Professional Documents
Culture Documents
RESUMO: Cada vez mais se torna necessário ABSTRACT: Today it is very important that we
estudar os direitos humanos, sua normatização e study human rights – its juridical construction and
proteção, tomando a alteridade como instrumento protection – taking into account alterity as an
analytical instrument. It is necessary to be aware of
de análise. O reducionismo a qualquer realidade,
the risks involved in the reductionist perspectives
seja cultural, étnica, racial, religiosa etc., expõe-
about any reality: cultural, ethnical, racial or a
nos ao etnocentrismo e a uma visão limitada da religious one. This kind of reductionism put us in
diversidade culturas e da realidade. O conhecimento danger of ethnocentrism and a limited comprehension
da nossa cultura passa inevitavelmente pelo about cultural diversity and reality. The
conhecimento das outras culturas. A compreensão understanding about our culture is only possible
through the understanding of other cultures. The
do outro leva ao (re)conhecimento de que somos
comprehension of the other leads to the knowledge
uma cultura possível entre tantas outras, evitando
of that our culture is only one possibility among
a arrogância racial, econômica e política. Neste others. Through the other’s recognition we can
trabalho são analisadas as perspectivas de avoid the sense of racial, economics or political
Lévinas e Derrida sobre a questão do outro e do superiority. In this paper we present Lévinas and
eu (a relação face a face) com o objetivo de (re) Derrida’s perspectives of the other and the self (a
face-to-face relation) in order to re-think human
pensar o problema dos direitos humanos nas
rights in the contemporaries societies.
sociedades contemporâneas.
KEYWORDS: human rights; constitution; alterity;
PALAVRAS-CHAVE: direitos humanos; identity; diversity.
constituição; alteridade; identidade; diversidade.
65
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
66
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
67
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
68
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
uma comunidade justa. A política é o devir Na justiça existe comparação, e o outro não
da ética (ainda que no inter-relacionamento tem nenhum privilégio em relação a mim.
Entre pessoas que adentram esta relação, uma
entre ética e política não exista uma relação outra relação deve ser estabelecida, que
de temporalidade, cronológica, no sentido de pressupõe a comparação entre eles, isto é,
que uma antecede ou sucede a outra, uma vez pressupõe, justiça e cidadania. Limitação
daquela responsabilidade inicial, a justiça
que a relação ética é uma relação que ocorre ainda assim marca uma subordinação do eu
em um espaço político). É com esta chegada, em relação ao outro. Com a chegada do
com a entrada em cena deste terceiro que se terceiro, o problema fundamental da justiça é
colocado, o problema do direito, que é sempre
inaugura ou se instala a esfera política: é esta
do outro.8
chegada (do terceiro) que, justamente, marca
a transição da ética para a política em Embora interdependentes e inter-
Lévinas. Pois aqui é que surge a questão do relacionados, direito, política e ética são
julgamento, a própria questão da justiça: estruturas distintas. O direito é geral, contém
“Quem é, nesta pluralidade, o outro por padrões gerais de conduta, enquanto a justiça
excelência? Como eu posso julgar? Como exige uma resposta singular, particular ao
caso em análise. De acordo com a concepção
comparar os outros – únicos e incomparáveis?”7
ética de justiça que se está considerando, a
Esta passagem é consubstanciada por uma
qual pressupõe uma infinita responsabilidade
transformação no próprio tipo de relação que
para com o outro, e tendo em vista que esta
se tem em mente: a relação ética caracterizada
jamais vai ser plenamente realizada, a justiça
pela completa diferença/assimetria; a relação
jamais se realiza no presente, se constituindo
política caracterizada pela reciprocidade/
sempre em um à-venir, algo por acontecer. A
igualdade entre os membros da sociedade.
justiça, compreendida como um compromisso
A relação de infinita responsabilidade entre
ético com o outro, não deixa de ter um
mim e você (you/toi) não supõe reciprocidade,
componente político, uma vez que este
uma vez que a minha responsabilidade
compromisso ético é sempre referido por um
perante o outro não pressupõe qualquer
contexto histórico-cultural e que o mesmo
correspondência (para Lévinas qualquer
leva à necessidade de decisões, as quais
correspondência ou reciprocidade excluiria
implicam agir. Uma possibilidade é a ação
a generosidade implicíta na idéia de
política, capaz de satisfazer à obtenção da
responsabilidade e a tornaria instrumental ou
justiça política. Outra possibilidade pode ser
utilitária). E é precisamente aqui que surge a
encontrada no universo jurídico, como
questão da justiça, como problema político e
cenário de regulamentação social e técnica
a partir dela se coloca a própria questão do
de solução de conflitos. É justamente neste
direito e da política:
cenário que se insere o questionamento sobre
Minha procura por justiça pressupõe uma
o sujeito de direito – não o sujeito em abstrato
nova relação, na qual todo o excesso de
responsabilidade que eu devo ter perante o e sim o sujeito concreto. Nesse sentido as
outro é subordinado à questão da justiça. palavras de João Cabral de Melo Neto:
7 8
Id.ibiden, p. 102. Id. Ibiden, p.102.
69
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
70
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
9 10
CHAUÍ, Marilena. A sociedade democrática. In: Para um maior aprofundamento da discussão,
Introdução ao Direito Agrário. Curso de Extensão sugerimos o texto de SANTOS, Boaventura de Souza.
Universitária, Série O Direito Achado na Rua, v. 3. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica
Brasília: Editora UnB, 2002, p. 334. de Ciências Sociais. n.º 65, maio de 2003, p. 3-77.
71
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
A minha tese é que, enquanto forem concebidos qua non, no campo da construção teórica e
como direitos humanos universais em proteção dos direitos humanos, não passa de
abstracto, os direitos humanos tenderão a
uma sublevação de expectativas. De um lado,
operar como localismo globalizado e, portanto,
como uma forma de globalização hegemónica. enquanto não houver uma alteração nos
Para poderem operar como de cosmopolitismo estatutos, e, portanto, da ontologia e teleologia
insurgente, como globalização contra- das Nações Unidas, e conseqüentes alterações
hegemónica, os direitos humanos têm que ser
de ordem estrutural, inclusive sua localização
reconceptualizados como interculturais.
Concebidos como direitos universais, como geográfica, padeceremos de efetividade e
tem sucedido, os direitos humanos tenderão legitimidade dos direitos humanos universais;
sempre a ser um instrumento do «choque de de outro, a urgência de o Ocidente (re)
civilizações» tal como o concebe Samuel
considerar sua superioridade e prepotência
Huntington (1993, 1997), ou seja, como arrma
do Ocidente contra o mundo («the West cultural. Não se trata de concorrência pelo
against the rest»), como cosmopolitismo do monopólio mas de concorrência para
Ocidente imperial prevalecendo contra finalidade em face do esgotamento, hoje
quaisquer concepções alternativas de dignidade
observado, das metanarrativas e da ausência
humana. Por esta via a sua abrangência
global será obtida à custa da sua legitimidade de referencial emancipatório, decorrentes
local. Pelo contrário, o multiculturalismo principalmente da pulverização do poder e
emancipatório, tal como eu o entendo e do processo de globalização.
especificarei adiante, é a pré-condição de uma
A Declaração dos Direitos do Homem e
relação equilibrada e mutuamente potenciadora
entre a competência global e legitimidade do Cidadão, da ONU, é o grande documento
local, os dois atributos de uma política contra- político-ideológico, mas não elucidatório, da
hegemónica de direitos humanos no nosso discussão contemporânea dos direitos
tempo. (SANTOS, 2006, p. 409)
humanos. Mesmo assim podemos afirmar sua
O que se coloca é a dificuldade de contribuição, juntamente com o avanço do
representatividade instrumental e legítima processo integratório europeu (relativizado
pelo Estado na sua função precípua ocidental atualmente), para a institucionalização e
de irradiação de normas (GALTUNG, 1998) e, internacionalização dos direitos humanos
numa projeção internacioanal, a Assembléia como elemento-chave de interpretação das
Geral das Nações Unidas, principalmente sociedades do pós-Guerra.
com a Declaração Universal dos Direitos do O ponto nevrálgico, ou mesmo de
Homem e documentos reflexos. Ao menos estrangulamento da problemática, está no
merece reservas a pretensa representação Estado e sua proximidade com a sociedade
universal das Nações Unidas, quer pela sua civil organizada, evidentemente que se
composição, quer pela projeção excessiva, levando em conta os demais mecanismos de
para não dizer autoritária, do Conselho de representação social local, regional e global.
Segurança da ONU e sua famigerada É que ali se trava a gestão dos direitos
composição e regimento. Da importância das humanos e sua possibilidade de efetivação,
Nações Unidas e dos Estados para a efetivação seja pela via democrática, que não depende
dos direitos humanos não há qualquer em princípio de fatores externos, como
equívoco, mas projetar-lhes condição sine coercitiva e (ou) convencimento pela via
72
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
73
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
humanidade, e de forma muito contundente citação sobre Ferrajoli, “En la atualidade, los
os direitos humanos como categoria de derechos humanos ya no son solo un límite
análise hermenêutica para as dimensões interno del poder soberano, sino que se han
econômica/política/cultural/social/jurídica no constituido en un límite sustentado en el
início deste novo século. derecho internacional y que llega a modificar
A alteridade provoca uma nova jurisdição el concepto mismo de soberanía del Estado”.
que, apesar de ainda estar em formação, O que se ressalta é a necessidade de
já passa a contar com novos centros controle hermenêutico sensorial das sociedades
decisórios, sobretudo por meio da jurisdição contemporâneas por meio da categoria dos
constitucional e do surgimento de tribunais direitos humanos. Esta perspectiva põe em
internacionais, os quais vêm promovendo causa o processo de globalização descendente
um processo de desterritorialização dos (FALK, 1999) 13 , visto não ser possível
direitos humanos (MORAIS, 2002). Isso é tratamento unânime das condições materiais
resultado, principalmente, da impotência e imateriais de cada sociedade.
do Estado em julgar e administrar estas Nesse diapasão, apresenta-se-nos em
demandas (muitas vezes por ser o próprio sintonia fina a contribuição de Lévi-Strauss
Estado o principal agente violador de certos (1980). O sentido das sociedades contemporâneas
direitos) ou, em outros casos, pela luta pelo precisa ser recolocado nos trilhos da unidade
poder no seu interior – regimes, revoluções, da organização social, em que a diversidade
ausência institucional, guerras etc. se afirma no todo, nomeadamente no outro,
Concordamos com Arnauld (2006, p. 76) como elemento referencial de estruturas
que o conceito de mundialização não se sustenta preexistentes. Assim, os direitos humanos
nesta sociedade de riscos compartilhados e como categoria de análise ganham luz
com um grau de controle diferente. O que se própria, como possibilidade e necessidade de
verifica é a transferência de competências, transcendência realística da ordem global
devastadora e subordinatória dos valores, pela
como no caso do Tribunal Interamericano de
descentralização do poder econômico e
Direitos Humanos, o Tribunal Europeu dos
inclusão do outro como componente cimentar
Direitos do Homem, o Tribunal Africano de
da sociedade.
Direitos Humanos e dos Povos. A ONU, a
Assim, o Direito Constitucional nacional
despeito de suas limitações e desvios, servia
e global (CANOTILHO, 2006), apresenta-se
de precoce controle de legalidade e
como instrumento essencial e regulatório que,
legitimidade política. Agora, porém, temos
com a participação da sociedade em suas
uma clara jurisdição internacional que, com
múltiplas representações (HÄBERLE, 2002),
sua institucionalização, vem promovendo um
converge os interesses no interior do Estado,
engessamento da agenda local e regional,
vinculado ao poder originário. Esta nova
reflexo da preponderância da agenda
internacional. Por isso a recorrência ao
discurso dos direitos humanos – que como 13
O autor denomina Globalização descendente
projeto emancipatório permite a realização aquele “conjunto de forças e de perspectivas legitimadoras
situado, em vários aspectos, fora do alcance efectivo da
da alteridade – como contraponto na sociedade autoridade territorial que alistou a maioria dos governos
global. No dizer de Prado (2007, p. 6), em como parceiros tácitos” (1999, p. 221).
74
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
75
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
76
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
77
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
78
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma
de direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, teoria interpretativa da cultura. In:
2004. A interpretação das culturas. Rio de janeiro:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; Direito Zahar, 1978.
Constitucional e Teoria da Constituição. HOBSBAWM, Eric John Earnest. Rebeldes
Coimbra: Almedina, 2003. primitivos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
CARDOSO, O. R. Sobre o pensamento 1978.
antropológico. Rio de Janeiro: Tempo JAEGER. W. Paidéia: a formação do homem
Brasileiro/CNPq, 1988. grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CHAUÍ, Marilena. A sociedade democrática. In:
JOHNSON. A. G. Dicionário de sociologia:
Introdução ao Direito Agrário. Curso de
guia prático da linguagem sociológica.
Extensão Universitária, Série O Direito Achado
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
na Rua, v. 3. Brasília: Editora UnB, 2002.
LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia.
CHEVALLIER, Jacques. A Governança e o
São Paulo: Brasiliense, 1978.
Direito. In: Revista de Direito Público da
Economia. PDPE, ano 1, n. 1, jan./mar. Belo LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini. Paris:
Horizonte: Fórum, 2003. p. 129-146. Livre de Poche, 1990.
CRITCHLEY, Simon. The Ethics of LÉVINAS, Emmanuel. Alterity and
Deconstruction. Derrida and Levinas. transcendence. New York: Columbia University
Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. Press, 1999.
CUVILLER, A. Pequeno vocabulário da língua LÉVIS-STRAUSS. Aula inaugural. In:
filosófica. São Paulo: Companhia Editora Desvendando máscaras sociais. 2.ed.
Nacional, 1976. Organizado por Alba Zaluar Guimarães.
DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980.
à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,
LIORENTE, Francisco Rubio. Derechos
1971.
Fundamentales, Derechos Humanos Y Estado de
EVANS-PRITCHARD, E. E. História do Derecho. In: PAGÉS, Juan Requejo (Coord.). La
pensamento antropológico. Lisboa: Ed. 70, Rebelión de las Leyes – Demos y nomos: la
1981. agonia de la justicia constitucional.
FALK, Richard. Globalização predatória: uma Fundamentos: Cuadernos monográficos de
crítica. Portugal: Instituto Piaget, 1999. teoría del Estado, Derecho Público e História
Constitucional. Espanha: Junta General Del
FRANCO, Augusto. Reforma do Estado e do Principado de Asturia, 2006. p. 205-233.
Terceiro Setor. In: PEREIRA, Luiz Carlos
Bresser, WILHEIM, Jorge e SOLA, Lourdes. MARCONI. M. A. & PRESSOTO. Z. M. N.
(Org.). Sociedade e Estado em transformação. Antropologia: uma introdução. São Paulo:
São Paulo: UNESP; Brasília: ENAP, 1999. Atlas, 2001.
79
Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do the temptations of the new Legal formalism.
Estado e da Constituição e a transformação Deconstruction and the possibility of justice,
espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Cardozo Law Review, v. 11, n. 5-6, jul./aug.
2002. 1990).
MORIKAWA, Márcia Mieko. Repensar o direito SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática
internacional humanitário e o humanitarismo. do tempo: para uma nova cultura política.
In: Boletim da Faculdade de Direito. Vol. Porto: Edições Afrontamento, 2006.
LXXXII, Coimbra: Universidade de Coimbra,
SANTOS, Boaventura de Souza; Poderá o
2006. p. 538-535-568.
direito ser emancipatório? In: Revista Crítica de
PRADO, Maximiliano, D. Limitación de los Ciências Sociais. n. 65, maio de 2003. p.3-77.
Derechos Humanos. Algumas consideraciones
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado.
teóricas. Revista Chilena de Derecho. Vol. 34,
Tradução Karim Praefke e Aires Coutinho.
n.1, p. 61-90, 2007.
Coordenação e prefácio de J. J. Gomes
ROSENFELD, Michel. Deconstruction and Canotilho. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste
legal interpretation : conflict, indeterminacy and Gulbenkian, 1997.
80