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Bater não educa. O debate em torno desta afirmação gera polêmica. Apesar dos
conflitos entre pais e educadores, especialistas se mostram a favor do diálogo e
afirmam que qualquer tipo de agressão pode ser prejudicial para o
desenvolvimento psicossocial
Marcelo Jucá
Cultura enraizada
No inconsciente coletivo de uma geração, a lembrança é de uma régua castigando
a mão solitária na sala de aula. A punição ganhou palmatória com mães, e mais
frequentemente os meios de comunicação retratam o absurdo espancamento
cometido por babás e empregadas do lar, inclusive em bebês com menos de um
ano. O "limite", até onde seja possível nomear esta falta de moderação, ultrapassa
cada vez mais a linha moral e do bom senso dentro e fora dos lares brasileiros.
Quais são os motivos que incentivam um, aparentemente, simples beliscão ou o
tapa selvagem que arranca sangue da "boca maldita"?
Afinal, bater é uma forma incomprendida de mostrar à criança a realidade ou a
conversa é o melhor negócio? Os entrevistados desta reportagem encontram um
denominador comum: "bater não educa". Até o presidente Luiz Inácio da Silva
declarou ser favorável à proibição da violência domestica. As respostas e o
burburinho geram então a questão. Por que essa "educação" faz parte de nossa
cultura?
A psicóloga Daniela Pedroso afirma que sempre faltou instrução educacional às
famílias brasileiras. "Talvez muitos pais façam uso do castigo físico simplesmente
por não terem acesso a formas eficazes de educação e imposição de limites em
seus filhos, pois muitas vezes desconhecem outras formas de criação de
disciplina", explica.
Há algumas gerações, acreditava-se que a violência era uma forma de punir o
erro. Daniela, especialista em saúde materno-infantil e violência sexual, conta: "A
punição física foi fortemente utilizada até o início do século XX, fazendo parte do
processo educacional, tanto em casa como nas escolas, sendo minimizada a partir
da inclusão de novos conceitos psico-pedagógicos, deixando de ser usada nas
escolas e passando a ser menos frequente nos lares."
Direitos da criança
♦ Em 13 de julho de 2010, o ECA completou 20 anos de
atuação. Com a missão de garantir os direitos básicos das
crianças, como saúde, alimentação e o lar, o Estatuto é um
exemplo a ser seguido. Os cuidados com os direitos das
crianças foram instaurados na Suécia, em 1979. Outros
países europeus seguem o modelo, enquanto na América
Latina, somente Uruguai e Venezuela contam com leis
nesse sentido. O Brasil, simplesmente, promete...
Roda-viva
O Brasil é muito atrasado e a ignorância de
seu povo confirma isso. E é fácil se chegar a
esta conclusão. Como pessoas e famílias,
totalmente isoladas das discussões e
problemas do mundo, vão filosofar e concluir
que o diálogo, a comunicação e a paciência
com as crianças pode ser uma forma mais Está inserida no inconsciente coletivo a
imagem da palmatória usada antigamente.
Aa mídia propulsiona a propagação desta
imagem, relatando os espancamentos
cometidos nos lares contra crianças e
bebês
harmônica de se contornar o problema?
O maior problema é sobreviver diariamente, embaixo de sol ou de chuva, em
terras secas ou inundadas, passar fome e frio. Em muitos lugares, não há tempo
para a infância. Quem é pequeno tem que deixar de ser. E rápido! A palmada é só
um ensaio de como será o restante da vida. A reflexão é convidativa. É exigir
demais de um país tão atrasado como o Brasil, de uma megalópole como São
Paulo onde ainda não há esgoto para todos.
O exemplo é pertinente. Pela inconcebível situação de se viver entre excrementos,
é que a sociedade começou a funcionar como tal. No redemoinho familiar, se a
palmada funcionou, qual a razão de não fazer isso com o próprio filho?
Ação e efeito
O problema da violência doméstica é a geração de novas violências. A criança,
traumatizada, pode tornar-se uma pessoa agressiva. E por mais que consiga, a
princípio, superar as dores, suas cicatrizes poderão fazer pares nos filhos, ou
mesmo extraviar a raiva contida em outras situações que em algum momento o
prejudicarão também.
A psicóloga Daniela Ribeiro observa que "é possível afirmar que pais com níveis
de escolaridade mais baixa pratiquem mais a punição física por se tratar de um
modelo introjetado da educação por eles recebida, além do fato de terem menos
acesso a outras formas educacionais e disciplinares."
Estudos ainda apontam que grande parte dos atos de violência doméstica são
cometidos pelas mulheres, pelas mães, pois são elas ainda as grandes
responsáveis por acompanhar o crescimento das crianças e que se frustram ao
tentar educá-las. Não há, porém, uma diferença visível nos números entre meninos
e meninas que apanharam.
A questão a se pensar é que em muitos casos, os castigos corporais acontecem
por coisas pequenas. Sim, crianças quebrarão vasos na casa, falarão o que era
segredo para a vizinha e muitos verbos de ação ainda serão conjugados. Assim
como adolescentes vão experimentar um cigarro, tomarão um porre e vão tirar
nota vermelha na escola. "Crianças apanham por diversas razões, mas o mais
comum são em situações associadas à desobediência das normas de convívio
social estabelecidas pelos pais", afirma outra psicóloga, Daniela Pedroso. O que
os pais devem entender é que essas atitudes são saudáveis e naturais. Claro,
deve sim haver um limite para tudo, mas o diálogo ainda é mais interessante do
que a agressão física, pois por um lado, a criança - em forma de desafio - repetirá
em maior gênero, número e grau a ação castigada, ou por outro, será infeliz e não
se dará ao direito de conhecer as coisas boas e ruins da vida.
Explicação científica
A neurociência pode esclarecer algumas características consideradas normais no
comportamento dos filhos. Segundo o neurocientista Richard Destak, no livro
Mente Saudável, Mente Brilhante: "Boa parte do comportamento 'imaturo' típico da
adolescência, por exemplo, resulta da imaturidade do córtex pré-frontal
adolescente. A boa notícia é que, com o tempo, o julgamento, o autocontrole e
outras funções do lobo frontal melhorarão" (veja quadro Rebeldia natural). Destak
explica mais um aspecto sobre o cérebro adolescente: "ele não lida muito bem
com o estresse. Tipicamente, o estresse num adulto causa uma elevação nos
níveis de cortisol, seguida de um decréscimo gradual ao longo de uma hora ou
duas."
Anti-Esparta
♦ A Grécia Antiga, raiz da história social, sempre oferece, como
base de pesquisa, relatos e curiosidades das leis e da cultura
do homem. Antigamente, a punição corporal era algo comum, e
não significava uma transgressão das regras morais do povo.
Os meninos espartanos, por exemplo, a partir dos sete anos,
eram encaminhados para o treinamento de guerra, entre
espancamentos e exercícios físicos a fim de alcançar a forma
física ideal.
O Contraponto...
Toda a história tem um "mas", e com essa não podia ser diferente. Apesar de
grande parte da população se mostrar a favor da lei, vozes ainda um pouco
abafadas também apontam que esse burburinho todo esconde e deixa de lado
outras questões.
O psicanalista Ernesto Duvidovich afirma: "Eu sou um profissional totalmente
contra esta lei". Para Ernesto, que também é diretor do Centro de Estudos
Psicanalíticos (CEP), a lei comete um erro no momento em que o Estado tenta
legislar o íntimo humano e sua subjetividade. "Ao contrário de assumir a função
paterna, faz exatamente o oposto, violentando a mãe e o pai, excluindo o direito
deles como família". Que fique claro, o psicanalista se mostrou contra a violência
gratuita, e o que ele põe em questão são os "limites" que foram abandonados.
"Esta lei é abusiva tentando cuidar de forma pública o íntimo de cada um", conclui.
Para o professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine Ribeiro
existe de fato uma violência contra as crianças que deve ser limitada, mas ele não
crê que a via criminal e punitiva seja muito eficiente no sentido de promover
mudanças de conduta, conciliação e reconciliação. "Além disso, num país em que
são tantas as crianças abandonadas, que ninguém adota, oque faremos com
aquelas que a lei for proteger? Irão para a Fundação Casa?", reflete o filósofo.
A imprensa também tem servido como canal de desabafo de observadores de
nossa cultura. O psicanalista Contardo Calligaris escreveu em sua coluna na Folha
de S.Paulo, que se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente se teria
declarado contra a nova lei, por duas razões. "A primeira (e menos relevante) é
que existem violências contra crianças piores do que a violência física". E
segundo, "é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder
absoluto sobre o corpo dos filhos."
O psicanalista conclui com sua visão crítica. "Sou absolutamente contra qualquer
castigo físico. Sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da
vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste
campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais."