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The final version plot of The Mirror (TARKOVSKY,1974) came from a three stages
process that results on a work where the film-maker has got an organic shape that
could harmonize structurally the cine-journal and memory based representation
fiction. This article is just a report of that plot transformation process associated to an
poetic image reflection that came from the author’s register in his book Sculpting in
Time. It’s also an way to paying tribute to this film-maker so little recognized by
nowadays in Brazil.
De 1960 a 1986 Andrei Arsenevich Tarkovsky (1932-1986) dirigiu nove filmes: O rolo
compressor e o violino (1960), A infância de Ivan (1962), Andrei Rublev (1966),
Solaris (1972), O Espelho (1974), Stalker (1979), Nostalgia (1983), Tempo de
viagem (1983) e O Sacrifício (1986) – ou seja, um filme a cada dois, três ou quatro
anos. Destes, apenas dois ele não assina o roteiro (A infância de Ivan e Stalker); em
todos os demais, Tarkovsky o assina em parceria com alguém. Na maioria deles,
porém, além da direção e roteiro, o cineasta russo assina também o argumento: O
rolo compressor..., Andrei Rublev, O Espelho, Nostalgia e O sacrifício. Tarkovski se
inscreve na categoria dos grandes diretores de cinema que produziam o que se
pode chamar de “filme de autor”1, numa fase em que o processo de especialização
das funções dos profissionais da área do áudio-visual estava ainda num estágio
inicial. Esta era a forma que os diretores encontravam para imprimir uma
determinada unidade na obra, já que é raro ter a sorte de encontrar alguém com
quem se tem afinidade com relação a concepção estética. Direção, argumentação e
roteiro são funções que se imbricam de uma forma quase simbiótica, estão
inextricavelmente ligadas, de modo que, para respeitar a criação daquela unidade
orgânica da obra, Tarkovsky não via como ser possível a não ser assumindo para si
estas funções.
Ao inquirir sobre o processo de construção do roteiro nos filmes de Tarkovsky, o que
se deseja na verdade é criar uma oportunidade para rever, retomar e recuperar a
obra de um cineasta, cuja peculiaridade se evidencia em cada plano, em cada
seqüência e diálogo. Seus filmes continuam resistindo à passagem do tempo. A
superfície de suas imagens permanecem impregnadas de inequívoca sensibilidade
poética, transbordante na forma e no conteúdo. Sendo assim, a escritura deste
artigo não é resultado de uma pesquisa propriamente dita no campo da estética do
áudio-visual, antes, trata-se de um pretexto para revisitar, partilhar e chamar a
atenção sobre a obra e a importância das reflexões daquele que foi considerado um
dos mais importantes diretores de sua época, Andrei A. Tarkovsky.
O estudo da construção do roteiro dos filmes de Tarkovsky pode dar origem a
pesquisas de desdobramentos conseqüentes, tendo em vista o revigoramento
1
Em oposição aos filmes comerciais, cuja exigência é a da eficácia que atende exclusivamente aos pressupostos
do mercado consumidor.
porque passa o cinema brasileiro da retomada. No caso deste artigo, deter-se-á no
processo de confecção do roteiro do filme O Espelho, produzido em 1974, pautando-
nos no relato detalhado que o cineasta faz em seu livro, Esculpir o tempo (Martins
Fontes, 2002). Ele conta que o roteiro passou por três versões diferentes: a primeira
surgiu a partir de anotações de lembranças da infância que o atormentavam. Eram
imagens relacionadas à “evacuação durante a guerra” e ao “instrutor militar” de sua
escola. A idéia era escrever uma novela, mas logo depois achou o tema muito frágil
e a novela nunca saiu.
Sobre essa primeira versão do roteiro, intitulado originalmente como Um dia branco,
branco, Tarkovsky faz o seguinte comentário:
...minha concepção estava longe de ser clara; um simples fragmento de
minhas lembranças, cheio de uma tristeza elegíaca e de nostalgia pela
infância, não era o que eu queria. Era óbvio que faltava alguma coisa ao
roteiro, e o que faltava era crucial. Portanto, mesmo quando o roteiro estava
sendo apreciado pela primeira vez, a alma do filme ainda não viera habitar-
lhe o corpo. Eu tinha plena consciência de que precisava encontrar uma
idéia chave que o elevasse acima do nível de uma reminiscência lírica
(p.153-154).
Desse modo, o cineasta conseguiu encontrar uma pista que poderia levar à “idéia
chave” que faltara na primeira versão, que poderia levá-lo à “alma do filme”.
Encontrara finalmente o elo entre suas reminiscências infantis – que ficaria no plano
da memória e, portanto, no plano do tempo subjetivo – e o relato histórico do cine-
jornal – que ficaria no plano objetivo do documentário e, portanto, no tempo
verdadeiro da reportagem. Assim, um episódio da infância do cineasta sobre a
evacuação durante a guerra, aparentemente apenas “uma reminiscência lírica
íntima”, ao cravar-se em suas lembranças como um tormento, tornou-se mais tarde
o ponto de impulso que iria resolver esteticamente toda a proposta inicialmente
confusa do roteiro. Na estrutura do filme, embora essa reportagem componha um
episódio menor, ela constitui-se no centro de irradiação que ilumina e faz
compreender o sofrimento por que passaram os integrantes da família do narrador.
Esse acontecimento histórico, o evento da segunda grande guerra, e seus
desdobramentos – que afetaram tragicamente o modo de vida das pessoas em
todos os níveis – determinaria para o resto da vida os dramas vividos pelo cineasta,
sua família e por toda uma geração de famílias da população da Rússia. Sobre essa
seqüência dos soldados soviéticos, o autor escreve:
Esse ponto de vista crítico do progresso perpassa quase todos os seus filmes e se
torna tema do discurso em cenas de Nostalgia e O Sacrifício.
O relato sucinto dos caminhos percorridos por Tarkovsky para a formulação do
roteiro diz muito sobre sua forma de trabalho, sua concepção da função da arte e do
papel do artista. Muita coisa veio a ser pensada, formulada e realizada ao longo do
próprio processo de filmagem. Obviamente O Espelho marca uma guinada na
prática fílmica do autor, “os roteiros dos meus filmes anteriores foram mais
claramente estruturados” (2002, p.157). No caso deste, os princípios foram outros:
ele não seria “elaborado e planejado antecipadamente”; “veríamos primeiro sob
quais condições o filme adquiriria forma por si próprio: dependendo das tomadas, do
contato com os atores, da construção dos sets etc” (2002, p.157). O principal nesta
experiência, segundo o relato do autor, foi “desenvolver uma clara percepção da
atmosfera”, bem como uma visão do “estado interior, a tensão interior específica das
cenas a serem filmadas e da psicologia dos personagens” (2002, p.157).
O filme
O Espelho é um filme de cerca de 200 tomadas de seqüências longas. Durante o
processo de montagem, conta o autor, chegaram a pensar que o filme não se
sustentaria e não ficaria de pé. Não conseguiam imprimir unidade, nem conexões
internas e nem lógica nenhuma até que num “belo dia, quando, de certa forma,
tentávamos fazer uma última e desesperada recomposição – ali estava o filme”
(2002, p.138). A sensação narrada por Tarkovsky é do acontecimento de um
milagre, de repente, “o material adquiriu vida, as partes começaram a funcionar
organicamente, como se unidas por uma corrente sangüínea, (...) o próprio tempo,
fluindo através das tomadas, acabara por harmonizar-se e articular-se” (2002,
p.138). Sobre o filme, Tarkovsky afirma que:
O Espelho é também a história da velha casa onde o narrador passou sua
infância, da fazenda onde ele nasceu e onde viveram seu pai e sua mãe.
Esta casa, que com o passar dos anos se transformara em ruínas, foi
reconstruída, “ressuscitada” a partir de fotografias da época e dos alicerces
que ainda sobreviviam. Assim, acabou ficando exatamente como fora
quarenta anos antes. Quando mais tarde levamos até lá minha mãe, que
passara a infância naquele lugar e naquela casa, sua reação superou todas
as minhas expectativas. O que ela experimentou foi uma volta ao seu
passado, e isso me deu a certeza de que estávamos no caminho certo. A
casa despertou nela os sentimentos que o filme pretendia expressar...”
(2002, p.158).
Um terceiro flashback ocorre mais tarde no filme, durante a guerra, quando o garoto
de pés descalços e sua mãe chegam à casa de um vizinho. Enquanto a mãe vai
para outro quarto barganhar com a dona da casa a venda de seus brincos, o jovem
Alexei é deixado sozinho. “É hora do crepúsculo; a chama no lampião se agita e se
extingue. A face do garoto reflete-se intensamente no espelho pendurado sobre uma
lareira. É um momento de memória e mistério” (LE FANU, 1987, p.72).
Poética da imagem
Nas seqüências de rememoração da infância evocadas acima, algo nos afeta de
forma poderosa. Algo faz com que alguma coisa interna se agite cambaleante até
nos deixar meio extasiados ou meio transtornados. Compreendemos tudo que se
2
Tradução feita pela autora. Cf. citação no original em inglês: “...when Natalia, the narrator’s wife (Margarita
Terekhova de novo, em seu papel “no presente”), questions her husband about the reasons for their marriage
breaking up. Here the conversation is conducted as she glanced at herself in the looking glass, at one stage
breathing on it and rubbing out the moisture with her fingers (p.72).
passa ali, mas não de forma racional. A compreensão se dá mais como uma espécie
de insight. Dependendo da intensidade daquilo que nos afeta, pode-se ter uma
correspondência física mesmo: nossa respiração fica alterada (mais acelerada), o
coração começa a bater mais rápido, os olhos ficam marejados. Perguntamo-nos
interiormente como ele teve coragem de fazer aquilo, porque sentimo-nos tão
expostos. Essas cenas parecem querer revelar-nos nossa própria fragilidade de uma
forma tão sincera e honesta, que nos comove: nem sempre uma revelação que
queremos ou que nos sintamos preparados para ter sobre a vida e a existência
humanas, devido a dores profundas que ela enseja.
O que se encontra nessas composições visuais é a forma de Tarkovsky de dar
realidade a sentimentos ou a percepções tão subjetivas (dele), que ao se aproximar
de uma Verdade, tornam-se também nossos sentimentos e nossas percepções.
Para isso ele rompe com o realismo da utilização do tempo “real e objetivo” que
costuma marcar as obras cinematográficas em geral. Ele faz um uso muito particular
do tempo, criando outros ritmos e espaços que nos fazem transitar do interno ao
externo de forma transparente e obscura ao mesmo tempo: estamos nos deparando
enfim com o que estamos tentando definir como imagem poética.
O poema é tanto a parte material da poesia, quando seu modus operandi, ou seja, é
aquilo que faz suscitar no sujeito a poesia. Do mesmo jeito, a imagem poética é o
suporte material e o modus operandi da poesia no cinema, aquilo que faz suscitar no
sujeito um estado poético.
De acordo com a teoria da poética da imagem de Tarkovsky, a imagem artística tem
que ser capaz de “avança[r] para o infinito, e leva[r] ao absoluto” (p.122). O autor,
em suas reflexões sobre a obra de arte, assevera que embora se trate de um
conceito sintagmático difícil de ser formulado e compreendido – “não dá para ser
expresso por meio de uma tese precisa” – a idéia de imagem artística pode ser
entendida apenas por meio da arte:
quando o pensamento é expressado numa imagem artística, isso significa
que se encontrou uma forma exata para ele, a forma que mais se aproxima
da expressão do mundo do autor, capaz de concretizar o seu anseio pelo
ideal (2002, p.122).
Em sua meditação sobre a arte, o autor nos ensina que “a imagem artística é
sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra”, o menor no lugar
do maior: para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para
falar do infinito, mostra o finito. Substituição [...] não se pode materializar o infinito,
mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem (2002, p.42). A concepção de
imagem artística de Tarkovsky passa por um processo profundo de auto-
conhecimento e de auto-percepção do sujeito e do mundo, e da relação entre o
sujeito e o mundo, da verdade da existência e da vida. Sua percepção é de que todo
o nosso passado encerra uma verdade singular: “a singularidade dos
acontecimentos de que participamos, com a individualidade absoluta dos
personagens com os quais nos relacionamos” (2002, p.122), só essa experiência do
mundo da vida, particular e singularmente vivida, pode se tornar matéria bruta para o
artista, porque ela é a nota dominante de cada momento da existência. Na leitura
que Le Fanu faz da obra de Tarkovsky, ele enfatiza essa relação do cineasta com o
passado e como ele valoriza a tradição: “nosso passado é nossa fortuna. Nós
existimos como seres morais até o ponto em que possuímos, amamos e imitamos
como ancestrais3” (1987, p. 73).
Nesse sentido, para Tarkovsky, “o artista nunca vai em busca de um método pelo
método, ou apenas em nome da estética; ele é dolorosamente forçado a
desenvolver o método como um meio de transmitir com fidelidade a sua visão de
autor acerca da realidade” (2002, p.120). Por fim,
pode-se dizer que o artista enriquece o seu próprio arsenal com o objetivo
de fomentar a comunicação e levar as pessoas a se compreenderem
melhor, nos níveis intelectuais, emocionais, psicológicos e filosóficos mais
elevados. Assim, também se pode dizer que os esforços do artista têm por
objetivo melhorar e aperfeiçoar a vida das pessoas, de facilitar a sua
compreensão mútua (2002, p.120).
Referência Bibliográfica
ANTUNES, Y. “Imagem poética” in A imagem poética do nuevo teatro latino-
americano: os casos do TEC e LA CANDELÁRIA da Colômbia. Tese de doutorado
defendida na USP, em 2007, Orientador: Prof. Dr. Sedi Hirano.
http://www.youtube.com/watch?v=V27XlEDLdtE,
captado em outubro de 2010.