um roteiro cinematográfico, cada enquadramento à espera de se tornar real
através do acontecimento.
Pode-se retomar a noção de estilo, que o poeta norte-americano Bukowski tanto preza, ao
dizer que “tudo é uma questão de estilo”, e que Bakhtin aponta como marca da
subjetividade autoral, indício da enunciação. Retomando igualmente os estudos de Lahud,
258
Figura 134
Vizinho Vizinha
apartamento da vizinha e avança para outros andares. O corredor, como lugar de interações
e de marcação temporal dos acontecimentos da história, constitui o espaço dinâmico dos
encontros, das trocas e das expectativas de transformação.
Figura 135
Vizinho Vizinha
Figura 136
Vizinho Vizinha
Outro uso possível para o enquadramento é o recorte das telas em O Beijo da palavrinha; a
liberdade do corte ficou por conta da ênfase em determinado objeto, cor ou até mesmo da
abstração que o detalhe muito próximo acarreta.
Seguem abaixo as figuras de 137 a 149 com as reproduções das páginas do livro O Ratinho
que morava no Livro:
262
263
Do mesmo modo que as narrativas literárias nos permitem pensar imagens, e através de
imagens – os chamados iconotextos de que nos fala Louvel –, construídas por uma
percepção do mundo já instalada, as imagens permitem pensar palavras, frases, enfim,
textos, ou pensar por palavras, frases, enfim, textos, que construirão sentido. Bakhtin
(2004, p. 38) nos alerta para esse entrelaçamento dos signos ideológicos e para a presença
da palavra como elo discursivo. Diz ele que “nenhum signo cultural, quando compreendido
e dotado de um sentido permanece isolado”. E acrescenta:
Pode-se dizer que a história é a procura de uma moldura, no sentido da busca de uma
inscrição, de formas de demarcação. O quadro final, frisado e emoldurado por uma grande
margem branca como um passe-partout, diminui o espaço da ação e aumenta o espaço em
volta, dando nitidez e forma à tela que deverá assegurar a presença do ratinho no ambiente
por ele almejado, definitivamente um quadro, destacando e significando o que ele gostaria
de ser: um ratinho que rói uma espiga de trigo no trigal, um dos cenários da história que só
ele vislumbra. Retomando um viés da análise sobre descrição e representação, é possível
pensar um aspecto da produção desse livro de literatura infantil dentro do conjunto
analítico proposto por Olson, quando estuda as implicações conceituais e cognitivas da
leitura e da escrita. Analisando a representação do mundo pelas imagens, Olson (1997, p.
158
Ver nota na análise da p.2 do livro O jantar fantasma.
265
216) lembra o comentário de Alpers sobre a arte holandesa do séc. XVII, que trocou a
profundidade narrativa pela descrição superficial:
Esse dado facilita o entendimento da proposta descritiva dos quadros holandeses dessa
época, cuja tradição permitirá sedimentar nuances conceituais, como a idéia de
representação pictural como reprodução fiel da verdade, baseada nos olhos bem abertos
para os fatos da natureza. No caso desse livro, o recorte descritivo do ratinho no trigal é
uma proposta de inserção num mundo de representações, cuja verdade garante uma relação
de confiança com os leitores. Olson (1997, p.226) lembra ainda que os estudos científicos
do séc. XVII permitiram utilizar informações sobre a posição dos sujeitos nas navegações,
substituindo o quadrante pelo relógio mecânico, o que dá chance de se trabalhar com a
longitude, além da latitude. Isso permitiu integrar informações em uma única representação
do mundo: A localização de uma pessoa deixava de ser o “aqui” dêitico e passava a ser
um ponto no mapa.
De fácil leitura, a história vai se desenrolando nas duas páginas, direita e esquerda, num
jogo equilibrado de significações, em página dupla: sem margem no papel, a história
começa com uma folha em branco, à esquerda; a apresentação do ratinho se dá na página
da direita, a de mais forte presença no campo visual. O mesmo acontece com as duas
266
Essa história foi contada considerando a forte presença dos elementos visuais: cada
imagem valendo por si, como um quadro que se completa em cada página, mas deixa
margem a uma expectativa do leitor mirim, em cada dupla página, sobre o que poderá vir a
seguir; por outro lado, as imagens se acrescentam a cada página, enfatizando elementos,
como o tempo da narrativa, a narrativa em contraponto, com tempo e espaços que se
ressignificam. Essa diversidade de recursos permite a participação ativa e autônoma da
criança, sem a necessária presença de um adulto, possibilitando uma leitura de mundo em
que as imagens façam-na melhor imaginar. Como diz o ilustrador-artista Rui de
Oliveira 159 :
159
Ver site do autor
267
desenho, obrigando o leitor a reposicionar mão, corpo e olho para realizar a leitura. O
projeto do livro explicita e acompanha o significado da história: o embate do homem
sertanejo com o calor do Nordeste. Por isso, a posição dos elementos – de cima para baixo
– semantiza a leitura, verticalizando-a: dois personagens, duas folhas – inferior e superior –
o sol e o homem do Nordeste. E o diálogo entre eles é conduzido pelas ações e reações de
um e de outro, em eventos constantes de transformação da natureza. O paratexto é uma
espécie de orelha dobrada, quase como uma nova folha, onde nada se explica, apenas se
sugere uma brincadeira com o tema do livro.
A predominância da sua natureza gráfica, a partir dos recursos das formas, cores e traços,
dará condições para que a história seja contada. Bem certo que não somente a história é
contada, mas uma série de subtemas pode ser retirada, colaborando com outros níveis de
leitura. Por exemplo, a resistência do homem quando se defronta com situações
antagônicas; a perseverança do nordestino frente ao sol e ao calor; a imaginação como
forma de superar problemas e criar soluções. Esse conjunto de dados, o ciclo da chuva e os
subtemas agregados a esse tema principal, torna-se relevante para a leitura da criança ou do
jovem, constituindo-se uma rica fonte para a formação humana. Os desenhos são
contemporâneos, com múltiplas técnicas de lápis e caneta, coloridos e preto e branco,
variando a cor e a tonalidade de acordo com o momento do enredo. Por exemplo, quando a
água entra na história, o azul começa a tomar conta da página, transformando-se em
marrom, para o relâmpago de um dia chuvoso. Como o personagem homem está em preto
e branco, é a natureza que se apresenta em cores. Essa distinção ajuda a mostrar suas
transformações, seu ciclo de vida, através de um ciclo de cores, um arco-íris. Por isso, o
que diz respeito ao fazer humano, isto é, o barco de papel, é branco. A única palavra do
texto é uma onomatopéia, tomando um bom espaço da página. Dessa forma, não se vêem
formas simplificadoras ou mesmo redutoras que impeçam uma representação mais
elaborada do conhecimento humano sobre os fatos da natureza. Lido com um bloco
vertical, oferece ao leitor um outro olhar, desfazendo o modelo canônico de leitura, da
direita para a esquerda, de cima para baixo. Nessa proposta, é de cima para baixo e com
atenção à forma plástica, o que impede a linearidade da forma lingüística. Por isso, a
proposta de leitura convida o leitor a tornar-se criativo nos nós da enunciação e nos vãos da
composição, pois são muitos os elementos visuais que deslancham a trama narrativa. A
linguagem imagética traduz-se plena de efeitos vindos da intensidade de cores (por
exemplo, o amarelo do sol), do traço aparentemente rabiscado que delineia o nordestino, da
269
mescla entre o guache e riscos no guache (como o céu do sol e o chão marcado pela seca)
etc. Dessa forma, esse texto visual é de fácil leitura e se aproxima da realidade das crianças
e jovens de hoje, ampliando suas percepções de mundo. O apuro no trato dessa linguagem
permite uma aproximação rica com as questões estéticas que definem o discurso sobre a
questão ambiental. A falta de margem, as cores fortes, o traço livre e uma aparente
sensação de desenho sobre rascunho fazem as imagens realizarem uma proposta mais que
realista, isto é, serem reais. A intenção estética, assim, está presente e orienta a
concretização do conteúdo.
É um livro que pode ser lido por qualquer idade, embora o objetivo do autor tenha sido
claramente o de apresentar uma temática que vai ao encontro de uma faixa etária mais
baixa, própria do primeiro segmento do ensino fundamental. Assim, tem-se uma leitura
com diferentes entradas, seja pelo assunto, pela composição das formas, ou, mesmo, pelas
cores. Aproxima-se de muitas obras, como Vizinho, vizinha, pela importância do projeto
gráfico na orientação de leitura.
270
○6○
Considerações Finais
Acredito que, ao término deste estudo, seja possível destacar alguns aspectos que indicam
a relevância da pesquisa. Em primeiro lugar, as reflexões apresentadas possibilitam abrir
espaços para trabalhos voltados para muitas e possíveis leituras das crianças. Além disso, a
importância em observar a escrita como imagem – que se desdobra em fragmentos e se
reconstitui em discurso – e a imagem como escrita – que desenha o espaço e se constitui
nas superfícies carregadas de sentidos – redimensiona o olhar de quem deseja superar os
limites teóricos que organizam os conhecimentos tanto em relação à escrita quanto em
relação à imagem. O visível e o legível, hoje, são apropriados pluralmente, com as
condições que a contemporaneidade permite, e a escola pode renovar, com esses
elementos, os sentidos da alfabetização.
Penso também que alguns delineamentos que determinei como condutores da pesquisa se
confirmaram, outros, não. Inicialmente, organizei um estudo comparativo entre cartilhas de
alfabetização e livros de literatura infantil para levantar semelhanças e singularidades de
usos nos dois suportes e gêneros. Todavia, percebi imediatamente que essa proposta
empobreceria a dimensão de um olhar mais dinâmico sobre as relações entre imagem e
texto, demarcado antecipadamente por questões específicas aos ambientes de uso. Por
exemplo, o desejo de não tratar especificamente dos processos de aquisição da escrita
permitiu-me não me restringir a uma explicação lingüística de expressões plásticas. A seu
turno, evitar a sobrecarga de considerações a respeito de métodos de alfabetização
possibilitou-me definir um caminho para dialogar com expressões artísticas no mesmo
gênero e suporte em que se alfabetiza, de forma a cumprir um trajeto de pesquisa
descolado de injunções históricas determinantes, de certa forma, da aplicação de métodos
que pudessem desviar o interesse maior da pesquisa. O uso de cartilhas francesas também
não só não impediram a observação, como enriqueceram o material de investigação, uma
vez que o diálogo com a produção estrangeira amplia os horizontes do estudo.
271
Meu interesse nessa pesquisa foi evidenciar um novo olhar sobre as relações entre a
imagem e o texto verbal que se apresentam em dois impressos para crianças em período
escolar: o livro didático e o livro de literatura infantil. Compreendi imediatamente a
importância de situar a natureza específica de cada um desses livros para ver, só a partir
daí, as possibilidades de experimentação de linguagens que há dentro de cada um. Ou,
melhor, que tratamento é dado às relações entre texto e imagens, sabendo que: 1- suas
naturezas específicas são um dos determinantes das propostas de tratamento; 2- os livros
didáticos não precisam ser, obrigatoriamente, instâncias simplificadoras, uma vez que o
pendor didático tende a supra-organizar os conteúdos; há casos em que, mesmo mantendo
seu papel utilitário e prático de organização de conhecimentos, os projetos pedagógicos
abrem espaços para atividades enriquecedoras com texto e imagem.
No capítulo 1, situei a pesquisa no intuito de melhor dirigir os objetivos da tese. Por isso
mesmo, senti necessidade, no capítulo 2, de que a interrogação a que me propus investigar
fosse contextualizada, explicitando o traçado teórico de alguns campos. Por um lado,
utilizei a perspectiva da História da Educação para relativizar certos conceitos, como o de
aprendizagem, e me propus a refletir sobre o fenômeno do letramento, exaustivamente
discutido até os dias de hoje, mas ainda não totalmente compreendido, para que pudesse
iluminar as preferências metodológicas de um ou outro projeto pedagógico, relativizando
as condições de escolarização de ambas, a linguagem escrita e as imagens.
272
A exploração das cartilhas permitiu definir dois grandes eixos de configuração das imagens
e a aprendizagem do sistema de escrita: a imagem e sua relação com o sistema fonológico
e a imagem e sua relação com o sistema semântico-discursivo. Acredito ter sido bastante
valiosa essa divisão inicial, para que eu pudesse explicitar diferentes processos por que
passam as imagens. Historicamente apensadas à relação grafema–fonema, ou ao caráter
lúdico que conquista a criança para o estudo, a presença das imagens em alguns métodos
descortina uma forte relação com a dimensão discursiva. Essa confirmação projeta uma
necessidade de pesquisas futuras mais atentas a trabalhos que fortaleçam o sistema de
escrita sem se limitar à necessária relação significante/significado, constituinte do signo
verbal.
Tanto a exploração das cartilhas quanto a análise dos livros de literatura infantil
permitiram compreender algumas noções que perpassam o trabalho pedagógico e que
muitas vezes se indeterminam: seja porque são aspectos que se superpõem naturalmente
nas atividades, seja porque não são claramente delimitados, ou mesmo porque não são bem
compreendidos em suas especificidades. São eles o lúdico, o educativo e o estético.
Algumas vezes, as cartilhas de alfabetização tratam o lúdico como um aspecto suficiente
para dar prazer às crianças e, com isso, facilitar a aprendizagem infantil, esquecendo-se de
que a exploração estética propicia também prazer e formação dos sujeitos. Por outro lado,
muitos livros de literatura infantil oscilam no âmbito da dimensão do educativo, indo de
textos de formação moral e psicológica, de auxiliares nos processos de aquisição dos
sistemas de escrita, aos que percebem o sentido do jogo de linguagem como uma porta que
se abre para a interação interlocutiva verdadeira e criativa. O lúdico, neste caso, assume
uma posição de jogo de orientação social, e o estético, uma dimensão ética.
Tanto o capítulo 3 quanto o 4 indicaram o solo em que assentei as bases teóricas: na teoria
literária e nas artes plásticas, deixando para futuros aprofundamentos questões de ordem
semiótica (já indicadas por Bakhtin em seus escritos de 1929 – Marxismo e filosofia da
linguagem) que, hoje, tomam variadas direções. No momento, a definição de linguagem,
do ponto de vista bakhtiniano, e a dupla natureza da escrita – verbal e gráfica –, defendida
por Anne-Marie Christin, formam a base de sustentação a partir da qual traço meu percurso
investigativo. Com esse aporte, pude aproximar o texto verbal e as imagens, sem
necessidade de circunscrever a temática a outros parâmetros que não fossem o do visível e
o do legível.
273
O material analisado no capítulo 5 determinou grande parte das conclusões a que chego.
Tive a chance de pensar uma outra lógica, mista, de relação imagem e texto, para que a
palavra deixe livre a imagem para também abstrair (conceituar), e que a palavra possa ter a
liberdade de tornar-se análoga. Fui em busca da concretização dessa aposta nos livros
analisados – cartilhas e livros de literatura infantil. Obtive algum sucesso e muitas
decepções, posto que a época em que vivemos ainda terá tempo para traduzir maciçamente,
em materiais que são escolares e nos que são apropriados pela escola, a dinâmica da
cultura explicitada em suas diferentes linguagens em materiais de leituras escolares. De
qualquer forma, é aberto um jogo com a escola cuja dinâmica permite pensar em projetos
alfabetizadores mais integrados aos movimentos da cultura.
Fica ainda a necessidade futura de pensar outros espaços para essa reflexão que não só o
dos manuais didáticos e o dos livros de literatura infantil, para compreender a
multiplicidade de interações entre imagem e texto no ambiente escolar. A dimensão
estética mostra bem que as relações entre imagem e texto podem solicitar outras formas de
convivência, talvez mais enriquecedoras, talvez mais livres, a depender da concepção de
cada projeto.
274
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