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Para uma teoria do amor

A intenção de união, intuída na transformação fisiológica do próprio corpo, não é


simplesmente a intenção de fazer sexo, é ao mesmo tempo contato pessoal e íntimo
com o outro, e consiste em querer conhecer o outro como a si mesmo – o conheço
enquanto me dou a conhecer para ele; isso gera uma inclinação à fidelidade nas
pessoas que amam. Não pode haver verdadeira união sem mútua fidelidade. A
intenção de união gera, portanto, uma relação interpessoal permanente, pois
compartilhar a minha intimidade significa compartilhar o meu segredo, e isso não pode
ser traído de modo algum. Querer se unir a uma pessoa, com essa intenção
relacionada ao ato sexual, significa ao mesmo tempo não querer deixa-la. Ora, quanto
tempo se leva para conhecer alguém como eu me conheço? É evidente que isso não
tem fim, quer dizer, até o final da vida estaremos nos conhecendo. A estrutura dessa
relação pessoal que se forma a partir do desejo sexual só pode ser desse tipo. Amar
alguém antes do casamento significa também desejar ser fiel a essa pessoa. O ser fiel,
com relação à intenção de união, significa não desejar uma pessoa diferente daquela
que você ama ou que você escolheu tomar para si, pois, no momento em que se faz
isso, negligencia-se a união com aquela pessoa, tendo-se agora a intenção de se unir à
outra. Note que o ato sexual começa e acaba, mas a intenção de união não era só
carnal, era pessoal, de modo que a união simbolizada pelo ato sexual deve se
prolongar na relação interpessoal. O ato sexual leva a um tipo de relação que é
permanente justamente por causa da intenção de união subjacente a todo desejo
sexual. E isso é assim pela própria estrutura do desejo sexual. Desejar sexualmente
uma pessoa significa ao mesmo tempo querer realizar com ela uma relação pessoal
análoga ao ato sexual. Quer dizer, se você sente desejo sexual por alguém, você
concebe na alma uma intenção para com essa pessoa, e se você aceita ativamente
essa intenção de “união”, como que por anuência da alma ao corpo, é porque você
também deseja uma relação pessoal com ela que tem uma estrutura trinitária análoga
a do ato sexual. Então, você também terá que aceitar todas as consequências do que
se segue. O que se segue é a consumação do ato sexual, que realiza a intenção de
união, agora irrevogável; e, depois, a possibilidade de gerar filhos, que preenche e dá
gravidade à estrutura da relação interpessoal que foi estabelecida (concretizada)
simultaneamente ao ato sexual. Ou seja, se você é casado, e olhar para uma outra
mulher desejando-a, você efetivamente traiu a relação que você tem com a sua
mulher. O fato é que não se pode estar unido em nenhum sentido à duas pessoas ao
mesmo tempo. O importante é perceber que a intenção de “união” define toda uma
relação interpessoal que tem uma estrutura análoga à do ato sexual – é a tradução em
termos de relação interpessoal daquilo que o sexo simboliza. Essa estrutura sutil não é
tornada consciente de modo automático, é preciso ter imagens de casamento para
que ela seja conscientizada de modo mais ou menos adequado. Então, se o sujeito
quer realizar o ato sexual com aquela mulher, ele simultaneamente aceita a intenção
de amá-la de modo pessoal e íntimo, de modo a lhe dever também fidelidade, sob
pena de ter a alma fragmentada e estilhaçada. Rejeitar a própria intenção de união
intrínseca ao desejo sexual é apenas mentir para si mesmo, usando o corpo como se
fosse um mero instrumento de prazer – pecar contra o próprio corpo. Se o sujeito faz
sexo sem o voto de fidelidade, o que ele está fazendo é mentindo com o próprio
corpo, ele está dizendo que aceitou pessoalmente a intencionalidade do ato para o
qual tende o seu corpo sem que a tenha realmente aceitado e sem ter considerado
toda a extensão das suas consequências. Ou seja, o sujeito está fazendo sexo apenas
com o corpo, ele está criando uma dualidade alma-corpo para evitar o compromisso
com uma pessoa e assim poder ter prazer com o corpo dela; ele esconde sua
verdadeira intenção e usa seu próprio corpo como instrumento de prazer.

O ato sexual é a consumação do casamento. Ao realizar o ato sexual, aceitando-o


como um todo, a união pessoal é estabelecida definitivamente por meio dos votos de
fidelidade e amor mútuos. O ato sexual exige o compromisso, e o compromisso se
firma nele. Sem o ato sexual não pode haver verdadeiro compromisso conjugal, que
consiste na aceitação de um único parceiro sexual para a vida toda, pois é o ato sexual
que torna o compromisso irrevogável. Um sinal disto é a “perda” da virgindade da
mulher, que também é irrevogável. A realização do ato sexual significa que tudo o que
ele implica já foi pessoalmente admitido e aceito. O casamento só se efetiva na noite
de núpcias. Se o ato sexual não for realizado, o compromisso fica sem sustento na
realidade material, ele perde seu fundamento de ser na realidade como um todo.

Platão fala do sexo como um apetite de gerar filhos. A finalidade do sexo é realmente
essa, o que é evidente para qualquer pessoa desinteressada. E, que o corpo reage
estupidamente, também é algo evidente. Por exemplo, o corpo, principalmente o
masculino, pode ficar sexualmente excitado sem que ele imagine ou sequer pense
numa mulher ou em nada sexual, e tampouco esteja olhando para nada desse tipo; o
corpo simplesmente adquire o hábito de ficar excitado. Isso acontece mais
frequentemente com pessoas que têm o hábito de olhar para uma mulher desejando-
a; olha-se para as mulheres com a intenção de fazer algo com o seu corpo, de virá-lo,
imaginativamente, tocá-lo, penetrá-lo. Para pessoas não castas, mesmo palavras que
soem obscenas, ou expressões que tenham conotação sexual já são suficientes para
atiçar a sua imaginação, mesmo em situações normais cotidianas onde os assuntos
íntimos deveriam estar ausentes. Olhar para uma mulher desejando-a não é algo tão
natural assim, é um hábito adquirido. Há, de fato, uma espécie de atração magnética
entre um homem e uma mulher, um convite à intimidade na relação, justamente por
causa da ordem corpórea da sexualidade. Os indivíduos são sexuados, mas a relação
entre eles não precisa ser necessariamente sexual; a relação sexual envolve a escolha
pessoal de se relacionar com o outro a partir da ordem sexuada do próprio corpo. O
problema é que, na relação com o sexo oposto, o desejo sexual está latente, e é
intensificado sempre que se nota a beleza do corpo do outro, pois há também o amor
pelo prazer, que faz com que desejemos ser subjugados pelo próprio corpo na relação
com o outro.

A complicação começa na definição de “amor”. Platão dizia que amor é amor pela
virtude ou amor próprio; o amor pela virtude é o que leva as pessoas a se associarem
por causa da virtude, e o amor próprio é o que faz as pessoas se associarem por causa
de seus interesses pessoais. O amor é, para ele, uma intensificação de magnitude da
amizade. Então, o amor por uma mulher envolveria os dois amores: o amor pela
virtude e o amor do interesse próprio. O homem quer casar com a mulher que mais
lhe agrada (e não por consideração aos interesses do Estado, por exemplo).

Para Platão, só não há casamento entre pais e filhos, e entre irmãos e irmãs, por causa
da lei que é inculcada na mente do povo desde a infância. Isso pode ser em parte
verdade, mas também existe aí uma diferença biológica e biográfica real, que, no caso
de uma paixão incestuosa, deveria sempre ser levada em consideração,
objetivamente. Por exemplo, há um espaço de no mínimo uma geração entre pai e
filha; ora, não é de modo algum natural que uma pessoa de uma geração se apaixone
real e sinceramente por uma de outra geração, pelo simples fato de que elas estão em
fases diferentes da vida, principalmente se as duas ou uma delas ainda é jovem. O
amor entre irmãos, por outro lado, é de ordem um pouco menos grave, e, se forem de
mães diferentes, ainda menos grave; de certo modo, o amor entre irmãos é mais
perigoso por causa da desordem social do que por causa da relação que pode haver
entre eles. Mas, se os irmãos levarem em consideração a semelhança que existe na sua
carne, a herança comum dos dois, poderão entender que as suas carnes não foram
feitas para se unir uma à outra.

Pois bem, o que é o amor entre um homem e uma mulher? Como ele acontece? No
que consiste e como pode ser plenamente realizado?

Como eu havia dito, o desejo sexual leva uma pessoa a se abrir para a outra e ensina os
indivíduos nessa relação a ficarem mais amigos, mais próximos. Ora, mas também não
podemos observar o contrário acontecer? Ou seja, pessoas que são amigas podem vir
a conceber um desejo irresistível uma pela outra. Se a atração sexual ensina duas
pessoas do sexo oposto a se conhecerem, por outro lado o próprio ato sexual é como
que um ritual natural que representa a minha amizade por aquela mulher, é um ato de
amor verdadeiramente falando, na ordem do corpo, daquele mesmo amor que existe
na alma. A relação que existe entre o homem e a mulher é imagem da relação que
existe entre Cristo e a Igreja, ou Deus e Israel, quer dizer, é uma relação de devoção: o
homem é devoto da mulher, ele a cultua, de certo modo, ao mesmo tempo em que
adora a Beleza; e, a mulher, por outro lado, não se coloca na posição de Deus, mas na
de humilde serva, pois ela nada pode fazer senão permitir que aquele que ela ama seja
realmente dela. Por isso, quando um homem ama uma mulher como um todo, é muito
difícil para ele não desejar servi-la como um todo, não desejar ser agradável a ela
como ela o é para ele. Os amantes necessitarão unir-se um ao outro, carnalmente, do
mesmo modo que o amante de Deus precisa servi-lo, meio que ritualmente, em cada
ato concreto. As atitudes interessadas, de dar carinho, dar atenção e de servir o outro
de livre vontade, sendo sempre agradável pensar nele e imaginá-lo, e projetar suas
vidas juntos, essas atitudes de interesse sexual pelo outro formam o ritual do amor, o
culto do amor. Assim, aprende-se também a amar, desde que se tenha coragem e não
se permita que a paixão se torne uma força tirânica. Porém, o que é “amar o outro
como um todo”? Como podemos saber se isso que eu estou falando neste parágrafo é
um fenômeno realmente existente? Aqui, eu já não posso mais senão criar uma
hipótese.

Suponhamos que eu veja uma mulher uma vez, ou mais, e tenha um vislumbre da sua
virtude total, quer dizer, daquela qualidade divina que ela encarna; ora, tal como se
olha para uma ninfa se banhando na fonte e se fica encantado com a sua beleza, e se
quer possuí-la imediatamente, assim também deve ser quando o que é visto no outro
é a harmonia geral da sua personalidade, como que um vislumbre do mistério da sua
pessoa, do seu “eu” substancial. Há a marca dela em tudo o que ela faz e fala: agora,
tudo o que ela faz é causa de sofrimento ou alegria para o meu coração. Meu coração
se alegra quando ela se move para mim, e se entristece quando o movimento que ela
faz a afasta de mim; eu me alegro quando ela me aceita na vida dela, me entristeço
quando ela não demonstra interesse no que eu faço – tudo o que eu faço é para ela,
em potencial. É a pessoa dela que agora me diz respeito, e eu me importo com tudo o
que ela faz. Em tudo o que ela faz eu quero descobrir quem é ela. O desejo de
conhece-la é simultaneamente sexual e espiritual. O sexo não é suficiente, não é o
principal nessa relação, ele é só a coroação dela, a sua realização total. Eu quero que
os atos de amor dela sejam para mim, e em nada disso posso discernir um desejo de
prazer, o simples amor pelo prazer. Prazer eu posso ter com qualquer outra mulher
bonita, mas é só esta que eu quero e nenhuma outra me agrada. Ou seja, o que quero
dizer é que, aqui, nesse caso, parece que o amor inclui tanto o amor pela virtude como
o amor pelo prazer e os transcende: deseja-se apropriar-se pessoalmente da realidade
pessoal do outro, conhece-lo, transforma-lo, de modo que ele seja para você e você
seja para ele uma mesma coisa. Assim, meus atos de amor por ela são
simultaneamente de ordem sexual e espiritual: a melhor maneira de eu expressar
completamente o meu amor pela virtude do seu coração é através do ato sexual, das
carícias, das atitudes de servi-la como um homem. Porque é ASSIM que eu a amo de
fato, espiritualmente. A realização do meu amor espiritual por esta mulher quer ser
corporalmente atualizado, como que querendo realizar ritualmente o que ele mesmo
significa, e isso é que leva às atitudes de caráter sexual. O sexo é a expressão desse
puro amor na ordem do corpo. A castidade, nesse caso, não é só privação do prazer, é
privação da efetivação desse amor, que fica sem um canal por onde fluir. Se não posso
demonstrar minha sincera afetividade para a mulher que amo, então não posso lhe
falar de todo; emudeço. A mais perfeita expressão do meu amor por ela são as
atitudes de caráter sexual, incluindo o serviço que lhe posso oferecer como homem,
como varão. Como eu disse, não é simplesmente amor pelo prazer, só uma relação
interessada, mas cada atitude sexual é a expressão perfeita do sentimento de amor
que tenho pela pessoa dela.

É difícil discernir da onde vem sua afeição por uma pessoa. Umas pessoas nos são mais
agradáveis que outras, mas não é assim sempre pelos mesmos motivos. Digamos que
uma pessoa é bela aos meus olhos, se eu for uma pessoa casta então isso não será
motivo para deseja-la, pois não iria me subjugar ao meu próprio corpo só por amor ao
prazer. Mas digamos que ela seja também virtuosa e me inspire confiança, também
não é por isso que eu iria deseja-la, a não ser que eu esteja caçando uma boa mulher
para me casar com ela, e que eu não tenha outras opções igualmente boas. No
entanto, podem haver mulheres rivais, e isso já provaria que a simples qualidade de
beleza e virtude não é suficiente para se desejar alguém em específico. Há, ainda, a
diferença de projetos pessoais: as diferentes mulheres em que eu possa estar
interessado têm diferentes projetos de vida, diferentes gostos e personalidades, e eu
projeto minha vida com cada uma delas de modo diferenciado, e pode ser que meu
projeto acabe “casando” com o de alguma delas espontaneamente. Essa simples
maneira de ser de uma pessoa que transparece na sua personalidade influenciando o
modo como a percebemos e a imaginamos é um motivo mais forte para a amizade
estritamente pessoal do que as outras qualidades. Não é só uma bela personalidade, é
todo o modo de ser. É só isso que pode diferenciar uma pessoa de todas as outras.
Porém, o modo de ser de uma pessoa não é uma qualidade dela, como a beleza ou a
virtude, mas é ela mesma atuando no mundo. Quando digo que amo essa pessoa, não
digo que desejo o modo de ser dela, mas que quero que essa pessoa, que é desse jeito,
olhe para mim e me corresponda desde seu próprio “eu” substancial. Quando se ama
uma pessoa assim nós desejamos mais a sua atenção, que esteja passivamente
amorosa, do que qualquer outra coisa que ela possa dar. Nesse tipo de amor existem
vários graus. Pode-se amar mais a umas pessoas do que a outras; também pode-se vir
a amar uma pessoa mais do que outra que antes era a mais amada; e pode-se vir a
amar assim somente depois de se casar com uma pessoa, adquirindo por ela uma
afeição de caráter mais pessoal. Por fim, pode-se vir a amar alguém de um modo tão
radical que esse amor causa a morte para o mundo, para todas as outras possibilidades
de amar alguém da mesma forma. Nas primeiras experiências o casamento é uma
escolha, como quem escolhe algo que acredita ser muito bom; mas, nessa última,
casar com esta pessoa não é bem uma escolha, é como uma consequência lógica do
encanto que sinto por ela, e, independentemente do que acontecer, sinto que meu
coração já lhe pertence definitivamente.

A amizade que consiste apenas na semelhança de virtude não é verdadeiramente uma


amizade pessoal. Não podemos dizer que “amigo” seja um conceito unívoco. Posso
chamar muitas pessoas de “amigo”, por diversas razões, mas só há verdadeira amizade
entre pessoas que estabeleceram uma amizade estritamente pessoal entre si. Essa
amizade pessoal é única e intransferível, comprometedora, e por isso exige também
lealdade. O que se deseja do outro é sua intimidade; mas, em se tratando de pessoas
do mesmo sexo, essa intimidade tem uma forma diferente da do amor entre um
homem e uma mulher. É difícil descrever essa forma. Um amigo se abre para o outro
em busca de conselho e de reflexo; deseja-se ver-se refletido no outro. Pelo modo de
como o outro reage a mim eu me reconheço nele. A presença do meu amigo me deixa
de coração alegre, porque ele me é caro. Como se faz um amigo desse tipo? bom, essa
é uma das realidades mais espantosas que conheço: amigo não se escolhe, se
encontra. É espantoso como eu nunca realmente escolhi meus amigos mais próximos,
simplesmente os encontrei; quer dizer, no momento mesmo em que os vi e comecei a
falar com eles já os tinha na conta de pessoas que eu queria estabelecer uma amizade
verdadeira. Isto é, o amigo é sempre “encontrado”, em modo potencial, cuja amizade
pode vir a se realizar ou não, mas que, no fundo, raramente (ou nunca) se erra com
relação a esse tipo de “premonição”. Isso é diferente tanto de uma amizade baseada
na virtude quanto de uma baseada no interesse. Posso chamar muitas pessoas
virtuosas de “amigo” e não me interessar sinceramente pela vida pessoal delas, pelo
que elas fazem ou padecem de mais pessoal no mundo. Mas eu me preocupo com as
questões do meu amigo como se fossem minhas próprias. Assim, a verdadeira amizade
também brota do coração, como o amor. Podemos, então, também designar esse tipo
de amizade por “amor”, como quando a Bíblia diz: “e Jônatas amou Davi”, indicando
assim que Jônatas morreria por Davi, não por interesse ou virtude, mas simplesmente
porque Davi é Davi; a mesma coisa ocorre, por exemplo, entre os três mosqueteiros.

Do mesmo modo que a amizade entre pessoas do mesmo sexo ocorre, quando
pessoal, como um encontro mais ou menos inesperado no mundo (e é incrível como
geralmente todo mundo encontra alguém para ser seu amigo), assim também
acontece no caso do amor entre um homem e uma mulher, do amor que brota do
coração. A diferença dos sexos, aqui, faz toda a diferença. O amor propriamente dito é
isto mesmo que duas pessoas que se amam desejam consumar no ato sexual: para
elas, o sexo é ocasião de realizar algo muito maior, que transcende os meros corpos, é
uma expressão autêntica, em outro plano, daquilo que elas desejam na eternidade. Já
entre duas pessoas do mesmo sexo, estando cada um deles consciente da sua situação
sexuada, e tendo-a aceitado como tal, a intuição de que o sexo do outro é o mesmo do
seu encaminha a alma do sujeito direto para a amizade com ele e não para o amor;
intui-se que o outro é “o mesmo” que eu. Não pode haver, aí, interpenetramento de
intenções, a não ser no âmbito puramente imaginário do sujeito sem plena consciência
ou aceitação da sua própria condição sexuada. Por isso o ato sexual pode devidamente
ser chamado “ato de amor”: esse amor pessoal e completo entre o homem e a mulher
tem a forma conjugal, que é representada simbolicamente pelo próprio ato sexual. No
amor entre o homem e a mulher, a intimidade do relacionamento tem a forma
conjugal, diferentemente da intimidade da amizade, que assume uma forma não de
união propriamente dita (“conjugal”) mas de reflexo. O amor tem forma ternária; a
amizade tem forma dual.

Características do verdadeiro amor:

“For you, O bridegroom, there was never another girl like this one.”

- Sappho de Lesbos (LP 113)

Quando Tristão e Isolda bebem do cálice eles começam a passar mal, e Isolda
pergunta: ‘nós estamos doentes ou isso é o que chamamos amor?’; esse é o
sofrimento do amor. A menos que tenhamos essa experiência de sofrimento que
comove as nossas entranhas o amor ainda não aconteceu. O Buda diz que toda vida é
sofrimento; essa é a experiência do sofrimento de estar vivo. O que o seu sofrimento
é, isso é o que é sua vida, então aí você pode acha-la. Quando a mãe de Isolda diz para
Tristão: ‘você bebeu a sua morte’, numa versão (Gotfried) ele responde: ‘eu não sei do
que você está falando, se por morte você quer dizer o sofrimento do meu amor por
Isolda, isso é minha vida, se por morte você quer dizer o sofrimento que eu devo
sofrer, por parte da sociedade, eu o aceito, se por morte você quer dizer danação
eterna no inferno, eu a aceito.’. Giraut de Bornelh é um trovador que analisa o que o
amor é, e ele diz: “o olho da sentinela do coração”.

“Assim, pelos olhos, o amor atinge o coração: Pois os olhos são os espiões do coração.
E vão investigando o que agradaria a este possuir. E, quando entram em pleno acordo,
e, firmes, os três em um só se harmonizam, nesse instante nasce o amor perfeito,
nasce daquilo que os olhos tornaram bem vindo ao coração. O amor não pode nascer
nem ter início senão Por esse movimento originado do pendor natural. Pela graça e o
comando dos três, e do prazer deles, nasce o amor, cuja clara esperança segue dando
conforto aos seus amigos. Pois, como sabem todos os amantes verdadeiros, o amor é
bondade perfeita, oriunda — ninguém duvida — do coração e dos olhos. Os olhos o
fazem florescer; o coração o amadurece.” — Amor, fruto da semente pelos três
plantada. Giraut de Bornelh (Circa 1138-1200?) - Extraído do livro: O Poder do Mito, de
Joseph Campbell.

Sobre o amor “especial”

“De acordo com o que mencionamos antes, desejamos colocar ênfase especial sobre o
seguinte fato: tipicamente, o amor envolve susceptibilidade à beleza de um indivíduo
muito singular, tomado como um todo, e não por valores tomados individualmente.
Uma vez que não existe isso de amar alguém de certo modo (secundum quid), não
podemos amar uma pessoa à proporção que possua certas qualidades. Embora seja
possível apreciá-la por sua erudição, não decorre disso que preciso estima-la como
pessoa. Igualmente, pode-se admirar alguém pela sua voz e não pelo seu talento
intelectual. Mas, visto que o amor constitui resposta à beleza do outro no seu
conjunto, porque, de modo único, envolve o indivíduo como um todo e, ao mesmo
tempo, nele se concentra como um indivíduo, não pode existir amor secundum quid.
Apesar da missão importante que os valores desempenham, um indivíduo nunca é
meramente um portador dos mesmos. Ele é uma pessoa real, completa, que jamais
pode ser substituída por qualquer outra. Se fosse possível conceber alguém que
perfeitamente repetisse o potencial e o valor de outra pessoa em todos os aspectos –
algo que é completamente impossível –, ainda assim uma das duas seria a pessoa
amada e nunca hveria o desejo de trocá-la pela outra. Quando há amor, está aí
intimamente envolvida a incomparável plenitude do significado de um indivíduo, como
pessoa humana.” – Dietrich Von Hildebrand, A Filosofia do Relacionamento Entre
Homem e Mulher, p. 52-53.

Acredito que todo homem deseje ser amado por uma mulher, mas isso reflete um tipo
de amor que não é amor de uma pessoa, de um indivíduo, é, no seu melhor, amor da
própria natureza, desejo de realizar plenamente as possiblidades da própria natureza.
Isso é, talvez, o que podemos chamar de amor “natural”. Mas há um outro tipo de
amor, mais sutil, que é o amor de um homem por uma mulher só, e para a vida toda,
com a sensação de que é também para toda a eternidade; quando amamos assim um
pessoa, nosso maior desejo é ser amado de volta por ela, com o mesmo tipo de amor.
Se somos subjugados pelo amor, desejamos que nosso amado também o seja, e só
assim poderemos viver o mesmo amor. Uma característica essencial desse amor é que
a mulher amada tem que ser toda bela aos olhos do seu amante. Uma outra
característica fundamental é a docilidade com que o amante se coloca ao serviço da
pessoa amada e deseja se submeter a ela, quer dizer, que ela tenha confiança no amor
dele, que possa se entregar a ele com confiança. Deseja ser tocado por ela no mais
íntimo do seu ser, sem medo de ser alterado. Ela parece dizer especial respeito à
minha pessoa, como se fossemos irmãos e estivéssemos referidos o tempo todo um ao
outro; quero cuidar dela como de uma irmã; tudo nela me interessa; estou atento a
tudo o que ela faz. Quero estar ao lado dela, unido a ela, e por isso ela é a pessoa mais
importante na minha vida. Isso é o que eu chamo de amor conjugal, para diferenciar
do amor fraterno. O próprio ato conjugal significa esse amor, que é irredutível a outro
tipo de amor, como o amor de irmãos. Mais ainda, porque um homem pode desejar
sexualmente uma amiga, por quem tenha uma verdadeira amizade, sem que ele a ame
de verdade com amor conjugal: ou seja, o amor conjugal não se refere diretamente ao
desejo sexual, mas o desejo sexual é uma expressão simbólica desse amor, que pode
ou não estar presente numa relação sexual. O fato do ato sexual expressar
perfeitamente o amor conjugal não faz com que o amor conjugal esteja presente em
toda relação conjugal entre um homem e uma mulher. O que quero dizer é que,
espiritualmente, o amor conjugal difere do amor fraterno, da amizade, e de qualquer
outro tipo de amor humano. Porém, apesar de ter uma forma inteligível própria, de ser
amor espiritual, não pode acontecer sem a participação do corpo, e é isso que o torna
tão difícil de ser percebido e distinguido da simples amizade por uma pessoa bonita do
sexo oposto. Diferentemente da amizade, do amor fraterno, o amor conjugal envolve a
alma e o corpo, e não acontece sem que se veja a beleza do corpo. Por isso é que
existe a tendência de identificar o amor conjugal com o amor fraterno (ou a amizade)
somado do amor pelo corpo ou amor sensual. A minha tese é de que o amor conjugal
não é o amor fraterno somado ao ( ou sobreposto pelo) amor sensual, ele tem uma
forma inteligível própria e distinta do amor fraterno, envolvendo o corpo sim mas sem
que seja determinado pelo amor sensual, ao contrário: ele se refere ao amor sensual a
partir do seu sentido espiritual mais elevado. Quer dizer, o amor conjugal seria possível
ainda que não tivéssemos corpos, só não poderia ser plenamente realizado. De fato, o
amor conjugal envolve a susceptibilidade à beleza do corpo, e o próprio ato conjugal
parece dizer respeito apenas ao corpo do outro; mas essa necessidade do corpo, esse
amor pelo corpo do outro nasce do tipo de união espiritual que se deseja ter com ele e
não da mera sensualidade. Mas é verdade que o contrário também acontece: é
possível desejar uma relação conjugal com qualquer pessoa antes mesmo de vir a amá-
la. Existem essas duas coisas: o amor verdadeiro e o desejo de amar verdadeiramente.
Ou seja, pode-se imitar o verdadeiro amor, como que ritualmente, simplesmente
porque se deseja amar verdadeiramente; e, por outro lado, o verdadeiro amor pode
acontecer, como que por arrebatamento, de modo inesperado e independentemente
da sua relação material com a pessoa amada. Eu posso prometer amar alguém, mas
não posso prometer que o amor vá acontecer espontaneamente por essa pessoa, e o
problema é que às vezes ele acontece espontaneamente; posso imitar o amor, mas
não posso invoca-lo e efetivá-lo. Posso escolher amar uma pessoa só por toda a vida,
mas não posso escolher amá-la espontaneamente sempre. Ora, o amor espontâneo
existe, e, mais ainda, só deve poder acontecer uma vez na vida, se for verdadeiro e
total. Estou tentando resumir aqui a grande dificuldade de se determinar a natureza
do verdadeiro amor conjugal: é que ele existe como fato e como imitação. Eu posso
desejar amar uma pessoa só, ou posso amá-la de fato, irrevogavelmente – por isso é
tão difícil uma fenomenologia do amor. Qual é a diferença entre o amor de uma
pessoa que ama o seu esposo porque ele é o seu esposo e porque ela é uma pessoa
que ama amar o esposo, do amor de uma pessoa que ama alguém por uma espécie de
fatalidade do destino? Quer dizer, posso desejar uma pessoa não porque aconteceu de
eu ama-la, mas porque desejo amar e porque posso ama-la; ou então eu posso
simplesmente me pegar amando uma pessoa que eu não deveria sequer desejar. Mas
para distinguir esses dois fenômenos, para sabermos do que se trata realmente,
devemos antes conhecer a natureza do amor, o que lhe é próprio, a sua origem, causa
e finalidade.
1º argumento: todo homem deseja imitar a estrutura do amor conjugal. Se todo
homem deseja imitar a estrutura do amor conjugal, este amor existe. O amor existe
como algo que efetiva certo tipo de união. Se o amor conjugal existe como um amor
real que efetiva certo tipo de união, então essa forma de união existe, e, assim, é
necessário que haja uma só pessoa que se possa amar verdadeiramente com todo o
coração e que essa pessoa o corresponda perfeitamente, pois só então a natureza
humana pode ser plenamente realizada. Esse seria o amor perfeito, pois cumpre
perfeitamente sua finalidade: unir dois indivíduos ou dois corações como um todo.

2º argumento: O sentimento de amor que une o homem e a mulher no


matrimônio é imagem do amor que une Deus Filho e a Igreja, ou Jesus Cristo e a
alma humana. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, de modo
que imitar a Deus é ser perfeitamente imagem dele. O Paraíso é perfeitamente
imagem de Deus. Ora, não é possível que não exista no Paraíso o sentimento de
amor que une um homem e uma mulher tal como Cristo deseja se unir à Igreja,
pois assim estaria faltando algo para a plenitude da vida humana.

Contra-argumento: o sentimento de amor que une um homem e uma mulher


na terra é passageiro e depende da função de reprodução do organismo
biológico humano, portanto ele não ocorrerá no Paraíso, pois não terá
finalidade alguma, ainda mais porque todos estarão unidos em Deus de outro
modo (que modo?). O fato do matrimônio terrestre ser imagem da Aliança
entre Deus e a Igreja não significa que o sentimento de amor entre um homem
e uma mulher faça parte da estrutura espiritual da pessoa humana, de modo a
encontrar sua transfiguração em um amor celeste do mesmo tipo.

Contra-contra-argumento: A possibilidade do homem sentir esse amor por um


outro é uma perfeição intrínseca à natureza humana de ser varão ou mulher.
Sendo este amor sempre sentido de modo pessoal e íntimo – apesar do amor
levar ao casamento, ninguém ama nem deseja amar só para ter filhos ou porque
seja socialmente conveniente –, se não for passageiro (as pessoas podem se
enganar), podemos admitir que ele seja realmente uma realidade estrutural da
pessoa humana. Se for assim, o homem também deverá sentir essa inclinação
no Paraíso, isto é, de se unir à pessoa amada.

3º argumento: Se a o matrimônio é imagem da relação entre Deus e a Igreja, ou


entre Cristo e a alma humana, então o amor que corresponde ao amor conjugal
é uma possibilidade da natureza humana. A perfeição da natureza humana
consiste em imitar a Deus – como disse o Filho: eu faço o que vi o Pai fazer;
assim, o amor conjugal também é imitação de Deus, e, portanto, deve existir também
no Paraíso Celeste.
Contra-argumento: o amor conjugal só existe no Paraíso Celeste como o tipo do amor
de Deus pela alma, e não como amor de um ser humano por outro, pois não haverá
casamentos no céu.

Contra-contra-argumento: não é possível que no Paraíso Celeste o amor conjugal só


exista como amor de deus pela alma, porque se o sentimento do ser humano por
outro ser humano corresponde a uma estrutura real da pessoa humana, ele continuará
acontecendo no Paraíso de algum modo. O tipo do amor entre Deus e a alma é o amor
conjugal, mas é assim analogicamente, pois a relação entre o homem e Deus não
exclui a relação entre um homem e outro homem.

4º argumento: no Paraíso Celeste a sexualidade humana perderá a sua função


biológica, mas manterá a sua finalidade de representar o Amor de Deus na relação
recíproca do amor entre o homem e a mulher. Ora, o amor entre o homem e a mulher
tem a sua forma própria, sendo o amor entre UM homem e UMA mulher, portanto no
céu cada homem deverá estar unido à sua mulher, não por meio do sexo, mas tendo
seus corações unidos de um modo especial e misterioso, estreitando-se um ao outro
de modo preferencial e exclusivo; não se poderá desejar amar mais ninguém dessa
forma, tendo já repousado cada um no seu jardim. Assim, a natural atração entre
pessoas do sexo oposto se transfigura numa profunda comunhão de corações que se
encontram dentro um do outro.

5º argumento: A finalidade mais elevada do amor conjugal não pode ser senão a união
íntima entre duas pessoas, entre dois corações que desejam estreitar-se um ao outro.
“Não é bom que o homem esteja só”, foi por isso que Deus criou a mulher para o
homem. O amor esponsal se refere à dualidade intrínseca da natureza humana de ser
homem ou mulher. A natureza de ser homem ou mulher é definida pela forma do
corpo, portanto o sexo é simbolicamente a estrutura que permite unir duas pessoas
numa só, quebrando assim a solidão causada pelo isolamento corporal. (Essa união
não é física, mas espiritual, ainda que necessite do corpo para ser realizada). Essa
união deve ser realizada de modo pessoal. Uma pessoa só pode se unir como um todo
a uma única pessoa do sexo oposto, sob pena de estar dividida em si mesma. Se uma
pessoa deseja estar unida à outra como um todo, esse amor não é senão eterno, pois
parte do coração.

Contra-argumento: O amor humano, o amor conjugal, que cria um vínculo afetivo


entre dois indivíduos humanos, é um símbolo da união entre a alma humana e Deus,
servindo como uma espécie de memorial natural do amor de Deus pelo homem, sendo
imagem do amor de Deus pela Igreja. Na verdade, o amor conjugal é apenas uma
espécie natural de afeto entre pessoas do sexo oposto cuja forma total simboliza o
amor de Deus pela alma humana; o amor conjugal entre o homem e a mulher não
acontece no paraíso (que tipo de relação há entre seres humanos no Paraíso?). Ou
seja, a intencionalidade de união no amor conjugal se resume a intuição de um tipo de
relação específica que se deseja formar com vistas à procriação e educação dos filhos,
que é a finalidade da relação. O sentimento de amor, assim, fica submetido à ordem
biológica e social, e significa uma anuência da pessoa como um todo a certo projeto de
vida que ela concebeu de modo personalizado junto com outra pessoa. O amor
conjugal é, assim, uma escolha, um projeto de vida, e nenhum amor espontâneo que
seja pela pessoa do sexo oposto encontra seu fundamento no próprio modo de ser
dela na eternidade. O casamento não foi feito para pessoas que se amam de modo
especial, mas, ao contrário, o casamento é algo desejável por si e é o âmbito em que
duas pessoas do sexo oposto podem se amar de modo especial para assim poderem
concluir um projeto de vida em comum.

Problema do contra-argumento: isso não explica o sentimento de amor que um


homem pode ter por uma mulher. Como explicar um tipo de amor que é amor por
uma pessoa só a vida toda? Ou seja, se o amor conjugal é da natureza humana, ele
deve simbolizar realidades espirituais e ser também imagem do Paraíso. Se esse
sentimento por uma pessoa for somente terreno ele é uma ilusão – (uma ilusão que é
fomentada para se poder servir melhor a Deus?). Porém, parece-me que esse
sentimento só pode estar fundamentado na realidade da essência individual da
pessoa. Além do mais, esse sentimento de amor por uma outra pessoa não pode ser
símbolo do amor de Deus pela alma, porque é um sentimento real que se tem por
outra pessoa; esse sentimento é, talvez, símbolo do amor de Deus para com Deus.

*O amor entre um homem e uma mulher é um mistério, não sabemos daonde ele
vem.

Fenomenologia do amor

O amor em si é uma resposta afetiva, um sentimento. Esse sentimento tem uma


forma, e a sua estrutura determina um tipo de relação interpessoal, entremeada de
intensões e significados. Este sentimento é o que nos dá ideia do Paraíso: queremos
repousar nele. Por isso o amor é para nós a finalidade da existência. Não há nada
melhor ou mais forte que o amor.

A mulher que é bela geralmente proporciona uma excitação mais intensa, uma prazer
mais intenso. Na verdade, não me espanta que o corpo, unido à alma, também saiba
reconhecer as formas mais belas e adequadas à sua natureza. O ato sexual acontece
entre dois corpos, logo, um corpo que seja mais viril ou mais feminino atrai mais a
alma feminina ou masculina do que um que seja menos viril ou feminino. No entanto,
eu tenho a experiência de me apaixonar por uma pessoa e não por corpos bonitos, de
modo que posso encontrar muitos corpos bonitos que não me dizem respeito, e
muitas pessoas não tão bonitas que me dão mais prazer (cujos defeitos são
desprezíveis aos meus olhos, graças às suas outras virtudes que me chamam mais a
atenção). Mas uma pessoa que fosse feia, apenas de corpo, fosse a pessoa que fosse,
não poderia causar em mim desejo sexual algum; e, assim, eu não poderia desejar me
unir a ela com amor conjugal. Nunca tive o desejo de me unir a uma mulher que não
fosse bela. É isso o que me espanta: que só na atração dos sexos e no desejo sexual
haja a intuição de uma intimidade pessoal mais elevada com a outra pessoa. Mas sem
beleza estética, não há atração sexual. Ora, é na experiência da atração sexual que
intuímos a nossa intimidade. O sexo é também símbolo da intimidade do “eu” por
quanto no ato sexual a pessoa se identifica com a sua “vergonha” – o pênis atuando
como personificação do eu em um outro plano. As partes vergonhosas são aquelas que
nós escondemos do público – desde o início da Criação. Por isso, aquilo que se refere
ao meu órgão sexual é tido como aquilo que se refere à minha própria intimidade. A
intimidade é um órgão tão vascularizado e sensível quanto as partes sexuais do
homem; qualquer aproximação é sentida como que por força de campo, tipo atração
magnética. Essa analogia com as linhas de campo é interessante porque sugere um
tipo de relação espacial entre as duas pessoas: elas entraram num mesmo âmbito;
esse é o âmbito da relação amorosa, em analogia com a atração sexual. Trata-se um
assunto íntimo como se trata o órgão sexual; e, de modo semelhante, a obscenidade é
a negação da intimidade, e, portanto, do amor.

É também simbólico o fato de que só vivenciamos nossa intimidade intensamente


quando estamos buscando uma outra intimidade no “tu”. O sexo é símbolo da união
íntima, é aí que intuímos mais ou menos o que realmente significa duas pessoas
estarem intimamente/espiritualmente ligadas. O sexo é símbolo do “conhecimento”
do outro. A beleza estética, portanto, proporciona ao homem o desejo de amar uma
outra pessoa mais intimamente. E esse amor conjugal é o que leva o homem ao êxtase
da intimidade. E essa “união íntima” é o que proporciona o extremo prazer na alma do
amante; e ela é intuída justamente no orgasmo, que fica ali no limite entre a máxima
atividade do corpo e a total lassidão que se segue, sendo assim um ponto em que há
uma espécie de “salto”, onde o verdadeiro amante não duvida que viu a intimidade de
sua mulher – e dessa visão vem o verdadeiro prazer. Esse amor é extremamente
desejável quando os amantes são belos. A verdadeira união entre belos amantes que
buscam a intimidade um do outro proporciona o maior dos prazeres que o homem
pode ter sob a terra. O extremo prazer significa que aquilo ali é muito bom; é um fruto
da Bondade do Amor na manifestação do organismo psicofísico como um todo.

A beleza do corpo é importante, mas também o é a da pessoa mesma de quem se


ama. Não basta que o corpo da pessoa amada seja belo para que haja amor, é preciso
ainda que ela seja única no mundo, e, para que o prazer seja máximo, que me ame
pelo que eu tenho de diferente de todos os outros (desde a eternidade), por aquilo
que me faz único. Porém, isso ainda não é suficiente para caracterizar esse amor.
Todas as pessoas, se boas e belas e verdadeiras, são amáveis pelo que têm de único,
pelo que se diferenciam de todos os outros. No amor conjugal é aquilo que ela tem de
mais pessoal que me ama, que ama o que eu tenho de mais pessoal; ela busca a minha
intimidade a partir da dela própria. Podemos, com Platão, afirmar que o amor é amor
de gerar o bem na bela personalidade (ou na alma) do outro. Ora, não é exatamente
disso que se trata quando eu digo que amo uma pessoa única, de modo especial. O
amor aqui não é só isso, ele tem algo a mais, ou algo a menos, dependendo do ponto
de vista. Ele é um amor mais limitado porque é só uma manifestação do amor numa
“área” da vida; mas é mais profundo porque não anula o amor como um todo, mas o
prolonga até essa área da vida que ele preenche. Então, aqui, precisaremos precisar
mais alguns conceitos a fim de esclarecer o que quero dizer. Acredito que o amor se
manifeste de várias formas, todas imortais, nenhuma delas sendo redutíveis à outra;
algumas delas são: o amor filial, o amor paterno, o amor materno, o amor fraterno, o
amor conjugal, o amor do discípulo pelo mestre (e vice-versa), o amor do rei pelo
súdito (e vice-versa), o amor do homem pelo anjo (e vice-versa), e o amor a Deus.
Acontece que todas essas formas do amor fazem parte da estrutura da vida humana, e
nenhuma dessas áreas é redutível à outra em seu significado fundamental para a vida
humana. Numa vida humana concreta, no tempo, pode haver uma manifestação do
amor numa área e na outra não, mas é preciso acreditar que no Paraíso toda a vida
será repleta de amor, e isso é o que eu chamo de plenitude. Acontece também que
cada forma de amar tem um significado para nossa vida, por exemplo: o amor pelo pai
é assumir o seu legado e sentir gratidão por isso, desejando alegrá-lo e honra-lo com
seus próprios feitos (é como aceitar ser, de certo modo, uma encarnação do pai, no
caso do filho varão); o amor pela mãe é sentir-se devedor dela pelo que se é, é ter
gratidão infinita, é se alegrar por poder fazer a vontade dela porque foi ela quem te
gerou, ela que te desejou primeiro; o amor pelo filho é desejar que ele cresça se
alimentando da sua carne, ó mãe, e do seu sangue, ó pai,... é se alegrar em poder vê-lo
crescer forte com esse alimento que lhe é dado; o amor pelo irmão é se alegrar em dar
a vida por ele; o amor conjugal é quando todo seu prazer é servir ao seu amado e lhe
dar prazer e contentamento... Mas, na terra, as condições circunstanciais determinam
muito o tipo de amor com que se pode amar uma pessoa específica.

Ora, essas várias formas de amor, irredutíveis umas às outras, podem aparecer
também combinadas ou meio que fundidas no amor por uma única pessoa, ou podem
aparecer de todo separadas, de modo que se pode amar uma mesma pessoa como
irmão mas não como pai, e outra como esposa mas não como filha; mas também
pode-se amar uma esposa como irmã e amiga, e um amigo como pai. Mas cada uma
dessas formas de amor tem suas particularidades, e não são a mesma coisa, e
nenhuma delas são realmente dispensáveis para uma vida plena, porque cada uma
delas significa uma coisa diferente, e são formas que preenchem a vida humana de
sentido, de cor, de gosto, de tato. Então, como estava dizendo, o jeito que eu quero
ser amado por uma mulher, que eu quero amá-la, não é simplesmente amar o que ela
tem de diferente das outras belas mulheres que encontro, mas é sobre a forma de
amá-la que eu estou falando, com amor conjugal na sua plena manifestação.
O significado do amor conjugal é a união de duas pessoas, porque “não é bom que o
homem esteja só”. Digo que a minha felicidade é encontrar uma mulher que me ama
do mesmo jeito que eu a amo. A intensidade do prazer gerado pela união nesse amor
torna essa relação pessoal em especial mais importante que todas as outras. No amor
conjugal, ama-se mais quem mais lhe agrada, ou: ama-se apenas a única pessoa que
lhe realmente agrada. O amante deseja duas coisas: que a sua amada lhe seja fiel, e
que ela necessite do seu corpo para lhe dar o maior prazer, pois é só nela que ele
encontra o seu verdadeiro prazer. Assim, a minha amada é como uma fonte num
jardim secreto: eu encontrei o jardim, tal como se encontra um oásis fecundo num
deserto, e ali encontrei a fonte do meu prazer, e não quero mais deixa-lo. Vê-lo me
traz alegria; adentrá-lo é o meu desejo; na sua fonte eu me revigoro; bebo o suco do
seu fruto vermelho e isso me dá prazer. Mas eu ainda não entrei no jardim, apenas o
vi; não comi do fruto da árvore proibida, que está no meio do jardim. Quero fazer o
meu coração repousar à sombra dessa árvore. Estou, assim, dependente da
reciprocidade do amor para ser feliz. Preciso que ela deseje o meu corpo, que me ame
com todo seu ser. Essa relação de dependência mútua faz parte da estrutura do amor
conjugal. Não é possível depender de mais de uma pessoa para ter o maior prazer, e
isso pela própria estrutura do sexo. Essa dependência afetiva é um reflexo em outro
plano da mútua dependência dos sexos para a realização do ato sexual (que é sempre
exclusivo). Só se ama uma mulher, e só se quer poder amar uma mulher, porque só se
pode ter uma mulher por vez. É por isso que esse amor é “especial”. Por conta dessa
dependência mútua, desejada de ambos os lados, é que esse amor adquire uma bela
significação. Essa é uma relação desejável em si mesma.

*Adendo: inúmeros poetas escreveram sobre o amor. Todos eles trabalham com a
relação entre as sensações corporais e os sentimentos. É muito difícil saber até onde
vai a experiência que o poeta tem do verdadeiro amor só pelos seus versos, pois é
muito fácil confundir a expressão de uma simples sensualidade e a expressão do
verdadeiro amor, que são expressas do mesmo modo. Mas eles também falam do
Amor de modos muito diferentes, não creio que por causa da sua experiência do amor
mesmo, que deve ser igual para todos, mas pela “visão” do Amor, isto é, pelas ideias,
crenças e desconfianças que cada um pode ter acerca da Vida e do Amor. Podemos ler
poemas que tratam desse amor como se fosse uma ilusão em face a realidade da
morte. Outros o tratam como se fosse apenas luxúria (Ovídio). Outros o tratam como
se fosse um mero fruto do acaso, uma realidade meio banal da vida humana que
acontece sempre que haja as circunstâncias adequadas. Eu acredito que esses autores
não apreenderam a verdade do amor, e por isso não tiveram uma correta impressão
do sentimento que o amor lhes causou.

Não se pode amar duas mulheres


Se eu amasse mais de uma mulher numa vida, não teria amado nenhuma. Esse amor é
eterno, tem, ao menos, pretensão de eternidade. Ele deseja se eternizar, porque é
perfeito. Parece perfeito. Depois que amei uma mulher, seria uma espécie de traição
amar outra, pois como pode uma mesma pessoa amar com todo seu ser duas coisas
diferentes que competem entre si nos mesmos elementos? Ou seja, podem existir dois
paraísos diferentes para uma mesma pessoa? Como a minha felicidade pode consistir
em coisas diferentes que competem entre si? Ora, se só é possível ter uma delas, e
ambas forem igualmente boas, então o paraíso é o inferno, porque essa escolha é uma
escolha triste, que sempre causará a dor da perda. Mas se se ama uma só pessoa, e se
nunca se teve a experiência de amar uma outra do mesmo modo (o que não pode
mesmo acontecer), então aí nunca se desejará mais nada, pois nisso consiste todo o
prazer do homem, e tudo isso lhe foi dado de graça. Mas é impossível amar outra
pessoa do mesmo modo, porque o modo do amor conjugal é uma relação entre duas
pessoas que se amam com todo o seu ser; quer dizer: é o núcleo do ser dela que busca
aquela outra pessoa no seu íntimo. Como posso amar do mesmo modo uma pessoa
que é necessariamente diferente da outra como um todo? Como pode existir uma
mesma relação unindo cada um dos diferentes pares? Se eu amasse outra pessoa
desse mesmo jeito, ao mesmo tempo, então eu sentiria saudades de uma enquanto
estivesse com a outra, e nunca poderia ficar saciado, pois quando estivesse com uma
pensaria na outra, e assim sempre me sentiria culpado de infidelidade. O amor
conjugal só pode ser por uma única pessoa por vez (na memória). Eu a amo porque ela
é bela e é minha, porque me foi dada, porque só nela encontro o meu prazer. Porém,
não é que o amor conjugal possa acontecer mais de uma vez sucessivamente, ele, em
sua plena manifestação, só acontece uma vez na vida e uma na morte. Por isso, só é
possível acontecer o máximo prazer com a “minha” amada, e não há outra.

Símbolo da relação amorosa

A mulher que eu amo possui o meu coração em suas mãos, porque a minha felicidade
é ver e sentir aquilo que ela deseja fazer comigo. Só ela realmente me agrada.
Nenhuma outra pode me saciar de prazer, nem vale a pena procura-las. Eu a amo
porque é bela e porque é minha, e não desejo outra mulher. Ela também quer ser só
minha e de mais ninguém. O seu jardim é selado, e só eu conheço a entrada secreta. O
nosso prazer é grande porque é secreto, porque é íntimo. Não busco conhecer outras
mulheres com amor conjugal, porque não me foi dado ama-las do mesmo modo.
Afinal, não é possível que a mesma coisa pertença a mais de uma pessoa ao mesmo
tempo – (e a eternidade é toda um só tempo). Todo o meu prazer é me unir a minha
amada, é ser para ela o que ela é para mim; esse é o prazer da intimidade. É necessária
também alguma violência. A minha amada quer ser abusada – para que o amor não
seja limitado; ela mesma se diz minha prostituta – para mim sagrada; essa é uma bela
maneira de espantar o medo na relação – é no desprezo de todas as leis, no desprezo
de toda a sociedade que ela me quer; quer ser possuída sem que se leve em
consideração a situação social, a situação moral e seus preconceitos. Ela sabe que a
amo, que a desejo; me atrai, me enlaça, tece a sua teia; sabe que me tem preso, que
preciso do corpo dela para me saciar; que está ali para mim. Preciso dela; ela precisa
de mim também. Amor livre, íntimo, intenso, voluptuoso. Tudo isso torna esse amor
“especial”.

Distinção do amor verdadeiro pela literatura comparada

Sempre que se fala de amor é necessário distingui-lo de todos os outros fenômenos


que atualmente recebem o mesmo nome. É o que terei de fazer mais adiante.
Começando pela minha própria experiência, e como podemos encontrar em obras de
literatura, a pessoa amada parece ser sempre a mulher mais bonita do mundo, isto é,
no caso do amante, e a única que o realmente agrada (“como o lírio entre os espinhos,
assim é minha amiga entre as jovens”, “como a macieira entre as árvores da floresta,
assim é o meu amado entre os jovens; gosto de sentar-se à sua sombra, e seu fruto é
doce à minha boca” Ct 2, 2-3). Há algo de misterioso nesse arquétipo de “a mulher
mais bonita do mundo”, devo retornar a este ponto mais adiante. Para a mulher, o seu
amado também é o único no mundo, independentemente da sua riqueza material, é
ele o único que ela deseja. Santa Isabel de Hungria, ao saber da morte de seu marido,
dizia em prantos: “Ah, meu Deus! Senhor meu Deus! Morreu para mim o mundo todo!
o mundo inteiro com todas as suas delícias!” (História de Santa Isabel da Hungria,
Duquesa de Turíngia (1207 – 1231), Tomo II, pag. 19; por El Conde de Montalembert,
par de Francia. Barcelona: Libreria Religiosa, Imprenta de Pablo Riera, 1858.).

*Diz-se que quando Santa Isabel, já depois de ter tido visões e contemplações místicas,
depois de ter visto o céu, depois de Jesus ter elencado todos seus pecados, depois de
ter consagrado seu vestido de noiva a Deus, recebeu os ossos de seu falecido esposo
Luis, diz-se que ela “lançando-se sobre aqueles ossos os beijou mil vezes cheia de
arrebatamento, chorando com tal desconsolo, devorada por tão cruel agitação, que o
Bispo e os senhores, testemunhas daquela cena dolorosa, se aproximaram a acalmá-la
e trataram de aparta-la daquele lugar. mas, ela, recordando-se de Deus, se sentiu
revestida de todo seu valor: “Graças vos dou, Senhor, de que vos haja dignado ouvir a
vossa serva e conceder-lhe o que tanto desejava; o favor de contemplar os restos de
meu amado esposo, a quem Vós amastes também. Graças, Senhor, que assim
quisesteis derramar misericordiosamente vossos consolos sobre minha alma afligida e
desolada. Ele se ofereceu a si mesmo para a defesa da vossa Terra Santa, e eu também
o ofereci a Vós, com o mesmo objetivo, e ainda que o amava com toda minha alma,
não estou arrependida do sacrifício que lhe custou a vida. Vós sabeis, Deus meu, como
o hei amado! Vós sabeis quanto amava eu aquele esposo que Vos amava tanto, e
como preferira eu a todas as alegrias do mundo juntas o descansar-me com a vista
daquele esposo, tão delicioso para mim se fosse do Vosso agrado conservar-ma: Vós
sabeis que por viver com ele fora eu feliz em passar a vida juntos na miséria, pobres
ambos e correndo o mundo para mendigar nosso pão de porta em porta, só para ter a
alegria de estar ao seu lado, se assim o houvesses querido; oh Deus meu! Agora já o
deixo, e a mim mesma também me deixo e entrego a vossa vontade santa; e não
quisera, ainda que estivesse em meu poder faze-lo, resgatar sua vida às custas de um
só de meus cabelos, à menos que assim o quisésseis Vós, Deus meu!””.

**Considero essa passagem da vida de Santa Isabel de Hungria muito relevante para o
estudo sobre o amor, porque ela era uma noiva de Cristo, e, tendo dessa forma
prometido amar a Jesus Cristo de todo o coração, para entender melhor o que isso
significa, temos que procurar saber como ela – e as outras santas que fizeram o
mesmo – lidavam com as coisas geralmente consideradas “do mundo” a partir daí. A
minha ideia é que ser “esposa de Cristo” não pode estar no mesmo plano que ser
esposa ou amada de algum outro homem, de modo que consagrar de forma especial
todo seu coração a Jesus Cristo não deve significar que agora todos os desejos da
pessoa, seus afetos e sentimentos mais profundos passaram a ser simplesmente
desprezados como nada; mas, pelo contrário, é preciso crer que o amor a Deus se
refere a algo diferente do amor ao homem, não competindo com ele e não podendo
por isso excluí-lo, mas incorporá-lo numa dimensão amis elevada. Assim é que
entendemos o que Jesus disse em Lc 14,26: “Se alguém vier a mim e não odiar a seu
pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, o seu irmão, a sua irmã, e também a
própria vida, não pode ser meu discípulo”; ou seja, aqui, nesta passagem em especial,
o amor de Deus aparece como oposição ao amor humano: sim, se colocados num
mesmo plano, o amor de Deus será visto como oposição ao amor humano; no entanto,
o amor de Deus está num plano mais elevado, e, portanto, ele abrange, ordena e
orienta o amor humano desde cima, e só assim é que o amor humano é
verdadeiramente amor. O que Deus está dizendo é justamente isso: se colocado o
amor humano ao lado do amor divino, não é possível mais falar em amor, temos aí
dois amores em conflito. Por outro lado, voltando à Santa Isabel, ela não me parece
demonstrar, como o biografo nos dá a entender, qualquer desejo de reencontrar o seu
amado no céu, não digo reencontra-lo como amigo, como santo, mas como o que ele
foi para ela na terra, e confesso que gostaria de ter uma pista sobre seus sentimentos
a esse respeito, quer dizer: se ela considerava sua relação amorosa com Luis uma
relação eterna ou apenas uma relação meramente circunstancial, como se as nossas
relações terrestres (ou ao menos algumas delas) fossem apenas como um sonho que
passou, não fazendo parte realmente da nossa vida no céu. No entanto, há uma
passagem que considero curiosa: conta-se que Isabel fazia frequentes visitas ao
monastério onde jazia seu esposo morto para orar sobre sua sepultura (Tomo II, p.
254). Ora, isso me parece ser mais do que uma simples obrigação piedosa; é comum
que as pessoas visitem a sepultura de seus familiares para rezar por eles, mas também
podemos imaginar que só uma esposa ou esposo que realmente amava seu conjuge
tenha uma ligação especial com o seu túmulo, significando assim a ligação mais
espiritual que os unia. Por outro lado, sobre a amizade santa, lembro-me, por
exemplo, de quando Santa Teresinha do Menino Jesus estava enferma e perto da
morte, e disse para a sua irmã: depois que eu morrer aí é que nós estaremos ainda
mais unidas. Lembro que a morte para ela significava uma união bem mais íntima com
suas amadas irmãs. Se Jó, depois de perder tudo, e depois de ver Deus, teve toda sua
casa restaurada, porque seria diferente depois da morte? Não deveria ser esta vida
que nós perdemos na terra restaurada no céu, conforme a Palavra que diz: “quem
perder a sua vida por minha causa encontrará a verdadeira vida”?

***(“Quem ama a sua vida, perde-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo,
conserva-la-á para a vida eterna.” Jo 12,25. “Porque aquele que quiser salvar a sua
vida, perde-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobra-
la-á.” Mt 16,25. – Essas passagens parecem se referir à tensão entre a nossa vida no
mundo e a exigência que Deus faz de nós no nosso coração, isto é, a tensão entre a
imagem da vida que desejamos e nosso dever de vocação; é a tensão entre o que a
sociedade pode nos oferecer e o que a nossa vocação pessoal exige. Só se pode abrir
mão de tudo no mundo para podermos fazer aquilo que devemos fazer se tomar-mos
nossa cruz para seguir a Cristo, porque Ele nos prometeu que fazer isto é ganhar a vida
verdadeira. A vida que se perde não é verdadeira justamente porque acaba com a
morte; mas a vida verdadeira consegue-se seguindo o caminho do coração, ao invés
de, desprezando-o como coisa secundária, tentar adaptar a sua vida nesse mundo
como sendo a coisa mais importante.).

**** Porém, conta-se que, antes de tomar o hábito franciscano, Isabel “pedia três
coisas sem cessar ao Senhor, segundo dizia sua amiga Isentrudis: primeiramente o
desprezo completo de todas as coisas temporais; depois, o valor de sobrepujar-se com
indiferença às injúrias e calúnias dos homens; e por último, e sobretudo, a diminuição
do excessivo amor que tinha à seus filhos. Depois de muito tempo orando nessa
intenção, viram-na suas companheiras um dia que ela estava plena de alegria
sobrehumana, e dizia cheia de alvoroço: ouviu minha oração o Senhor: já não são a
meus olhos senão barro todas essas riquezas e bens mundanos, que em outro tempo
eu amava. Quanto às calúnias dos homens, as mentiras dos malvados, e o desprezo
com que me olham, já não sinto nada, antes me felicito e até me orgulho disso.
Quanto à meus filhos tão queridos, esses pedaços do meu coração, que eu tanto
amava e com tal ternura os estreitava contra meu peito, estes filhos tão queridos,
digo, já não existem para mim; Deus me é testemunha de que os vejo como se não
fossem meus. à Ele os hei oferecido e confiado; faça deles o Senhor aquilo que O
agradar. Já nada amo, nada; nenhuma criatura tem já lugar em meu coração: não amo
mais que a meu Criador.”. (Tomo II pag. 117-118).

***** A vocação da absoluta pobreza por amor de Deus nos traz de modo
maximamente evidente a tensão do amor pelo Criador e do amor pela Criatura.
Quando Isabel diz que quer se livrar do “excessivo amor” que tem pelos filhos,
pressupõe-se aqui uma distinção do simples e puro “amor”, de modo que devemos
nos perguntar o que é exatamente esse “excessivo amor”, no que ele consiste? Por
outro lado, Isabel diz que já não ama mais nada senão o Criador, que seus filhos são
como se não fossem seus. São Paulo também disse para usufruirmos dos bens desse
mundo como se não fossem nossos; mas não é exatamente disso que se trata, pois
Isabel já não se sente como possuindo filhos: a complicação aqui, então, é o que
significa para Isabel a posse dos filhos, o ter filhos, o chama-los de “meus”. Se
olharmos nos santos Evangelhos, eles raramente mostram a afeção de Jesus por
alguém como na passagem onde Jesus chorou por causa da morte de Lázaro. Nesta
passagem, a primeira coisa a se notar, é que as irmãs de Lázaro sabem muito bem que
ele vai ressuscitar para a vida eterna, não é esse o problema, o problema é que se
Jesus estivesse ali ele não teria partido desse mundo, e poderia continuar ali com eles,
presente em carne e osso. Maria, a contemplativa, irmã de Marta e Lázaro, estava aos
pés de Jesus chorando por causa disso. “Jesus chorou. Disseram pois, os judeus: vede
como o amava” Jo 11,35. Mas essa passagem não é clara; de fato, o Evangelista coloca
esta declaração do amor de Jesus na boca dos judeus, e isso geralmente significa que
essa é uma interpretação mundana dos verdadeiros sentimentos de Deus. Jesus se
comoveu depois de ver Maria e os judeus chorarem, e as Escrituras deixam claro que
Ele havia esperado que Lázaro morresse para que os judeus pudessem crer nEle; no
entanto, Maria e Marta declararam que já acreditavam nEle, e ainda assim pediram
pelo irmão. Ora, seriam Marta e Maria tão apegadas assim ao irmão para que não
pudessem deixa-lo ir em paz? Maria é a imagem Evangélica das monjas, como Santa
Teresa D’Ávila, sua devota. Ela desprezava o irmão? como se não fosse seu? É difícil
acreditar nisso. Mas o Evangelho diz que Jesus também o amava, e que chorou. Aí nós
vemos a complicação dos sentimentos humanos e divinos: Jesus é Deus e homem, e,
por isso, tudo o que Ele ama Ele ama como Deus e como Homem; ora, se Deus ama
Lázaro, quem só ama a Deus também ama Lázaro tal como Jesus o ama em carne e
osso. As irmãs de Lázaro não o amavam porque era IRMÃO, mas porque era LÁZARO, a
quem Jesus também amava; mas elas o amavam como IRMÃO, com afetos de irmão
mesmo. Ora, de que modo seria possível um amor verdadeiro por um irmão se o
próprio Deus não o amasse também como um irmão? E de que modo se poderia amar
verdadeiramente uma esposa se o próprio Jesus não a amasse como tal? Se uma
mulher não é digna de ser esposa de Jesus, não é digna de ser esposa em absoluto,
portanto, não pode ser esposa de ninguém porque não é nada. Do mesmo modo,
Isabel de Hungria não podia estar desprezando os filhos como nada, mas os estava
desprezando como “filhos por parte da carne”, isto é, o fato biológico e biográfico
deles terem sido paridos e amamentados por ela. De fato, amá-los por isso significa
não amá-los em absoluto, mas amar somente a própria carne, amar apenas a
convenção social de que aquilo que saiu dela lhe pertence como propriedade. A mãe
deseja amar os filhos simplesmente porque ama a própria carne, e vê neles uma
continuação de si própria, e isso é o que Isabel chama de “amor excessivo”. Amar os
filhos por quem eles são é diferente de amá-los porque são “filhos carnais”. Se se tem
um afeto por alguém simplesmente pelo fato de ter criado este alguém quando era
criança, então esse afeto não diz respeito à pessoa do outro, mas aos próprios
trabalhos que a pessoa teve cuidando daquela criança. Quem tem o trabalho de cuidar
de uma criança deseja que ela seja sua, porque ama seu trabalho e valoriza seus
próprios cuidados, porque ama a si mesma, mas não ama a criança. Não é isso o que
verdadeiramente significa ter filhos; por isso Jesus disse: “Também todos aqueles que
tiverem deixado casas, irmãos, irmãs, esposa, pai, mãe, filhos ou terras, por causa do
meu Nome, receberão cem vezes mais e herdarão a vida eterna.” Mt 19, 29. E, em
outro Evangelho: “Então Pedro começou a declarar para Jesus: “Eis que nós tudo
abandonamos para te seguir”. Garantiu-lhes Jesus: “Com toda a certeza vos asseguro
que ninguém há que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou bens, por
causa de mim e do Evangelho, que não receba, já no presente, cem vezes mais, em
casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e propriedades, e com eles perseguições; mas no
mundo futuro, a vida eterna.” Mc 10, 28-30. E em Lucas: “Ao que Pedro se manifestou:
“Eis que nós deixamos nossa família e bens para te seguirmos!” Então Jesus lhes
afirmou: “Com toda a certeza Eu vos asseguro: Ninguém há que tenha deixado casa,
esposa, irmãos, esposa, pai ou filhos por causa do Reino de Deus, que não receba, no
tempo presente, muitas vezes mais, e, na era futura, a vida eterna!” Lc 18, 28-30. É
curioso que Jesus prometa uma recompensa de ter “cem vezes mais” irmãos, esposa,
pai e mãe (e já aqui na terra). O que significa deixar irmão para ter cem vezes mais
“irmão”? Ou deixar esposa para ter cem vezes mais “esposa”? O que isso significa? Isso
significa que o sujeito trocou de família: ele deixou de se consagrar aos laços da carne
para se consagrar aos laços do Espírito. Deve haver, então, um análogo espiritual para
essas relações genéticas: irmão, pai e filho. Porém, a relação “esposa” (Cristo não disse
“esposo”, o que sugere que ele estava se dirigindo aos homens) não é uma relação
genética mas social-familiar, e aqui o título “esposa” provavelmente se refere aos
compromissos sociais de modo geral. Existem dois tipos de compromissos que ligam o
homem carnal com as outras pessoas: os compromissos com os parentes (honrar pai e
mãe...) e os compromissos com a sociedade (com outras famílias). Então, Jesus deve
estar dizendo que esse sujeito deve desprezar todas as suas ligações animais e sociais,
e fundamentar todas as suas relações no Espírito. Existem, então, diversos tipos de
relações espirituais: filho, irmão, pai, mãe, esposa... e também com o “terreno”...
Podemos também supor que Cristo tem afetos pelas pessoas segundo essas relações
espirituais, não segundo a carne. Também podemos comparar essa passagem naquela
em que vão dizer a Jesus que sua mãe queria vê-lo, e Ele diz: “minha mãe e meus
irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam”; temos aí uma outra
categoria de parentesco, um parentesco que não é fundamentado na relação
meramente biológica, mas que envolve a pertença a uma mesma comunidade
espiritual, a uma união de corações em Deus, desde que cada pessoa entenda a
palavra de Deus como única e pessoal, quer dizer, como dirigida a si mesmo. No
entanto, cabe-nos ainda caçar a ideia que pode nos revelar a realidade substancial de
uma relação interpessoal; isto é, precisamos explicar como os nossos sentimentos por
alguém podem ser os mesmos de Cristo por essa pessoa sem que afirmemos ao
mesmo tempo que haja apenas uma maneira fixada e mais ou menos genérica de amar
cada pessoa, segundo ela cumpra mais ou menos bem o seu papel de ser humano e de
amar a Deus. Por outro lado, a minha hipótese não é a de que Maria tinha os mesmos
sentimentos de Cristo por Lázaro, mas sim que Maria tinha os mesmos sentimentos
que Cristo tem por Lázaro enquanto sendo Ele mesmo o fundo do coração de Maria.
Não é razoável crer que no céu todo mundo ame igual a mesma pessoa; mas o amor
de Deus como que transpassa os vários indivíduos, e, formando o coração de cada um
deles, dirige-se para os outros como simultaneamente amor divino e humano. Só
assim estabelece-se uma relação realmente divina e eterna. Ora, o amor que eu tenho
por uma pessoa, se é verdadeiro, e se é correspondido, forma uma parte da vida dela,
bem como uma parte da minha própria vida. Essa modificação que o amor faz nas
nossas vidas, se corresponde às formas de amor da vida terrestre, sendo a vida
terrestre tão humana quanto a celeste, deve ser semelhante às modificações do amor
na nossa vida terrestre, cujas formas correspondem àquelas celestes. Nós devemos,
portanto, buscar essas formas, se elas existem, e, por outro lado, mostrar e provar
como a vida “mundana” é vazia e enganosa.

*****É importante notar que quando Isabel disse que já não estava mais apegada a
nada nesse mundo, ela estava radiante de alegria; mas, para a maioria das pessoas,
não amar ninguém significa estar profundamente triste e deprimida. No Evangelho,
encontramos a passagem de quando Jesus diz a um moço: “se queres ser perfeito, vai,
vende tudo o que tem e dá aos pobres, depois vem e segue-me”; e daí o moço fica
triste e vai embora. Há aí uma tremenda ambiguidade que devemos resolver: por um
lado, há o desapego que causa tristeza, que é quando o coração do sujeito está voltado
para as coisas do mundo: deixar as coisas do mundo não significa que o coração dele
será preenchido por nada, ao menos imediatamente; por outro lado, há o “desapego”
que é simplesmente falta de amor, quando não se encontra mais ninguém a quem
amar nessa vida, e, creio eu, ninguém duvida que esse amor sincero e verdadeiro
exista. Uma pessoa que busca a total pobreza não pode ter nada de “seu”, mas isso
não significa que não tenha mais sentimentos; a diferença é que esses sentimentos são
transfigurados em sentimentos divinos, porque a pessoa já não ama nada que não seja
eterno. Ora, o que eu estou tentando descobrir é justamente se as formas de amor
que encontramos neste mundo terreno são também formas eternas ou são apenas
fenômenos materiais sem correspondência com as relações entre os santos. Se essas
formas de amor aqui na terra tiverem alguma correspondência celestial, há várias
formas de amor no céu: o amor esponsal, fraterno, filial, paternal, maternal, etc...
segundo as várias formas de afeto e relacionamento humano que encontramos na
terra.
******Podemos comparar essa exigência de Jesus, do coração da pessoa como um
todo, como sendo a própria vocação da pessoa. A vocação é o que a pessoa tem de
única e não compartilha com ninguém, sendo só ela mesma ali. É por isso que
Miyamoto Musashi, numa passagem do filme de Hiroshi Inagaki, falava assim a sua
amada, antes de partir para sua jornada, como que se despedindo: “eu te amo, mas eu
amo mais a minha espada”; e partiu para sua jornada, sozinho, deixando-a lá na
cidade, chorando – se partiu de coração partido, permaneceu todo inteiro em cada
uma das metades. A mais alta criação de Deus é você se tornar a imagem terrestre de
quem você é. A espada do samurai reflete a tempera da sua própria alma.

“Dize-me, ó tu, que meu coração (“coração”, que é o sentido mais literal, é também
usado como sinônimo de “vida” e “alma”) ama, onde apascentas o teu rebanho, onde
o levas a repousar ao meio dia, para que eu não ande vagueando junto aos rebanhos
dos teus companheiros” Ct 1,7.

“Ele introduziu-me num celeiro de vinho, e o estandarte que levanta sobre mim é o
amor.” Ct 2,4 (ver Ex 17,15: na luta contra Amalek, onde Moisés ficou no alto do
monte com os braços levantados, de modo que quando Moisés abaixava as mãos
Israel começava a perder o combate, e quando as levantava Israel vencia, eis o que diz
o versículo após a vitória de Israel: “E Moisés edificou um altar, ao qual chamou: o
Senhor é meu estandarte”).

“Restaurou-me com tortas de uvas, fortaleceu-me com maçãs, porque estou enferma
de amor.” Ct 2,5.

“Meu bem-amado é para mim e eu para ele; ele alimenta (apascenta) entre os lírios”
Ct 2,14.

“Vou levantar-me e percorrer a cidade, as ruas e as praças, em busca daquele que meu
coração ama; procurei-o, sem o encontrar.” Ct 3,2.

“Mal passara por eles, encontrei aquele que meu coração ama. Segurei-o, e não o
soltarei antes que o tenha introduzido na casa de minha mãe, no quarto daquela que
me concebeu.” Ct 3,4.

“Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e corças dos campos, não perturbeis
o meu amor antes que o deseje” Ct 3,5

“És toda bela, ó minha amiga (não é “amiga”, a palavra significa “companheira” no seu
radical, e só é usada no Cântico dos Cânticos), e não há mancha em ti” Ct 4,7.

“Tu me fazes delirar (não é “delirar”, mas a palavra usada aqui só tem no Ct, e
significar algo como “mexer o coração”, no sentido de “bater mais forte”), minha irmã,
minha esposa, tu me fazes delirar com um só dos teus olhares, com um só colar do teu
pescoço.” Ct 4,9.
“És um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, uma nascente fechada, uma fonte
selada” Ct 4,12.

“És a fonte de meu jardim, uma fonte de água viva (“água vivente”), um riacho que
corre no Líbano./ Levanta-te vento do norte, vem tu, vento do sul. Sopra no meu
jardim para que se espalhem os meus perfumes. Entre meu amado no seu jardim,
prove-lhe os frutos deliciosos.” Ct 4,15-16.

“Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, dizei-lhe que estou


enferma de amor.” Ct 5,8.

“Que tem o teu amado a mais que os outros, ó mais bela das mulheres? Que tem o
tem amado a mais que os outros, para que assim nos conjures?” Ct 5,9. “... ele é todo
amável (tudo nele é desejável)...” Ct 5,16.

“És formosa, amiga minha, como Tirsa, graciosa como Jerusalém, temível como um
exército em ordem de batalha” Ct 6,4.

“desvia de mim os teus olhos, porque eles me facinam...” Ct 5,5.

“Há sessenta rainhas, oitenta concubinas, e inumeráveis jovens mulheres; uma,


porém, é a minha pomba, uma só a minha perfeita; ela é a única de sua mãe, a
predileta daquela que a deu à luz. Ao vê-la, as donzelas proclamam-na bem-
aventurada, rainhas e concubinas a louvam.” Ct 6, 8-9.

“Põe-me como um selo sobre teu coração, como um selo sobre teus braços;
porque o amor é forte como a morte, a paixão é violenta como o sheol. Suas
centelhas são centelhas de fogo, uma chama divina” Ct. 8,6

“... Se alguém desse todas suas coisas por amor as desprezaria”

“Ora, eu sou um muro, e meus seios são como torres; por isso sou aos seus
olhos uma fonte de alegria” Ct 8,10.

“Salomão tinha uma videira em Baal-Hamon. Confiou-a aos guardas, cada um dos
quais devia dar mil soclos de prata pelos frutos colhidos. eu disponho de minha videira:
mil siclos de prata para ti, Salomão! Duzentos para aqueles que guardam o fruto. Ó tu
que habitas nos jardins, os amigos (os “companheiros”, aqueles que estão unidos”)
estão atentos à tua voz, faze-me ouvir a tua voz. Foge, meu amado, como a gazela ou
como o cervozinho sobre os montes perfumados!” Ct 8, 11-14.

Esta última passagem dos Cantares de Salomão é de difícil interpretação; parece que
ninguém sabe ao certo como entender essa passagem. A narrativa parece dizer que os
“guardas de Salomão” tinham que pagar mil siclos de prata por cada fruta roubada da
“videira”; parece que a que habita “nos jardins” (no plural!) é metaforicamente um dos
frutos da árvore de Salomão, que acaba de ser roubado pelo narrador, e por isso ele
diz “mil siclos para ti, Salomão”. Mas não posso entender o por quê da passagem
“duzentos para aqueles que guardam o fruto”. E por que ele diz “eu disponho de
MINHA VIDEIRA”? A videira era dele ou de Salomão? O que os amigos estão fazendo
ali? Por que eles querem ouvir a voz do ser que habita os jardins? Por que a esposa diz
para ele fugir? Ainda não sei como esclarecer esses nenhum desses pontos.

No caso da mulher amada, é interessante fazermos uma comparação. Baseando-se na


minha experiência pessoal – e creio que seja assim também para os outros – eu
percebo que nós homens sempre temos opinião acerca da mulher mais bonita, e de
certa classificação sobre se as mulheres que nós opinamos como bonitas, normais ou
feias. Qual a garota mais bonita da turma? A mulher mais bonita da vizinhança? Da
cidade? A Miss Brasil? A Miss Japão?... Nós homens temos opinião acerca da mulher
mais bonita, mas isso não significa que nós nos apaixonamos automaticamente por
qualquer uma dessas; claro que a desejamos, de certo modo, mas necessariamente
porque nos apaixonamos, mas porque sua beleza nos excita a imaginação. É diferente
quando amamos alguma mulher. Quando amamos uma mulher, ela se torna
automaticamente a mais bela do mundo, hoje e sempre – não que essa seja nossa
opinião “objetiva”, mas é assim que a sentimos. Ela nos excita mais que todas as
outras; é a única que posso dizer que “é a minha amada”. Esse amor também nasce da
visão: quando eu vejo a mulher que amo, eu sigo observando-a, me descubro tomado
de amor por ela.

*Se o “apaixonar-se” tem algo a ver com uma harmonia de beleza e virtude, eu não
acho que isso faça muita diferença para o que fica dito. Também a personalidade da
mulher como um todo influencia na paixão, mas a nossa personalidade deve ao menos
indicar algo da nossa essência individual. Desse modo, podemos nos apaixonar por
duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, desde que exista certa ambiguidade numa
personalidade, isto é, é raro o sujeito parecer totalmente aquilo que é, e às vezes ele
se parece mais com outras pessoas ao redor. E nós podemos nos enganar.

**O mais complicado aqui é a combinação de todos os elementos biográficos,


psicológicos, culturais, etc., que teriam contribuído para que aquela alma individual
pudesse “ver” justamente naquela outra alma individual a sua “companheira”, e
naquele momento, naquela circunstância, para daí a pessoa como um todo se
apaixonar perdidamente pela outra. Podemos simplificar as coisas se a gente admitir
que todas essas circunstâncias fazem parte, de algum modo, da Providência, e assumir
que o mais importante aqui, no momento, é a experiência de uma pessoa “ver” a outra
como sendo a mais bela do mundo, a “certa” para mim. Essa experiência ou é
sobrenatural ou acidental; se é sobrenatural tem a ver com a essência individual (com
a alma imortal) e com a Providência (o amor como dom divino); se é acidental tem a
ver unicamente com a Providência divina (a confluência de fatores acidentais é em
última análise prevista e “aceita” por Deus).
O interessante de se notar aqui, como estava dizendo, é que a opinião dos homens
acerca da mulher mais bonita da sala não faz com que todos eles a desejem do mesmo
modo, não faz com que um homem se apaixone por ela só porque é a mais bonita
“objetivamente”, por assim dizer, ou, “de corpo”. Pode ser, por exemplo, que eu olhe
para a garota e diga: “é, sim, ela é a mais bonita da sala”, e, no entanto, eu vejo que
um colega está muito interessado nela e dou a ele o maior suporte para que ele
consiga namora-la. – E o que significa dizer “a mais bonita” se isso não quer dizer que é
a “mais desejável para mim”? Esse fato sugere uma importante distinção. Quando
dizemos que uma mulher é a mais bela, isso não significa que ela é a única que nos
agrada, mas quando dizemos que amamos uma mulher, ela automaticamente se torna
a mais bela. É claro que invejamos um pouco os homens que tem mulheres muito
bonitas, mas só os invejamos na medida em que na nossa imaginação nós podemos
fingir amá-la intimamente, com amor verdadeiro, e assim sentir prazer nas nossas
fantasias sexuais. (Temos que marcar aqui um fato muito importante: o amor não é
necessário para se ter prazer no ato sexual; o amor pode ser totalmente pervertido, e,
nesse caso, temos também uma espécie de prazer demoníaco. Deverei falar mais
sobre isso em outro lugar). Mas, se nos voltarmos agora para a realidade da nossa vida
concreta, podemos perceber que não estamos perdendo muita coisa em não ter uma
mulher que realmente não amamos. Ter simplesmente desejo sexual não é a mesma
coisa de quando encontramos aquela mulher que desperta em nós um desejo ardente
de união íntima e eterna. Esse desejo de união perfeita e total é o que acontece
quando vemos a nossa mulher amada. Uma vez encontrada, ela não pode mais ser
esquecida – ou não queremos esquecê-la. A beleza dela está em outro “plano”, é
muito mais profunda. Não estamos tão interessados em ficar acariciando o seu corpo,
mas desejamos muito mais estar na presença da sua pessoa, diante da sua intimidade,
e termos a nossa própria intimidade sendo reconhecida por ela como referindo-se a
ela mesma, como sendo “dela”; do mesmo modo, eu quero que ela, e só ela, seja
“minha”, “minha querida”; quero que ela seja “para mim” tal como eu sou “para ela”.
E a essa espécie de autodoação mútua nós chamamos amor.

Então, quando David “viu” Bat-Sheba se banhando, não é possível que ele tenha visto
apenas mais uma mulher bonita para colocar no seu Harém... (É importante esclarecer
mais essa passagem, tão mal interpretada nos nossos dias. David não planejava toma-
la como esposa até o momento em que já não podia mais enganar seu marido. A
primeira coisa que David tentou fazer foi mandar o marido dela para casa, para dormir
com ela, e assim pensar que o filho do rei era o seu próprio filho. Mas acaba que
marido dela se mostra teimoso e não quer cumprir as suas ordens do rei, (e por justa
causa), e, por consequência disso, se tornar uma ameaça à própria mulher e ao filho
que ela teve de David, pois que agora ela poderia ser condenada à morte por causa do
adultério quando fosse descoberta pelo marido. Só aí David resolve matar o marido
dela e a tomar por esposa.). Por outro lado, também não é verossímil que as mulheres
do Rei David fossem menos bonitas, esteticamente falando, do que essa mulher que
ele viu se banhando, “que era muito bela”; ao menos aos olhos de qualquer outro
palaciano não podemos dizer que Bet-Sheba fosse tão mais bela do que qualquer outra
bela mulher do rei foi ou o fora na sua juventude. Mas a atitude que David toma com
relação a ela pode ser considerada, de certo modo, desproporcional com a sua
maneira habitual de ser: pela primeira vez ele comete um ato infringindo todas as leis
divinas e humanas simplesmente porque não conseguiu resistir à beleza da mulher.
Ora, David não era nenhum homenzinho incontinente ou sem virtude; como pode ele
cometer tal injustiça infamante, ele que era considerado justo diante de Deus? Mas ele
a viu: não pôde resistir à sua beleza nem por um segundo; o prazer da união encantou
seu coração; era preciso possuí-la, o corpo dela, e tudo o mais. E ela talvez tenha
correspondido, não sei, mas, pelo jeito como a Bíblia omite qualquer referência a ela, é
como se ela fosse simplesmente dócil ao rei, omitindo ela mesma em seu coração
qualquer contradição que pessoalmente tivesse com a vontade do rei. Talvez ela tenha
sido dócil do mesmo modo que o Espírito Santo o é: não podemos esquecer que a
mulher tem um papel semelhante ao do Espírito Santo, simbolicamente, e tal como o
Espírito Santo Bet-Sheba também não negou seus dons ao rei David. Além disso, ela
parece ter sido a mulher mais amada do rei, pois David prometera que seu filho com
ela se tornaria rei em seu lugar (isso em algum momento não declarado nas
Escrituras). É como se ele tivesse prometido isso na sua intimidade com ela, de modo
que a Escritura não nos diz quando ou como isso aconteceu. Assim, só o profeta
poderia dizer o momento certo para ela reivindicar aquela promessa feita pelo rei.
Agora, é interessante comparar essa passagem com a passagem em que Sansão diz
que quer casar com uma mulher pagã, e os pais dele reclamam dizendo: “poxa, você
não pode escolher uma da nossa tribo? não é possível que não haja uma mulher bela
entre os judeus!”, mas a Bíblia responde que os pais de Sansão não sabiam que Deus
havia feito isso para que seu Juiz levasse confusão até o povo pagão ao redor. Ou seja,
foi Deus mesmo quem fez com que Sansão olhasse aquela mulher e dissesse: “não há
outra escolha para mim, é essa com quem eu devo casar”. Logo depois, no entanto, o
pai dela a dá a um jovem, que também havia participado da festa de casamento de
Sansão, e este fica indignado, e queima a safra dos filisteus por causa disso; daí, os
filisteus ficam irados e queimam a casa da esposa de Sansão, com o pai e a filha dentro
dela. Assim termina o primeiro caso de Sansão. O curioso é que nesse primeiro caso a
Bíblia não diz o nome da esposa de Sansão, e nem mesmo diz que Sansão “amou” essa
mulher; a justificativa dele é que “ela é a que me agrada”. A Bíblia certamente não
parece dar muita atenção a esse primeiro caso de amor, que é como que o protótipo
do segundo, mais maduro, e mais terrível: aquele que leva Sansão ao pecado e à
morte. Assim diz a Escritura que “Sansão amou Dalila” – e aqui a palavra é “amor”
mesmo. Parece ficar implícito que Deus fez isso pelo mesmo motivo que antes, pois a
estória termina do mesmo modo, mas dessa vez não diz que foi Deus quem fez isso
acontecer. Sansão acaba destruindo todo um templo pagão, com a força e o poder de
Deus. A traição de Dalila é arquetípica: ela trai seu amante revelando o seu segredo;
assim também Sansão traiu a Deus revelando o seu segredo: “Se é bom conservar
escondido o segredo do rei, é coisa louvável revelar e publicar as obras de Deus” Tb
12,7. Sansão está para Deus como Israel está para Deus, e tal como Dalila está para
Sansão. E depois disso nós nunca mais ouvimos falar da misteriosa figura de Dalila.
Nessa narrativa nós também podemos encontrar o arquétipo de amor não
correspondido. Não adianta nada Sansão amar Dalila porque eles não podem ter
nenhuma união verdadeira cultuando deuses opostos; por outro lado, Sansão era fraco
na carne – temos aí a passagem onde ele visita uma meretriz para justificar essa
opinião. Sansão se uniu carnalmente a uma pessoa com quem não podia se unir
espiritualmente, por isso ele pôde ser traído. A punição dele foi perder a visão e girar
um moinho, o que lembra muito o pecado do sexo: mais do mesmo, isto é, ficar
eternamente perseguindo um prazer vazio, como um cego, repetindo o mesmo
movimento, sem nunca poder atingir o alvo.

Sobre o amor não correspondido, é notável a comparação dessa imagem com o início
da Paixão de Cristo, quando Jesus vai orar sozinho no monte das oliveiras. A imagem
que nós temos é Jesus, num jardim, sozinho, orando, ao Pai, ajoelhado, suando
sangue. Jesus está no jardim; sua esposa está ausente; ele já foi traído. Seu segredo
será revelado na forma de escárnio: é assim que a prostituta trai o segredo de seu
marido, zombando dele, o diminuindo diante dos seus amantes na medida em que
revela o segredo do esposo. Jesus sofre porque ama, mas não ama uma mulher má, Ele
sofre em primeiro lugar pela traição das almas boas, que serão salvas pelo
arrependimento e perdão dos pecados. Na verdade, é o inimigo de Jesus Cristo que
monta a cena para Ele, que faz parecer que sua esposa é totalmente ruim. O modelo
do escárnio demoníaco é a missa negra. Deus permite isto para mostrar à esposa o que
é o verdadeiro adultério, para que ela não queira imitar a perversão do demônio, para
que ela saiba discernir o lado certo, para que se volte para Deus por “conversão”, por
rejeição do mal. Este é o pior sofrimento que um homem pode ter: deixar de ser
amado e ser traído pela esposa que ele ama. Só há dor; “minha alma está triste a
ponto de morrer”, diz Jesus. Mas a esposa é livre para deixar de amar, ela é livre para
não querer viver o amor, para experimentar novos prazeres se ela quiser; ela é livre
para se libertar do amor ao seu esposo. Por que ficar presa a um só homem enquanto
há muitos que a desejam? Não, engano seu. Não se ama nenhum outro, é impossível.
Deixar de amar este Homem é deixar de amar de todo, é rejeitar o Amor como um
todo. A imitação do Amor fora do Amor é a definição de pecado. O arquétipo da
esposa arrependida que volta para o marido se chama “Maria Madalena”, aquela “que
muito amou”; a prostituta que chora aos pés de Jesus. Jesus fica quieto; comovido no
seu íntimo, Ele permite que sua esposa se humilhe diante dele, que demonstre seu
amor por Ele, porque o havia traído e agora o amor oprime o seu coração, que
pertence ao esposo. Tudo o que ela mais deseja, como amante, é que seu amado
reconheça sua humilhação, reconheça seu arrependimento, e que possa aceita-la e
ama-la como antes – ela quer mostrar o quanto o ama. Jesus sabe disso, ele a aceita;
perdoa muito a quem muito amou. Maria Madalena curou a ferida do coração de seu
amado com suas lágrimas e seu arrependimento e sua humilhação; e talvez tenham
sido mensagens deste tipo que trazia aquele anjo, quando, descendo sobre Jesus, o
fortalecia no monte das oliveiras.

O termo “amor” na Bíblia é usado de forma genérica, sem fazer distinção da totalidade
do fenômeno em jogo. Fala-se, por exemplo, do filho de David, que “amou” Tamar, e
que, depois que a violentou, desprezou-a; fala-se de Jônatas que “amou” David; fala-se
de amar a Deus, ou que Deus amou Salomão, por exemplo. Também no mundo a
palavra “amor” é utilizada não para designar uma realidade com uma estrutura bem
definida mas sim um sentimento que todo mundo tem, e que se refere genericamente
a um tipo de relação afetiva com outra pessoa. O problema é que esse sentimento que
chamamos genericamente de “amor” admite uma larga gama de interpretações, que
podem ser inclusive contraditórias, dependendo de se se está amando como um todo
ou se se ama em partes. Por exemplo, se um homem ama uma mulher, ele terá o
mesmo sentimento genericamente chamado “amor” tanto se ele estiver amando
apenas o corpo da mulher, como se ele estiver amando a pessoa dela como um todo;
e, além disso, quando uma pessoa, por exemplo, mais velha, já não sente mais a
paixão sexual pela sua esposa, ainda pode dizer que a ama do mesmo modo que antes.
Outro exemplo pode ser o da amizade; se um amigo ama o outro, esse amor pode
incluir desejo sexual ou não, por exemplo, se se ama o amigo porque ele é belo e
nobre, ou porque simplesmente aconteceu de se gostar dele por motivos mais
pessoais, e, desse modo, aqui também o termo “amor” não seria suficiente para
distinguir os dois tipos de relação.

Uma bela imagem que podemos fazer é a de David sendo subjugado pela beleza de
Bet-Sheba sob a luz branca da Lua cheia, que semi-nua, molhada, se banhava na
fonte... Ele se deitou com ela. O filho que tiveram morreu, por punição do crime que
cometera o rei David. O crime de David é geralmente tido como se fosse o adultério,
mas essa interpretação não é de modo algum evidente, talvez nem mesmo legítima.
Para começar, temos a parábola contada pelo profeta Natã; ora, essa palavra não fala
de adultério em momento algum, ela fala sim é de injustiça suprema, o tipo de
injustiça que só um senhor iníquo poderia praticar (e parece que David nem se deu
conta do seu pecado até aquele momento, enquanto que, se o pecado fosse o
adultério, é claro que ele já devia estar esperando a repreensão de algum modo). Mas
o pecado de adultério não seria nada para um rei ungido por Deus comparado ao
pecado de tomar a esposa do seu servo para ser sua esposa, e ainda fazer isso
escondido; foi por isso que Natã disse “porque desprezastes a Deus...”. A matéria do
pecado de David foi tomar a mulher do próximo e depois matar o esposo dela para
legalizar seu adultério, mas a intensão do pecado foi o desprezo a Deus: um rei ungido
como ele não tinha o direito de desprezar uma lei divina, fazendo o que bem
entendesse, por conta própria. Podemos notar aí a clara tensão do amor que se revela:
o amor está em constante tensão com a lei social; enquanto o amor diz respeito ao
mais íntimo do indivíduo, o casamento é só um contrato social que se deve cumprir
segundo uma lei genérica. A relação verdadeiramente amorosa entre um homem e
uma mulher é tão íntima e pessoal que chega a parecer uma afronta permitir que leis e
convenções sociais perturbem essa intimidade. É como se se dissesse: se eu a amo e
ela me ama, o que poderá nos separar? O amor desafia todas as imposições exteriores
a ele. O problema é que para esse mesmo amor se realizar de forma plena no mundo,
levando em consideração a possibilidade de se ter filhos e a estabilidade da união, a
sociedade, as leis e convenções se tornam necessárias. Mas nem sempre elas admitem
a existência desse amor, servindo mais ao propósito da manutenção da convivência
social do que da intimidade, (evidentemente), e é justamente a convivência social que
a relação íntima entre dois sexos exclui. Um detalhe realmente interessante na
narrativa de David e Bet-Sheba é justamente que, após os dois dormirem juntos, ela
“se limpa da impureza da sua menstruação”; ora, nós bem sabemos que não é possível
engravidar durante a menstruação, então, o que aconteceu? Como foi possível que ela
engravidasse? A Bíblia deixa muito claro que o filho era de David. Mas parece que essa
ironia trágica, do adultério que não poderia de modo algum gerar conflitos sociais mas
que acabou gerando a maior das injustiças, expressa justamente essa tensão
corpo/espírito, somado ao fato de que a justiça é sempre social e não aceita exceções.

*sobre isso, ver também a passagem de Jacó, Leá e Raquel. Jacó amou Raquel, mas lhe
foi dada Leá por causa dos costumes locais. Ele fica com as duas. Uma ele ama, a outra
lhe dá mais filhos. Os filhos de uma esposa não resolvem o problema do ciúmes por
causa do amor pela outra, e o amor pela outra não resolve o problema da sua posição
social com relação a esposa que tem mais filhos. Jacó ama uma mulher, mas lhe é dado
outra, logo na primeira noite de núpcias, sem que ele o saiba. Ele fica com ela achando
que é a outra. Esse engano fatal é o arquétipo também da nossa ilusão com relação a
mulher ideal. Mas, mais propriamente, é o arquétipo dessa tensão entre a ordem
social do casamento e o casamento por amor.

Essa tensão entre o pessoal e o social existe em muitas áreas da vida humana, e o
arquétipo dessa tensão é a existente entre a alma e o corpo: o corpo segue a alma,
mas a alma é muito mais livre para pensar e imaginar coisas que o corpo não pode
fazer. A liberdade nesse mundo é só espiritual, enquanto os corpos dependem uns dos
outros para sua manutenção; quer dizer, mesmo que a alma dependa também de
outras almas para se desenvolver, através da educação, são almas livres que guiam
outras para a liberdade, o que não acontece com os corpos, estes são sempre
limitados por outros corpos não podendo se expandir ocupando todo o cosmos. A
alma é que é um microcosmos, o corpo é uma imagem fixa da alma como um todo. A
realização de cada pessoa está assim limitada pelas possibilidades do seu corpo com
relação a outros corpos; mas, espiritualmente, ela sempre pode se realizar, pois tem
liberdade interior e imaginação.
De qualquer modo David fica com Bet-Sheba, e ela concebe novamente, e nasce
Salomão, que Deus amou, conforme o profeta Natã depois anunciou. E de Salomão
nascerá o Messias. À Salomão é atribuído o Cântico dos Cânticos, e, se for verdade,
então é bastante claro que ele conhecia bem o amor entre um homem e uma mulher
(é curioso, no entanto, que ele tenha tido 700 esposas e 300 concubinas, e ainda assim
tenha escrito algo como os Cantares, onde só existe uma mulher para o seu esposo e
vice-versa. Mas o Eclesiastes o repreende dizendo: “saciastes o teu corpo”). O fato é
que foi daquele “acidente” em que o Rei David viu Bet-Sheba e a “desejou
ardentemente” – utilizando o termo de São Paulo – que saiu a linhagem do Messias.
Deus não sabia disso? É curioso como na Bíblia costumam acontecer acidentes
benéficos para a humanidade; temos aqui, novamente, a imagem do pecado original.
Deus havia dado tudo de graça para David, e ele quis provar aquilo que não era dele.
De novo o homem desprezou Deus, de novo alguém foi condenado à morte, de novo
Deus faz do pecado um pretexto para nascer Jesus Cristo, o Salvador do Mundo.

*Devemos lembrar que a imagem do amor como elaborada na idade Média, o amor
cortês, não existia em nenhuma parte na Antiguidade. Para que o amor cortês fosse
elaborado, era preciso levar em consideração a parte do evangelho onde Jesus diz que
o casamento é a união entre um homem e uma mulher até a morte de um deles,
ocasião em que os discípulos demonstraram grande perplexidade, dizendo: “mas,
Senhor, isso é muito difícil, quem vai querer casar assim?”. Ora, naquele tempo era
inconcebível como que um casamento poderia ser somente entre um homem e uma
mulher até a morte. A imagem do amor cortês certamente contribuiu para que o
matrimônio cristão fosse algo mais desejável, incutindo esse senso na população. Na
Antiguidade essa imagem do casamento como sendo a união de um homem e uma
mulher até a morte de um deles praticamente não existia, não tinha nenhuma
elaboração literária, de modo que esse tipo de relação não era concebível como
trajetória de vida humana, e, portanto, nem era algo normalmente desejado. Assim, é
normal que as passagens bíblicas que tratam do amor, desse amor que é forte como a
morte, não nos pareça com o amor tal como foi projetado na Idade Média, mas isso
não significa que não seja a mesma coisa no seu princípio. As instituições da
Antiguidade são bastante diferentes, e é normal que David não projetasse o seu amor
por Bet-Sheba da mesma maneira que um cavaleiro medieval o faria, mas isso não
significa que ele não a amasse do mesmo modo. Seguindo esse raciocínio, podemos
imaginar que Jacó também amou Raquel desse jeito, até o fim da vida, mas não
precisava projetar a sua relação com ela como fazem os cristãos da Idade Média que
também sabiam amar, porque ele não possuía as mesmas imagens disponíveis com
que poderia artisticamente compor a vida. E é interessante notar também que o
próprio Abraão teve uma concubina, de acordo com o livro das Crônicas. Essa
concubina é omitida no Gênesis, parece não ter importância (ao menos para a salvação
da humanidade), seu nome é omitido (tal como o nome das concubinas de David, etc.),
mas é intrigante que um patriarca como Abraão tivesse UMA concubina; por que não
mais de uma? Por que não nenhuma? Aqui temos uma certa liberdade para
imaginarmos.

**Uma outra coisa interessante de se notar, é que assim como os mandamentos de


Deus se referem primeiro à ordem social (os Dez Mandamentos), Deus mesmo
costuma “respeitar” as instituições humanas, (se não as aprova, ao menos não as
rejeita de todo), de modo que Ele aceita a legitimidade de todas as esposas dos reis de
Israel e dos Patriarcas, reconhecendo o direito dos filhos delas de herdarem o trono ou
abençoando os filhos delas por meio da benção do patriarca da família. De modo
semelhante, Deus abençoa os matrimônios, por meio da Igreja, ainda que não seja
baseado no amor mútuo, ainda que haja apenas outros interesses por detrás dele,
caso os noivos estejam de acordo em se casarem e prometerem fidelidade e educar os
filhos na fé. Assim, o casamento, mesmo quando é apenas uma instituição social usada
para unir pessoas que não se amam verdadeiramente, mesmo assim ele é abençoado
e é irrevogável até a morte. E, de fato, o esposo tem direito sobre a esposa, e vice-
versa, mas o amante não tem direito sobre o corpo da amada, e vice-versa. Por isso
existe aí uma tensão: entre a Igreja que institui o casamento podendo abençoa-lo
mesmo quando não há amor, e o verdadeiro amor, que não respeita o casamento e
nem pede permissão a ninguém para acontecer, podendo acontecer nas circunstâncias
mais desfavoráveis; o casamento é uma escolha, depende da vontade livre, já o amor é
uma determinação, não depende muito da gente. Deus instituiu o matrimônio; o
homem deve procurar se utilizar dele do melhor modo, respeitando as Leis de Deus.
Há muita confusão no mundo.

O que acontece, então, quando não somos Rei David, e não somos Shequém, e não
podemos raptar a mulher que amamos, nem seduzi-la, nem cometer adultério? Não
me parece que esse tipo de amor aconteça a todo mundo igualmente, me parece mais
é que a maior parte das pessoas não se sentem como se existisse apenas uma
mulher/homem para elas no mundo. Quem pode esperar 7 ou 16 anos pelo seu
amado, tal como o fez uma personagem da Jane Austen? Ou esperar a vida inteira? é
possível, mas creio que raro. Nas Sagradas escrituras me parece que a única forma de
encontrarmos um tipo de amor não correspondido é o de Yaweh por Israel (afora as
imagens secundárias de Sansão ou Oséias); Yaweh esperou até o fim do mundo pela
Sua amada esposa, que, pior de tudo, se prostituía com ídolos (*Os 3,1: “O Senhor
disse-me: Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo, e que foi adúltera,
pois é assim que o Senhor ama os filhos de Israel, embora se voltem para outros
deuses e gostem das tortas de uvas” – o interessante nessa passagem é que Oséias é
ordenado a “amar” esta mulher do mesmo modo como Deus “ama” Israel: ele a amava
mesmo ou estava apenas figurando o amor por meio do casamento com ela?). Mas, na
Bíblia, para ser mais exato, não me parece que exista nada parecido com o que
chamamos de amor não-correspondido estrito senso. (É normal que não haja
narrativas sobre casos de amor, como o fazem os trovadores medievais, pois naqueles
tempos isso realmente não era possível ser narrado). Explico: parece-me que na Bíblia
Israel sempre ama a Deus, sabendo disso ou não, e por isso mesmo é que sofre com as
consequências da sua própria prostituição, com a sua própria perversão. Essa estória
pode ser resumida assim: Deus enche a Igreja de regalos, a Igreja se afasta de Deus, só
para depois perceber que Deus era melhor do que o que ela conseguiu em outro lugar,
e aí ela volta para ele arrependida, é perdoada, e fica feliz. Ora, por que diabos o povo
de Deus se afastou dele pra começar? Respondo: é que o fruto proibido é “bom de se
ver”; isto é, primeiro concebe-se uma ideia acerca daquilo que não me foi dado
possuir, e, depois, deseja-se provar daquilo mesmo sem CONHECER de fato o que
aquilo É. E adultério é isso. Maria Madalena é um arquétipo da mulher adultera; ela é a
prostituta que muito amou e por isso muito foi perdoada. Não existe amor não-
correspondido na Bíblia, existe apenas a ignorância, o erro, a maldade, a perversão, o
desvio, a negação, a traição... ou seja, tudo o que impede que Israel ou a Igreja deseje
a Deus mais que qualquer outra coisa. Na verdade, nesse sentido, só existe um único
amor na Bíblia inteira, o amor de Deus. O que é amor é Deus, o que não é Deus, não é
amor.

Essa imagem também aparece na vida das santas místicas, como Santa Catarina de
Sena, Santa Teresa Dávila, Santa Clara, etc... Há uma metáfora sobre o casamento da
freira com Jesus Cristo, o Esposo Divino; também sobre a guarda da virgindade até as
bodas celestes; e às vezes esse casamento celeste é revelado à santa na forma de um
casamento simbólico e visionário. Os famosos esponsais místicos, geralmente entre
uma freira e o seu confessor, que lhe é especialmente designado por Deus para a
tarefa de cuidar da sua alma. Temos também o exemplo de São Bernardo de Claraval,
que escreveu uma belíssima carta para sua amada Hermenengarda. A freira é um
símbolo da Igreja: a vida dela é especialmente litúrgica; é como uma verdadeira filha
da Igreja. O amor da freira por Cristo tem que ser de tal modo que imite o amor da
mulher do Cântico dos Cânticos; é assim que os Cantares costuma ser interpretado no
seu sentido místico – São João da Cruz e outros místicos são reconhecidos na literatura
universal pelos seus poemas eróticos. O amor de Cristo pela Igreja ou pela freira é
semelhante, em algum ponto, ao amor de Jacó por Raquel, ou de Sansão por Dalila, ou
de David por Bet-Sheba, que é o tipo de amor que expressa o Cântico dos Cânticos de
Salomão, posteriormente trabalhado pelos trovadores medievais, que fizeram uma
belíssima obra.

A minha sugestão é a de que, sendo o Amor um só, ele se manifesta no mundo de


diferentes modos, sendo o mais eminente e “natural” aquele em que o homem vê a
mulher como sendo a única mulher para ele, a mais bela do mundo. Essa é a imagem
do amor de Deus por Israel, também imitado simbolicamente naquelas graças mais
místicas, por assim dizer – e digo simbolicamente porque não acho que se possa
descrever experiências místicas em outros termos. O próprio amor entre o homem e a
mulher, no conjunto das suas manifestações de ordem psicofísica, é um símbolo
daquele Amor entre Deus e a Igreja, e também provém dele. Que outra fonte poderia
haver para esse amor, que liga duas pessoas de uma forma tão maravilhosa? A própria
ligação entre Deus e o homem é o Amor. E que ligação pode haver entre o homem e o
homem senão Deus, que é Amor? E esse amor pode se manifestar de muitas formas,
onde a mais clarividente me parece ser aquela em que um homem e uma mulher se
desejam ardentemente, de tal modo que não há oceano que apague esse fogo.

***Aqui já podemos começar a imaginar que podem existir variadas manifestações


desse Amor na vida das pessoas, e que nem todo mundo se une por puro amor
verdadeiro. Por outro lado, deve existir um sentido em haver diferentes manifestações
do mesmo Amor, cada uma servindo a um fim específico, sendo diferentes os dons
concedidos. Acredito que o amor seja um dom de Deus, abrangendo todo o composto
psicofísico do indivíduo, que participa do Amor com todo o seu ser. O amor se torna
clarividente para o amante quando ele vê a mulher amada. É esse o mesmo amor que
os místicos devem experimentar em um outro estado do ser. Acredito que a
experiência dos místicos seja a “melhor parte” do Amor, mas a experiência dos poetas
não o exclui, apenas enfatiza a parte menor. A diferença essencial é que o amor como
dom se refere a uma pessoa concreta do outro sexo que o sujeito encontra e ama. A
meu ver, esse é o arquétipo do Amor de Deus pela pessoa humana – não podemos
esquecer que “Deus amou Salomão”; ora, Deus não ama todo mundo? por que Ele
“amou Salomão”? Até Deus tem seus prediletos.

A mim me parece que esse amor possui a estrutura de uma vocação específica, quer
dizer, uma vez que se encontra a pessoa amada – e então nós passamos a amar desta
forma – aí nós concebemos uma estrutura do amor entre o homem e a mulher, e
fazemos isso baseando-nos na análise da própria intencionalidade do nosso desejo
pela pessoa amada, e nos perguntando por que que nós a sentimos e interpretamos de
modo diferente de como vemos qualquer outra pessoa. Ela é diferente porque ela nos
inspira o conhecimento dessa estrutura, ao passo que as outras não. O dom do amor é
uma inspiração. Nós nos empenhamos por aquela mulher, nos empenhamos em dar o
nosso melhor, a sermos sinceros, e nos entusiasmamos em descobri-la. Não fazemos
isso porque queremos, mas porque encontramos ali o nosso entusiasmo. Uma pessoa
pode estar mais ou menos comprometida com o amor. Alguém pode estar totalmente
comprometido com o amor, de modo que a relação amorosa se torna o seu principal
projeto de vida. A vocação matrimonial acontece “naturalmente” quando dois
amantes estão empenhados neste mesmo projeto de vida, que consiste no amor e
fidelidade mútuos. O amor é necessário para a vocação, o voto de fidelidade para a
realização desse projeto.

Por outro lado, podemos nos relacionar com quase qualquer mulher, pois sabemos
que 90% das mulheres tem tudo o que é preciso para agradar a qualquer homem. É
possível que tenhamos um projeto de vida a dois com quase qualquer pessoa, ainda
que não estejamos apaixonadas por ela, e esse projeto ainda pode ser melhor do que a
sua não-realização, pois também é uma obra que irá acrescentar algo ao indivíduo, à
sociedade, etc.. Isso é assim porque as leis do corpo e da alma são independentes das
leis do coração. No entanto, o fato é que não encontramos igual entusiasmo na relação
com as diferentes pessoas, ainda que sejam todas moralmente e espiritualmente
elevadas (e isso talvez nem conte muito). O que acontece é que pode acontecer de
encontramos nosso entusiasmo em alguma pessoa que consideramos a “certa”; e, às
vezes, todo nosso entusiasmo está em uma pessoa só, para o resto da vida, e aí essa é
a pessoa “certa”, e nenhuma outra poderá ter a mesma importância que ela. Nós não
escolhemos por quem nos apaixonamos; é possível gostar dessa mesma forma de
alguma outra pessoa? Não sei. Jacó parece ter amado mais a Raquel a sua vida toda,
ainda que Leá tenha sido igualmente bela (segundo uma tradição hebraica elas eram
gêmeas), e apesar de Leá ser favorecida por Deus na geração de filhos. Parece que o
ápice do nosso entusiasmo já está ali, não podemos ficar mais entusiasmados que isso
por qualquer outra coisa. O nosso maior prazer também está ali. Não podemos
conceber nada que seja melhor que isso. E pode ser que por isso mesmo nem
tentemos nos relacionar (com todo nosso ser) com outra pessoa. Será por termos
medo de ter que nos destruir e nos reconstruir novamente, como se fosse possível
alterar a nossa essência individual? Mas talvez nem seja possível deixar de amar quem
amamos. Será que é possível esquecer o amor se evitarmos lembrar da nossa amada,
se afastarmo-nos dela, indo para longe...? No entanto, quem pode garantir que ela não
vá continuar lá, na nossa memória, nos influenciando? E como vamos viver o amor
ignorando a sua causa? Mas eu acredito que existe um “verdadeiro amor” que não
pode ser apagado. Será uma ilusão? Se esse amor não é real, se não é o “eu mesmo”
que ama, então, o que é essa experiência? Ou o que seriamos nós mesmos? Creio que
menos que uma mentira. A experiência do amor também é a experiência de ser
alguma coisa: porque nEle é que somos, vivemos e existimos. Não é possível substituir
a mulher amada por alguma outra, a mulher realmente amada, ela é um símbolo vivo
do Eterno Amor, e sobrenatural. Sim, é verdade que podemos nos unir carnalmente
com quase qualquer outra pessoa, e ter uma vida mais ou menos feliz assim, (nem
todo mundo pode ser feliz assim), porém, só existe uma união verdadeira, e é aquela
com o verdadeiro amor. Por isso o amor parece-me ter a estrutura de uma vocação
específica nesse mundo: se eu não amar aquela pessoa para o resto da vida eu não
terei minha felicidade totalmente realizada. Mas nem todo mundo ama desse jeito.
Por outro lado, na minha experiência pessoal é assim. Isso é uma vocação no sentido
mais essencial, é “vocação” porque é eterno: eu sinto que vou amar essa mesma
pessoa desse mesmo jeito pela eternidade. Aí, o que eu mais quero é que nós
possamos nos unir no céu, onde não haverá medo nem insegurança. Essa vocação só
pode ser plenamente realizada quando aquela pessoa que amamos corresponde num
mesmo nível, como no caso de Heloísa e Abelardo, Romeu e Julieta, Lancelot e a
rainha, Tristão e Isolda, etc... Aí sim, aí “o amor é forte como a morte”.
Suponhamos agora que padeço de “amor não-correspondido” por uma pessoa; e
suponhamos que uma outra garota, bonita, demonstrasse interesse por mim; aí, talvez
eu fosse capaz de quere-la também, de até deseja-la, e de ficar com ela. Mas me
parece que nunca poderia querê-la pelo mesmo motivo que quero a mulher que
despertou em mim aquele amor que é “forte como a morte”. Eu posso querer alguma
outra mulher só porque ela tem certas qualidades que me atraem, porque é virtuosa, e
outras qualidades que tornam a vida ao lado dela mais agradável, menos dura, de
modo que nós poderíamos ser bons parceiros para o resto da vida, e construir uma
casa, uma boa obra juntos, ajudando-nos mutuamente. Não é por este motivo que eu
quero a “minha” amada, eu a quero porque é por ela que fui ferido de amor; com a
visão dela que fui arrebatado. Esta vontade não veio de mim, é só uma constatação de
minha parte: eu a amo. É claro que posso amar outras pessoas, outras mulheres, em
especial se são belas, mas não com este amor, e mais por causa da beleza ou da
virtude delas. Quando se tem este tipo de amor o que importa é o outro como um
todo, e nada mais importa; quando nos apaixonamos por qualquer outra pessoa que
não seja nossa amada, não parece haver nessa relação aquela ligação profunda e
especial que imaginamos ter com nossa amada, de modo que essa união mais parece
com uma amizade, uma espécie de parceria que encontra seus limites neste mundo,
no corpo material do casamento; nesse tipo de relacionamento, os nossos projetos e
sonhos estritamente de união amorosa são mais para este mundo do que para o outro.
Quando amamos alguém, queremos estar eternamente intimamente unidos a essa
pessoa por quem ela é; quer dizer, queremos estar eternamente no círculo da sua
intimidade. Para que essa união possa se realizar aqui na terra, é preciso que as duas
pessoas enxerguem esse amor da mesma forma, que elas olhem uma para a outra e se
desejem mutuamente da mesma forma, com este mesmo amor soberano. A união
consiste em SABER que o outro te ama do mesmo modo que o amas tu. Na terra, a
consciência dessa união não pode ser constante, mas deve acontecer em algum
momento. Se não acontecer, é porque há algum problema entre o casal. E se
acontecer, pode haver vários níveis de realização dessa união, quanto maior for o
amor e a consciência dele. Desejar ser íntimo de uma pessoa do sexo oposto é o
mesmo que deseja-la no Paraíso. Amar é uma imposição: você simplesmente admite
que o Paraíso sem ela não deve prestar. Mas o amor do amigo é querer uma pessoa
“do seu lado”, o amor conjugal é querer aquela pessoa “de frente”. Existem também
diferentes modos de desejar ver uma pessoa no Paraíso, tantos quantos os modos do
amor.

A forma do amor conjugal


“Ninguém pode servir a dois senhores”. Chamo de amor conjugal aquele amor entre
um homem e uma mulher que os leva a desejar ser para o outro e servi-lo de modo
exclusivo, dedicando-se a ele exclusivamente do modo que uma mulher pode se
dedicar a um homem e vice-versa. O ciúmes está necessariamente presente, seja de
modo patente ou latente, pois na relação exclusiva, tal como é a relação sexual, existe
um senso de propriedade, e o algo que me pertence ou que me é devido é aquilo que
o outro faz enquanto mulher ou varão. Isto é, minha mulher, enquanto age a partir da
sua sexualidade, pertence só a mim, só pode estar relacionada comigo, só pode se
dirigir a mim nesse sentido. Essa exclusividade faz parte da forma do relacionamento
conjugal.

Existe uma diferença entre o que a mulher é para um homem e o que ela é para o seu
homem. Para a mulher dos Cantares só existe um homem para ela – o seu homem – de
modo que as outras mulheres perguntam: o que tem o seu amado de diferente dos
outros? E ela responde que ele é em tudo mais agradável. E o amante diz: “como o lírio
entre os espinhos, assim é minha amiga entre as jovens.” (Ct 2,2). A mim, parece-me
que toda mulher é criada para um só homem, e vice-versa. É curioso que o próprio
escritor dos Cantares, se foi Salomão, ele mesmo teve 700 esposas, como que a provar
que essa mulher não existe. De qualquer modo, entre os humanos, parece-me que a
forma do amor perfeito é o amor conjugal, pois é aí que nossa natureza humana pode
encontrar sua plena realização.

A relação que uma pessoa tem com seu ente amado não é exteriormente diferente da
que ela pode ter com as outras pessoas; a diferença é interior. Reage-se integralmente
de uma forma diferente quando se trata do seu amado ou quando se trata de qualquer
outra pessoa. O significado das relações e das atitudes é que são diferentes. A “minha
mulher” é diferente de todas as outras mulheres porque ela é a única que é “minha”,
que me foi dada em casamento. Quando esse significado é aceito ele se reflete na
totalidade do ser da pessoa, e ela passa a interpretar seu conjuge de uma forma
diferente de como interpreta as outras pessoas do sexo oposto. Sente-se diferente
diante do seu marido ou de outro homem qualquer. Pode-se ter amigos do sexo
oposto, de verdade, mas se a esfera sexual adentrar esta relação de amizade ela será
manchada e correrá perigo. É por fraqueza que dois amigos se relacionam
sexualmente; se eles forem pessoas castas, sua amizade não se degradará na busca de
prazer. Mas, se eu estiver correto ao afirmar que o amor entre um homem e uma
mulher tem uma forma própria, e não é só uma amizade entre pessoas que se dão ao
prazer usufruindo do corpo do outro, mas que consiste realmente numa união de
almas individuais que permanecem voltadas uma para a outra enquanto se amam,
então temos que buscar essa forma própria do amor e diferenciá-la da amizade entre
homem e mulher.
A amizade entre um homem e uma mulher é arriscada porque a presença do sexo
oposto, em certas condições, gera dor e tensão, que se podem ser aliviadas por meio
do sexo. São os apetites concupiscível e irascível que movem o sujeito na direção da
relação sexual. Quando eu amo uma mulher, também são meus apetites que me
movem para o sexo com ela, mas o que eu quero não é o sexo e sim a união pessoal,
que ela seja “para mim”; por isso o sexo com ela é tão desejável. Por outro lado, é
triste o casal que não pode ter essa união mas que a busca no sexo. O sexo não efetiva
união nenhuma, mas a união no amor é “sexual”. Quando duas pessoas que se amam
fazem sexo elas estão fazendo o que o coração manda; a relação que elas tem é essa, é
sexual, ainda que não possam de fato fazer nada sexual uma com a outra. E essa
relação não depende de nada que não seja o sentimento de “propriedade” da outra
pessoa, de que somente ela se refere a mim enquanto mulher de modo que eu seja o
seu homem. Se dois corações se possuem mutuamente dessa forma eles se amam com
amor conjugal.

O amor conjugal, dessa forma, tem a finalidade de ser união eterna, e se sobrepõe à
finalidade biológica do sexo; também se sobrepõe à finalidade humana e religiosa do
sexo, que é a geração e educação dos filhos.

Acontece que, ao que parece, a coisa mais fácil que tem é as pessoas se enganarem
com relação a esse amor. Parece que raramente as pessoas se amam assim;
geralmente as pessoas vivem o amor conjugal apenas na sua estrutura material e
temporal, e não amam realmente seu conjuge com um amor que vem da eternidade. É
como se elas imitassem esse amor sem que realmente o vivessem na carne.

Significado do amor conjugal

"Seja bendita a tua fonte! Regozija-te com a mulher de tua juventude, corça de amor,
serva encantadora. Que sejas sempre embriagado com seus encantos e que seus
amores te embriaguem sem cessar!" (Provérbios 5, 18-19).

Significado do adultério

“Por que hás de te enamorar de uma alheia e abraçar o seio de uma estranha? Pois o
Senhor olha os caminhos dos homens e observa todas as suas veredas. O homem será
preso por suas próprias faltas e ligado com as cadeias de seu pecado. Perecerá por
falta de correção e se desviará pelo excesso de sua loucura.” (Pr. 5, 20-23).

“Porque os lábios da mulher alheia destilam mel; seu paladar é mais oleoso que o
azeite. No fim, porém, é amarga como o absinto, aguda como a espada de dois
gumes.” (Pr. 5, 2-3).
O adultério aqui aparece como um desvio do verdadeiro caminho ao coração. A
“mulher alheia” é pura sedução pelo prazer, pela promessa de prazer. Mas é um
prazer desconhecido, apenas imaginado, onde não há a busca de união. Desviar do
caminho é tomar o prazer como finalidade. A “mulher estranha” não tem identidade,
sua identidade não interessa, ela é desconhecida. A “mulher alheia” não é “minha
mulher”, não me oferece a si mesma, mas apenas convida ao prazer sem sentido. Ao
se desviar do caminho o homem necessariamente se prende nas redes enganadoras da
mulher alheia, quer dizer, do prazer sem sentido, do ciclo infinito de satisfação e
insatisfação que é repetidamente incitado, oferecido, loucamente percorrido, e
frustrado.

Só porque amamos alguém isso não significa que devemos empreender todos os
esforços para tê-la, para conquista-la, ou que devemos fazer tudo para ela e não nos
preocuparmos com mais nada. E, se já a temos, isso não quer dizer que só porque a
amamos mais que tudo nesse mundo devemos fazer tudo para agradá-la, etc.. O amor
não exclui a verdade. Mas não é por causa do nosso amor pelo outro que agimos como
idiotas, egoístas, e pessoas ruins e mal educadas, é por causa do nosso amor próprio. É
por causa do amor próprio que acreditamos dever preferir o que nos é próprio do que
aquilo que é verdadeiro; por isso o homem é mal juiz nas coisas justas. “... Não é nem a
nós mesmos e nem aos nossos próprios bens que devemos nos devotar se
pretendemos ser grandes, mas sim ao que é justo...” disse Platão (As Leis 732a). Não se
pode usar o amor como justificativa da injustiça que se pretende cometer, senão que é
o amor próprio a causa dela.

Teoria do amor não-correspondido

A meu ver, há duas atitudes possíveis com relação ao amor não correspondido: nós
podemos pensar que a outra pessoa não tem nada a ver conosco, isto é, que não há
nenhuma ligação essencial entre eu e ela, de modo que se ela ficar com outra pessoa
ela sai ganhando, e se eu ficar com outra pessoa eu saio perdendo; ou, de outro modo,
pode ser que nós tenhamos sim alguma ligação, alguma coisa a ver um com o outro, e
que eu, que estou amando, tenho um potencial mais elevado para fazê-la feliz, para
fazê-la vislumbrar o mistério do amor num nível mais elevado ou participar disso mais
conscientemente, de modo que se ela não conseguir prestar atenção em mim ela sai
perdendo, e se eu ficar com outra pessoa ela também perde algo, ainda que sem
saber, simplesmente porque não pôde ver o que é melhor, ou porque isso não lhe foi
dado.

Por exemplo, eu posso me apaixonar por outras mulheres, que também podem ser
muito bonitas, e também posso ficar encantado por elas; mas me parece que eu não
vou conseguir me dedicar a qualquer uma delas tão sinceramente como eu me
dedicaria à minha amada, isto é, pelo puro desejo de me unir a ela. No caso de ter que
ficar com outra mulher, teria que pensar em como construir um relacionamento
saudável, e assim teria que cultivar o relacionamento de forma mais ou menos
artificial, como se tivesse que descobrir também um modo de amá-la – nesse caso, o
amor evolui com o tempo; enquanto que com minha amada, tudo fluiria mais
naturalmente, já que é o próprio amor quem me move na direção dela, e não a sua
beleza. Se for assim, então é possível que outros homens gostem da minha amada de
um outro modo, por exemplo, porque ela é bonita, virtuosa, jeitosa, ou porque é fácil
ou conveniente, etc... e não porque simplesmente a viram e ficaram tomados de
paixão, tal como eu fiquei, só por ela e por nenhuma outra. E, seguindo essa hipótese,
teríamos então que ela estaria perdendo um bom amante para ter um outro sujeito
que não poderá amá-la com tanta força (apesar de talvez poder dar a ela outras coisas
que ela queira). Por outro lado, é possível que ela nunca nem se dê conta do que
perdeu, e, por isso, porque não almeja nada mais no amor, não sente que perdeu, e
continua feliz para o resto da vida com o que já tem, sem desejar mais nada, de modo
que o único que parece que perdeu alguma coisa fui eu, já que eu sempre sofro por
estar longe da pessoa amada.

Essa hipótese depende do que é que faz com que nós nos apaixonemos dessa forma.
Se o que nos faz nos apaixonar por outra pessoa é alguma coisa substancial, algo que
informa quem nós somos, então essa hipótese é válida. Nesse caso, a pessoa amada
estaria deixando de ver algo para ela precioso se desprezasse o amor do seu maior
amante; seria como no caso da Bela e a Fera: se a amada desprezar tal amante, não
conseguindo enxergar o príncipe que a espera por detrás das aparências, então ela
também terá perdido um grande amor. Mas, de qualquer modo, quem mais sofre é o
amante, porque sofrimento é amor.

Mas, se admitirmos que o motivo da paixão é algo acidental à nossa essência


individual, que não informa quem nós somos de verdade, e que é só um engano e
ilusão causada por fatores desconhecidos que nos influenciam desde fora, então aí
esse amor é como uma doença que atinge uma pessoa só, que a faz sofrer
irracionalmente, de modo que o amante nada tem a ver com a pessoa amada, que
continua vivendo sua vida sem nenhum problema. Nesse caso, a forma correta de se
relacionar seria buscando pessoas que estão dispostas a ter com você o mesmo que
você quer ter com elas, sem que para isso precisemos enxergar a nossa amada como
sendo a única no mundo para nós, mas, pelo contrário, admitindo que existem “muitos
peixes no mar” e que se não der certo com ela poderá aparecer uma outra depois, pela
qual também podemos nos apaixonar igualmente.

***

Ciúmes Vem do Latim ZELUMEN, de ZELUS, “desejo amoroso, ciúme, emulação”, do


Grego ZELOS, “zelo, ardor, ciúme”

O ciúmes é medo de perder o amor da pessoa amada? Essa definição me parece


superficial demais. O meu ciúmes se refere a tudo o que a minha mulher faz que não
pode ser interpretado por ela como tendo alguma coisa a ver comigo. Ciúmes é uma
manifestação do meu desejo de estar unido à minha mulher, e que se manifesta
quando há falta de união, quando eu não posso interpretar o que ela faz como tendo
algo a ver comigo, quando existe uma área na vida dela em que eu não posso entrar de
algum modo. Todo mundo que não está perfeitamente unido sente ciúmes. O ciúmes
não é ciúmes do corpo da minha mulher; mas no momento em que ela se entrega a
outro homem, isso significa que eu perdi o meu lugar na vida dela, que houve uma
separação radical, análoga à idolatria. Existe também uma ordem no amor, na relação
amorosa, onde cada coisa deve estar no seu devido lugar; se essa ordem é quebrada,
então temos o ciúmes, que manifesta o zelo do amante pelo relacionamento. A esposa
deve ser devota ao seu marido e vice-versa, tudo o que ela faz deve voltar e se referir a
ele de algum modo, ela deve fazer esse esforço de interpretação para que tudo na sua
vida tenha um lugar dentro da sua relação amorosa, e não fora; qualquer espaço
“fora” é um ambiente de risco para o relacionamento. Por exemplo, se o marido gosta
de apreciar arte, mas a sua esposa não, então ele pode apreciar a arte levando consigo
a sua esposa em espírito, se relacionando com ela enquanto contempla as obras de
arte – de modo que ele sempre vai saber como falar com a sua amada sobre a sua
relação com a arte –, ou ele pode excluí-la da sua apreciação das obras de arte
assumindo que “isso não tem nada a ver com ela” – e aí eles não irão nem tocar no
assunto; nesse último caso, o seu gosto por arte será um ponto fraco da relação, um
lugar onde ele pode se relacionar com outras pessoas como se fosse solteiro, pois
nesse âmbito o seu relacionamento não tem influência. A falta de esforço de
interpretar a vida no sentido da união com seu esposo/esposa é também falta desse
amor romântico. Se minha mulher não me conta o que está se passando com ela, ou o
que ela faz ou pensa, de um modo que revele que ela me levou em consideração, e
não conversa comigo sobre as coisas que ela faz na vida dela que ela considera
biograficamente relevantes, então aí eu sinto ciúmes dela, isto é, eu sinto um desejo
ardente de restaurar a comunhão naquela parte da relação aonde apareceu um
“buraco”.

O ciúmes é maior quando as pessoas se amam verdadeiramente, porque aí o ciúmes


não é simplesmente ciúmes do corpo do outro, de ver seu amado se deleitando no
corpo de outro, mas o ciúmes aqui é zelo pelo amor, é a tensão máxima entre o desejo
de ver seu amado lutar pelo seu amor e o medo desesperado de vê-lo cair e ceder às
tentações da carne e do mundo.

A diferença entre esse ciúmes de pessoas que se amam e o ciúmes que existe no
casamento ou entre pessoas que não se amam mas que possuem um contrato
conjugal é grande. O ciúmes entre pessoas só casadas, que não se amam
verdadeiramente, é um ciúmes do corpo e da honra, quer dizer, da autoimagem. Não é
um zelo pelo amor, mas ódio de quem o ofende, inveja de quem usurpa um privilégio
só seu, medo de ser envergonhado perante o mundo, orgulho ferido por ter o seu ego
quebrantado, medo e insegurança por ter perdido a sua identidade egoísta e
imaginária.

Tratado do Amor Cortês, de André Capelão, pg.129: “... o verdadeiro ciúme sempre
teme que seus serviços não bastem para conservar o amor da bem-amada, teme que o
amor dela seja menor que o dele, e imagina as torturas que sofreria se ela tivesse uma
ligação com outro amante, ao mesmo tempo em que considera ser isso inteiramente
impossível.”. – O homem que ama verdadeiramente deve fazer as seguintes
considerações: 1- meu amor vem de mim ou vem da minha amada? Nenhum dos dois,
ele só pode ser dom de Deus, ou então não é amor; então como eu posso temer
perder o amor da minha amada se não sou dono nem mesmo do amor que sinto por
ela? 2- Eu posso escolher amar ou desamar alguém? É certo que não. Então, como
posso esperar da minha amada que ela me ame ou que me ame tanto quanto eu a
amo? 3- Por que eu deveria me preocupar demasiadamente se minha amada está
sendo fiel ao amor que tem por mim? Saber que eu sou fiel a ela deveria ser o
suficiente. E, se ela é culpada, um dia se descobrirá, pois onde há amor verdadeiro não
pode haver falsidade, e quem sabe amar sabe farejar a mentira e o disfarce no outro;
se ela é culpada, então, eu já a perdôo, e, quando descobrir o que houve, sofro tudo
com paciência desejando que ela se arrepende e volte para mim que a amo. Não a
ofendo, antes a defendo de si mesma e dos outros, e a instigo a voltar para mim
porque a amo de verdade. Se eu pensar desse jeito, jamais serei desviado pelo ciúme.

A questão do ciúmes, que sempre existe entre verdadeiros amantes, a meu ver só
pode ser resolvida tendo em vista que só Deus sonda os corações e os conhece as
intenções do espírito humano. A confiança em Deus é fundamental para o união no
amor entre um homem e uma mulher. Se amo do fundo do coração, Deus o sabe, mas
se minha mulher me ama igualmente, eu não posso saber, só Deus sabe; portanto, se
minha mulher diz que me ama, só me resta acreditar nela e confiar que Deus dará a ela
corresponder o amor que me deu por ela, de modo que já basta que eu saiba que a
amo do fundo do coração. Não posso esperar que minha mulher me ame deste ou
daquele jeito, mas tenho que ter fé que Deus também quer que ela me ame como eu a
amo, se meu amor por ela veio mesmo só de Deus. Então, tendo fé em Deus, e no
amor que ele me deu por ela, acredito assim no amor dela por mim. Eu acredito no
amor dela por mim porque eu a amo com Deus no coração. Assim, se ela não me ama,
devo ter paciência e esperar; se ela me trair, não será pior para mim do que para ela:
devo ter paciência e tentar persuadi-la caridosamente de se arrepender do seu erro.
Em qualquer caso, quem ama mais não deve exigir mais amor, ao contrário, deve amar
mais, perdoar mais, e ser mais paciente e humilde; nunca ceder ao ódio, à irritação, ao
ciúmes, à inveja, mas sempre afastar pensamentos ruins e agir com simplicidade para
com a amada.

***

Hoje em dia, me parece que a sucessão dos eventos que levam ao casamento está algo
embaralhada. O beijo, que era para acontecer para selar a união, acontece apenas
para dar ocasião à essa mesma união, que ainda não aconteceu; o sexo, que era para
ser a consumação da união, aparece agora para ser motivo e inspiração para se
alcançar essa união. As coisas me parecem estar um pouco invertidas. Quando um
jovem namora muitas pessoas, e faz sexo com todas as pessoas que namora, o que ele
está fazendo afinal? Qual o sentido disso? A mim, me parece que ele está errando o
alvo. Não era para as pessoas estabelecerem a sua intimidade através do diálogo,
primeiro, para que daí elas fossem incitadas ao beijo carinhoso, ao beijo romântico, e
só mais tarde ao sexo? Isto é, quando os amantes estiverem se desejando
ardentemente, aí estarão prontos para um compromisso para a vida toda, certo? E o
que é o sexo fora dessa ordem? Parece-me ainda que hoje as pessoas são facilmente
levadas por momentos de grande excitação, que não significam nada de profundo,
mas que levam direto ao sexo. Mas se o sujeito só quer fazer sexo porque se sente
muito excitado, então o sexo para ele é só um balde de água fria no seu sofrimento
causado pela excitação. Não há aí uma confusão entre desejo sexual e amor? O amor é
maior que o desejo sexual, “o amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se
vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira
facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra
com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece;
mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará” (1 Cor
13:4-8).

Mas a união do casal não consiste no sexo. Parece-me que hoje o sexo funciona como
uma espécie de “abertura”, uma atitude que coloca o casal mais à vontade para se
relacionarem mais intimamente, criando uma disposição para a busca da intimidade
um do outro. O sexo não é mais a consumação daquele amor, ele é um instrumento
para tornar o relacionamento suportável e/ou para dar força e impulso ao
relacionamento. Funciona mais como uma alavanca. Os jovens não sabem mais se
relacionar, é por isso que precisam desesperadamente criar situações de êxtase para
poder sentir que estão ligando-se um ao outro. Mas o sentimento passa, e aquela
pessoa já não parece mais tão especial assim para você. Então começa tudo de novo.

É claro que há a quase total obscuridade em nossa cultura moderna sobre o “por que
eu deveria ‘esperar’ afinal de contas?”. A total obscuridade acerca da moral sexual,
que diz respeito a como tomar decisões felizes no relacionamento, e, por outro lado,
certa ideia dominante no ar de que o sexo é um prazer ao qual todo casal deve se
submeter, isso faz com que os jovens em geral prefiram arriscar uma relação sexual
mesmo sem saber se aquela pessoa é a “certa”, se ela vai ficar com você para o resto
da vida ou não. Daí, o tipo de namoro que existe hoje em dia praticamente já significa
que os namorados estão abertos ao relacionamento sexual um com o outro. Isso
significa que pessoas que tem dois ou três namorados tiveram uma relativa intimidade
com eles, porque mesmo se o amor deles tiver sido limitado, eles não podem ser
indiferentes ao que fizeram um com o outro; as nossas ações exercem grande
influencia na nossa psique; o sexo exige interpretação. O sujeito vai ter que interpretar
e saber contar para ele mesmo o que houve entre ele e aquela pessoa, e cada pessoa
com quem ele se relaciona irá deixar uma marca, um vazio. Se a pessoa repete esse
ato muitas vezes, ela se torna cada vez menos capaz de amar uma mesma pessoa
totalmente, com todo seu ser. Os seus parceiros/companheiros vão parecendo cada
vez menos “especiais”, e mais como todas as outras pessoas; daí as pessoas viram
“tipos”. E aí séries americanas como Two and a half Man e How I Met Your Mother
ficam bastante verossímeis, onde todo o enredo é baseado na premissa de que é
“normal” nos relacionarmos com o sexo oposto por “tentativas”, e podem assim
cativar a imaginação do publico jovem.

Para essas pessoas que não tiveram a experiência de serem tomadas de amor na
verdade, de se apaixonar por uma pessoa só para o resto da vida, assim, de repente,
como quem cai numa armadilha, para essas pessoas me parece que é muito ruim se
relacionar por “tentativas” tão irresponsavelmente ou inescrupulosamente, afinal,
estão se entregando a um risco não pouco grande, risco de se tornarem insensíveis
àquele amor mais alto e sublime.

Vocação para o amor

Tu és meu projeto de vida, minha querida! meu sonho é testemunhar tua vida, tuas
alegrias e tristezas, na saúde e na doença, e todos os momentos da tua vida; quero
estar junto a ti, dormir ao teu lado... ver-te levantar da cama, ao amanhecer o dia,
descabelada. Quero casar contigo, e ter filhos contigo; contemplar-te amamentando
meu filho, que saiu do teu ventre. Quero te servir, sendo homem para ti, trabalhando
para ti e nosso filho, e, principalmente, nas pequenas coisas, aquelas que são só para
ti: cozinhar, arrumar casa... Quero falar-te sobre as minhas coisas, e ouvir como foi o
teu dia, e interpretar contigo a nossa vida. Quero admirar tua vocação de perto, e que
tu admires a minha, e que a deseje para a eternidade. Quero que envelheças
contemplando tudo o que Deus te deu, e dizendo com Ele: “tudo isso é muito bom”.
Envelhecendo na idade, crescendo nas virtudes, na paciência, na humildade, na
tolerância... pacificando o espírito, perdoando as faltas, alcançando misericórdia...
sentindo gratidão ao contemplar toda a obra que Deus fez em nossas vidas... assim
quero passar o resto de meus dias ao teu lado, para encontrar-te depois no Paraíso do
Céu, e te agradecer por ter me dado teu favor, por ter me aceitado na tua vida, por ter
me dado uma família e ter cuidado dela fazendo-a crescer como uma árvore.

***

Nenhum poeta, me parece, jamais descreveu o objeto de seu amor. Ele ama a pessoa
inteira; ela toda. Cada gesto, feição, ação ou qualquer outro acidente da pessoa não
significa nada por si só, mas só despertam o encantamento porque são daquela
pessoa. Ela deixa sua marca por onde passa, deixa suas impressões em cada ação, em
cada objeto que toca. Esse objeto, agora, tem um valor especial, porque ela o tocou,
ela deixou ali uma parte de si, o objeto guarda a memória daquela que o tocou: há algo
dela ali. O mesmo com suas ações; as ações dela são carregadas de significado, de
intensões; elas expressam aquela pessoa que as exerce. A mão dela é especial, porque
é dela: ela também está na sua mão. Suas feições são reveladoras de sua essência,
refletida ali como num espelho. Seus olhos são a luz dos olhos de quem a ama, porque
neles nós enxergamos realmente, neles é que nós contemplamos as coisas que são. E
como descrever isso? Como podemos descrever a pessoa como tal, como ela mesma?
Como podemos descrever o seu “self”? Não há descrição que seja suficiente, mas
nenhuma descrição é necessária, pois quem vê já traz na alma o que deseja, e se já o
tem de algum modo, por que ir buscar isso fora dele mesmo? Assim, o poeta descreve
como a visão da pessoa amada causou nele um estado de pura perplexidade consigo
mesmo; como se os olhos dela tivessem iluminado uma parte essencial dele; como se
a mera visão dela o tornasse consciente do seu nada.

***

Não é possível ter o mesmo grau de intimidade com todas as pessoas. Seu interesse
por uma pessoa pode ser limitado, seu entusiasmo em conhece-la pode não vir, pode
não ser “acionado”: simplesmente não acontece nada. Nós podemos dar ocasião e
oportunidade para que as coisas aconteçam, mas se elas acontecem ou não dependem
de inúmeros fatores que estão longe de nosso controle e nosso conhecimento. Sendo
assim, é provável que não seja possível você ter o mesmo grau de intimidade com
qualquer pessoa com quem você possa se casar. É claro que o amor pode crescer ao
longo do relacionamento, toda vida humana é interessante e digna de ser conhecida,
mas essa diferença continua existindo: umas pessoas te interessam mais que outras,
de modo que é mais fácil alcançar uma intimidade maior com aquelas do que com
estas. Para mim, pessoalmente, eu posso ver que existiram pessoas por quem eu me
interessei bastante, e depois de um tempo, mais curto ou mais longo, eu acabei
desinteressando completamente da pessoa, de modo que não me via ligado a ela de
modo algum. O que houve? Parece que eu mudei, e considero que me tornei “maior”
do que eu era, e que aquelas pessoas não mudaram junto comigo; talvez nossa
conexão fosse fraca desde o início, talvez não fosse uma conexão “substancial” mas
apenas “acidental”, isto é, meras aparências nos uniam. Por outro lado, existem
aquelas pessoas pelas quais eu me interessei, e que me interesso cada vez mais, e que
me relaciono com elas a anos sem perder o entusiasmo e o espanto de vê-las. Uma
pessoa, entre essas, é especial para mim, porque nela eu encontro minha realização
pessoal: eu quero me relacionar com ela de tal modo que eu me torne essa pessoa que
“diz respeito a ela”; a minha pessoa se refere á pessoa dela; nós somos um. Isso se dá
por meio da contemplação amorosa: eu contemplo o “vir-a-ser” dela neste mundo,
aceitando-a e querendo-a, e é a ela que eu desejo “responder” com a minha vida. Eu
preciso conhece-la para ser eu. Sem ela eu sou como uma pessoa sem seus meios de
realização neste mundo. Como ser feliz? Se eu a ignoro, ignoro uma parte essencial de
mim mesmo; mas se não a posso ter, como ficarei? Creio que ficarei bem, porque o
que eu amo eu já possuo como Forma, já é “eu”; ainda que só tivesse visto minha
amada duas vezes na vida, como Dante Alighieri, ela continuaria comigo para sempre,
em mim, e eu nela. E aí só somos levados ao desespero pelo desejo do corpo de se unir
à ela, um desejo frustrado, antinatural, que é como que a condenação do próprio
corpo. (é o desejo do corpo de tomar o lugar da alma). Mas como o corpo e a alma
estão indissoluvelmente ligados, quando o corpo quer uma coisa, a alma também se
volta para essa coisa, assim como quando a alma quer se unir a alguém, o corpo
também deseja imitá-la. Dessa interação nasce o desejo sexual, um desejo irrealizável
nesse mundo, que só pode ser alcançado pela morte do corpo para si mesmo. Quando
o corpo estiver submetido à alma, a experiência que ele busca no exterior se
concretizará no seu interior, pois aí a alma terá liberdade para se unir com a outra
alma no seu exterior; porque aí o corpo se nutrirá da carne e do sangue do espírito, e a
alma será tão sensível quanto um coração, ao toque de outra alma.

***

O casal deve ter uma conexão mais profunda. Se essa conexão não vem
espontaneamente, de um modo que não precisa ser verbalizada, então temos que
fazer alguma coisa. O método é o marido se abrir para sua mulher e vice-versa; mas
essa “abertura” no diálogo não é só falar sobre o que você quiser, você tem que criar
uma interpretação da vida com sua esposa e contar para ela os seus projetos, como
você a vê, como você se vê, como vê o relacionamento. É esse o campo que cria
ocasião para uma conexão mais profunda. E isso exige algum esforço de artista, e
requer que se tenha algum interesse real na pessoa amada, que se dê à pessoa dela a
devida atenção curiosa e interessada, que se tente descobri-la com entusiasmo.
Quanto maior o desejo, maior o medo e insegurança – é preciso virtude no
relacionamento amoroso

Ainda que eu namore a pessoa que amo, nesse mundo, haverá o medo e a insegurança
para contorcer minha alma. Se não a tenho, é como vencer uma guerra sem precisar
lutar, porque morro só no desejo não atendido. Se eu a tenho, o meu desejo pode se
realizar, meio imperfeitamente, mas ganho em troca medo de perde-la, (ela pode se
apaixonar por qualquer outro, e parece que sempre vai haver ocasião para isso), medo
de não ser suficiente para ela, de não poder contentá-la, de não ser interessante para
ela; e aí vem a insegurança: quem eu devo ser? o que devo fazer? será que eu posso
dizer isso ou fazer aquilo? Ela ainda gosta de mim? Eu posso fazê-la feliz?...

Quando o amor é mais arrebatador, o desejo fica muito intenso e a união íntima se
torna mais urgente; sofre-se mais. Se o amor não é único, especial, a pessoa fica mais
paciente para conhecer o seu parceiro, e menos exigente, menos ansioso, porque
sofre menos. Mas quando o amor é mais intenso, a busca pela fusão das almas é
prioridade para a pessoa; ela precisa que o outro conheça seu amor, e deseja conhecer
profundamente aquele a quem ama, e se sentir conectado a ele de verdade.

Matrimônio

O matrimônio existe porque reflete certo atributo divino; este é o fundamento do


matrimônio. As pessoas casam porque até a Encarnação do Verbo essa era a forma
mais perfeita conhecida de se viver à imagem de Deus. Por isso o casamento sempre
existiu, mesmo com imperfeições, porque o homem foi feito à imagem e semelhança
de Deus, mesmo que tenha pecado.

No início, Deus fez um homem e uma mulher; poderia ter feito vários casais, não Lhe
pareceu justo. Parece que a Terra foi feita para Adão e Eva, não no tempo, mas na
eternidade: era para continuar assim mesmo. Isso é um Arquétipo. Só existe um Adão
e uma Eva, e todo mundo que se propõe a imitar o ato de procriar iniciado por estes
dois, deverá ser também um outro Adão e uma outra Eva, “carne da minha carne e
ossos dos meus ossos”: inseparáveis na carne. É a carne que pertence à outra carne.
Desde então, todo homem e mulher que se casa se unem na carne, fazendo memória
da Criação, como um sinal, como quem diz: “ela também é carne da minha carne e
ossos de meus ossos”. O matrimônio renova sacramentalmente e revela aquele ato da
criação do homem, quando Deus cria o homem como varão e mulher, proclamando
que “não é bom que o homem fique só”.

Deus cria o homem; o homem atualiza o matrimônio; Deus abençoa o matrimônio.

Ora, Deus só fez de Adão uma única Eva; isso significa que só é possível contrair um
matrimônio: a costela que foi retirada não pode ser reposta, a Eva que foi feita não
pode ser desfeita. Do mesmo modo, não se retirou de Adão outra costela, portanto,
nunca houve uma segunda Eva, e, mesmo se houvesse outra mulher, não seria de
Adão, seria uma estranha.

O matrimônio é o âmbito da intimidade entre um homem e uma mulher.

A relação entre marido e mulher, por ser íntima, exige fidelidade mútua. A palavra
fides designava, nos primórdios da língua latina, a "adesão [do devoto aos preceitos de
sua religião]". Ou seja, o matrimônio é uma missão que se toma para si de servir o
outro de livre e espontânea vontade. É um voto de escravidão perpétua. Agora o seu
corpo pertence à sua esposa e você deve servir só a ela enquanto varão. É por isso que
os Apóstolos disseram: “se for assim não vale a pena casar”, porque aparentemente
não há vantagem alguma em alguém se prender a outra pessoa dessa forma, de modo
que seria melhor se unir a pessoa sem casar e assim poder permanecer livre. Por outro
lado, a Bíblia chama o sexo fora do casamento de “prostituição”, a virgem deve
esperar até o casamento.

O que leva as pessoas a se casarem é um projeto ou desejo de ter um projeto de vida


em comum com a outra pessoa do sexo oposto. O matrimônio é antes de tudo um
projeto de vida unificado de um homem com uma mulher; não qualquer tipo de
projeto, mas aquele fundamentado no encontro sexual – se não há relação sexual não
há necessidade nenhuma de se falar em casamento. É importante notar que esse
projeto sempre inclui a possibilidade de ter filhos, porque ainda que o casal seja estéril
o ato sexual continua sendo o caminho natural para a geração de filhos, o que significa
que todo esse projeto já inclui automaticamente a estrutura da família. Ou seja, esse
projeto já tem a estrutura de uma família; quando esse projeto é baseado em votos de
amor e fidelidade, temos aí o que chamamos de matrimônio.

A moral sexual

No fundo, a moral sexual me parece um mistério. O sexo é tratado como algo sagrado.
O mandamento de que não se pode fazer sexo fora do casamento, que só no âmbito
do matrimônio o sexo pode ser feito dignamente, de alguma forma exalta o ato sexual.
Não é uma atividade humana comum, não há exceções a essa regra. Sexo fora do
casamento é adultério ou prostituição, não importa o motivo. Aliás, parece que há
uma exceção: quando se pensa estar casado, mas depois se anula o casamento, o esse
adultério não é contado como adultério. É uma atividade que o homem só pode fazer
dentro de certa estrutura, estabelecida de comum acordo entre o casal. E por que? por
causa da possibilidade de ter filhos? isso uma simples operação sirúrgica daria jeito;
mas só se pode fazer sexo para ter filhos? Não, pois a pessoa estéril também pode
fazer sexo com seu conjuge.

E o que é o sexo? no que consiste? Atrito entre as partes sexuais do corpo. Só? Prazer.
O prazer está no ato sexual? Não, é só um efeito colateral dele. O sexo envolve a
pessoa amada. Amor, em primeiro lugar, é amor àquela pessoa do sexo oposto que se
deseja tomar para si. Sexo envolve amor, é o lugar onde se desfruta o amor. Aonde?
na intimidade; o sexo é íntimo, deve ser desfrutado de modo íntimo, na intimidade do
lar, entre pessoas que se amam. Mas podemos amar várias pessoas. Só podemos
desfrutar desse amor com uma pessoa. E se deixarmos de amar essa pessoa? Uma vez
casado, não se pode deixar de amá-la, e se deixar de amá-la, isso é uma falta, e
casando-se de novo se cometerá uma falta em cima da outra. Por que só podemos
desfrutar do amor com uma pessoa só até a morte? Uma promessa? E por que
prometemos isso? Por que isso deve ser prometido? Porque só se pode fazer sexo
dentro do casamento, porque essa é a Lei. É a Revelação; é assim porque é assim: sexo
no casamento – fora dele não. Deus também é assim, desfrutando o amor com Sua
Esposa, perfeita, sem mancha, e nada existe fora dessa união mística. O casamento foi
feito à imagem do Paraíso Terrestre; nele o homem é servido pelos Prazeres; a vida é
gozo, não padecimento, e toda ação é sem esforço, porque é livre. Faz-se a promessa
porque se reconhece a imagem de Deus no matrimônio, e realiza-se o matrimônio só
para se lembrar de Deus.

Mas por que deve-se fazer a promessa, por que não se pode não fazer a promessa e se
unir mesmo assim? Por que a Lei diz que o lugar do sexo é no casamento? Ora, já está
respondido, é porque Deus é assim, e se se faz sexo fora do casamento não está se
fazendo nada de bom, porque Deus é a Bondade, ou seja, nada de Deus está nessa
atitude.

Eu disse que o sexo era o desfrute do amor erótico, mas o nós não casamos por amor,
nós casamos por conveniências. E esse casamento tem que dar certo. No entanto, nós
não escolhemos nossos amores, e parece que quanto maior o amor, maior o desejo, e
maior prazer nos dá o ato sexual.

O prazer do sexo também tem a ver com a beleza. As mulheres muito belas dão mais
prazer sensual aos homens, e os homens mais viris e atraentes dão mais prazer às
mulheres. No entanto, também podemos amar de todo nosso coração uma mulher
que não seja tida como uma das mais belas na sociedade, ou para os padrões de
beleza da época e lugar. Mas dificilmente amaremos assim uma pessoa feia, porque
ela não nos dá prazer sensual nenhum. Mas a mulher que amamos de todo o coração
nos dá o maior prazer sensual que podemos ter, e só de olhá-la o nosso corpo treme
de desejo. Porém, isso não acontece com todo mundo. De todas as mulheres que tem
potencial de satisfazer as nossas sensualidades, existem àquelas que atendem melhor
as nossas necessidades e desejos sentimentais e psíquicos, e são essas que os homens
comumente procuram para casar. Mas existe um caso especial, em que ao ver a
mulher o amor desperta como dum sono, como se já estivesse ali o tempo todo, e
como se fosse uma sentença irrevogável do destino, independente de tudo o mais – e
dependente de quê não se sabe.

Independentemente do amor ou do prazer, o lugar do sexo é no casamento, e o


casamento é com qualquer um que possa fazer sexo. Ora, eu só posso casar com uma
pessoa, e com qualquer uma, mas posso amar várias, de modo que o prazer de estar
com outra mulher pode ser maior que o prazer de estar com a minha mulher, o que
pode me fazer desejar outra mulher. Posso até mesmo me arrepender de ter casado,
pode ser que tenha casado cedo demais; será que eu tinha já maturidade para
entender a promessa que fiz? Será que eu podia prometer amar alguém que eu mal
conhecia? E, além disso, também posso simplesmente deixar de ter qualquer prazer
com a pessoa com a qual eu casei. Tudo isso nada muda o fato do casamento, e o sexo
fora do casamento continua sendo uma estultice. Logo, não se casa por amor, porque
o amor pode mudar, mas também não se casa sem amor, como se fosse um
desesperado da felicidade.

No entanto, me parece que a felicidade suprema é se unir sexualmente com aquela


única pessoa que se ama com todo o coração, que é chamado o verdadeiro amor,
porque só acontece uma vez na vida. Essa é a felicidade suprema porque o amor é o
maior amor, extremamente intenso e doloroso, e, daí, o prazer do sexo é quase
místico, como se a carne se dissolvesse no êxtase da intimidade. Assim, a felicidade
suprema não está no casamento, e sim na união íntima com a pessoa amada; mas,
nesse mundo, essa união se manifesta no sexo. Portanto, é feliz quem ama, mas só
usufrui dessa felicidade quem dorme com a pessoa amada conhecendo-a, e só
podendo provar dela por um instante. E, para manter essa felicidade, o casamento é
inútil, pois, se os amantes são livres, se não há intervenção da sociedade, então eles
são felizes sem precisarem se casar, e podem até usufruir dessa felicidade livremente,
transformando a dor física de estarem longe um do outro no prazer da união sexual.

Se eu soubesse que a mulher que eu amo me ama do mesmo modo como eu amo ela,
então eu já me consideraria unido a ela, e só desejaria ela, e nunca desejaria ofendê-la
fazendo sexo com outra mulher, mesmo escondido, o que consideraria uma traição,
pois esse amor é ciumento, de modo que eu não poderia fazer com o outro o que não
gostaria que fizessem comigo, e eu não gostaria que ela fizesse sexo com nenhum
outro, e que pertencesse só a mim de todo o coração, como eu a ela. Ora, esse amor e
essa união não dependem do casamento para existir. O casamento em si não tem nada
a ver com a felicidade.

Mas é possível ter prazer também com outras mulheres, porque o prazer depende da
beleza das formas, e todo mundo ama o que é belo. Portanto, pode-se ter prazer com
uma mulher porque ela é bonita, ainda mais porque é bonita e virtuosa, com bom
temperamento e bela personalidade. Mas esse prazer não será igual ao prazer daquela
outra união amorosa; esse prazer vem do amor da beleza, mas o outro vem de um
amor misterioso e dominante – não se sabe como esse amor vem nem porque
acontece. Uma coisa é viver a intimidade do sexo com uma pessoa porque ela é
bonita, outra é viver a intimidade do sexo com a pessoa porque você sente que
pertence a ela. A diferença é análoga a que existe entre as casas: existem até casas
melhores que a minha, mas eu só me sinto bem na minha própria casa. Ou seja, “isso”
é melhor porque me pertence. E, se uma pessoa nasce para a felicidade sua e dos
outros, poderá ela nascer também para a felicidade de alguém em especial? O que
significa esse sentimento? Engano? ilusão? orgulho? forças psíquicas em movimento?
É um vício? uma doença do coração? Ora, de todas as pessoas que amaram assim,
nenhum testemunho chegou até mim de alguém que tenha abominado este
sentimento tendo-o por mal, por mais doloroso que fosse; se se apega a este
sentimento é justamente porque ele parece trazer o anúncio da felicidade. Assim, só
se encontra a paz na intimidade com aquela pessoa (um jardim fechado), e o desfrute
do corpo dela é o paraíso (superlativo de prazer).

Acontece que Deus aceita qualquer casamento, sendo que o casamento é um só até a
morte. Ora, podemos assumir que, quanto mais forte o amor no casamento, melhor
será; por outro lado, o casamento não parece ter sido feito para o amor, e sim para o
serviço. Mas o sexo serve ao amor, não ao casamento, de modo que é melhor casar
com quem se ama. Assim, casamento não depende de amor ou felicidade, mas é em si
mesmo serviço. Se a Lei ordena que o sexo deve ser feito dentro do casamento, então
o casamento deve ser também o lugar do amor, de modo que as pessoas que se
casaram devem se amar-se mutuamente; mas esse amor pode ser maior ou menos
sem prejuízo do casamento. E se se ama alguém fora do casamento, não se pode
deseja-la para si; mas se esse amor for o amor de que falei, como não se pode desejar
a outra pessoa, se o sentimento é de que ela é a única que te pertence? (ou a única
pessoa a qual pertence o seu amor). A resposta me parece ser que somos mais
adúlteros do que pensamos.

-//-
Existe um arquétipo geral para a felicidade: é a união do esposo com a esposa amada.
É daí que vem a felicidade, e ela consiste em viver essa união no amor com consciência
total.

-//-

Existe desejo sexual, mas existe desejo amoroso? Ou seja, eu posso desejar alguém? O
que seria desejar uma outra pessoa? O que em mim pode recebe-la e como?

Não é possível desejar uma pessoa, é possível desejar, claro, que uma pessoa faça algo
ou seja algo ou te dê algo, mas não desejar ela mesma. Só Deus pode “receber” uma
pessoa, como, por exemplo, elevando-a a uma ordem superior de existência. Eu posso
desejar também que a pessoa exista (na medida em que a conheço), e, quando faço
isso, estou de certa forma imitando o próprio Deus que a criou e a conhece. Mas
quando eu desejo a existência do outro, nesse sentido pessoal, e não num sentido
abstrato e genérico, eu o desejo na minha própria vida, que ele exista para mim, tal
como Deus deseja que o homem exista para Ele. Quando isso acontece, não posso dar
outro nome a esse desejo senão amor.

Se é assim, então quando digo que amo alguém, apaixonadamente, isso não significa
que a desejo para mim, mas que com ela eu me encontro num estado evidente de
amor. Daí, o que eu passo a desejar não é a pessoa, mas uma relação com ela (é difícil
eu desejar que uma pessoa exista e não querer nada com ela ao mesmo tempo); o
objeto de desejo, do qual tenho uma imagem, é a relação com aquela pessoa. A
imagem que eu crio dessa relação terá uma forma, e eu devo aperfeiçoar essa forma
na medida em que eu busco descobrir e conhecer a finalidade última da relação que é
esse estado em que sei que amo e sei que sou amado por esta pessoa concreta. A
estrutura geral da nossa relação, que deve ser descoberta por nós dois (para se chegar
à plenitude do amor mútuo), é dada pela própria estrutura geral da nossa
individualidade. Eu te amo porque sou eu e quero que você corresponda a esse amor.
Essa estrutura nós a preenchemos sempre com vida divina: imperfeitamente neste
mundo, mas perfeitamente no outro.

Mas a expressão “eu te amo” é ambígua; geralmente amor aqui significa desejo de
algo. Essa expressão tem outra complexidade: amor é algo que se padece, e não uma
ação, de modo que “eu te amo” significa “eu sofro de amor por você”; mas, então,
quem é que faz ou exerce o amor? Ninguém exerce amor sobre ninguém. Nem a
beleza nem o prazer nem nenhum objeto de desejo causa amor no sentido de desejar
a existência do outro numa relação íntima consigo mesmo. Eu sei bem quando eu
desejo uma relação por alguma intensão diversa e quando eu desejo uma relação
porque ela me torna melhor, porque enriquece a minha vida, a minha existência.

Então, qual é a finalidade dessa relação com outra pessoa? A finalidade de uma
relação interpessoal é, em última análise, um enriquecer a vida do outro, de modo que
os dois venham a ter uma forma de existência superior. E o que é que me diz que
forma de existência é superior, e quais relações vão tornar a minha vida mais feliz,
mais plena, mais brilhante? É a própria Bondade, o fim último a que leva todo e
qualquer desejo, se ele for retamente direcionado.

Então, o que causa o amor é uma espécie de conhecimento do Bem. Daí, a expressão
“eu te amo” é um reconhecimento de um bem possível que pode vir a se realizar
mediante a efetivação de uma relação mútua de certo tipo; significa que, conhecendo
esse bem específico dessa forma de relação, o indivíduo entrou no âmbito do amor:
ele está amando. Amor é uma experiência, um modo de sentir e de ver a relação com
o outro; ele não acontece por qualquer bem, nem para qualquer um, ou em qualquer
circunstância. Aparentemente, ninguém sabe as causas do amor – talvez por ser algo
bastante individual e pessoal. Por que eu amei aquela mulher e não qualquer outra?
alguém já respondeu a essa pergunta?

O amor como que tem uma relação ambígua com o Bem: ora eles estão juntos, ora
parece que o amor está ausente. Mas, por detrás da aparência do amor, nós podemos
reconhecer um princípio que sempre leva à realização plena do bem possível daquela
relação. O que eu chamo de “aparência” do amor é a sua experiência total, incluindo
todo o organismo psico-físico; ou seja, o amor mesmo não depende dessa experiência
para existir, e para que o sujeito participe dele. Daí, sempre que nós preferimos o Bem
a qualquer outra coisa, nós amamos do mesmo jeito, tendo ou não aquela experiência
total do amor.

Quando nós temos a experiência total do amor nós podemos criar uma imagem dele.
Ora, como essa experiência quase sempre acontece quando amamos uma pessoa
concreta do sexo oposto, é aí que ele assume uma forma, a forma da relação
interpessoal, e é passível de ser imaginado. Dessa imagem, nós podemos fazer um
símbolo do amor, que nos lembra de uma existência superior para a qual fomos feitos
e não deixa que nos acomodemos à vida que levamos agora.

Amor, como experiência total, só pode ser um modo humano de experimentar o amor
divino, sendo, portanto, imagem do Amor. É essa imagem do Amor que no Cântico dos
Cânticos representa o amor da alma à Deus; também é essa imagem do Amor que
representa a aliança de Deus com o homem no símbolo do matrimônio. Assim, do
mesmo modo, o amor que nós temos por qualquer coisa é reflexo do amor de Deus
por nós, na medida em que nós amamos por causa do Bem, e em que o Bem é bom
para nós por causa da nossa própria natureza criada por Deus. Ou seja, nós amamos na
medida em que o Deus que nos criou nos ama, e por causa disso; ou, dito de outro
modo, nós amamos na medida em que conhecemos e desejamos o Bem para o qual
fomos feitos. O amor humano, se é verdadeiro amor, é uma correspondência do amor
divino: note que isso é um fato, a gente não pode amar porque a gente quer, é algo
que nos acontece, do qual participamos, e não podemos controlar. Nessa perspectiva,
a única escolha que você tem é se você quer ficar do lado de Deus ou contra Deus; ou
seja, o ódio aqui é não só a ausência da experiência psico-física do amor, mas uma
espécie de cegueira voluntária do amor como princípio. Se o amor é amor do Bem, o
ódio é o que não leva a realização de bem nenhum, ou o que impede a realização de
algum bem. Todo mundo ama, todo mundo sabe que vida é boa ou má para si mesmo.

Para algumas pessoas (ou muitas, não sei) existe a experiência de quando todo seu
organismo psicofísico é como que absorvido no amor (amor por uma pessoa concreta),
levando-a a um estado de êxtase amoroso onde a ordem superior do amor pode ser
contemplada através do seu mesmo organismo psicofísico que participa desse amor
numa outra ordem. Essa experiência “natural” de êxtase amoroso acontece no âmbito
da relação sexual, entre duas pessoas do sexo oposto que se amam. Talvez isso possa
ser chamado de “amor natural”, já que é pela sensualidade da relação sexual que ele é
evocado e assumido pelo indivíduo. Primeiro, na relação sexual, o indivíduo ama sem
entender, depois ele entende que ama (sendo o ato sexual como que a liturgia do
amor na ordem natural), e só depois ele pode amar de verdade. Amar é entender o
que acontece na relação sexual, é voltar sua atenção à finalidade do ato e não se deter
apenas no mundo das sensações. Se o indivíduo reflete sobre isso, ele deve parar de
fazer sexo como um animal e passar a fazer sexo como ser humano.

Assim, é normal que o mero desejo sexual seja tido pela maior parte das pessoas como
verdadeiro amor; todo desejo sexual tem algo de amor, que é o amor de Deus gravado
na ordem física, e nesse sentido os animais também amam os seus pares, é claro. Mas
o amor para o ser humano também naturalmente inclui um componente de
autodoação na relação, e por isso é comum as pessoas dizerem que sós e aprende a
amar depois do casamento, porque é só aí que as pessoas terão ocasião de amar de
verdade. Mas se o desejo sexual for compreendido como amor e integrado num
projeto de vida humano, então aí nós podemos chamar isso de amor; e se há
correspondência, então temos um relacionamento amoroso autêntico.

A forma do matrimônio

A finalidade do relacionamento amoroso é a geração de filhos.

Quando você reconhece sua esposa como digna de te dar um filho, olha nos olhos dela
e diz: “eu quero um filho teu”, que significa dizer “eu desejo que Deus faça em você
uma nova criatura, porque você é bela, e esse seria um bem extremo para nós”; e, do
mesmo modo, quando a esposa reconhece seu esposo como digno de lhe dar um filho,
e ela o aceita com um beijo e um abraço, é como se dissesse: “se for você que vai me
dar um filho, então eu o recebo como que de Deus, e abraço assim o seu propósito,
desejando essa criança, para que a Bondade d’Ele se realize por meio de mim”.

Quando numa bela alma você deseja que uma nova vida seja gerada, é aí que o amor
se manifesta com toda sua força. (Aonde eu encontrarei essa bela alma?).

Uma vez gerada a prole, agora o mesmo amor pode se manifestar no nível do
relacionamento: essa criança deve ser sustentada e educada para crescer um bom ser
humano: o bem deve continuar a ser desejado e gerado na beleza do relacionamento.

Para isso é preciso que o indivíduo se esforce para elevar sua mente à contemplação
da beleza da alma do outro – o que não acontece de qualquer modo ou em qualquer
circunstância –, isto é, sem alguma virtude a alma do sujeito é incapaz de amar nesse
sentido espiritual, e, por outro lado, é preciso uma certa base material e psíquica para
que os indivíduos possam projetar um relacionamento amoroso que se fundamente
nesse amor; assim, se a forma do relacionamento amoroso for dada por esse amor
ideal, então o casamento terá a finalidade de trazer a Bondade para o mundo por meio
do amor mútuo e fidelidade a esse amor.

Ora, se a estrutura do casamento se baseia na forma desse amor, então tudo aquilo
que se opõe a essa forma, ou que deforma essa estrutura, é contrário ao verdadeiro
casamento; e mais: a forma do casamento deve ser de acordo com sua finalidade. Ora,
se amar é desejar gerar o bem no belo, então a finalidade do matrimônio é a geração
desse bem; e isto, na sua plena manifestação terrestre, significa a geração de filhos.
Então, por exemplo, sabendo que o varão não pode carregar em si um filho, é loucura
que outro varão possa desejar que um filho seja gerado no primeiro, de modo que
esse tipo de relacionamento não corresponde à finalidade do casamento. Ou, por
exemplo, se um homem amar duas mulheres, mas haver ciúmes entre elas, uma irá
querer destruir o relacionamento da outra (e, talvez, com razão), de modo que isso
também é contrário ao casamento e ao verdadeiro amor. Mas se o ciúmes for inerente
ao amor, o que poderemos provar em outra ocasião, então nem varão nem mulher
poderão ter mais de um parceiro, pois somente poderá haver amor aonde houver
ciúmes, mas aonde há ciúmes não poderá haver mais de um parceiro sem que se
destrua o amor. Não é o ciúmes que destrói o amor; o ciúmes, pelo contrário, protege
o amor na medida em que procura afastar aquilo que ameaça esse amor; o que destrói
o amor é o ódio, ou seja, é a sufocação desse amor pela desconfiança, pela inimizade,
pela competição, pela dignidade ferida, pelas feridas sentimentais, etc...

Alimentar o relacionamento amoroso é alimentar esse amor de gerar o bem no belo


em todas as áreas da vida do casal, é isso que faz um casal, que forma o casamento. Se
não há amor não pode haver casamento – que bem ele poderia trazer para o mundo?
O amor erótico, que se revela na criação dos corpos feminino e masculino, é o que dá a
forma ao verdadeiro matrimônio. É essa a imagem que nos é dada do amor de Deus
pela Igreja.

Um varão pode desejar ter filho com muitas mulheres; mas, na prática, um
relacionamento saudável só vai poder acontecer se ele abdicar de todas as outras para
ficar com uma só. Isso é assim porque o desejo de ter todas as mulheres é apenas
desejo de novidades, e não um desejo de alguma coisa substancial. Na sua busca de
repousar na beleza, o varão pode se perder na multiplicidade das formas femininas; se
ele tiver uma mulher só, ele pode se esforçar para se concentrar só nela: ele não se
contentará com a visão daquela bela figura unicamente, então ele terá que voltar sua
vista para a contemplação das coisas eternas, da própria Beleza. Se ele assim o fizer,
abdicando de olhar para todas as outras belas e atrativas figuras femininas em toda a
sua diversidade, ele não terá perdido nada (já que a rebeldia dos olhos não tem
sentido e só visa mesmo à degradadora diversão da psique), pelo contrário, encontrará
desse modo a paz interior necessária para a estabilidade do relacionamento, além de
que terá o seu sofrimento atenuado toda vez que, olhando para uma bela mulher, sua
alma se lembrar da verdadeira Beleza, pois ele já estará suficientemente acostumado à
contemplação da verdadeira Beleza a ponto de não confundí-la com uma mera figura
temporal da mesma. Assim, por meio da concentração e elevação da sua vista, o varão
pode alcançar uma felicidade profícua, ao contrário daquela outra felicidade estéril de
alguns homens que, por uma artimanha do destino, têm a sorte ou o azar de terem
grande facilidade em se relacionarem intimamente com mulheres de todo tipo, e que
acabam gozando da intimidade de muitas, sucessivamente, durante o tempo que lhe
for permitida toda essa experimentação.

Nessa perspectiva, podemos também ver que “conhecer” a mulher do próximo


significa roubar dele toda a confiança que ele tinha na própria mulher e na qual ele se
apoiava para poder se elevar espiritualmente até esse desejo de gerar o Bem na Beleza
do relacionamento. Se o relacionamento está comprometido pela desconfiança, então
está rompida a ligação material onde se apoiava o amor: sem o amor, não há mais o
desejo de gerar o Bem no Belo, e o relacionamento vira um deserto árido (quente e
seco): a forma sólida do relacionamento perde a dinâmica da atração mútua e se torna
quebradiço, deteriorando-se pelos leves atritos do casal; e a atração sexual continua a
mesma, só que se torna mais animal, sem aquela adaptabilidade mútua dos espíritos
que se buscam acomodar um no outro. É por isso que Jesus revelou ao vidente de
Kibeho que adultério é roubo.

Voltando ao assunto principal, acontece que, me parece, é mais fácil nos acontecer
esse amor com relação a algumas pessoas que com outras; e, às vezes, há uma só
pessoa que, até ao final da nossa vida, passa a encarnar o próprio símbolo da
feminilidade ou masculinidade para nós, de modo que essa pessoa se torna
maximamente atraente para os espíritos sensíveis à contemplação do Belo. A relação
com essa pessoa é vista como um grande bem, e o desejo por ter isso é quase
insuportável, porque é com ela que se deseja frutificar; sem ela o mundo perde a
graça, e ter as coisas já não significa nada: fora do amor não há nada para se desejar.
Mas eu não sei se isso acontece por uma conjunção de fatores acidentais ou se é uma
espécie de identificação íntima com aquilo que a forma total da vida daquela pessoa
representa para mim, ou se é alguma outra coisa. O certo é que por meio daquela
pessoa Deus nos trouxe a experiência do amor num nível diferenciado.

Ainda sobre o Matrimônio

O casamento é um ato da livre vontade, é uma escolha, uma decisão, e, por isso, um
sacrifício: a restrição voluntária de todas as outras possibilidades; e isso é necessário
para que haja ação e movimento, isto é, caridade de fato e não apenas amor teórico.

De fato, pode-se amar todas as mulheres, mas consumar este amor somente com
uma, sob o risco de cair em prostituição. Na verdade, não ama-se todas as mulheres,
mas ama-se a Mulher que cada uma delas representa; ou, então, ama-se todas as
pessoas.

Existe uma grande diferença em se dormir com a “sua” mulher e com “uma” mulher...
Dormi com uma mulher: “que belo corpo com o qual me deleitei; mas quem é esta
pessoa que está aqui do meu lado?” A relação com o “eu” dela é fria.

A relação “carnal” é uma relação de pura dependência afetiva, tudo no


relacionamento gira em torno das necessidades afetivas um do outro: eu quero
carinho, amor, atenção, quero ceder ao prazer e que você ceda junto comigo, quero
segurança, conforto, status...

O que pode haver entre o “eu” e o “tu”? Só comunhão. O que é comunhão? É a


proporcional participação nas mesmas coisas. É quando o nosso corpo é feito da
mesma carne, e um corpo conhece permanentemente o outro corpo; quando nosso
sangue vem do mesmo vinho, e todos se entendem perfeitamente.

Mas só a comunhão não basta, e a presença? O amor não exige a presença da pessoa
amada? É preciso ter um mesmo projeto, e um contato físico. Seria o Paraíso
ociosidade? A ociosidade é apenas a ocasião do prazer. O Paraíso precisa ser um
mundo de atividade, expansão, aprofundamento, de vida sempre nova, sempre
totalmente autoconsciente mas infinita, porque sabe que mora em Deus.
Se na Igreja todos são amigos de Deus, e, portanto, todos são amigos, é preciso,
porém, que alguns estejam mais próximos e outros mais afastados uns dos outros,
devido à estrutura “espacial” do “eu”.

Só existe união em Cristo, que é o “lugar” da união, e por meio do Espírito Santo, que é
em si mesmo a união. A união entre ti e mim é com relação a Cristo (um só corpo), e é
efetivada pelo Espírito Santo que nos une (num mesmo espírito). No Amor e na
Verdade.

“Sinto por ti uma paixão violenta; mal posso pensar quando na tua presença, não
posso esperar mais para me unir a ti... eu te quero muito, se eu tiver só a ti não preciso
de mais nada. És tudo para mim.”.

Que diabos isso significa!?! É como se a pessoa com quem se fala fosse ela mesma um
estado de prazer infinito, o próprio Paraíso. Ou, por outro lado, é como se a única coisa
que importasse para quem fala fosse o prazer, sendo a mais alta de todas as coisas,
isto é, sendo o prazer como que a coroa do estado de felicidade supremo. Quando
tudo o mais é abstraído da mente do sujeito, o prazer é exaltado
desproporcionalmente, e ele cede a um prazer ilícito. Talvez o prazer carnal
(metaforicamente) seja mesmo o coroamento do estado de felicidade, mas só se
estiver em harmonia com todas as outras necessidades espirituais e anímicas do
sujeito, e dentro da reta ordem cósmica; caso contrário esse prazer é ilícito e
desordenado.

Para um casal que se ama o não ter filhos é um motivo de sofrimento constante. A
união espiritual do amor só se realiza plenamente quando se tem filhos. Enquanto o
casal não recebe uma terceira coisa que provém da sua união íntima, e que é gerada
pelo mesmo fator que sustenta essa união, ele não pode estar plenamente unido pois
não têm com o que se ocuparem juntos o tempo todo. O sexo é como um rito do
amor, mas o filho é como um símbolo eterno desse mesmo amor. Se só se tem o sexo,
o casal passa a maior parte do tempo sentindo a ausência um do outro; mas se se têm
filhos, se têm também a consolação constante da concreção desse projeto íntimo para
a vida toda que ele representa – é como se a união do casal se materializasse e
estivesse o tempo todo presente para eles espiritualmente. Caso contrário, o amante
dificilmente tem a mesma consciência real da sua união, que lhe parece puramente
sentimental e sem fundamento, e daí o medo e a insegurança que lhe entristecem. Se
se têm filhos, eles vivem já uma dimensão a mais da eternidade: a responsabilidade
mútua sobre uma terceira vida que proveio deles, e que, portanto, é também como
que uma personificação do seu amor. E quando seus corações se rejubilam
sincronicamente na presença do próprio amor é que eles são felizes. É aí que os
amantes tem diante deles, o tempo todo, o mistério do amor, que é profundo como a
Vida, que é eterna novidade, que é infinito sagrado como outra pessoa.

Prostituição

A prostituição é o sujeito que é mal, egoísta, egocêntrico, sem amor, e que portanto
vive num mundo que é divisão, desintegração, ódio a realidade, e que por não ter
existência própria, por ser mera ausência de bem, mera oposição à realidade do que é
bom e verdadeiro, por isso precisa fantasiar ou fingir perversamente sua realidade, e
esse fingimento de realidade, fundamentado na revolta à própria realidade, é a
imitação demoníaca de Deus, é a realização de um ato materialmente divino porém
formalmente maligno, isto é, na falsidade.

Senhor Deus, que me destes este sublime amor conjugal pela vossa filha Caroline,
peço-vos agora que guardeis a sua vida e conduzi-a para o Vosso Reino Eterno. Enviai,
Senhor, o Vosso Espírito Santo, que me ensina a orar e a amar, e fazei-me mais digno
do Vosso Amor. Amem.

Sobre a finalidade do casamento

No ato sexual, se tudo der certo, a última coisa que acontece é a geração de outro ser
humano. Se todos os processos biológicos desencadeados pelo ato sexual levado até o
fim ocorrerem sem nenhum impedimento eles necessariamente levarão à formação de
um indivíduo humano – sua consequência última. Isto significa que a finalidade normal
do ato sexual é a geração de filho(s).

Nós dizemos que a finalidade do casamento é a geração de filhos, mas o que isso
significa? Por outro lado, o ato sexual é a consumação do casamento – sem isso o
casamento não se efetiva, a cerimônia matrimonial fica sem efeito real. Ora, se é
assim, então é claro que a geração de filhos é finalidade do casamento enquanto
finalidade do ato sexual necessário à consumação do próprio casamento.

É claro que a geração de filhos é a finalidade do ato sexual, mas é um motivo suficiente
para que dois indivíduos do sexo oposto se encontrem no ato sexual? O desejo de ter
filhos é motivo para que duas pessoas se casem? Suponhamos, então, que uma mulher
queira casar para ter filhos, e que ela viva numa sociedade onde, devido às suas
circunstâncias, é impossível para ela casar-se, mas que ela pode ser concubina de
algum homem. Se o que ela deseja é casar para ter filhos, então ela ficaria feliz em ser
concubina de alguém e não precisaria de fato se casar para realizar seu desejo. Por
outro lado, se ela quiser realmente casar e ter filhos nesse casamento, então é claro
que o casamento em si vale alguma coisa independentemente de se ter filhos. Mas, se
a pessoa não quer casar senão com alguém que possa lhe dar filhos, então ela não
considera o casamento como uma finalidade em si mesmo, mas como apenas um meio
de obter algo que ela deseja acima dele – (assim como “o outro”, nesse caso, também
é visto apenas como um meio, mais ou menos agradável). Se a finalidade do
casamento é ter filhos, nesse sentido, de servir como meio à alguma finalidade
superior, então o casamento em si não é nada, é apenas uma circunstância mais ou
menos favorável. Nós devemos desconfiar dessa crença, pois a imagem que Deus usa
para Sua união com a Igreja é a imagem do casamento, e nós sabemos que a união
entre Deus e a Igreja não é um meio mas sim uma finalidade. É provável que o
casamento também seja algum tipo de finalidade.

Voltamos então à questão: ter filho é finalidade do ato sexual, mas o que faz duas
pessoas se encontrarem nesse ato? Ora, ninguém é biologicamente determinada a
fazer sexo com uma pessoa em particular, ou mesmo com qualquer uma, então ter
filhos não pode ser motivo para que ela encontre alguém com quem se relacionar
dessa forma. Ou seja, não há nenhum nexo causal entre se relacionar com uma pessoa
e ter filhos com ela. Ter filhos, ou fazer sexo, é um ato da vontade e consentimento
mútuo de duas pessoas, portanto, não pode ser ao mesmo tempo o que determina
esse ato. Querer fazer sexo não é motivo suficiente para fazer sexo, nem querer ter
filhos é motivo suficiente para ter filhos. Ou seja, seus desejos subjetivos,
especialmente nesse caso, devem ser devidamente justificados com base na finalidade
real de cada ser.

É por isso que é necessária uma teoria do amor, porque a finalidade do amor é a união
entre duas pessoas, e é esse o motivo pelo qual desejam encontrar-se no sexo.

Uma outra coisa importante para se ter em vista é que uma pessoa pode gostar da
ideia de ter filhos, pode se imaginar como pai/mãe, etc., mas isso não significa que ela
vá gostar desse ou daquele filho que ela tiver. Ninguém sabe QUEM será o seu filho.
Isso significa que o casal deve estar aberto a receber uma pessoa estranha em sua
casa, uma outra vida que lhes foi confiada mas que não tem nada que ver com a
relação deles um com o outro – aquela relação amorosa do casal e suas consequências
independem completamente do filho que eles possam ter ou não. Mas eles estão
abertos mesmo assim a essa nova realidade: é um serviço prestado a Deus. Confia-se
que aquela vida, seja ela qual for, é boa aos olhos de Deus, e que vale a pena se
sacrificar por ela. É um auto-sacrifício voluntário à uma pessoa que você não conhece
de fato. Só duas pessoas que são realmente felizes podem chagar ao ponto de querer
se sacrificar por um estranho, de graça, sabendo que não vão receber nada em troca.
Isso é ao mesmo tempo uma graça superabundante de Deus, é graça sobre graça:
aquilo que era perfeito recebeu uma nova plenitude de perfeição que vem do Céu.
Essa nova plenitude não completa o amor do casal, ela está à serviço desse amor.

Então, a finalidade de ter filhos é sobrenatural, de modo que o desejo de ter filhos é
também sobrenatural, quando vem do coração. Nós desejamos muitas coisas, mas
poucas são o que o nosso coração realmente quer. E saber o que deseja nosso coração
é fazer um caminho vocacional.

Ajoelhado diante dela e segurando-lhe a mãe esquerda, com a mão direita sobre a sua
barriga, disse-lhe o seu esposo: “existe uma alma aqui que Deus colocou sob a nossa
guarda”.

A imagem demoníaca do amor

Há uma série de estórias em que a imagem do adultério ou do romance adultero entre


duas pessoas aparece como algo extremamente desejável. Nessas novelas e romances
o adultério geralmente não aparece como tema moral, ao contrário, ele é quase que
moralmente desprezível frente ao desejo arrebatador das personagens apaixonadas.
Essas estórias são verossímeis porque o tipo de paixão que elas expressam existe
mesmo; porém, essas estórias não oferecem nenhuma impressão ou pressentimento
de que se o amor é assim mesmo ou se o amor é uma outra coisa, e se, na verdade,
isso que está se passando na estória não é uma experiência de um outro tipo que não
podemos chamar “amorosa”.

Eu pessoalmente fico perplexo e bastante confuso com o fato de que as pessoas


podem realmente ter um desejo tão arrebatador, um prazer e uma dor tão intensas,
umas pelas outras, sem que haja a menor indicação de uma ordem por detrás desses
sentimentos (chamados de “amor” aqui e ali), como se tudo estivesse se passando
num mar caótico e a única coisa constante fosse o desejo sexual.

Por detrás de cada uma dessas estórias, existe já um pressuposto, uma teoria do amor,
ou, pelo menos, admite-se que o amor deve ter aquela forma, e que as pessoas
normalmente amam daquele jeito. Porém, se formos comparar as várias estórias de
amor, é impossível para mim admitir que as personagens dessas várias estórias estão
amando do mesmo jeito, que elas estão de fato num mesmo mundo quando amam,
tão disparatadas são as interpretações, pensamentos e ações de cada personagem das
estórias mais famosas.

Um autor que me chamou a atenção foi Ovídio, que transformou o amor num
instrumento de prazer. Nos seus escritos nos parece muito claro que qualquer pessoa
pode “amar”, e que todas as pessoas que “amam” amam do mesmo jeito. De fato,
todo mundo que diz amar se expressa da mesma forma, e essa forma de se expressar
parece ter sido cabalmente expressada por Ovídio nos seus escritos. Eu, no entanto,
não posso me convencer de que só porque as pessoas apaixonadas expressam o
mesmo desejo de união carnal e mais ou menos espiritual, todas elas amam do mesmo
jeito, que todas elas amem de verdade. A mim, me parece que existem certas
gradações aqui, por exemplo, posso ver que umas pessoas só são sensíveis à beleza
mas não conhecem o amor, outras conhecem o amor mas não aceitam a sua verdade,
outros conhecem a verdade do amor e a aceitam. Ovídio conhece o amor, mas não
aceita a sua verdade, e é por isso que ele foi capaz de esvaziar o amor de sentido e
fazer dele um instrumento de prazer; é evidente que ele fala de pessoas que querem
viver uma fantasia prazerosa, e não de pessoas que querem amar de verdade. Ovídio
não trata do amor, pelo contrário, ele trata da negação do amor, ele trata das pessoas
que não desejam amar de modo algum.

É difícil enxergar isso porque as pessoas que amam sempre podem ser interpretadas
como se estivessem falando de uma realidade mais inferior, enquanto que as pessoas
que só querem usar a imagem do amor como instrumento de prazer sempre podem
ser interpretadas como se estivessem falando de uma realidade superior. Essa
confusão existe porque a experiência do amor não é vivida como um todo por todo
mundo. É preciso aprender a amar do mesmo modo que é preciso aprender a ser
gente. O amor não é um objeto da experiência, nem um estado do ser, ele é um
âmbito de existência. É preciso aprender a viver e a respirar nesse âmbito. Então,
quando as pessoas tem a experiência do amor conjugal, elas geralmente só olham para
a sua expressão corpórea, que é o desejo sexual, e esse desejo sempre aparece da
mesma forma em todos os corpos; ora, o melhor modo de falar sobre a realidade total
do amor é por analogia com a experiência do amor no seu nível mais corpóreo, de
modo que a linguagem da pessoa que estuda seu desejo sexual como se fosse a
totalidade do amor se assemelha muito àquela da pessoa que ama a partir de um
patamar mais elevado dessa mesma experiência.

Nessas estórias de que eu estava falando, o adultério geralmente nos parece algo
realmente desejável, e isso nos deixa bastante confusos, para sermos sinceros. Nos
deixa confusos porque do jeito que nós imaginamos aquele amor adultero nos parece
incrivelmente prazeroso. Eu, que não sou muito crente no ser da maldade, tenho
minhas dificuldades em crer que existe uma coisa má que é prazerosa. Mas é fato que
algumas pessoas tem o ápice de prazer no ato do seu crime, e isso não é de se
espantar, pois o sujeito mal é justamente aquele que gosta do que é mau. Porém, o
que nos espanta não é que existam maus sujeitos que gostem de adulterar porque são
maus, mas que existam bons sujeitos que encontrem na mulher do próximo o ápice do
seu prazer e alegria. Isso é possível. A questão é que, no meio dessa confusão, o
próprio adultério parece deixar a relação mais prazerosa. Ficamos sem saber
exatamente se o que nos atrai nessas estórias é o desejo de amar ou o desejo do
adultério. O amor parece mais vivo quando o prazer é culposo, quando existe um risco,
quando a relação deve ser mantida em segredo. De fato, essas três coisas também
existem no amor verdadeiro: a culpa do pecado original (não mereço estar aqui no
paraíso), o risco de ser traído (me entrego a uma pessoa que não conheço, que pode
ser meu inimigo), e o segredo entre os corações (deve ser mantido longe dos olhos da
sociedade). Mas, no amor verdadeiro, logo se nota que essas três cosias significam
coisas bem diversas. Já nas estórias de que falo, essas três coisas aparecem sob outra
perspectiva: a culpa do ato ilícito, o risco de ser condenado pela sociedade, e o
segredo do roubo. Tendo esclarecido essas três características, já podemos começar a
vislumbrar uma diferença fundamental de dois tipos de amor, sendo que, na verdade,
um deles só é amor, e o outro é uma paródia demoníaca dele.

Existem estórias em que o amor entre as personagens me parece realmente


desesperador, a tal ponto que eu sinto a dor pura do desespero no peito. Nessas
estórias, no entanto, eu posso notar que as personagens apaixonadas vivem o amor de
forma totalmente infernal. Veja, por exemplo, o Vermelho e o Negro de Standhal; nele,
se pergarmos o romance do jovem personagem principal com a jovem burguesa rica
no meio da estória, teremos aí um imagem clara de que o inferno pode nos parecer a
coisa mais prazerosa do mundo. E considero que chamar esse caso de “amor”,
“paixão” ou coisa do tipo é realmente um presságio, porque também o demônio quer
ser chamado de deus, de modo que, se um indivíduo mau tem a experiência do amor,
ele certamente verá o amor como uma realidade infernal, e vai gostar dela. A imagem
demoníaca do amor surge dessa experiência da negação da ordem do amor pelo
coração perverso. Isso acontece porque o mal sabe que ama, querendo ou não amar,
sabe que é um “ser amante”, porque foi criado para amar, e, portanto, não pode negar
seu desejo do amor; porém, como é orgulhoso, não quer servir o Amor, antes deseja
ser ele mesmo o dono do amor, atribuindo o amor à sua personalidade como uma
qualidade intrínseca, ao invés de reconhecer a supremacia do amor. Desse jeito, ele vai
querer adequar o amor à forma da sua personalidade como um todo, e, quando tiver a
experiência de se apaixonar, a sua expressão dessa experiência será de acordo com a
sua personalidade; assim é que o indivíduo mal fará de tudo para perder a pessoa
amada sob o pretexto de amá-la muito. Por isso, essas estórias são muito verdadeiras
quando fazem o caso de amor degenerar em desespero e morte sem dar o menor
fruto, e o fazem de modo que nós mesmo podemos sentir o gosto amargo desse amor,
ainda quando também sentimos simultaneamente o desejo de experimentá-lo.

Existem dois amores aqui, e a distinção deles vai me dar algum trabalho, porque não
conheço alguém que tenha se empenhado antes de mim nesta tarefa. Um modo bem
simples de dicerni-los, no entanto, me parece ser a morte: o verdadeiro amante deseja
morrer, o falso amante deseja viver; o verdadeiro amante quer provar seu amor pela
morte, e o falso amante quer viver seu amor pelo adultério. Quando o verdadeiro
amante está em adultério, ele vive mas não suporta a sua condição; mas existe um
falso amante que não esteja em adultério? Mas devemos examinar mais de perto o
que significa o adultério para um e para outro.

Uma questão importante é que para o amante o adultério significa uma coisa, para o
falso amante significa outra; bem como para o amante o casamento significa uma
coisa, para o falso amante significa outra. E, também, para o verdadeiro amante o
amor significa uma cosia, para o falso amante significa outra. Bem como para o
verdadeiro amante a traição significa uma coisa (a pessoa traída fica triste acima de
tudo), e para o falso amante significa outra (ele, quando traído, fica desesperado). E
ainda existem outras realidades experienciadas de modo totalmente diferente nos dois
casos. É por isso que eu disse que haviam dois amores: e o mais confuso é que essas
duas cosias são realmente chamadas “amor”, uma delas sendo a imagem apocalíptica
e a outra a imagem demoníaca do mesmo Amor.

Existe uma tensão entre a lei social e a lei do amor. Essa tensão existe, por exemplo,
quando Jesus diz: “quem deseja a mulher do próximo já pecou com ela em seu
coração”; ora, é no mínimo muito difícil para um homem ter uma amiga sem que ele
em momento deseje toma-la em seus braços. Não é necessário que um homem queira
tomar uma mulher casada para si se ele quer ser amigo dela, mas quem pode deixar de
desejar possuir a sua amiga?

Se uma pessoa não escolhe quem vai amar, ela tem que escolher com quem vai casar,
e quando, de modo que qualquer um pode casar com qualquer pessoa mesmo que
não a ame ou que não a ame com todo o seu ser. Se uma pessoa vem a amar uma
mulher, como podemos dizer que é culpa dele deseja-la? Mas, se ele não pode
alimentar os sentimentos de desejo, se deve tentar esquecê-la, como ele aprenderá a
amar? Como se pode aprender a amar se você ignora o amor quando o encontra? Por
outro lado, quem aprendeu a amar uma pessoa por vontade própria, como se esse
amor não fosse dom de Deus?
O verdadeiro sexo é quando o amante ao mesmo tempo sente o que está acontecendo
na carne e intui o que está acontecendo na alma; é desejar espiritualmente o que está
acontecendo na carne. Só aí ocorre a união na carne, que, de outro modo, é apenas
atrito corporal mais ou menos impessoal.

O que se intui no ato sexual é a estrutura do conhecer o “tu”. Essa estrutura é fixa para
o homem e para a mulher: o homem tem uma maneira masculina de conhecer a
mulher, e a mulher uma maneira feminina de conhecer o homem. O homem deseja
conhecer a mulher ativamente: ele quer tocá-la, agarra-la, comprimi-la contra o seu
corpo, quer sentir sua pele atritando contra a sua; por isso ele se movimenta, ele vai a
procura dela, acha, entra; é envolvido por ela; ela é atraente, convidativa, carinhosa; a
mulher espera; o homem tem coragem; ela aceita e o deseja dentro de si, tocando-a
por dentro; ele abre o caminho, explora adiante, devolve ela a si mesma por meio do
seu toque, encontrando-a desprevenida; ela agora se espanta, acorda para si mesma, o
acolhe dentro de si e dá a ele a chave da sua intimidade, dá a ele o direito de
comandá-la, e guia-o para a bem-aventurança. É a mulher quem dá o ritmo da relação,
ela se contém mais facilmente que o homem, ela é um continente para ele, como uma
taça: é ela quem o recebe; o homem tem o poder de abrir e fechar, mas ele não
controla o ritmo do portão; ele está sempre pressionando, empurrando; a mulher
escapa, foge, espera, volta, dança, incita, recolhe-se, abre-se, acolhe, fecha-se sobre si
mesma com ele – aprisionando-o, sem que ele perceba, no único lugar que é só seu e
dele. Eles se entreolham nos olhos, como que a comunicar tacitamente o significado
profundo de tudo o que percebem e sentem. O ritmo corporal aumenta; o homem
com a mulher, subjugados pelos seus corpos, se deixam levar pelo que dita a sua
natureza, inconscientemente. O homem sente a necessidade, que vem crescendo, de
se perder no fundo do ser; de transcender o seu “eu”; até que um poder maior o lança
fora de si, e ele se despeja, subitamente, preenchendo o útero da mulher, ocupando
todo o mundo dela, se unindo a ela. Ambos saltam do seu próprio corpo, um e outro,
como que para se unir no ar logo acima dos seus corpos, que caem como que mortos,
com lassidão, um ao lado do outro. É aí que eles entendem que se conhecem
mutuamente; não digo “conhecer” no sentido de vulgar familiaridade com os hábitos e
comportamentos do outro, mas no sentido daquele sentimento de que sempre se
conheceram, desde a eternidade, e agora estão apenas voltando a se encontrar, como
já acontecera em tempos pre-históricos, como se estivessem sempre unidos.

Só se pode fazer sexo com uma pessoa por vez; só se pode amar com todo seu ser uma
pessoa por vez. A eternidade é toda uma vez só. Seu ser eterno é todo um só e
imutável na sua totalidade. Se eu amar uma mulher na eternidade com todo meu ser
será somente ela por toda a eternidade.
A impressão que se tem do que é um relacionamento amoroso hoje é a de que ele é
uma espécie de amizade entre pessoas que fazem sexo somente uma com a outra. O
sentimento que se tem é que o namoro é basicamente isso aí. E o casamento, quando
muito, toma a forma de um projeto familiar, de criação de filhos e manutenção da
economia doméstica. O homem que vê a mulher como uma espécie de amigo com
quem ele pode ter prazer sexual, com quem pode passar um tempo agradável estando
juntos, nunca se unirá com a sua esposa de verdade.

Olhando nos olhos

- venha aqui, Caroline, deixa eu falar uma cosia ao teu coração. Eu te amo; quero que
tu sejas minha, só minha. Aceite as palavras do meu coração; guarda o meu segredo.

(minha declaração é como uma resposta que o meu ser inteiro dá à realidade dela na
minha frente. Eu espero para que ela me responda também com seu ser inteiro. Eu
falo tudo isso tendo a consciência viva da infinitude e completa liberdade da pessoa da
minha amada. É preciso acreditar muito no amor ou no casamento para sentir todo o
peso do outro na sua frente – me unir com uma pessoa viva!)

-Eu confio em ti, Carol, e desejo me unir a ti, profundamente. Não desprezes o meu
amor; chamai-me a ti e eu irei, dócil e fiel. Confia em mim, eu te imploro, só quero
morrer por amor a ti... e morrerei feliz sabendo que te amo.

(se ela me corresponderia ou não, isso não está em meu poder produzir ou controlar,
nem mesmo está em poder dela escolher me amar ou não. Mas, dada a oportunidade,
é isso o que eu deveria dizer, porque é a verdade da minha experiência. Que a minha
esperança seja também a esperança dela).

Sobre a felicidade no casamento:

“There a bowl of ambrosia

was mixed and ready

and Hermes took the pitcher and poured wine for the gods.

They all held glasses

and made libations, praying all good things


for the groom.”

- Sappho [LP 141]

Amar é como plantar um jardim florido para o deleite do seu amado. Planta-se na alma
tudo o que irá proporcionar o maior prazer para o seu amado quando ele vier se unir a
ti.

Deus Pai ama, Deus Filho ama, Deus Espírito Santo é Amor.

Deus Filho, que é filho de Nossa Senhora, é esposo das filhas de Nossa Senhora.

Deus Espírito Santo, que é esposo de Nossa Senhora, é o Amor das esposas de Jesus
Cristo.

Se o Espírito Santo é identificado com o amor, não é também Ele que nos une no
amor? Se duas pessoas se amam verdadeiramente, não é o espírito Santo que os une?
Não é por isso que essa união proporciona prazer? Quem ama deseja a união com o
ente amado, e essa união só existe no Espírito Santo que é causa do seu amor; então, é
preciso aprender a amar segundo a lei do espírito para que tal união se realize de
modo ideal.

O casamento é Símbolo do Espírito Santo

Ora, só existe um Deus, e mesmo assim Israel cultuou outros deuses pagãos, ocasião
em que foi acusado de prostituição. O que é prostituição? Nós só amamos o único
Deus, porque Deus é a causa do amor, e não existe amor nenhum que não seja a Ele
mesmo direcionado. O que é então idolatria? Israel não amou outros deuses com amor
verdadeiro, ele amou com falso amor, e amar com falso amor é prostituição. A
prostituta ama com falso amor, porque ela finge que ama o que não ama, e ama o que
não ama como se o amasse. É esse o pecado da prostituta, tal como do idólatra,
porque este idolatra o que seu ser não adora. A prostituta ama como que intimamente
aquilo que seu ser mais íntimo não ama. Assim, as pessoas são capazes de amar
errado, de pensar que amam o que não amam, de pensar que adoram o que não
adoram. O caminho para Deus é o caminho para o coração: descobrir o que é seu
coração é descobrir qual o desejo de Deus. Quem cria uma imagem do próprio coração
cria uma imagem de um falso deus, e ama em falso.

Quem ama sofre. Quem ama amar deve aprender a amar conforme o Amor. Amar é
sofrer. Quem ama verdadeiramente suporta todo sofrimento por amor, pois é melhor
amar do que não amar. O Amor é bom, mas primeiro vem a dor, e depois o prazer da
união. Quem sofre mais por causa da separação, este terá maior prazer por causa da
união que há de se realizar, isto é, se suportar tudo com paciência. Quem, pelo
contrário, não suporta a dor, cede ao prazer, e, cedendo ao prazer despreza o amor,
não aprendendo a amar como deveria. Sem saber amar com todo o seu ser, ama-se
com parte dele, ama-se com o corpo, ou com a alma, ou com os sentidos, mas nunca
ama-se totalmente, com o coração; é daí que vêm os enganos e desilusões amorosas.
Quem não ama com o coração, não ama. Quem ama com o coração, segue o amor,
suporta a dor, aprende a amar. Talvez, quem ame de verdade, não consiga esperar
muito para se unir a sua mulher, por causa da fraqueza do corpo; mas quem não ama
verdadeiramente nunca consegue esperar, e nem quer esperar. Quem ama
verdadeiramente sempre tem esperança; quem não ama fica desesperado para obter
a união tão desejada, sem refletir a cerca do verdadeiro amor e suas exigências, como
se o amor não existisse mas fosse apenas uma criação dele mesmo; daí, ama-se a
carne, ama-se o ego, ama-se o poder, ama-se o dinheiro, mas não ama-se o Amor; não
ama de verdade.

É Deus quem move o coração de quem ama. Quem ama conforme o Amor ama de
verdade, e assim a união com o ente amado gera máximo prazer e alegria. Felicidade é
diferente de alegria: é-se feliz amando, mas a alegria é a da festa do casamento (da
vitória), e o prazer é o da união. Ninguém pode separar o que Deus uniu; Ele mesmo
não me parece querer separar o que Ele uniu. A segurança da aliança do casamento
está em Deus. Se o casamento é baseado no verdadeiro amor ele não acaba nunca,
porque a união é eterna. O amor não acaba. Ora, o casamento é um fato humano,
terrestre, e é uma instituição divina, mas que dura somente até a morte; esse
casamento é um contrato social tornado sacramento quando usado para a cooperação
na realização da obra da salvação de Deus por meio de Jesus Cristo. Esse casamento é
uma missão, não exige necessariamente o mesmo tipo de amor conjugal que
estabelece o arquétipo do próprio casamento entre um varão e uma mulher. O
casamento terrestre acaba, mas o amor verdadeiro gera um casamento celeste. Se
Jesus Cristo disse que no céu ninguém será dado em casamento, talvez isso seja assim
porque o próprio Amor une os corações sem a necessidade de nenhum tipo de
contrato. O próprio Espírito Santo é uma Aliança eterna, entre Deus e o homem, entre
o homem e o homem, entre os vários tipos de homem.

Ninguém que é justo deseja aquilo que não lhe foi dado por Deus. Só o Espírito Santo
pode me entregar tanto a minha intimidade como a do outro, que sou incapaz de
desejar por mim mesmo aquilo de que não tenho notícia. Quem vê, vê na luz do
Espírito Santo. Não há possibilidade de se desejar uma pessoa fora da união quando se
está unido pelo Espírito Santo. Não existem ciúmes quando só se deseja o que é seu,
confia-se no espírito Santo. Ele é a fonte do amor, no centro do jardim, onde os
amantes bebem da água da vida; lá eles vivem eternamente no amor, em meio aos
prazeres do Paraíso. O amante sempre é livre para romper com o Amor, para
abandonar o amado e ir buscar prazeres em outros jardins, em terras estrangeiras; ele
nunca será feliz lá, só terá prazeres sem quietação. Ele vagueia de um lugar a outro em
busca de mais prazeres, amando a diversidade das aparências que fluem pelos seus
olhos de superficial visão. Esses prazeres são seu castigo, pois, orgulhoso, se afastou
do seu verdadeiro amor. Livre do Amor virou escravo do Mundo. (Quem é escravo do
Amor será livre para desprezar o Mundo). O mal amante é aquele que não ama o
amor: a união com ele nunca é estável.

"Virginity, Virginity, leaving me where have you gone away?"

"I'll never come back to you, I'll never come back......."

- Sappho

A perda da virgindade é um fato marcante na biologia da mulher. A virgindade é algo


passível de ser “perdido”. A virgem tem algo que a não virgem não tem; o que é isso?

A mulher só pode perder a virgindade com um homem, uma vez na vida; e ela é
irrecuperável. A virgindade não volta. Aquele primeiro ato onde a mulher atraiu um
homem e deixou-o entrar dentro de si a marcou para o resto da vida. Foi fulano, foi
ele, não foi nenhum outro. A primeira vez em que a mulher faz sexo com um homem
ela fica marcada no seu corpo, até a morte, e essa marca fica ligada ao homem que a
marcou. Como essa mulher vai interpretar esse fato? É preciso, antes, sabermos o que
é a virgindade afinal; o que ela significa.

Amar uma mulher que me ama, e depois de um tempo juntos ela começar a amar
outro (do mesmo jeito perfeito que me amou), e deixar de me amar, como quem
esquece, sendo mesmo uma pessoa nobre e tudo o mais, e ainda assim isso acontecer,
isso seria como perder o paraíso; “minha alma chora e geme de tristeza”. Ou, melhor,
isso seria como uma traição do próprio amor.

Chegou um momento na história da humanidade em que o homem sentiu a


necessidade de falar sobre o amor de uma maneira nova, de uma perspectiva nova. Na
Antiguidade, até onde eu sei, o tema do amor, quando desenvolvido pelos poetas, a
começar por Sappho e Platão até Ovídio e os autores latinos, era sempre abordado
pela perspectiva do prazer e da fascinação do sexo, nunca de um ponto de vista do
relacionamento em si mesmo, entre um homem e uma mulher. Na Idade Média é
onde o tema começa a ser abordado do ponto de vista do indivíduo que deseja ter
uma relação amorosa única, destacando a individualidade e insubstituibilidade do seu
ente amado. Na Idade Média a atenção dos trovadores se volta para a substância da
relação amorosa, ou no que ela consiste. É necessário explicitar o que é o amor.
Deseja-se amar para ser fiel ao amor. Agora isso é necessário porque eu tomo
consciência de que estou me relacionando com outro indivíduo, com uma
personalidade individual, e, portanto, ela não me pode ser indiferente como
substância individual. Não é possível que as pessoas me sejam indiferentes enquanto
tais. Uma pessoa me diz respeito mais que outras, e eu desejo me relacionar com elas.
Por outro lado, há a imagem do casamento, que significa não ficar só, e isso nesse
contexto sugere fortemente que existe uma pessoa que eu amo mais que todas as
outras, porque ela é toda para mim. Isso não é só uma teoria, tem-se nessa época as
primeiras experiências conscientes desse fato, quer dizer, tem-se a experiência do
amor como uma relação única e especial entre dois indivíduos que são, cada um,
insubstituíveis. A ênfase na relação amorosa faz com que seja necessária a expressão
desse amor por parte das duas pessoas na relação. É preciso que ambos sintam esse
amor um pelo outro e o expressem, para que ambos estejam participando da mesma
relação. Agora que a ênfase está nessa relação é preciso saber se ela está ocorrendo
ou não, e para isso é preciso saber no que ela consiste e no que o amor consiste afinal
de contas, e como um amante deve se comportar. Ou seja, se uma pessoa deseja estar
numa relação amorosa, como ela deve entender o amor, e como ela deve ser?

Quando o sujeito se dá conta de que sua experiência do amor é a desse amor pessoal,
que se refere à uma substância individual que é outra pessoa, então aí ele tem que ter
um modo de expressar isso, e também precisa que a outra pessoa saiba expressar seus
sentimentos para que ele possa saber se ela também o ama dessa forma, e só assim
eles poderão viver um amor que é forte como a morte de modo consciente.

Percebo que na minha própria biografia eu fui tomando consciência desse amor aos
poucos, e que também mudei o foco de atenção, em algum momento, de algum
modo, do objeto da relação amorosa – a mulher e o que eu posso fazer com o corpo
dela – para a própria pessoa dela – se ela se sente como eu – e depois para a relação
mesma, isto é, a verdade do amor: o que é que nós amantes podemos ter juntos como
homem e mulher, e como pessoas únicas que somos; o que é que pode haver entre
nós de real; no que consiste a nossa união no amor.
O casamento

A vida aqui na terra é um arranjo provisório que prepara para a vida no céu.

Como é que Deus une os esposos, de modo que “o que Deus uniu o homem não
separe”?

Se duas pessoas, batizadas, casam sob a proteção e benção da Igreja, isto é, se


procuram se unir com as intenções esclarecidas pela doutrina da Igreja, então, quando
elas casam e se deitam uma com a outra, aí disso elas podem inferir que a sua
intenção de união foi aceita por Deus, que efetivou a sua união de uma forma
sobrenatural em Cristo, conforme as palavras das Escrituras. Se as pessoas vivem na
Lei do Antigo Testamento, ou segundo a lei natural, elas não têm ainda a benção da
Igreja na medida em que sua intenção não é plenamente conforme à Vontade de Deus,
e, assim, também não há a benção de Cristo tornando esse casamento indissolúvel.

Por outro lado, o que Cristo disse foi que todo casamento é indissolúvel, de modo que
todo mundo esteve até então vivendo em adultério – senão de fato ao menos em
ausência da intenção correta ao casar-se. Toda intenção de união entre duas pessoas
do sexo oposto que é aceita pela comunidade e tida como casamento é abençoada
também por Deus na medida em que Ele aceita as intenções e votos religiosos dos
noivos. No entanto, se o casamento depende da intenção dos noivos, entra aí um
elemento bastante sutil da psique, pois ela precisa durar para que os votos sejam
cumpridos, ou seja, precisa ter algo mais concreto em que se apoiar, e esse algo é
dado pela estrutura social e familiar do casamento. As pessoas só tiveram a intenção
de casar naquele momento do casamento, mas depois disso passam a viver como
casados, e a aceitação dessa vida revive a intenção do casamento. O que outrora você
havia feito por vontade, você passa agora a padecer por fidelidade. O vínculo sagrado
do matrimônio significa que esse contrato entre os esposos é sagrado, isto é, diz
respeito à justiça. Por isso há a analogia jurídica do matrimônio, como contrato,
porque tudo o que é sagrado é sagrado com relação à sociedade, é uma parte
separada em relação ao que é profano. O casamento tem que ser respeitado do
mesmo modo que um templo. A instituição divina do matrimônio se refere, portanto,
à justiça, à justa ordem social e familiar, e não à atração afetiva dos indivíduos. De que
modo os indivíduos vão casar não importa, eles podem ter mais ou menos sorte,
podem fazer a cosia de modo mais ou menos vantajoso ou prejudicial, de modo mais
ou menos adequado à sua própria natureza, mas o contrato continua sendo
igualmente válido em todos os casos, porque ele se refere ao matrimônio como
instituição e não à sua relação pessoal com o seu conjuge.

O problema é que as pessoas não costumam se unir no casamento unicamente por


questões sociais e familiares, mas elas se unem por questões afetivas e sentimentais
também. As pessoas, para se unir de modo justo, precisam casar, mas se casarem
podem casar com uma pessoa com quem não consiga ter uma relação pessoal íntima
ou completa, ou que simplesmente não amem de verdade. Essa é toda a tenção que
existe no casamento: como encontrar “a pessoa certa” para casar? Ou seja, a pessoa
com quem o único modo de me relacionar com ela é casando-me com ela porque eu a
amo de verdade e ela é única para mim? A intenção de união só pode se realizar no
casamento, mas o indivíduo pode simplesmente se enganar com relação a essa
intenção, ou então o seu parceiro pode mudar muito como pessoa e passar a
despreza-lo. A única saída seria encontrar uma pessoa que você ame com todo o seu
coração, isto é, que, sendo o sujeito uma pessoa completa, ele encontre alguém que
faça o coração dele responder de forma única e pessoal à presença daquela pessoa, e
essa resposta seja direcionada à união com aquela pessoa. Se ele casasse com ela,
seria o sujeito mais feliz do mundo.

Vocação matrimonial

“Tu és seu entusiasmo, ele teu equilíbrio. Ele é teu impulso genial, te és seu braço” –
Constanza Mirianzo (Cássate y se sumissa)

“De que adiante viver se não constroes algo que te supere?”

“... no lote completo do matrimônio entra essa adesão total a qual aspira todo
coração. Há um a quem podes te mostrar toda inteira, e se sentir amada assim.”

“A mulher reconcilia com o mundo tanto o homem como a si mesma, está em


harmonia com a existência em uma medida desconhecida para o homem, porque a
mulher explica a finitude, ela é a vida profunda do homem: uma vida tranquila e
escondida como o é sempre a vida nas suas raízes.” “O que deve-se fazer para ‘ser a
vida’ de alguén? O primeiro de tudo, ajuda-lo a levar seu jugo e suas debilidades,
estando ao seu lado sem sentir-se superior.”.

Sobre traição

“E como te explicas que uma mulher possa aceitar a desolação dos encontros
clandestinos, a infinita tristeza de voltar à casa com os filhos, carne da carne e sangue
do sangue de duas pessoas, e não poder olha-los nos olhos por medo de desvendar
que já não existe o motivo pelo qual nasceram?” – Constanza Miriano, Cássate y se
sumisa.

COF 123

O impulso do amor, da afeição, da ajuda mútua, é diferente do impulso reprodutivo,


mas o que nós chamamos de relação sexual hoje em dia, não é nem só o impulso
reprodutivo, nem só o amor ao próximo, é um mezzo a mezzo, é uma zona
indeterminada entre os dois. Só que não existe clareza discussões públicas. As pessoas
acreditam que existe uma força, que na verdade é inexistente, chamada “impulso
sexual”. O que existe é o impulso da reprodução e o impulso do amor ao próximo, que
se dosando e misturando em dosagens diferentes, produzem isso que nós equivocamente
chamamos de impulso sexual.

Não é possível explicar a mistura de desejo e afeição que leva o homem, por exemplo, a
casar com uma pessoa, a passar o resto da sua vida com ela. Não dá para explicar nem
por uma dessas motivações nem pela outra, são de fato duas motivações agindo juntas, e
elas são tão diferentes que é possível ter desejo sexual por uma pessoa que se odeia e
despreza, e que se quer ver pelas costas tão logo termine a relação. Isto é possível, o
mundo está cheio de exemplos. O indivíduo é manipulado pela natureza, é enganado por
ela, que o induz a fazer algo que ele, conscientemente, não quer fazer, até despreza. Mas
o instinto do amor ao próximo é muito forte. Lipot Szondi, um sábio, claramente
distinguia essas duas coisas. Ele chamava o primeiro impulso de “sexo” e o segundo
impulso de “contato”.

... Se Deus quis juntar esses três impulsos [1:20] diferentes, é porque quer salvar algo
além da nossa alma, ou seja, a recordação do universo físico. Você leva consigo a
recordação da experiência que teve no universo físico, e isto é santificado através de
você. É por isso que Deus não estabeleceu o celibato universal como queriam os
cátaros, que acreditavam que “se é pra santificar, então não se casemos, vai todo mundo
para o céu direto e pronto, chegamos à última geração...” Por que Deus quis isso? Ele
quis que a experiência nossa na terra valesse algo, a nossa experiência do universo
físico, nossa experiência da história, a recordação de tudo que herdamos das gerações
passadas; tudo isso, de alguma maneira, é levado conosco.

Por trás dessa noção idiota, esquemática, de que a Igreja só admite o sexo para
reprodução, existe uma concepção enorme, grandiosa, alquímico-cósmica do ato sexual,
mas os idiotas não entendem.
O direito do amante

O amor conjugal puro, que vem do coração, torna a intenção para o ato sexual
puramente amorosa, e esse é todo o motivo pelo qual o amante tem o direito sobre o
corpo da sua amada. Aqui, o direito sobre o corpo do outro é justificado pela pureza da
intenção que vem da consciência clara de que eu te amo com amor conjugal. Se amo
com esse amor perfeito, e você também me ama, então não há nada que possa nos
separar por direito, porque é nosso direito possuir o corpo um do outro. Se dois amantes
se amam com o verdadeiro amor conjugal, e se ambos são fiéis a esse mesmo amor,
então ambos tem o direito sobre o corpo do outro e já estão casados, pois a fidelidade a
esse amor exige matrimônio. Mas o matrimônio exige algo mais: exige o sacrifício; é
preciso que ambos tenham um projeto de vida único, que sacrifiquem sua liberdade
individual para formar uma família. O matrimônio não diz respeito ao amor, mas ao
serviço. O amor leva ao matrimônio, mas não o realiza, é preciso dar um passo além.
Assim, nós podemos ver isso no caso de Heloísa e Abelardo: Heloísa não quer casar, ela
sabe que viver assim não é certo, mas também sabe que sua consciência está limpa, pois
ama de verdade; mas Abelardo quer casar: ele estava sendo despedaçado por um
conflito impossível entre seu desejo por Heloísa e todo o ciúme possessivo que vem
com ele, e a realização da sua vocação como o grande filósofo que estava destinado a
ser.

-//-

Nem durante o sexo o homem pode descansar, porque ele não pode ceder
completamente ao desejo de prazer, ele tem que se manter firme na sua intenção
amorosa.

No sexo, entre pessoas que se amam verdadeiramente, a dor da separação é como que
antecipada, de modo que o maior prazer já vem misturado com grande dor. O puro
prazer só é possível na união espiritual, e quanto mais se deseja o corpo do outro maior
o sofrimento da inevitável separação – pois os corpos não se unem, mas sim o espírito.
É necessário, pois, que os amantes aprendam a unirem-se no Espírito.

-//-

Se esta testemunha dizia a verdade, então Heloísa expressa perfeitamente o sentimento


do amor conjugal para além da morte:

“conta-se que, quando ela repousava da sua última doença, ela deu instruções para que
quando ela estivesse morta, ela deveria ser deitada na tumba do seu marido. E quando o
seu corpo morto estivesse sendo carregado para a tumba aberta, seu marido, que tinha
morrido muito antes dela, levante seus braços para recebe-la, e então agarre-a para perto
em seu abraço.” (The Letters of Abelard and Helouise, Penguin Classics, p.xlvi).

-//-

Algumas mulheres se gabam com parcial razão de que a mulher é mais fiel ao homem
do que o homem à mulher. Sim, é verdade que para um homem, mesmo que ame a sua
mulher, se ele fica muito tempo afastado dela, fatalmente cairá nos braços de outra,
ainda que seu coração esteja totalmente comprometido com a primeira – o que é uma
traição dupla: para com a primeira mulher e também para com a segunda. Já a mulher,
ela tem uma virtude própria que sabe esperar, (não que essa virtude seja facilmente
alcançada, mas está presente). No entanto, se um homem ainda não se desesperou de
ficar com a mulher que ama, ele pode ser atacado por todas as mulheres ditas mais belas
do mundo que ele as afastará sem escrúpulos. Mas o homem tem medo de deixar sua
mulher à mercê de outros homens; ele desconfia que, por causa da fraqueza feminina,
sua mulher não saberá resistir a um homem que julga ser bom e que demonstre amá-la,
isto é, pela própria natureza do amor, ele não sabe se ela vai deixar de amá-lo e passar a
amar o outro. Mas, no fundo, o homem sabe que ama e, amando, sabe que nenhuma
outra mulher jamais tomará o lugar da sua; mas ele não sabe se a mulher que o acolhe
não quererá acolher outro depois dele. Talvez essa seja uma desconfiança tola. A
mulher, por ser acolhedora, não pode simplesmente trocar um amor por outro. O
homem pode, e esse é o medo da mulher: é ela quem deseja o lar, a casa onde eles
devem habitar juntos – mas e o homem, ele quer habitar nessa casa? Ele parece mais é
querer explorar todas as casas! Mas esse medo também é tolo quando se trata de amor
verdadeiro, porque o homem, como a mulher, é incapaz de trocá-la por outra em seu
coração, apesar de mais possivelmente poder ter outra mulher diante da sociedade,
desde que seu amor esteja desesperado da pessoa amada.

-//-

Pela própria dinâmica interna do amor conjugal, ele exige uma relação física. Ora, esse
tipo de amor não depende de modo algum do matrimônio para acontecer, e isso gera a
tensão de se relacionar fisicamente com uma pessoa enquanto se ama verdadeiramente
outra. Quer dizer, quem pode mandar no próprio coração? Talvez alguns homens não
amem nenhuma mulher em particular, e daí dizem que amam todas; mas alguns homens
amam uma mulher de coração, com aquele tipo de amor que jorra do coração, e cujo
fluxo não pode ser interrompido de todo, por mais que se tente tapá-lo. Dentre os
homens que amam, nem todos podem casar com a mulher que ama; o que fazer? Se o
sujeito ama uma mulher, com esse amor, ele quer ter relação sexual com ela e só com
ela, porque a ama; mas, se não pode tê-la, continua desejando ter uma mulher, e, às
vezes, desejando sinceramente ser um marido e pai devotado à sua família e assim fazer
uma boa obra. O que ele faz, então, se não pode ter a mulher que ama? Ele não tem o
poder de “desamá-la”. Se ele casa com outra mulher, aí é que está: ele não tem apenas
um simples desejo sexual por aquela mulher fora do casamento, mas ele a ama de
verdade, com amor conjugal. Mas tem uma sutileza aqui: porque o que eu entendo por
verdadeiro amor conjugal não é o que as pessoas chamam de amor conjugal, mas é um
amor que não se pode prever nem medir nem controlar. O que se tem por amor conjugal
normalmente é aquilo que começa como uma imitação do que eu chamo de amor
conjugal “que jorra do coração”; ele é fundamentado não no desejo do coração mas num
desejo de amar e na fidelidade a um projeto de vida conjugal. São duas coisas distintas.
O amor que começa no coração já nasce pessoal e intransferível. O amor conjugal
mundano é criação humana, é uma eleição; escolhe-se a pessoa que se imagina poder
amar, e alimenta-se a amizade e intimidade com ela, e deseja-se o bem dela, e cresce-se
na virtude e no amor mútuo. Pode um desses amores se transformar no outro? Se um
amor é “eleito”, “alimentado”, não seria ele passível de ser substituído por outro, por
sua própria natureza de ser? Mas se um amor nasce do coração, assume-se já, desde o
início, que não existe outra pessoa a quem se possa amar desse jeito. Será isso um
engano? Mas um engano do coração?! Seria o auto-engano mais cruel do mundo.

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Sobre a submissão da mulher

1 Tm 2 11:15 – “A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão.


Não permito à mulher que ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas
permaneça em silêncio. Pois o primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi
Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou culpada de
transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que
permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade.

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“Aquele que olhar para uma mulher desejando-a já cometeu adultério em seu coração”

O homem que olha para uma mulher e a deseja, deseja na figura dela a sua própria
luxúria. O que ele deseja não é ela, mas a luxúria, é por isso que ele comete adultério:
porque o homem que deseja a luxúria odeia a si mesmo, e trai a si mesmo com seu
próprio ego.

Vejam bem, olhar uma mulher e deseja-la significa que você deseja todas as mulheres, e
que odeia todas. Note bem: você olha para uma mulher e a deseja; daqui a pouco olha
para outra mulher e a deseja também; depois encontra outra mulher, talvez que você
conheça, do trabalho ou da escola, e, vendo-a, sente ciúme de que ela possa sair com
outros homens que não você mesmo. Ou seja, você tem ciúme de todas as mulheres
desejáveis, porque queria que todas elas fossem suas, de modo que sua relação com as
mulheres é sempre ambígua: como você pode dizer que ama alguma mulher? você quer
o bem delas ou quer ganha-las para você? Não tem como saber, porque você olhou para
uma mulher desejando-a, e, portanto, não quer saber quem elas são nem o que você
mesmo deve ser para elas. Por isso você as odeia.

Não é fácil explicar o que quero dizer. Quando você olha para uma mulher desejando-a,
isso significa que você deseja todas as mulheres, mas odeia todas elas. Você odeia
porque o que você desejou não foi a mulher, foi a imagem da sua luxúria, você desejou
ceder ao desejo sexual apenas. Todas as mulheres desejáveis despertam o homem para o
prazer sexual, e o que ele busca é ceder a essa inclinação ao desejo sexual – não por
causa dessa mulher em especial, mas por causa do que a visão dela causou nele. A pura
visão da beleza feminina balança a alma masculina, enlouquecendo o corpo no
processo. No homem que não tem autodomínio a alma cede para o corpo e deseja ser
subjugada por ele: é aí que o sujeito deseja aquela mulher. Note bem, ele não desejou a
mulher, antes desejou ceder para o corpo. Mas isso acontece com todas as mulheres
belas, e, portanto, ele potencialmente já deseja todas as mulheres belas. É por isso que
esse sujeito tem ciúme de todas as mulheres, porque ele não pode aceitar que o prazer
que lhe é recusado seja dado a outros homens.

O problema de ceder para o corpo é que o sujeito é impotente para se realizar, e agora
depende da mulher. Mas se o homem depende da mulher para se realizar, ele vai dar
poder a ela em troca da sua atenção e dos seus favores. A mulher deseja poder, e ela se
erguerá contra o homem. O homem que não pode contra o seu corpo também não pode
contra a sua mulher, porque o homem é a cabeça da mulher. Então, se um homem olha
para uma mulher desejando-a, ele trai a si mesmo como homem, e automaticamente
“troca” ou adultera em seu coração a própria mulher que ele desejou, fazendo com que
ela deixe de ser uma pessoa e vire a imagem da própria luxúria. Ele peca assim por falta
de amor ao próximo (pois não vê a verdade do outro, nem a sua), e peca por adultério,
trocando a outra pessoa pela imagem da própria luxúria.

É preciso aceitar que as outras mulheres não são minhas. Que, talvez, exista uma mulher
que seja minha, mas que eu não conheço ainda, e, assim, é melhor que não deseje
nenhuma. Afinal, como eu posso me relacionar com as mulheres no céu, se eu desejar
que todas elas sejam minhas? Impossível. É melhor aceitar, ou perceber, que as outras
mulheres não são minhas, mas são outras pessoas que eu realmente não desejo, mas cuja
beleza desperta em mim um desejo de ceder para o corpo, e de desejá-la por tentação de
adultério. É preciso separar as coisas. E depois juntá-las para compreender melhor a
realidade.

Acontece que, para quem tem a experiência de amar uma mulher com todo o coração,
sabemos que só se ama uma mulher, e, se os amantes forem bons, que o desejo da
mulher amada é puro desejo de união com uma pessoa. Nesse caso, não é que o amante
deseja ceder para o corpo – pois ele já provou muitas vezes ser uma alma viril –, mas é
que ele não tem escolha. Esse amor exige união sexual num nível além do corporal,
como se a própria alma se regozijasse em contemplar esse ato de amor, sendo por meio
dele elevada à união quase mística com o outro. Quando quem ama olha a própria
mulher que ama, o seu desejo não é adultério, porque o seu desejo é o mesmo desejo do
seu coração, e ele sabe o que deseja, e que aquilo que deseja é um abismo sem fim, e
que não há volta, e que não há outro em que possa lançar a sua própria vida.

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The Letters of Abelard and Heloisa, pg. 241:

“VocÊ frequentemente me pergunta, minha doce alma, o que o amor é – e eu não posso
me esquivar sob pretexto de ignorância, como se estivesse sendo questionado sobre um
assunto que não me é familiar. Porque este mesmo amor tem me trazido sobre seu
comando de tal modo que não parece ser externo mas muito familiar e pessoal, mesmo
visceral. Amor é, portanto, uma força particular da alma, não existindo por si mesmo
nem satisfeito por si próprio, mas sempre vazando a si mesmo dentro de outro com uma
certa fome e desejo, querendo se tornar um com o outro, para que de duas vontades
diversas um seja produzido sem diferença... Sabendo que embora o amor talvez seja
uma coisa universal, ele tem sido mesmo assim condensado dentro de um lugar tão
confinado que eu teimaria em afirmar que reina em nós apenas – isso é, ele fez sua
própria casa em mim e em ti. Porque nós dois temos um amor que é puro, nutrido, e
sincero, desde que nada é mais doce ou feliz para o outro a não ser que tenha benefício
mútuo. Nós dizemos sim igualmente, dizemos não igualmente, nós sentimos o mesmo
acerca de tudo. Isso pode ser facilmente demonstrado pelo jeito como você
frequentemente antecipa os meus pensamentos: o que eu penso em escrever você
escreve primeiro, e, como eu lembro bem, você tinha dito o mesmo sobre você. Adeus,
e tenha-me com amor imorredouro tal como eu o tenho por você.”

25

Woman: “para o seu tesouro incomparável, mais delicioso do que todos os prazeres do
mundo: bem-aventurança sem fim e bem estar sem esmorecimento. Eu também tenho
considerado por mim mesma o que é o amor ou que ele pode ser por analogia com
nosso comportamento e afetos, o que sobre todas as formas de amizades, e, uma vez
levado em conta, leva a retribuí-lo com a troca de amor e obedecê-lo em todas as
cosias... Se nosso amor deserdou-nos com uma força tão fraca, então não é verdadeiro
amor. As simples e afetuosas palavras que temos trocado até agora um com o outro não
foram reais, mas apenas desmaiado amor. Porque amor não abandona facilmente
aqueles a quem uma vez tenha aferroado. Você sabe, amor do meu coração, que os
serviços do verdadeiro amor são devidamente cumpridos apenas quando estão
continuamente em débito, de tal modo que nós agimos para um amigo de acordo com
nossas forças e não paramos de desejar ir além de nossa força. Esse débito de verdadeiro
amor, portanto, eu devo me esforçar para cumprir, mas, ai de mim, não sou capaz de
pagá-lo por completo. No entanto, se o dever de te saudar de acordo com meus parcos
talentos é o suficiente, ao menos meu desejo sem fim de fazê-lo seja de algum mérito na
sua estimação. Porque saiba disso, meu amado, e saiba isso verdadeiramente, que desde
quando seu amor clamou para si a câmara de convidados – ou antes a tenda – do meu
coração, ele tem sempre permanecido bem-vindo e dia após dia mais delicioso, sem
que, como frequentemente acontece, presença constante leve à familiaridade,
familiaridade à confiança, confiança à negligencia e negligência ao desprezo. De fato,
você começou a me desejar com muito interesse logo no começo da nossa amizade, mas
com grande anseio você lutou para fazer nosso amor crescer e durar. E, então, nosso
espírito flutuou de acordo com como os seus negócios sucederam, de modo que sua
alegria eu tenho como ganho meu e seus infortúnios por minha perda mais amarga. Mas
você ter completado o que você começou não me parece a mesma coisa que você
aumentar o que você completou, porque no primeiro caso o que está faltando é
preenchido, no outro algo é adicionado ao que está completo. E mesmo se nós
mostrarmos bondade perfeita para todo mundo, nós ainda não amamos todo mundo do
mesmo jeito; e o que é geral (universal) para todo mundo é tornado particular para
certas pessoas.. Uma coisa é sentar-se à mesa do príncipe, outra estar ali para aconselhá-
lo, e uma coisa maior é ser escolhido por amor, em vez de apenas ser convidado para a
reunião. Então, eu te devo alguns agradecimentos por não me esporar mais por me
receber de braços abertos. Deixa-me falar abertamente à sua mente resplendente e seu
coração puro. Não é grande coisa se eu te amo, mas ao contrário uma maldade se eu
alguma vez me esquecer de você. Portanto, meu querido...”

26 – sempre conhecendo a quem se ama: “À sua amada ainda não conhecida, e ainda
por ser conhecida mais intimamente, o jovem que anseia profundamente provar o
entendimento de tão grande bem: que você sempre abunde em tal segredo e fonte
inesgotável de bondade, e por meio dela nunca esteja sem refresco.”

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O mais maravilhoso do amor conjugal é a intensão de união. O que deseja unir-se,


deseja unir-se como um todo. Mas o que é isso que deseja unir-se? De que modo eles
podem unir-se?

As Escrituras nos dizem que o homem deixará pai e mãe para se unir à sua mulher, e
ambos formarão uma só carne. Essa uma só carne pode ser imperfeitamente simbolizada
no filho que eles podem gerar; mas, é claro, eles também podem não ter filhos, ou ter
vários filhos, e podem até ter filhos de outras pessoas fora do casamento ou antes/depois
do casamento começar/terminar. De qualquer modo, essa passagem coloca uma verdade
incrível do modo mais simples possível: a união entre um homem e uma mulher se dá
na carne. Ou seja, existe uma união que se dá entre o homem e a mulher, e o lugar dessa
união é na carne. Veja bem, isso é extraordinário: varão e mulher são estruturas
analíticas da vida humana, como disse Julián Marías, quer dizer, são elementos
universais que estruturam a vida humana, e, por outro lado, a carne é o que há de mais
individual e pessoal no homem: cada um tem um DNA, cada pessoa se faz individual
NA CARNE. Quer dizer, não existe esse negócio de alma pura isolada do corpo: todo
indivíduo é corpo e alma: sua individualidade é corporal. A marca da individualidade,
da pessoalidade, é o corpo, não a alma. A alma sem o corpo é irreconhecível. Quando
Jesus ressuscitou, os discípulos não acreditaram porque acharam que era um fantasma, e
aí Jesus mostrou a marca das suas chagas, e aí os discípulos creram nEle. Então, coisa
mais incrível, quando as Escrituras nos dizem que a união entre o homem e a mulher se
dá na carne, isso significa que eles se unem na sua própria individualidade. O sexo,
disjuntivo, universal, participante da dualidade, se faz particular em cada ser individual,
dando ao “um” da pessoa o poder de união com uma outra pessoa que encarna o outro
polo da dualidade sexual. O sexo é, pois, o modo de duas pessoas se unirem como um
todo. A carne, sendo o que há de mais baixo no homem, de mais manifestado, é o que
mais o determina como indivíduo, o que mais o singulariza, e, portanto, a união na
carne é a última e a mais completa: a única capaz de simbolizar a união da pessoa como
um todo. Só pode haver uma única união na carne: o que está dividido não permanece
de pé.

Essas palavras me parecem guardar algum mistério: “o que Deus uniu, o homem não
separe”. Ora, mas como eu vou saber o que Deus uniu? Não há tantos casamentos que
foram feitos pelos homens? O que é uma união efetivada por Deus? Deus une qualquer
menina que é dada em casamento por causa de dinheiro a um homem mais velho? É
Deus quem une dois jovens que se casam por pura atração física? Deus uniu aquele
casal onde a mulher só casou porque o homem era rico? Mas, o mais estranho de tudo é:
o que Deus uniu? E como Ele uniu? Ele uniu duas pessoas na carne. Basta as duas
pessoas consumarem o casamento com a intenção correta para que isso aconteça?
Provavelmente sim, pois é isso o que chamamos casamento, e é disso que Jesus estava
falando. No entanto, se Deus de fato une as pessoas, como é essa união, no que ela
consiste? Mas essa união divina no matrimonio termina com a morte da carne, de modo
que a ligação é estabelecida apenas entre os corpos marcados pela morte. Ou seja, o
casamento é um contrato, não uma união amorosa, e a união amorosa não tem nenhuma
ligação necessária com o casamento, tal como a alma individual não depende em nada
do corpo de morte para que seja purificada. Ou seja, tal como o corpo pode estar sujo,
mas a alma limpa, assim o casamento pode não ter amor, mas o coração amar outra
pessoa. Tal como o corpo morre, o casamento acaba; tal como a alma permanece, o
amor permanece. O que une um homem e uma mulher na carne é o amor, não o
casamento, mas o que valida a união carnal é o casamento, não o amor. Ou seja, a
“união” carnal pode ser instituída e validada sem que haja amor verdadeiro ou união
pessoal e espiritual, bem como pode haver verdadeiro amor conjugal onde não haja
casamento válido. A pergunta que faço é, quando Jesus falava “o que Deus uniu o
homem não separe”, do que Ele estava falando: da união no amor, entre dois corações,
ou do contrato de casamento, entre dois corpos mortais? Parece ser dessa segunda coisa,
mas também poderia ser daquela primeira.

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Ainda não consegui achar a expressão correta para dizer o que é o amor.
Amor é um estado em que a pessoa se encontra, porque a pessoa que ama tem sempre
esperança de obter o maior dos prazeres. Como se pode conhecer esse prazer antes de
tê-lo experimentado? De algum modo o amante é capaz de vislumbrar a maravilha desse
prazer por meio da intensidade da paixão de que sofre – essa paixão já foi
exaustivamente descrita pelos poetas de todas as épocas e lugares. Mas sempre essa
paixão se refere a alguém em especial, um indivíduo único: às vezes por mero capricho,
às vezes para o resto da vida. Não é que a imagem da pessoa amada fica gravada na
minha alma porque eu fomento meu desejo por ela; mas é que um dia eu vi essa pessoa,
e então concebi por ela um grande amor, e foi por isso que a memória dela ficou
profundamente gravada na minha alma, de modo que, sempre que vejo sua foto ou
qualquer lembrança dela meu estômago recusa alimento e meu coração se contrai. Mas
por que acontece de meu coração, ou então minha alma, se apegar à presença de outra
pessoa a tal ponto que já não posso mais ter prazer se não for no amor com ela? Como
posso depender de outra pessoa para ter alegria na vida? No momento em que se ama,
nesse mesmo instante alguma coisa muda em nosso coração: ele imediatamente
abandona todas as cosias para comprar o terreno do prazer onde se encontra essa pérola
que se ama. Já nada mais pode contentar esse coração senão a pérola, e por isso vendeu
tudo para comprar o terreno que a guarda, ou seja, seu único prazer é possuir aquela
pérola, que a seus olhos é mais valiosa que tudo no mundo. Só o amor faz essa
transformação no coração, e, uma vez tendo achado a pérola, não é fácil crer que essa
pérola possa ser substituível por outra. De qualquer modo, é certo que o coração está
convicto de que não há outra pérola no mundo, só essa pode satisfazer meus olhos e
todos os meus sentidos. O que segura o amante no amor é o prazer. O campo do prazer
determina o estado que na física se diz ser o de “menor energia”, quer dizer o estado de
repouso: o repouso é a finalidade de toda vida. Assim, tudo o que nos coloca no estado
máximo de prazer, também é o nosso meio de repouso e o fim para o qual tende o nosso
coração. Ora, existem muitos amores, mas é o amor a uma pessoa do sexo oposto que
determina o terreno do máximo prazer: é no coração da pessoa amada que o nosso
coração tende a buscar reconfortante repouso. Mas esse repouso não é sono mas
atividade, é vida desperta pelo prazer, pois o sono é morte, que é dor e medo. O prazer,
portanto, é vida ativa sem trabalho e cansaço, é repouso sem sono, fogo que não
queima... Não é possível entender o amor sem entender o prazer. A questão mais crucial
de se entender, no entanto, é que neste mundo o amor não está no prazer, mas no
sofrimento: quem ama busca o sofrimento para amar mais. O coração se faz cativo do
amor conjugal por causa do prazer; e é por causa desse prazer que ele deseja sofrer tudo
por quem ama. Porque o prazer não é separado do amor, o prazer é como o terreno em
que o amor foi enterrado: ele esconde o amor dos olhos alheios para que ninguém
cobice o que já tem dono. E vender tudo para comprar o prazer é renunciar todos os
bens da terra para desejar somente os prazeres do amor, que vem da união com a pessoa
amada na carne e na virtude. É preciso ressaltar: a união com a pessoa amada só pode
acontecer entre almas virtuosas, porque só existe união em Deus. Portanto, essa união
aqui não significa simplesmente sexo, mas plena união espiritual no amor que leva os
corpos ao ato sexual. Porém, a verdade é que, na terra, muitas vezes essa união
espiritual é impossível, e aí é que se prova a virtude dos amantes. Se quem ama ama do
coração, e com amor de Deus, então ele deverá buscar acima de tudo a união espiritual,
desprezando o máximo possível o ato sexual. Mas, a verdade, é que só o prazer é que
tem o poder de causar no homem o desejo de amar e ser fiel ao amor. Portanto, o prazer
é a força de campo do amor, e o amor é o núcleo de gravidade do prazer: quanto maior o
amor maior a força atrativa do prazer. Quanto maior o prazer, mais difícil será para o
nosso coração abandonar a memória da pessoa amada. Mas, além disso, é preciso
admitir esta hipótese: existe um ponto em que o amor deixa de ser amor baseado numa
forma que dá prazer aos sentidos, e abruptamente passa a ser amor íntimo e pessoal,
comprometendo todo o coração de uma só vez.

Quando eu vejo a mulher que amo, pressinto o prazer que posso ter com ela, e passo a
desprezar todos os outros prazeres. A expectativa do prazer faz com que eu não queira
deixar de amá-la deste modo. Mas como eu sei que não é meu amor por ela que faz com
que nossa união seja tão prazerosa? Aliás, mesmo se não nos unimos ainda, eu
experimento imaginariamente que ela é em tudo mais agradável que todas as outras. O
que me liga a ela é o prazer ou é o que podemos chamar amor? Não é possível conceber
um amor conjugal onde se exclua a expectativa de prazer. Faz parte da natureza humana
que a mulher dê prazer ao homem e vice-versa. Mas a ênfase da nossa relação amorosa
não está no prazer, e sim na nossa união total. Mas, nesse perspectiva de união, a
expectativa do prazer está sempre aí, e é essa expectativa desse prazer, que é o único
prazer que pode consolar uma pessoa que ama, é o que faz essa pessoa perseverar no
desejo de ter a outra pessoa junto a si. Se não há prazer, o que sobra desse amor? Não
existe amor conjugal sem prazer, sem corpo.

Contra-argumento: não é assim. Não podemos afirmar que a expectativa do prazer é o


que fixa a memória da pessoa amada no meu coração. Mas podemos supor uma hipótese
mais provável: que assim como Deus tem os seus eleitos, nós também temos aqueles
que nos foram dados pelo Pai. Por exemplo, Jesus teve Maria Madalena, que muito foi
perdoada porque “muito amou”, e que mereceu ser a primeira a ver Jesus depois da
Ressurreição; depois, Jesus escolheu seus discípulos, e os chamou de amigos; e, ainda,
São João é dito “o discípulo que Jesus amava”. Ora, se Deus Pai é quem dá ao seu Filho
Jesus aqueles que pertencem a Ele, e alguns desses foram chamados amigos por Jesus e
outros não, e uns deles mereceram estar com Jesus nos momentos de mais intimidade e
outros não, então pode ser que na nossa vida Deus Pai também nos envie os nossos, isto
é, quem Ele quer que nós tenhamos por amigo, irmão, mãe, discípulo, mestre... todas as
relações que nós devamos ter. Isso não exclui o fato de que nós possamos ser para
alguém “como” um irmão, “como” um amigo, etc... isto é, agindo para com aquela
pessoa como se agiria para com um irmão ou para com um amigo verdadeiro. Mas
amigo verdadeiro mesmo só temos um ou dois, quer dizer, amigo que Deus nos deu.
Como reconhecer isso? A descrição fenomenológica que distingue um amigo dado por
Deus e qualquer outro amigo que chamamos “amigo” por sentimento talvez não seja
possível, porque a diferença entre essas relações pode ser simplesmente um dom de
Deus: o meu amigo me deixa feliz por ser meu amigo, os outros não me dão felicidade
por serem meus amigos, mas se me dão felicidade ou alegria será por outras causas. Ou
seja, na relação dada por Deus como dom, a própria relação tem vida própria e é causa
de bens espirituais, enquanto que as outras relações não são diretamente sustentadas por
Deus mas são fundamentadas em outras causas; por exemplo, quando duas pessoas
lutam para defender uma mesma coisa, eles podem se tornar amigos, e podem até ter
sentimentos de amizade e admiração pelo outro, sentir gratidão e tudo o mais, e a
amizade deles terá fundamentos nas virtudes, mas caso um deles caia no vício ou mude
radicalmente de ideia, o outro poderá não sofrer grande perturbação. Porém, podemos
ler nas Escrituras que Jonas amou David, e daria sua vida pelo amigo, e que Jesus disse
que “não tem amor maior que morrer pelo amigo”. Não podemos admitir que esse
“amigo” de que fala Jesus seja qualquer pessoa, pois, mesmo que demos nossa vida por
Cristo, pode ser também que Cristo para nós seja um amigo específico por quem damos
nossa vida num momento crítico, tal como Jonas e David: não damos a vida porque seja
justo, nem por misericórdia, mas por amizade. Como compreender esse sentimento?
Não creio que possamos compreender essas coisas, acredito que essas relações sejam
um mistério, mas podemos captar a sua essência como um símbolo.

Assim, no amor entre um homem e uma mulher, a mulher se torna todo o bem do
coração do homem. Mas há uma diferença se isso de fato acontece com uma pessoa ou
se é apenas uma ideia que nós temos a cerca de uma paixão que nos acomete. Se isso
acontece de fato, a única causa possível é Deus Pai, em Jesus Cristo, porque só Deus
conhece os corações, e porque só Ele tem poder para nos dar esse dom, e porque só nEle
nós temos vida verdadeira. Uma coisa é querer se entregar totalmente ao serviço da
mulher amada, outra coisa é não ter escolha e só poder esperar o momento certo para
agir.

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O amor verdadeiro leva quem ama a conhecer a pessoa amada. Ele se abre mais
facilmente para ela porque deseja sinceramente ser conhecido por ela, e deseja
sinceramente conhecer quem ela é de verdade. Por isso o amor está intimamente
comprometido com a verdade. Sem desejo sincero pela verdade da outra pessoa não
pode haver amor; mas é pelo amor e no amor que se conhece verdadeiramente. É o
amor que faz a gente desejar conhecer outra pessoa como um todo, conhece-la de
verdade, como um todo. Porque é claro que podemos conhecer muitas pessoas, mas isso
não quer dizer que nós desejamos conhecer todas elas como um todo, como uma
personalidade integral: corpo, alma e espírito. Não é só desejar conhecer outra pessoa,
mas se alegrar em contemplá-la de perto, porque se vê a beleza de sua pessoa como um
todo. Quem ama é inspirado pela visão da pessoa amada e se entusiasma em conhecê-la;
o movimento para se aprofundar nela é natural para aquele que ama, é um movimento
que vem do fundo do coração. Quem ama sente-se privilegiado por poder amar alguém
desta forma, porque esse dom nos revela a abertura total para o outro, sendo diferente de
todas as outras relações humanas. As pessoas que se amam desejam ardentemente
concordar em todas as cosias, e não podem parar de lutar para atingirem este fim; uma
divergência radical em qualquer ponto seria um dano irremediável ao seu amor. A
esperança de atingir este fim, essa união perfeita, é o que sustenta o entusiasmo com que
se desejam.

-//-

O amor conjugal é o que faz desejarmos o bem do outro e a nossa união com ele. O
modo de se unir a uma pessoa é conhecendo-a. Isto porque conhecer uma pessoa não é
como conhecer uma coisa. Quem ama deseja ser correspondido, porque se não for
correspondido não pode conhecer a pessoa amada. Quem ama quer conhecer a pessoa
amada; o amor leva a pessoa a se dar a conhecer sinceramente e com facilidade e
entusiasmo, e também gera o desejo de conhecer a pessoa amada na mesma medida em
que quer ser conhecido por ela. O conhecimento mútuo no amor gera intimidade, e a
intimidade efetiva a união dos amantes. Eles se tornam cada vez mais parecidos um com
o outro, não nas suas circunstâncias, mas no coração, porque os seus corações estão de
tal modo conectados que um sempre sabe trazer para o outro a sua vida e despejá-la no
outro enquanto o outro é ávido em recebê-la dele, e de ser lançado na intimidade do
outro, e ser para o outro como que um alvo e um espelho ao mesmo tempo. A sua união
no amor traz paz, e é fonte de consolação neste mundo e felicidade eterna.

Só o amor leva ao conhecimento do outro como pessoa. Sem amor não se busca nada
além de si mesmo. O amor ao próximo é como o mesmo amor de si mesmo: “ama o
próximo como a ti mesmo”; esse amor, ágape, é o amor puro, quer dizer, sem forma. É
amor puro porque não está determinado num tipo de relação humana, ele independe de
toda relação interpessoal e afetiva que se pode ter. Podemos dizer que é o conhecimento
do outro como ser humano como nós mesmo, igual em dignidade, e também filho de
Deus; é conhecer o outro como nós nos conhecemos a nós mesmos, quer dizer, como
ser humano como um todo. Mas, se, por um lado, as formas de amor são determinadas
pelo tipo de relação humana que se estabelece, e que as relações humanas são
circunstanciais, devemos também, por outro lado, diferenciar quando há amor afetivo
sincero nesta forma de relação e quando há apenas um fundo de amor ao próximo nesta
aparência do amor que tem certa forma.

As formas de amor são determinadas por formas de afetividade, mas deve-se diferenciar
a afetividade que nasce da paixão e a afetividade que nasce do espírito. Ou seja, é
preciso distinguir uma amizade sincera que nasce do coração e uma amizade que é
circunstancial. É claro que existem amizades circunstanciais, não que sejam sem amor,
mas é que o amor envolvido é ágape e não amor de amizade: isso eu chamo de amizade
“circunstancial”, quer dizer, não comove as nossas entranhas, mas a forma da relação
que se estabelece em certo momento do tempo é exatamente aquela da amizade, ou seja,
os sentimentos, pensamentos e atos são todos de amizade. No entanto, a forma de uma
relação, por exemplo, a da amizade, não determina a amizade de fato, e isto é assim pelo
simples fato de que nós não mandamos no nosso coração, e nem temos liberdade para
determinar o fundo do nosso ser. Nós podemos imitar em tudo a forma de uma relação
humana, porque toda relação humana é circunstancial, e, no entanto, existe uma forma
do amor correspondente, e esse amor pode existir ou não no coração da pessoa que ama,
e, se existir, é ele quem irá determinar a forma da relação, e essa forma não será uma
imitação da verdadeira amizade, mas as outras amizades é que serão uma imitação
formal desta que é espontânea. A espontaneidade e entusiasmo são as características
próprias do amor sincero e livre. Quando nós escolhemos amar, é porque não amamos,
mas desejamos amar desta forma devido à circunstancia. Posso escolher ser amigo desta
pessoa por ser conveniente e por nós nos fazermos o bem mutuamente; mas quando a
amizade verdadeira aparece nós não temos escolha: só temos a liberdade de cria-la nas
circunstâncias e cultivá-la ou não. Nós lutamos interiormente pela amizade verdadeira,
ela nos faz agonizar; a amizade circunstancial não é agonia, é acomodação. A amizade
verdadeira sofre para nascer na circunstancia deste mundo, que sempre se opõe a ela em
algum momento, mas a outra amizade já é do mundo. Quando um amigo verdadeiro
morre, o amigo que ficou na terra não sente nenhum vazio, como as pessoas que estão
apegadas umas às outras, mas, pelo contrário, ele encontra o pleno sentido daquela
amizade quando ele e o amigo foram separados pela morte. Quando um amigo
circunstancial morre, é uma perda circunstancial, e a dor de qualquer perda pode variar
de acordo com o grau de entendimento que a pessoa tem de si mesma e a posse que tem
da sua circunstancia. No fim das contas, uma amizade verdadeira enriquece a vida de
uma pessoa ainda que a sua circunstancia não permita que essa amizade se forme numa
relação concreta e só exista no coração. É esse dom da amizade que nos ensina a sermos
amigos de alguém; se não temos o dom da amizade, podemos imitar superficialmente as
amizades que conhecemos, mas nunca saberíamos de fato o que é amizade. E o dom da
amizade só nos é dado com respeito a algumas poucas pessoas e raramente durante toda
a vida, que é só o que precisamos.

Do mesmo modo, existe o dom do amor conjugal, e esse amor leva à união de um
homem com uma mulher, por meio de uma abertura mútua ao conhecimento um do
outro como um todo, e na medida em que quem ama é ávido em conhecer o que ama
para amá-lo mais perfeitamente. Uma pessoa é infinita: o conhecimento dela também;
portanto, o amor de uma pessoa é infinito, quer dizer, eterno. O amor eterno só pode vir
de Deus. Ora, há uma diferença espiritual fundamental entre o homem e a mulher, e é
por isso que o amor conjugal, o amor que é fome e sede do coração e do espirito do
outro, só acontece entre um homem e uma mulher: porque a alma masculina está
naturalmente voltada para a feminina. A fidelidade a esse amor é o reconhecimento
sincero de que ele não nasceu do acaso e nem por causa dos atributos do outro mas que
é um dom irrepetível dado por Deus e sem garantias de que poderá ser recuperado se
perdido ou substituído por outro segundo o livre arbítrio de quem o pede ou o deseja.
Aliás, não é possível pedir esse amor por uma pessoa, porque só Deus conhece o
coração do homem e, portanto, só Ele pode dizer quem deve amar quem sem que se
cometa nenhuma violência contra a natureza individual de cada pessoa. Se se
reconhecer isso, nada se pode fazer senão ser fiel à pessoa que se ama; e, se se é fiel a
esse amor, não se deseja mais amar assim nenhuma outra pessoa, e naturalmente toda
paixão é afastada da sua alma. Porque a paixão ofusca o olho do coração com desejos
compulsivos e ilusórios, quem ama não deseja ceder a ela, mas luta para se erguer acima
dela.

Por outro lado, qualquer amor, também o conjugal, não implica diretamente no tipo de
relação que se estabelecerá com aquela pessoa, porque a relação interpessoal é também
circunstancial, e o amor espiritual é somente do coração, podendo ele irradiar numa
forma de relação circunstancial ou não. Uma relação entre pessoas espirituais pode ser
formada com um simples olhar, e num único encontro, e as duas pessoas permanecerem
amando-se até o fim da vida sem nunca mais se verem, com toda certeza de que se
encontraram no céu. A dificuldade, e a confusão que me parece haver em todos os
escritos até hoje, é que os santos às vezes chamam de “amor puro” um amor que é
conjugal, e todo mundo chama de “amor conjugal” um amor que não tem nada de
conjugal, mas que é apenas paixão ou amizade no casamento, coisas que são
absolutamente distintas uma da outra. Por exemplo, na carta de são Bernardo a
Ermenengarda ele demonstra ter por ela um amor que é claramente conjugal, ainda que
puramente espiritual, como ele o afirma, que quer dizer simplesmente que ele não sofre
de paixão. Ora, São Bernardo não se expressa do mesmo modo com qualquer pessoa,
então ele deve admitir que seu amor por esta Ermenengarda tem algo de diferente do
amor dele pelas outras pessoas, porque senão ele não poderia ter mais cuidado por ela
do que pelos outros em seu coração. Também nos casos onde há uma espécie de
casamento místico entre o confessor e a monja, a única forma de entendermos isso é que
Deus deu a eles realmente um amor conjugal puramente espiritual um pelo outro, de
modo que, a monja, ao se abrir para seu confessor, por causa do dom do amor que
recebeu por ele, tem a graça de se abrir perfeitamente e se dar a conhecer a ele como um
todo, e ele a corresponde com a sua instrução, não só com palavras, mas com o coração
na mão, como uma pessoa inteira que está ali para dirigí-la, guia-la e conduzir sua alma
para Deus, coisa que ela reconhece porque o conhece, e o conhece porque o ama, e ele
se dá a conhecer no amor e ela também, de modo que pela união espiritual ambos
trilham um só Caminho para o Céu. Acontece que nem a todos é dado amar assim sem
sentir paixão, e foi por isso que São Paulo disse: “a cada um é dado seu dom”, e, “se
estiver ardendo de desejo é melhor casar”, etc... Às vezes o sujeito sente paixão sem ter
amor verdadeiro, mas, às vezes, como no caso de Heloísa e Abelardo, ele sente uma
paixão terrível justamente por ter amor verdadeiro e não saber distinguir uma coisa da
outra. Outras vezes, como São Bernardo, pode-se ter amor verdadeiro, amor conjugal,
sem ter paixão, e aí se está livre da relação conjugal mesmo sendo ela perfeitamente
possível, porque já se está determinado, neste caso, por vocação inclusive, a viver para
servir somente à Deus e cuidar das coisas de Deus, como dizia São Paulo.

O dom do amor conjugal está para a forma do amor conjugal assim como o ponto está
para a circunferência ou o coração para o corpo; ele é o que determina a forma do amor
conjugal. A forma do amor conjugal é dada pela imagem ideal do matrimônio cristão,
com as afetividades próprias da relação carnal entre um homem e uma mulher. Sem este
dom não é possível entender a origem e a necessidade do casamento, nem contemplá-lo
no sua verdadeira beleza. É no dom do amor conjugal que encontramos o pleno sentido
da vida matrimonial. O dom do amor conjugal é o conhecimento da intenção que Deus
tem com relação à criação do sexo humano desde a eternidade. O dom do amor conjugal
é uma fonte inextinguível de luz para o conhecimento mútuo dos esposos; é a vida
mesma da relação amorosa entre um homem e uma mulher; é a substancia daquilo que
os une efetivamente e de modo espiritual.

Todo mundo pode se apaixonar, se envolver numa relação amorosa com outra pessoa do
sexo oposto, e aí eles vão conhecer a forma do amor conjugal... a diferença é que sem o
dom do amor conjugal eles não vão entender espontaneamente, apenas refletindo sobre
sua experiência amorosa com seu conjuge, a origem espiritual dessa forma, quer dizer,
por que o casamento é assim. A pessoa pode se apaixonar, pode ter afetos pelo outro,
pode amá-lo sinceramente como amigo e querer o bem dele, e pode escolher passar o
resto da vida ao lado daquela pessoa, construindo com ela uma família unida e feliz...
porém, ela pode fazer tudo isso sem ter o dom do amor conjugal por aquela pessoa, quer
dizer, sem que o homem deseje ser o esposo espiritual da sua mulher, e vice-versa. Os
cônjuges não estarão unidos pelo amor conjugal, mas imitarão o amor conjugal na sua
forma para manter uma estrutura familiar estável. O que é “imitar o amor conjugal”? É
“sublimar” a sensualidade e dar um sentido superior a ela por meio da compreensão
intelectual do verdadeiro amor; quer dizer, é inserir o amor sensual que os esposos
sentem um pelo outro dentro de um contexto que abrange esse desejo sensual e dá um
sentido superior à união do casal por meio do entendimento da estrutura do matrimônio
como um todo. Aqui, portanto, o matrimônio é para essas pessoas um serviço divino ao
qual eles devem se dedicar santamente, e onde eles encontram um sentido espiritual
para o seu amor sensual. (Quando é assim, o relacionamento não tem vida própria,
porque não vem do coração dos esposos, e daí vem a necessidade de criar artifícios
teóricos e imaginários para justificar o próprio casamento; e daí também vem a ideia de
que o amor conjugal é a mesma coisa que paixão; ou que o casamento é só um meio
lícito que as pessoas encontram de fazer sexo; ou a ideia de que a finalidade do
casamento é a procriação). A diferença entre a “imitação do amor conjugal” e o “dom
do amor conjugal” é que o dom leva as pessoas a se unirem espontaneamente, com ou
sem amor sensual, de modo que elas são naturalmente levadas a uma relação conjugal,
mas não por causa da paixão que um sente pelo outro, mas por que um só consegue
pensar no outro como sendo seu esposo/esposa, um vai sempre querer conhecer o outro
como um todo e estar espiritualmente unido ao outro (ainda que carnalmente esta união
não possa acontecer).

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O amor verdadeiro significa que você tem uma obrigação especial para com a salvação
daquela alma que te foi encarregada por Deus.

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Em todos os elementos do amor conjugal que eu tento descrever
me parece que há sempre um componente de paixão e um de
amor ao próximo, de modo que eu não consigo distinguir amor
conjugal de paixão nem de amor ao próximo (é análogo à
combinação de corpo e alma, ou à combinação dos elementos
vegetal e animal na alma).
Mas o que é a paixão amorosa em si mesma? parece-me que ela é
geralmente identificada com a luxúria; mas será isso verdade? A
luxúria é um vício que começa com o desejo do prazer sexual em
si mesmo. A paixão está cheia de desejo sexual pela pessoa
amada, mas esse desejo não é desejo de sexo, mas de união com a
pessoa amada; o problema é que esse desejo de união é intuído no
desejo sexual, de modo que a paixão, o ardor pela união carnal
significa simultaneamente o desejo de se unir àquela pessoa como
um todo excluindo todas as outras. Ou seja, não há amor conjugal
sem paixão, mas também não há verdadeira paixão sem amor
ágape. A paixão sem amor é luxúria, mas a luxúria não pode ser
simplesmente paixão, porque se for assim então o único motivo
da existência do casamento é a luxúria do homem. Talvez o amor
conjugal seja até mesmo um dom, e talvez por isso São Paulo
tenha dito “gostaria que todos fossem como eu.... mas cada um
tem seu dom”. Se não houvesse paixão, não haveria motivo para o
casamento (sendo sua estrutura do jeito que é), porque a união
mais elevada que existe entre seres humanos é dada pelo amor
conjugal, que exige um certo tipo de afeto ou afeição que pode ser
mais ou menos apaixonada. A paixão, por outro lado, não nasce
do desejo sexual, mas da contemplação da outra pessoa como um
todo. E, depois, é preciso amar a Deus e ao próximo para se
apaixonar sem luxúria, porque também é possível se apaixonar
sem amor, e isso é luxúria, e não vem do amor da outra pessoa
como um todo, mas de uma fantasia do ego.
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Quando São Paulo diz “mas se estiver ardendo de desejo”, ele não diz “ardendo por
alguém”, mas simplesmente “ardendo de desejo”. Alguém pode arder de desejo sem ser
por alguém? Talvez ele estivesse se referindo às pessoas que desejam amar alguém
apaixonadamente, e não àquelas que não se aguentam por causa da luxúria, que só estão
buscando sexo ou prazer, afinal, este não é um motivo lícito para o casamento. Mas
àquelas pessoa que desejam amar alguém apaixonadamente, ele diz “a cada um foi dado
um dom”.

O amor místico das mulheres religiosas por Jesus é em tudo semelhante ao amor
apaixonado. A mulher religiosa que tem raptos místicos de união com Deus descreve
sua experiência do mesmo modo que uma mulher ama um homem apaixonadamente, e
não existe nada de luxúria neste amor. Todo mundo sabe do perigo que essas religiosas
correm de ter confundir o misticismo com devoção sensual. Esse tipo de experiência
mística só é possível quando Deus se faz Homem, e Jesus é Deus-Homem. Mas, Santa
Teresa, por exemplo, que ama Deus apaixonadamente, e que, como podemos ver nos
seus poemas onde, assim como no Cântico dos Cânticos, ela não poupa a sensualidade,
que esse amor apaixonado dela é isento de qualquer apelo à luxúria. Podemos perceber
que a sua sensualidade é pura e espiritual, e não sentimos o gosto da excitação carnal
nos seus escritos de amor. Seus afetos são de amor conjugal, mas sua paixão é isenta de
luxúria. Essa experiência de amor, elevada à enésima proporção quando uma mulher
tem essa experiência mística com o próprio Deus feito Homem, é substancialmente a
mesma experiência do amor apaixonado entre um homem e uma mulher, que é cada vez
mais semelhante ao amor da religiosa à Cristo na mesma medida em que esse homem e
essa mulher mais se assemelham ao próprio Cristo. A vocação religiosa, portanto,
principalmente no caso das mulheres, só pode ser plenamente realizada na terra caso ela
consiga subjugar todos os elementos da sua alma ao seu desejo de se submeter em tudo
à Jesus Cristo, e isso só pode ser realizado com a ajuda do próprio Deus. Também no
amor conjugal, a mulher só pode amar seu marido com a plenitude desse amor se
receber tal dom de Deus.

Lendo The Adam and Eve Syndrome, do Roy Masters, eu ardi de desejo de ter uma
esposa. Acho que esse é um sinal de que um homem pode se casar. Desde que se
reconheça tudo o que Roy Masters escreveu nesse livro, e se deseje ardentemente
enfrentar essa situação, considerando que tem tudo para sair vencedor com a ajuda de
Deus, é possível que esse seja um sinal do que podemos chamar “vocação matrimonial”.

Roy Masters é obrigatório para todos os casados. Ele diz claramente: ser esposo é isto;
ser esposa é isto. Quem ler e não encontrar a si mesmo no que foi escrito, e se o homem
não desejar casar para salvar a sua esposa, e a mulher não desejar casar para dar suporte
ao bem que há no seu marido, então essa pessoa não deve casar em hipótese alguma.
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O amor não se dá no prazer, mas na agonia, na participação da agonia, da luta do outro.

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Eu tenho um sonho no coração: no céu, eu queria ser o único a ter o direito de andar de
mãos dadas com você, só isso.

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Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento apresenta a concepção do casamento


graficamente como sendo a aliança entre Deus e Israel e entre Cristo e a Igreja. As
Escrituras claramente ensinam que o comprometimento sagrado do casamento foi
intencionado por Deus para ser um sinal sacramental do Seu amor por Seu povo.

Efésios 5,31-32 “Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois
constituirão uma só carne. Este mistério é grande, mas eu falo em Cristo e na Igreja.”.

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O sexo é um mistério. Se você não sente medo de se envolver sexualmente com a


pessoa que você ama, é porque você não a ama de verdade, é porque você está tendo
apenas um amor egoísta. Se envolver totalmente, de verdade, com uma pessoa é algo
muito grave que compromete sua existência inteira, e até seu futuro após a morte. O
sexo com a pessoa amada deve ser algo maravilhoso, claro, mas essa maravilha inclui
um mistério ao qual devemos nos aproximar com reverência e certo temor, e que
também moderam a excitação orgulhosa do ego e inclinam a alma humilde para o
conhecimento do outro sem agredi-lo.

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O amor natural

O sexo, por outro lado, também representa a queda do homem: toda vez que o marido
faz sexo com sua mulher, o homem morre nela, e a mulher chora a sua morte; no
entanto, também existe na possibilidade de gerar filhos a perspectiva da ressurreição: a
mulher sofre as dores do parto da ressurreição do próprio marido. Na mitologia pagã,
onde não há a perspectiva da ressurreição definitiva no fim dos tempos, o homem
ressuscita como homem carnal, e a mulher todo ano deve chorar sua morte e sofrer as
dores do parto da sua nova ressurreição. Se o ego exaltado do homem resolver que é
imortal, ele irá falhar, e irá idolatrar sua mulher vivendo uma vida que é morte. Mas,
para o homem viver com sua mulher sem cair, ele vai ter que morrer para si mesmo até
a próxima vez em que seu ego voltar a demandar o amor gratificador da mulher. E ela
deve chorar a morte do marido, que é um lamento do seu próprio orgulho que a levou a
amá-lo de forma criminosa.

No amor conjugal natural, a perspectiva da vitória definitiva sobre o ego fica


obscurecida pelo ciclo de morte e nascimento.

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No casamento, a mulher é o seu projeto; o homem é o seu projeto. Você casa porque
você quer edificar sua mulher, você quer conhece-la e viver com relação a ela, viver
“para ela”, quer dizer, para fazê-la sua mulher. Você vai torna-la sua mulher do mesmo
modo que vai se tornando o marido dela, conhecendo-a e dando-se a conhecer,
acolhendo e sendo acolhido; mas, na verdade, é a mulher que m mais irá acolher, e é o
homem que mais será acolhido.

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A mulher precisa do homem para se sentir segura. O homem é a fonte de vida


(espiritual) para a mulher.

Se o homem ama com amor conjugal verdadeiro, ele vai passar o resto da vida
trabalhando para buscar uma união mais perfeita com sua esposa, para conhece-la e
se envolver mais profundamente com ela. Ele tem que trabalhar em cima do amor que
ele tem pela mulher para atualizar esse amor na vida conjugal deles.

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Um grande mistério sobre o pecado original é este fato de que nós no nosso estado
decaído temos essa estranha capacidade de nos comprazermos na ilusão de sermos
como Deus. Esse estado de identificação com o ego em nosso orgulho não é
exatamente prazer, mas pode ser sentido como prazer intenso em certas
circunstâncias. Por exemplo, quando uma pessoa ama de verdade, mas vive uma vida
egoística movida pelo orgulho, sendo que esse amor agora serve de base aos
sentimentos egoístas, quando esse sujeito tiver prazer com sua amada ele se sentirá
de tal modo como deus que não conseguirá mais imaginar nenhum outro tipo de
felicidade que se compare a esta, o próprio paraíso não parecerá digno de ser buscado
para ele. Esse prazer é uma mistura de alívio com o prazer da contemplação. Não é só
porque o sujeito vive uma vida egoísta que ele não é capaz de amar de verdade, mas o
prazer que ele tem é uma mistura: ele tem alívio da culpa (psicológica) – na ausência
de insegurança, ciúmes, etc... –, alívio da dor (fisiológica) e algum prazer espiritual por
estar com sua amada (dom de Deus).

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O maior sofrimento do amante

A fidelidade do homem à mulher está relacionada com o prazer que ela lhe dá, mas a
fidelidade da mulher ao homem está relacionada com a segurança que ele é capaz de
lhe oferecer. Uma mulher que ama é capaz de dormir com um homem que não ama
simplesmente pelo que ele pode lhe oferecer de bens materiais e segurança; um
homem que ama não é capaz de se deitar com uma mulher que não ama, porque o
homem só se deita com a mulher por prazer, e o único prazer do homem que ama é
sua amada. Mas o único amado de uma mulher pode não oferecer a ela a segurança
que ela precisa. A mulher amada sempre oferecerá ao seu homem o maior prazer, de
modo que ele facilmente desprezará todas as outras mulheres.

Dizem que o homem que trai sua mulher tem menos culpa, porque ele faz isso só por
causa do prazer, enquanto que para que a mulher traia o homem ela precisa se
envolver sentimentalmente com o outro. Por outro lado, existe o tipo de mulher que
sabe usar o uso que o homem faz dela para conseguir outros bens em troca, e essa
mulher é capaz de trair seu amado sem remorsos, porque para ela o sexo não significa
nada. Se o homem sabe como usar as mulheres para ter prazer, as mulheres sabem
como usar o uso que o homem faz delas para obter deles bens materiais, poder e
segurança. O homem degrada a mulher usando ela, e a mulher degrada o homem
usando o uso que ele faz dela.

O corpo da mulher é muito mais importante para o homem do que o corpo do homem
o é para a mulher. O corpo da mulher tem um significado especial para o homem, ele é
um verdadeiro templo onde o homem adentra para festejar sua união com ela. O
corpo da mulher é uma casa para o homem, uma habitação sagrada que é o descanso
dele, um “jardim selado”. O corpo do homem não é isso para a mulher, ele tem outro
significado para ela. Se um homem se deita com outra mulher, o corpo dele não é tão
manchado como o da mulher que comete adultério. A mulher não sente nojo do corpo
do homem que cometeu adultério nem do que foi abusado por outro homem. Mas o
homem sente repugnância do corpo da sua mulher se ela foi abusada por outro.
Porque é o homem que entra na mulher, e ele sente que esse lugar é sagrado para ele.
A mulher recebe o homem, mas como ele é todo exterior, o adultério não o deixa sujo,
bastando que ele se lave para limpar toda a sujeira. A mulher pode engravidar de
outro homem, já o corpo do homem não é alterado pela mulher. O corpo da mulher é
muito mais importante para o homem do que o corpo do homem para a mulher, mas o
amor do homem é igualmente importante para a mulher como o corpo da mulher é
para o homem. Há aí um desequilíbrio natural: o homem, quando ama, não pode
desamar uma mulher para amar outra; mas, a mulher, quando ama, pode dar seu
corpo a outro se ela quiser sem sentir nenhuma mágoa nisso. O adultério de uma
mulher dói muito para o homem, porque ele enxerga o amor dela em união com a
atitude corporal dela para com ele, enquanto que a mulher separa uma coisa e outra,
porque ela vê o amor do homem separado da atitude corporal dele para com ela,
sendo esta uma coisa secundária na relação.

A mulher não é tão ferida quando um homem faz sexo com outra do que quando ele
demonstra ter sentimentos de afeto por outra. Para o homem é diferente, quando a
mulher dorme com outro ele encara essa atitude como uma traição monstruosa; ele
não sabe que a mulher é capaz de vender seu corpo com a maior falsidade, com
indiferença. A mulher tem medo de que o homem traia ela com outra, mas o maior
medo dela é que ele acabe se envolvendo sentimentalmente com a outra e passe a
despreza-la. O homem tem medo de que a mulher o traia com outro porque pensa que
ela pode facilmente ceder à pressão de outro homem e acabar tendendo para ele sem
saber como impedi-lo de chegar até o coração dela. A mulher pensa que o homem
pode ser atraído por uma mulher mais bonita; o homem pensa que a mulher pode traí-
lo com algum homem mais forte, atrevido e poderoso.

O maior sofrimento de todos os sofrimentos do coração é saber que sua mulher está
dormindo com outro sujeito, pior ainda se for seu amigo. Esse sofrimento atroz é causa
de desespero. O coração é tomado por uma profunda tristeza e desânimo, não se tem
mais vontade de fazer nada, de pensar nada, de viver nada. É como ser excluído da
existência, como se não houvesse mais lugar para mim no céu, ou como se o céu fosse
uma dimensão completamente nova onde tudo que existe na terra é vão será
esquecido para sempre. Isso é assim porque não se pode conceber outro céu que não
a união com sua amada. Quando sua amada está dormindo com outro homem, é como
se você fosse automaticamente desligado dela e ela de você, como se ela estivesse
cumprindo um ritual que a desligasse completamente de você e você dela. Esse ritual
que ela faz não a liga a outra pessoa automaticamente, pois o Amor só pode ligar
efetivamente aquele par que ele absorveu em Si numa unidade. Mas esse ato dela
dormir com outro sujeito é uma ação consciente e livre que se opõe ao amor do
amante, como que negando-o ou desprezando-o da maneira mais brutal e concreta. O
sexo é como um ritual de amor, a celebração do amor conjugal, de modo que se sua
amada faz sexo com outro sujeito ela está negando e desprezando seu amor da forma
mais solene e definitiva; mas, se ela não ama o sujeito com quem faz isso, e se é
impossível para o sujeito amá-la como você a ama, então todo esse ritual simbólico no
caso deles é apenas um “mito”, um ritual cuja substância não existe efetivamente, um
rito que significa uma realidade que não existe entre eles. De qualquer modo, se estão
casados, eles têm direito sobre o corpo um do outro. Só o amor conjugal não dá
nenhum direito sobre o corpo do outro, porque todo direito é social, e o casamento é
uma estrutura social, e o sexo só pode ser concebido moralmente dentro do
matrimônio, de modo que o direito sobre o corpo do outro deve ser socialmente
reconhecido, mas é impossível reconhecer socialmente o sentimento de uma pessoa,
ainda mais um sentimento tão profundo e único, e que nem todos possuem
capacidade para compreender. Se o amante não é correspondido, ele estará
condenado a não ter mais a felicidade que se pode ter nesta vida; se ele não aprender
o caminho da humildade ele se perderá.

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Por que motivo o amor pode tornar um homem pior:

“Você foi carregado pela beleza dela, pela sua esperança de se deleitar nela, e pelo seu
impetuoso desejo” – se ele agir só por estes motivos, ignorando todo o contexto, se
ignorar o bem e o mal, e o qual é o melhor caminho como um todo, então ele age mal.

Não é fácil condenar o amor. Vejamos como Petrarca, pela boca de Santo Agostinho,
condena o amor por meio de seus sintomas:

“Lembre-se de como, assim que essa praga tomou posse da sua mente, você estourou
em lágrimas; como você ficou tão infeliz que você passou a ter um lúgubre prazer nas
lágrimas e suspiros; como suas noites eram de insônia e o nome da sua amada estava
sempre em seus lábios; como você desdenhava tudo e ansiava pela morte; e como
você teve um amor melancólico pela solidão evitava contato humano.”

Veja que todos esses sintomas, que se sucedem ao amor, não são causados pelo amor,
mas sim pelos vícios que já estavam alocados na alma antes da chegada do amor. O
amor cria uma tentação e uma tensão, tensão que é a dor mais profunda, uma
constatação de uma ausência; ele gera um novo estado de cosias. Diante dessa nova
situação, a alma pode reagir virtuosamente ou viciosamente, ou, como geralmente
acontece, conflituosamente em meio aos seus próprios vícios e virtudes. O amor,
inflamando a alma como um todo, não permite que os vícios e as virtudes continuem
existindo ao mesmo tempo, de modo que a alma que ama geralmente ascende
rapidamente na virtude ou se degrada completamente no vício. Então, não se pode
condenar o amor pelos seus sintomas, já que esses sintomas são apenas a
manifestação dos vícios que já existiam na alma mas que antes não eram sentidos, pois
estando a própria alma sonolenta, ela fica menos sensível aos seus próprios vícios e
virtudes. Quando a alma acorda subitamente, com um desejo que ela não sabe de quê,
nem vindo de onde, ela faz o estômago revirar como que pressentindo uma grande
guerra. E a guerra é esta: aquilo que eu amo pessoalmente, e a quem desejo me unir
de todo coração, é, assim como eu, alma e corpo, e meu amor por ela é carnal-
espiritual, mas enquanto minha carne é movida para baixo, minha alma é movida para
cima, e meu amor não pode existir sem um e sem outro, e eu não posso viver sem
amar.

Depois, ele cita um outro autor que disse: “se você tentar resolver essas contradições
por meio da razão, tudo que você estará fazendo é cuidando de ficar louco de um
modo racional”.
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O erro de tratar o amor como uma doença da mente

Ao tratar o amor como sendo uma doença da mente, é preciso curá-lo. Como fazer
para curá-lo? Os doutos no assunto dizem que, se o indivíduo querer mesmo ser
curado, basta ele se afastar de tudo o que o faz lembrar da pessoa amada, e aí ele irá
esquecê-la.

Contra argumento: ora, mas como podemos achar a cura de uma doença se não
sabemos nem quais são suas causas? Para começar, porque alguém começa a amar
uma pessoa em especial, e no que consiste esse amor? Depois, como é que se pode
curar algo pelo simples esquecimento do problema? Esse método é uma imbecilidade
suprema. O que acontece é que a pessoa pode persistir obstinadamente em não
lembrar da pessoa amada e se esforçar para pensar em outra pessoa que se quer amar
no lugar dela – se aquela pessoa amada voltar e reivindicar o seu amor, esse indivíduo
se dará conta de que nunca a esqueceu de verdade, pois mesmo que não ceda ao seu
amor, certamente ficará perturbado e terá que fugir de novo. Mas, de qualquer modo,
não é possível ser realmente feliz longe do seu amor, porque só nele o amante
encontra a perspectiva da plena felicidade.

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O desejo mais alto de amor que eu tenho é desejar que minha esposa deseje carregar
um filho meu. Se ela deseja isso de coração, então ela vai gerar um filho meu na sua
própria alma e vai cuidar dele para mim. Esse filho é o fruto do meu amor que fecunda
a sua alma fértil. Esse filho sou eu nela, sou eu sendo dela, gerado por ela; eu
providencio a vida para ambos, dando a ela o material, a substância, com que ela
alimenta e protege o seu filho. Para que eu encontre repouso nela, eu preciso ser
aceito por ela, para que eu possa provê-la com minha vida. Eu quero que ela seja para
mim o meu tabernáculo, onde eu coloco meu coração, e a mãe dos meus filhos, que
completam a nossa alegria. Um filho é sempre novo, autônomo, como uma metáfora
ambulante do amor dos esposos. Uma casa cheia de filhos é a alegria do amor profícuo
de duas almas bem unidas.

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A mulher bela – a beleza do corpo da mulher

“Uma bela virgem é bela” – Hípias Maior 287e.

O que a mulher bela significa para o homem? OU, Por que o homem é fraco pela
beleza feminina?
A bela virgem tem a sua beleza intacta, pura, porque ninguém a conheceu, sendo por
isso mais desejável que a bela não virgem.

*Tudo o que a beleza parece fazer é revelar com esplendor a adequação da figura da
coisa à sua forma ideal.

Símbolo do corpo masculino e feminino (analogias com o corpo):

Masculino:

Primeiro, é notável como o corpo do homem, comparado com o da mulher, é mais


forte, duro e voltado para o exterior (como se evidencia na sua postura e no órgão
sexual). Assim, a postura do homem adequada ao corpo masculino é mais rígida que a
da mulher, com movimentos mais “retos” e rápidos ou “bruscos”. A dureza do seu
corpo “repeli” mais do que “atrai”, e sua força o torna útil para prover (conforto e
proteção) e para explorar (característica de expansão). O corpo do homem é mais
“seco” que o da mulher – por isso a mulher costuma ser mais resistente ao efeito do
álcool. O corpo masculino é próprio para gerar movimento, ação; o homem faz cosias,
move coisas, faz pressão para transformar o seu meio. Assim, o corpo masculino é
todo voltado para o serviço, de modo que o homem evidencia maximamente a
Bondade do Criador ao oferecer e prestar serviço ao próximo. Um corpo masculino é
belo porque é bom. Então, a virtude correspondente ao corpo masculino, para tornar o
homem perfeitamente adequado à masculinidade do corpo, é a continência, a
sabedoria de se conter. De fato, vemos que um homem incontinente se comporta mais
como uma besta do que como um homem, e é a característica que mais o degrada,
porque ao invés dele utilizar seu corpo para o que lhe é próprio, para fazer o bem, ele
utilizará o corpo para obter prazer egoisticamente, degradando a mulher e a si mesmo.
Um homem não continente dificilmente poderia cumprir os seus serviços que ele
oferecesse a alguém, ou ao menos um homem continente é mais confiável em
qualquer caso, pois é mais capaz de se ater ao bem que se propõe.

Feminino:

Primeiro, é notável que o corpo da mulher é em tudo mais agradável aos sentidos do
que o corpo do homem, e principalmente atraente aos olhos, sendo propício para
promover o contato humano por meio da atração, sendo a mulher mais convidativa à
convivência que o homem. Além disso, a maciez (“umidade”) do corpo feminino o
torna propício ao aconchego, seja do bebê seja do homem, servindo para ele como
que de almofada; em que lugar o homem colocaria um filho seu senão no corpo da
própria mulher? Em tudo o corpo feminino é útil para acomodar o homem e carregar
seus filhos e cuidar deles. Do mesmo modo, o corpo feminino é propício para oferecer
companhia, para oferecer convivência, pelo seu aspecto centrípeto, de atração, de
gravitação. O corpo feminino não é tão eficiente na ação, na qualidade do movimento
físico (força e agilidade), sendo mais apropriado para o repouso, mas por causa da sua
energia psíquica ele como que oferece uma base para a ação do homem por meio do
“acolhimento”, do cuidado (nutrição) e da preocupação. Assim, o corpo da mulher
evidencia maximamente a Beleza do Criador – e de forma misteriosa, devo dizer –
principalmente como o “lugar” da geração do bem (ver Platão). Dessa perspectiva,
podemos inferir que a virtude correspondente ao corpo feminino, quer dizer, aquela
virtude que corresponde no plano espiritual à beleza do corpo feminino como um
todo, é a virtude da modéstia: do agir de modo mais apropriado em todas as coisas. De
fato, vemos que quando uma mulher não é modesta, essa falta nela a torna mais
provocante para o homem, ofendendo-o, pois ao invés desta mulher estar oferecendo
convivência, ela está na verdade oferecendo mais tentação do que outra coisa. O
corpo feminino é bom porque é belo. Uma boa mulher é modesta.

-//-

Se eu amo uma pessoa que não me ama do mesmo modo, então eu tenho ciúmes da
“felicidade” dela, porque é como se isto que a faz feliz a estivesse roubando de mim; e,
por outro lado, é como se eu desejasse roubar esta felicidade dela sempre que eu a
desejasse para mim.

Fazer o bem ao “próximo” ou desejar o bem do “peóximo” é diferente de desejar fazer


o bem a quem eu amo (de amor conjugal). Para o “próximo” eu não sou “eu”, mas
“alguém”; quer dizer, quando eu faço o bem ao “próximo” eu não desejo ser
reconhecido como sendo “eu mesmo”, mas como sendo apenas “seu próximo”, isto é,
simplesmente “algum homem” que estava passando pela mesma estrada naquele
momento em que ele precisava de ajuda. Ou seja, eu não desejei estar ali, foi a
Providência que me pôs ali naquelas condições, e daí a Caridade exigiu de mim seus
serviços naquele momento. Já no amor conjugal não é assim, porque, além do meu
conjuge ser o meu “próximo” em algumas circunstâncias, ele também é meu
companheiro com quem muito desejo estar intimamente unido. Ou seja, ao mesmo
tempo que desejo o bem da minha amada, também desejo que ela me receba como
sendo “eu mesmo” um bem para ela. No amor, deseja-se possuir um bem, no caso do
amor conjugal, esse bem é o amor do outro: quem ama deseja ser correspondido do
mesmo modo. Eu desejo ser para minha amada o que ela é para mim, e ela é o meu
maior bem. Há aí um conflito, porque se eu quero o bem dela, eu ao mesmo tempo
quero ser o bem dela, de modo que existem dois bens em competição: o que ela
precisa, e o que eu quero que ela precise. Quem quer ser desejado no amor quer ser
necessitado, porque quem ama se vê miserável sem o amor da pessoa amada. Por isso,
toda vez que o amante deseja o bem da pessoa amada, ele sofre a tensão de ao
mesmo tempo desejar ser o único bem dela, e estas duas coisas estão misturadas e
confundidas em todas suas ações com relação à ela. Por isso o amante quase sempre
confunde o bem que deve fazer por caridade com o valor que ele deseja ter para a
pessoa que ama, e assim ele agirá mais tendo em vista a autopromoção do que o bem
da pessoa amada. Mas por que o amante acaba confundindo estas duas coisas quase
que inevitavelmente? Porque o homem cria uma imagem que representa aquilo que
ele pensa ser, e, no seu orgulho, se torna inclinado a realizar essa imagem que ele
criou às custas da própria realidade, de modo que, se atendo mais aos seus desejos do
que à própria realidade, ele acaba acreditando que será mais igual a si mesmo por
meio da imitação de certas imagens que concebeu como boas, e não por meio da
humildade, do padecimento e da obediência ao que há de mais sagrado na sua vida –
porque esta última opção não dá a ele nenhuma evidência de que ele atingirá os seus
propósitos, de modo que ele deverá agir com fé, esperando que o melhor haverá de se
cumprir de qualquer modo.

Ora, amar com amor conjugal significa que me unir com minha amada é um bem
supremo para mim. Essa união irá durar enquanto durar o amor – mas “o amor é forte
como a morte”. Então, a pessoa que eu amo, eu também desejo como sendo um bem
exclusivo meu. Mas, como a felicidade no amor depende da união de duas pessoas
livres, é preciso que ambos amem igualmente, tornando-se assim o bem um do outro,
sendo ambos como que coagidos pelo mesmo amor e atraídos um para o outro. O que
fazer, então, se o amor não afeta ambos do mesmo modo? Aquele que ama desejará a
sua amada como o maior de seus bens enquanto que ele mesmo não será um bem
equivalente para ela. Portanto, se ele desejar ela, ele estará desejando a si mesmo
para ela, e assim estará desejando para ela algo que ela não deseja para si mesma. É
evidente que ao deseja-la ele estará ao mesmo tempo desejando ser o bem dela tanto
quanto ela é o dele, mas ele não é o bem dela ao menos tal como ela o vê neste
momento. Assim, ao deseja-la, ele estará desejando para ela algo que ela não deseja
para si mesma. Mas como pode alguém amar uma mulher sem deseja-la? Porque, se
ele a ama, a ama por pura necessidade, então como não deseja-la? Esse desejo do
amor é como terra sedenta e sem água, é a necessidade do amor, amor que é dado e
não criado do nada, e é dado pela revelação do valor do bem que se vê. Acontece,
porém, que quem ama não pode fazer nada para obter dessa água – ela está selada na
rocha e ele não é capaz de invoca-la. Quem ama deseja com um desejo que é
necessidade. Quem ama necessita como quem tem sede: pela fé no amor tem-se
maior prazer na esperança de se obter o que deseja do que dor provocada pela
necessidade, e quanto maior a necessidade maior o prazer de se esperar com fé. Mas
o amor mesmo ninguém vê, porque ele é o que une dois numa visão mútua. Quem
ama não busca realizar o que deseja, pois não sabe nem o que deseja, só sabe o que
ama: ele ama a rocha e deseja a água, mas a água está escondida na rocha e ele não
sabe se está lá ou não, ele só pressente; assim também ele ama o corpo e deseja o
amor da pessoa escondida naquele corpo. Buscar o que deseja é loucura, pois é algo
que está além das suas faculdades.

Volto à questão: pode o amante desejar a amada sem que ao mesmo tempo deseje a
si mesmo para ela? Se ele a ama, deseja o amor dela, se ele a deseja porque a ama,
também deseja que ela o deseje do mesmo modo. Se ele quer que ela seja dele, quer
que ele seja dela – então deseja-la é o mesmo que querer a si mesmo para ela! Porém,
quem deseja, deseja o que? O desejo do amor é duas coisas: desejo do corpo e desejo
do coração da pessoa amada. O desejo do corpo é insano, nunca se sacia, é irracional
porque não se realiza nunca. Já o desejo do coração, o desejo de amor correspondido,
esse desejo é pura necessidade – e não se refere a nenhum bem terreno. Então,
desejar o amor da pessoa amada é apenas uma consequência de amá-la, mas desejar o
corpo de quem se ama é o mesmo que desejar a si mesmo para ela – o que é puro
egoísmo.

Então, como vimos, quando um amante deseja sua amada, ele a deseja como um todo,
e não consegue distinguir facilmente as diversas camadas do seu desejo, de modo que
o desejo pelo corpo da amada aparece com tanta intensidade quanto for o desejo de
ser correspondido pelo amor do coração dela. De fato, a unidade que se vê entre alma
e corpo é tão profunda que é tão difícil aceitar a distinção desses desejos quanto é
difícil aceitar a própria morte. Quem ama uma pessoa, não tem ciúmes só dos seus
afetos, mas também do seu corpo, e com igual intensidade. Assim, o chevalier des
grieux sofre desesperadamente ao ver a sua Manon Lescaut o traindo com outro
homem, e, no entanto, mesmo que ela também o amasse de verdade, ela envia para
ele uma outra mulher e diz algo como: “eu só quero a fidelidade dos seus afetos não
do seu corpo”. Mas Manon estava cruelmente certa em saber distinguir estas duas
realidades! Ela sabe que pode ter o corpo “usado” por outro homem e ainda
permanecer amando seu amante com o mesmo tipo de puro e sincero afeto que ele
tem por ela; mas isso será sentido por ele como uma dolorosa traição, e ele se sentirá
ferido ainda que seu amor verdadeiro esteja intacto: porque o amor mesmo não sofre
qualquer perda, só o homem é que perde ao “cair” do amor para o ódio. Ele vai
continuar amando ela do mesmo jeito, mas poderá se rebelar contra o amor
orgulhosamente e passar a agir de modo desordenado – talvez entre numa disputa por
poder, ou se torne um tirano, ou seja infeliz tentando fazer com que sua amada
também seja infeliz – tudo isso por causa do orgulho. O amor mesmo jamais é
atingido, só o que é atingido é o nosso orgulho. Mas quem sabe amar, sabe que deseja
acima de tudo o amor da pessoa amada, porque sabe que esse amor é eterno; depois,
deseja que esse amor se manifeste nos afetos do coração da pessoa amada. Só que
quando isso acontece a alguém, essa pessoa se vê invadida por uma variedade de
sentimentos, emoções, paixões, temores, desejos, como se estivesse caído dentro de
um fluido turbulento. Isso acontece porque a natureza decaída cria resistências ao
amor. Então, o desejo do corpo da pessoa amada passa a estar em primeiro plano,
porque o homem carnal tem sua atenção voltada a este e não ao plano das realidades
mais sutis, de modo que ele vai tentar realizar seus desejos mais baixos sem se dar
conta de que eles não correspondem ao amor, mas são como que efeitos colaterais do
amor.
-//-

A afetividade está muito relacionada ao corpo; e a beleza do corpo, de modo geral,


favorece a afetividade humana. Afetividade e sexualidade estão muito relacionados,
uma desperta a outra. Porém, a espiritualidade também está presente no corpo e o
corpo na espiritualidade, mas a espiritualidade transcende o corpo; isso quer dizer que
um homem pode ter afetos carnais ou carnais-espirituais. Quer dizer, o homem pode
sentir as mesmas coisas por diversos motivos diferentes. Assim como um mesmo fato
pode ser interpretado de muitos modos e significar cosias diferentes para pessoas
diferentes, de igual modo uma mesma causa pode provocar diversos sentimentos; e
também um sentimento pode ter origem em causas diversas. Uma pessoa pode ter
raiva simplesmente porque está com fome, ou pode ter raiva porque na hora em que
ia comer o seu bife ele escorregou do prato e caiu, ou pode ter raiva porque alguém
roubou o único pão que tinha para alimentar a família: cada uma dessas raivas será
diferente e levará a atitudes diferentes diante dessa emoção; este homem pode
simplesmente ignorar a raiva no primeiro caso e pensar que ela é um sinal do seu amor
próprio e que não fará nenhuma diferença para o universo se ele morrer de fome ou
não – ou então ele pode simplesmente xingar o primeiro indivíduo que lhe der “bom
dia”; no segundo caso, ele pode pensar na fragilidade humana que é sujeita a erros, ou
pode dar um soco na mesa e amaldiçoar o mundo; no terceiro caso ele poderá correr
atrás do vagabundo (digamos que o caso seja esse) e tentar captura-lo ou, então,
inventar uma desculpa para frustrar a sua raiva e esconder o seu orgulho ferido
mentindo para si mesmo por covardia. O terceiro caso é o único em que a raiva
corresponde a um valor: ela corresponde ao zelo pela justiça. Do mesmo modo, aquela
afetividade do homem que está relacionada à sexualidade, a afetividade do consolo e
do prazer sensual, as pessoas podem ter esses afetos por diferentes causas, e segundo
essas causas nós podemos afirmar o que uma pessoa busca na sua relação com outra
pessoa. Uma bela mulher tende a ser tratada carinhosamente pelo homem em geral,
porque a visão da sua beleza desperta nele a sensualidade, e ele reage mais ao
sentimento da sua sexualidade despertada do que àquilo que essa mulher deseja que
ele veja nela – na hipótese dela realmente querer que ele veja algo além do seu corpo.
Qualquer homem pode achar que essa sensualidade é amor, porque ela gera
sentimentos de amor. Mas esses sentimentos de amor também são gerados por outras
causas, significando outras coisas e estabelecendo um outro tipo de relação entre
pessoas e entre as pessoas e seus corpos.

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Amor e Divina Providência

O amor é algo que acontece. Amor acontece num momento, como que num passe de
mágica. De fato, como pode haver uma evolução gradual do verdadeiro amor? Existe
um abismo entre o amor do próximo e o amor que é se enamorar por uma pessoa do
sexo oposto por ter visto sua beleza com os olhos do coração. Mas isso acontece num
momento, numa circunstância, e esse acontecimento é único e irrepetível, e até onde
sei não acontece da pessoa amar desta forma duas vezes na vida. Se um homem amou
duas mulheres, ele não amou nenhuma delas, e vice-versa; se amou uma mulher desse
jeito, a amou de uma vez por todas porque esse amor é eterno – só acabando
realmente no caso da pessoa amada ir para o inferno, onde “mesmo o que tem lhe
será tirado”.

Se esse amor acontece num momento, e acontece para uma pessoa e para outra não,
no decurso de uma vida, além de que não pode acontecer duas vezes, pois que esse
acontecimento deixa uma marca profunda cuja dura cicatriz não pode ser novamente
penetrada por outra lâmina, então esse acontecimento deve ter um significado único
para a vida do indivíduo que o padece, e esse significado transcendente deve ter em
vista a Divina Providência.

Casar com uma pessoa é casar com um projeto de vida humana, e com um “estilo” de
vida.

Só se você casa com uma pessoa por confiar na Providência divina, por ter se
entregado à Divina Providência, e não por desejar mulher ou homem, é que faz sentido
você se deitar com seu conjuge para ter filhos e não por sensualidade. Se você casou
com uma pessoa porque acredita e confia que Deus a reservou para você de algum
modo, então pode-se presumir que os frutos dessa união serão mais agradáveis a
Deus, mais conforme seus desígnios, por assim dizer.

Amar é sofrer. O sexo é a consolação do sofrimento que é amor – ele não cura, é só
consolação. Se eu casar com a mulher que eu amo, continuarei sofrendo de amor por
ela, e ela só pode me consolar disso, e melhor ainda se nós pudermos ser o consolo um
do outro, mas o sofrimento não acaba enquanto a morte não nos libertar da temporal
separação para a união na eternidade.

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Livro: Sobre el amor humano (título em português: “O que Deus Uniu”)

“conhecer o amor perfeito e sem retorno/ exige corações que em suas próprias
derrotas,/entre largos esforços e amarguras derrotas,/ hajam com rudes golpes
lavrado seu contorno.”

“Os instintos e as paixões do homem estão feitos para o espírito; seu estado normal é
estar abertos e transparentes a esta força imaterial que os completa e os coroa.”
25-26% ele fala sobre a tendência moderna de espiritualidade: “Uma renúncia
absoluta ao exercício de certas faculdades naturais chegam a ser condição, não digo
inúteis, mas sim cada vez menos necessárias para os contatos profundos com Deus,
para a imersão da alma na caridade.”. E há para isso duas causas: “uma tomada de
consciência mais profunda de Deus e de nós mesmos... e um considerável
esgotamento do tonos vital que já não nos permite grandes tensões ascéticas”. “Por
outro lado, se desenha atualmente no mundo católico um vasto movimento intelectual
em favor da espiritualização das coisas do corpo e da vida.”.

“Todo amor que chega à maturidade, entregue a si mesmo, chega a unir-se ao Amor”.

-//-

A confusão das formas de expressão do amor

Os atos de “amor” ou carícias afetivas são atos puramente físicos, “instintivos”, de


modo que podem ser interpretados de várias maneiras, como significando coisas
diversas. O ato com que um homem usa uma mulher, ou com que uma mulher usa o
uso que o homem faz dela, coincide na sua estrutura física com o ato de mais puro
amor conjugal. E também é assim com todas as outras carícias, de modo que um
homem que realmente ama uma mulher deverá se expressar de um modo muito
similar àquele do homem que deseja apenas conquistar uma mulher por motivos mais
sensuais do que vitais.

“Nenhum afeto pode permanecer puro e verdadeiro se os seus componentes humanos


não concordam com o amor divino. Entre as condições para esse acordo, há duas que
se enraízam no coração mesmo de nosso destino: a verdade e a dor.”.

“Somente os afetos que resistem à destruição e à “noite” de seu primeiro componente


sentimental estão chamados a transcender no tempo. Um amor é grande e duradouro
na medida em que o nutrem a decepção e as dores semeados em seu caminho.”.

“Não há mito mais venenoso do que pretender realizar uma síntese afetiva universal
no plano dos prazeres sensíveis. Tal mito leva à dissolução e agonia de todo amor. A
síntese das paixões e do amor transcendente, da inquietude temporal e da paz eterna,
jamais se há consumado senão no desprendimento e no silêncio do temporal e
sensível.".

Sobre casamento entre castas sociais distintas:

“Direi claramente: esta confusão não supõe progresso. A identidade do meio social me
parece uma das condições centrais da felicidade conjugal. Desde logo não rechaço em
absoluto as uniões entre pessoas de meios diferentes. Penso unicamente que devem
constituir exceção, já que exigem de uma e de outra parte qualidade individuais que
não se podem pedir à generalidade dos homens. Quando um homem e uma mulher
entram pelo matrimônio em um meio superior, ou simplesmente diferente do seu, é
preciso que entrem sabendo (hoje em dia se pensa demasiado que se pode entrar em
qualquer lugar sem escalas) e que supram com seu poder de amor e adaptação à
comunhão espontânea que resulta da identidade do meio. Um príncipe só pode
desposar acertadamente com uma pastora se a pastora possui uma alma de princesa,
e estaremos de acordo que pastoras assim não andam pelo mundo. Uma das taras do
mundo moderno é pretender fazer costume do que só pode ser exceção e cair mais
baixo da norma ao querer generalizar aquilo que está por cima da norma.”

“não há nada tão perfeitamente egoísta como certos matrimônios de amor que não
nascem da união íntima das almas, senão da sede vulgar de uma felicidade superficial
e imediata, de uma felicidade impermeável ao dever.”.

Nós olhamos para outras mulheres por curiosidade – luta contra uma das múltiplas
variedades de sede de infinito que desde o pecado original consume o homem.

Nietzsche: “no verdadeiro amor, a alma envolve o corpo”.

“Pois bem, a constituição sexual da mulher e, como consequência, seus gostos e suas
necessidades nesta ordem, são muito diferentes das do homem. Além disso, temos
que levar em conta as divergências individuais resultantes do temperamento, a
educação, etc. Se cada um dos cônjuges não buscar a sua própria satisfação, o que irá
acontecer? O sentido mais elementar do dever conjugal ensina aos esposos a
subordinar sempre o gozo que recebem ao gozo que dão. No matrimônio, o máximo
da plenitude sexual recíproca não pode ser alcançado se cada um dos esposos não
consinta em sacrificar em certa medida sua plenitude sexual individual.”

obs.: Isso significa que a continência no matrimônio é simplesmente estar atento a


essa realidade: se você ama sua mulher, você vai querer fazer sexo com ela só quando
ela te desejar. A sexualidade nas mulheres funciona de um modo diferente. No que diz
respeito ao sexo, são as mulheres que naturalmente devem “ditar” o momento certo,
porque a mulher tem o privilégio de ser a parte atraente ou em repouso da relação
enquanto que o homem é a parte que é atraída ou que deve se movimentar para ter o
que deseja; além disso, e de acordo com isso, o homem só depende da visão da
mulher para se preparar para o ato sexual, enquanto que na mulher essa preparação é
mais complicada. Para o homem o sexo é a melhor coisa que há, e não há motivo para
que ele não queira fazer isso até começar a sentir dor; mas para a mulher o apetite
sexual dela não é assim, a sexualidade da mulher é mais interior e menos vulnerável às
irradiações que vem do exterior. Isso tudo eu digo somente com relação ao estado
ideal da natureza pura (não individual, de cada um).

“O homem geralmente sublima seu instinto sexual em pensamento, em ideal


extrapessoal; a mulher, em ternura. Se a mulher é muito menos carnal que o homem
no exercício material da sexualidade, o é muito mais em suas sublimações mais sãs. A
compenetração da carne e da alma se dá nela em um grau desconhecido para o sexo
oposto. Nas emoções mais carnais ela põe mais alma que o homem; e, em vingança,
mescla mais a carne às paixões do espírito... Sua sexualidade, muito menos localizada e
brutal, muito menos animal, por assim dizer, que a do homem, encontra
frequentemente em manifestações muito inocentes de ternura uma satisfação quase
suficiente. Mas as mesmas carícias que, para a mulher, substituem a plena possessão
carnal, no homem não podem senão preparar esta possessão, e no lugar de acalmar o
instinto, torna-o mais exacerbado.”.

“A mulher, com efeito, pode realizar o prodígio (absolutamente desconhecido no


mundo animal) de fazer convergir num mesmo ser seu instinto sexual e seu instinto
maternal. Creio não exagerar se digo que o primeiro filho de toda mulher, nascida
realmente para ser mãe, é seu esposo. E creio que esta é uma das mais profundas
raízes da perenidade do grande amor feminino.”.

• Amor feminino -> mãe e esposa (representação simbólica e alegórica ou


personificada). Mãe= amor espiritual; esposa=amor carnal.

“A mulher foi criada para sacrificar-se pelos seres que a rodeiam e que conhece e
assegurar o porvir imediato da humanidade. O homem, ao contrário, está destinado a
uma doação mais universal”. “O afeto da mulher se universaliza em contato com o
ideal de seu esposo; e também o amor do homem ganha em delicadeza concreta em
contato com a ternura feminina.”.

“No matrimônio é preciso, assim como na vida mística, aprender a respeitar e amar o
que não se compreende de todo. Também o amor da criatura exige atos de fé.”

“ ‘Sentir como o ser sagrado se estremece no ser querido’, assim define


maravilhosamente Víctor Hugo o grande amor. Desse modo o ser amado é realmente
insubstituível: dado por Deus, é único como Deus; um mistério inesgotável habita nele.
Os verdadeiros esposos conservam eternamente almas de noivos: a possessão
aprofunda para eles a virgindade. Quanto mais são um do outro, mais fome têm um do
outro. É uma maneira sagrada de possuir as cosias que, em lugar de matar o desejo
como na satisfação carnal, o exalta e transfigura... Como pode se esgotar o amor dos
esposos, se foram criados e unidos para dar-se Deus um ao outro? A vida dos dois se
desenrola e se faz infinita em uma oração única.”.

“Nenhum outro amor impregna mais forte e totalmente ao homem que o amor entre
os sexos, inclusive na ordem do espírito e da personalidade. Nada entre as coisas
criadas... envolve maior exigência de absoluto e de eternidade que esta paixão surgida
das obscuras emoções da carne; nada como esta chama que, parecendo ser apenas e
essencialmente servidora da impersonalidade da espécie, une e plenifica as pessoas.”
obs.: isso se deve porque o “âmbito” da sexualidade simboliza no homem justamente
o âmbito da união pessoal, íntima e amorosa.

“Coisa estranha: esse amor comunica a alma um calor afetivo, uma vibração lírica
indizivelmente profunda, mas não implica nenhuma purificação interior, nenhuma
“conversão” no sentido profundo da palavra; muda o colorido, mas não a orientação
da vida afetiva. Moralmente falando, o amor não engrandece os amantes. Causa uma
revolução nas sensações do homem velho; não toca seus motivos, seus interesses, sua
atitude corrente ante si mesmo e ante o mundo... a alegria nascida do amor sexual é
independente da elevação espiritual do indivíduo.”.

obs.: daí porque uma pessoa que passou a amar (com toda força do amor) pode se
tornar muito melhor ou muito pior – e raramente continua a mesma coisa. O amor não
melhora o homem, ele como que colore a vida, não, ele é fogo que arde sem se ver.

“... libido sciendi. Amar é cobiçar avaramente o segredo de um ser, não para
compartilhá-lo, senão para mata-lo; é escrutar impudicamente as entranhas desse ser,
é tirar dele, colher, e ao mesmo tempo esterilizar o que se colhe, pois o homem não
recebe senão na medida em que dá e só possui na realidade ao ser a quem se entrega:
no amor, os conquistadores só se apoderam de coisas mortas.”

“Para tais amantes, o amor se mede pela curiosidade, pelo atrativo malsano do
mistério..., e esse amor se extingue quando a curiosidade está satisfeita. A amada não
é nesse caso uma terra que se cultiva e se habita, uma pátria, é uma terra de
exploração, um lugar de excursão que se atravessa e se esquece...”. “amamos uma
mulher para descarna-la de seu mistério”.

essa sequidão afetiva pode evoluir para três direções: 1) morte do amor; 2) simbiose
de egoísmos (compromisso artificial), um resido mais ou menos mecanizado da
antigua ternura pode cimentar essas uniões mortas. Mas a associação repousa,
sobretudo, em uma comunidade de satisfações carnais, interesses materiais,
convenções sociais... 3) transfiguração do amor.

“O que ama através da decepção ama por fim o objeto em si mesmo. Produz-se em
seus sentimentos uma espécie de descentralização: à deformação subjetiva do
primeiro “amor” sucede a perda de si mesmo. O amante aprende o realismo do amor:
s sente ligado, vencido pelo outro, invadido por um destino estranho. Ama mais além
dos sentidos e de todo desejo. E uma nova alegria nasce nele: a alegria grave,
silenciosa e incorruptível de entregar-se. Ama também agora a criatura pela sua
pobreza. Quanto mais pobre é, mais pode dar a ela. Sua dileção é tão vasta, que
quisera oferecer-se todo inteiro ao ser amado sem sequer incomodá-lo com uma
exigência em troca... Mas nisso também é verdade que aquele que consente em
perder sua alma a recobra imortalizada. O homem que deu tudo está disposto a
recebe-lo todo. A criatura amada com esta pureza se converte numa fonte inesgotável
de delícias... Então, descobre a alma do ser amado. Purificado pela prova, e pela sua
fidelidade através do colapso de todo o estreito e impuro que seu amor levava
consigo, é capaz de comungar com esta alma. A criatura se lhe faz agora transparente
e libertadora até o infinito. Amou nela o vazio e agora esse vazio se povoa de dons
maravilhosos como um espaço deserto que a luz invade. Porque a criatura não abre
seus verdadeiros tesouros senão aos corações vírgens de cobiça; só entrega seu ser
profundo e imortal a quem antes a amou por seu nada.”

“Não há entre as coisas criadas nada tão puro e completo como esta entrega de amor
entre os sexos.”. “O homem não é já o escravo torturado de seu destino; é o escravo
de uma alma, e nesta dependência encontra a paz e a liberdade.”. “A ternura que
emerge do seu nada é indizivelmente serena; ignora os temores, as dúvidas, os ciúmes.
Os amantes não se sentem mais ameaçados pelos azares, pois estão ligados um ao
outro pela mesma fonte de seus destinos, por este fundo do ser que não mente nem
morre; uma segurança inefável envolve seu amor, que agora para eles se confunde
com a existência e a necessidade. E o mesmo desejo perde neles seu caráter ordinário
de necessidade e de inquietude, é tranquilo e como que transbordante; a fome já está
saciada, esperar e possuir se confundem... Então a alma compreende o que é o amor,
o que é, segundo as definições antigas, “sair de si”, “querer o bem” de outra alma.”

“... A dor sustenta as promessas do amor nascente. Nesta crise do amor, o que importa
é antes de tudo a alma saber morrer para renascer e não resistir às transformações
que a prova engendra.”

“é como a respiração de duas substancias entremescladas: que para querer-se


mutuamente lhes basta existir”.

“A última essência do grande amor do homem e da mulher reside numa série de


confidencias e de graças divinas feitas a uma alma pelo canal elegido de outra (este
“apagar-se” em favor das causas segundas é um sinal de uma das mais profundas
delicadezas divinas). A criatura dá aqui algo mais que a si mesma..., revela à outra
criatura, elegida entre todas, o segredo divino do mundo e o segredo humano de
Deus.”.

nota 15 (de algum capítulo): “Os eleitos conservarão uma vida específica e atualmente
instintiva, mas seus instintos estarão perfeitamente limpos de finalidades materiais e
perfeitamente espiritualizados. Quando Cristo, respondendo às torpes objeções dos
judeus, diz que os bem-aventurados serão “como anjos de Deus”, não quer dizer que
serão assexuados como anjos, mas que sua sexualidade será desprendida da
polaridade material terrestre, do seu caráter genital (Freudiano)... Deve-se notar que,
quando os sentidos estão profundamente de acordo com o espírito, sem nenhum
desequilíbrio da vida interior, os prazeres da carne podem ser vividos. Tal unidade, não
sendo impedida pelo peso da matéria e do pecado,, deveria ser regra do matrimônio
cristão.”

-//-

É totalmente compreensível que algumas vezes se tenha tomado os prazeres sexuais


como sendo “prazeres proibidos”. De fato, o ato sexual carrega uma intencionalidade
intrínseca no seu gesto que raramente está em comunhão com o coração dos
indivíduos que dele participam. Isso significa que só uma pequena parte dos casais tem
prazer sexual isento de mentira ou falsidade.

A virgindade da mulher é algo que se sacrifica. O corpo da mulher é sacrificado por ela
junto do homem no ritual do sexo. É a mulher que “se entrega para o homem”, ela “dá
o seu corpo”. O único motivo digno para que a mulher sacrifique seu corpo deste jeito
é a intenção de receber os filhos de Deus. Esse sacrifício do próprio corpo ao entrega-
lo a um homem é um abdicar da sua pureza orgânica, um abdicar de guardar a sua
pureza para o Noivo Celeste. Se existe algum outro interesse que manche a intenção
de ter filhos para Deus, então, nessa parte manchada, esse corpo será imolado para
aquele que o adora, para o seu prazer, honra, glória e poder.

A virgindade só se perde uma vez, mas, se o pecado pode ser apagado, também a
virgindade pode ser regenerada, porque essas duas coisas são a mesma coisa.

Parece-me que, de algum modo, quase todo ato sexual envolve pecado, e que o
matrimônio sacramental é uma espécie de “vista grossa” que Deus faz para esse
pecado tendo em vista a fraqueza humana.

O verdadeiro amor, se foi purificado, é o único capaz de preservar a pureza no ato


sexual, porque é inspiração divina.

-//-

“A pessoa espiritual da mulher traz consigo um dom incomensurável de que o homem


não se pode beneficiar senão por ela.” – A Mulher Eterna, pg. 32.

“No domínio da natureza, ela libera o homem da sua solitude, no domínio espiritual,
ela o libera dos limites que lhe impõe a pessoa.” pg. 32
“Quando o homem percebe a colaboração que lhe traz a mulher como esposa de seu
espírito, verifica ao mesmo tempo que a sua própria atividade criadora não passa
duma colaboração na obra de Deus, o Criador único.” pg. 38

“A mulher que permanece submetida à ordem eterna só pode pretender um


desempenho cultural: o da esposa do espírito masculino” pg. 44

“Para a mulher digna deste nome (de esposa), não se trata nunca duma parte somente
do homem que ela ama, duma parte somente do mundo onde ele vive; quer, porém,
sua pessoa inteira. E, outrossim, deseja tomar parte em todo o domínio de sua vida.”
pg. 47

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A angústia do amor não correspondido

Eu não faço parte da vida dela; talvez seja só mais uma sombra no passado dela, como
tantas outras pessoas que passaram por lá... E, no entanto, ela é tudo para mim; eu
não sou nada para ela. Só ela pode me dar a mim mesmo, a única esposa do meu
espírito.

Eu sinto angústia profunda quando vou falar com a Carol. A expectativa do desejo, o
próprio desejo, a antecipação da sua frustração, o medo dessa frustração, tudo isso
gera uma tensão paralisante que se traduz em angústia mortal. O amor é real mas diz
respeito à relação ideal; o desejo é imaginário mas se refere à situação mundana.
Como seria possível não deseja-la se eu a amo? Eu posso até não consentir nesse
desejo, mas ele está aí; qualquer movimento que eu faça até ela no mundo estará
sempre no âmbito desse desejo, que existe por causa do amor, na intenção de união
conjugal. Se não é possível falar com ela sem desejo, não é possível falar sem medo,
pois a própria intenção do desejo será sempre frustrada: seja por causa da tentativa de
negar previamente essa intenção (e aí correrei o risco de agir inconscientemente), seja
porque eu sei que não há nada de fato entre nós – se houvesse qualquer coisa entre
nós eu não precisaria inventar nada para colocar aí nessa relação, bastava eu tomar
conta do que já houvesse. A única coisa que existe aí foi o que eu já coloquei: minhas
cartas, minha vida, meu amor. Se eu inventasse qualquer cosia, correria sempre o risco
de ser irrelevante e sem significado nenhum para nossas vidas, e eu não posso ser essa
nulidade. O pior é que eu não posso falar o que eu quero, eu não posso me dar a ela,
mostrar o que eu sou para ela, não se eu não sou admitido na vida dela. Eu não posso
compartilhar com ela a minha vida, as minhas alegrias e tristezas, nem na saúde nem
na doença... frequentemente eu tenho a ideia de mostrar algo para ela, mas logo em
seguida perco o ânimo; sinto passar rapidamente o entusiasmo da ideia de
compartilhar tal coisa com ela quando percebo quão longe estão os nossos
pensamentos um do outro.

Eu tenho a impressão de que a vida dela é um paraíso, de que ela vive toda a felicidade
que eu desejaria ter com ela, só que com outra pessoa. Tenho uma forte impressão de
estar perdendo algo sempre que interajo com ela, mesmo quando vejo suas
mensagens num grupo do whatsapp (sem que eu esteja participando da conversa).
Tudo o que me lembra da materialidade da vida dela, da “carnalidade” da vida dela,
me lembra de que eu estou constantemente ausente da vida dela, e, ao mesmo
tempo, me vem a ideia da vida dela como uma imagem sensual que eu desejo, como
uma cena cinematográfica de intimidade feminina. Acho que eu projeto uma imagem
da vida dela como se fosse a realização dos meus desejos, e penso que a vida dela é
assim como a minha felicidade realizada, só que sem mim. Se tudo o que eu faço é
deseja-la, desejar ter essa vida com ela, a vida que eu imagino para ela, então não há
possibilidade de eu falar com ela sem a expectativa de alcançar esta vida. Mas, se eu
desejar a salvação da alma dela mais do que me unir a ela nesta vida, então eu posso
tentar me relacionar com ela em outro nível. Mas o que me leva até ela é o amor
conjugal, de modo que o desejo de me unir a ela nesta vida permanece no fundo
orgânico do meu ser como um todo.

O problema é que eu não consigo interagir com outra pessoa pensando no bem dela.
Isso raramente acontece, e, quando acontece, eu naturalmente fico amigo dessa
pessoa. A dificuldade é que eu não me vejo sendo um bem para as outras pessoas, e
eu não vejo as outras pessoas sendo um bem para mim numa relação qualquer.
Geralmente eu só tenho a perder falando com alguém, e geralmente eu só perco
mesmo. Eu espontaneamente só falo com as pessoas o essencial, só interajo na
medida da necessidade, porque eu já sei que no estado de confusão mental em que as
pessoas estão eu só tenho a perder caso precise emitir e ouvir opiniões. No entanto,
não acho que seja possível viver no mundo sem estar o tempo todo emitindo e
ouvindo opiniões. As pessoas ao meu redor são geralmente sem graça, mas não
entendem os meus gracejos; estão o tempo todo a falar besteiras e coisas sem sentido,
ou então falam sobre coisinhas insignificantes mas, quando o assunto pode ser
relevante, logo mudam de tópico. Quando alguma questão interessante é levantada,
ela some rapidamente depois de três ou quatro chavões e frases de efeito serem
emitidas. Não é possível conversar de verdade com ninguém aqui no momento. Mas
talvez eu possa começar a emitir quaisquer opiniões sobre algum assunto da hora,
começar a interpretar certo modo de ser no mundo, apenas para as pessoas do
mundo, só mesmo para interagir com elas cotidianamente, e para fazer notar a minha
presença como pessoa, para ajuda-los a criarem de mim uma imagem social e assim
facilitar para eles me aceitarem em suas vidas. Talvez, nesse momento da minha vida,
eu já esteja preparado para interpretar um papel social, e de fazer isso de uma forma
que não seja absolutamente vergonhosa; talvez possa falar coisas que interessam
publicamente de uma forma que não seja totalmente patética, de forma que não
venha a sentir vergonha da minha própria ignorância. Para isso, eu terei que
interpretar um papel social muito mais baixo do que aquele que estaria de acordo com
meu nível de consciência; mas eu não posso fazer papel de filósofo na sociedade, de
modo que eu terei que agir, para me adequar a um meio social inferior, como se eu
fosse apenas mais um deles só que um pouco mais maduro e culto. É provável que não
seja a primeira vez na história que algo assim acontece. Mas, realmente, eu não posso
continuar me esquivando disso, porque as outras pessoas precisam que eu tenha
algum papel social para que elas interajam comigo.

Mas eu não posso conversar com a Caroline principalmente porque eu não me sinto
como ela; eu não sei o que ela está passando, como ela sente a vida. Com ela, eu só
quero saber da intimidade dela, que ela conheça todo meu amor; eu quero casar com
ela por amor. Mas, de qualquer modo, não há nada que nos ligue além disso. Ela não
precisa de mim, e talvez não precise mesmo de alguém como eu. Eu me atenho às
realidades mais altas e sublimes e sobre os problemas temporais que são mais
universais, e só falo sobre essas coisas buscando a verdade e não por vaidade ou para
ter alívio. No entanto, se eu quiser começar a falar sobre essas coisas com ela, se eu
quisesse enviar para ela alguma reflexão sobre a vida, eu não saberia por onde
começar, não saberia como encaixar isso no contexto da vida dela, se ela não me diz
sobre o que ela costuma pensar ou o que lhe interessa de verdade.

-//-

Conferência com Alice von Hildebrand

https://www.youtube.com/watch?v=3wtguZe5p6A

- “Eu estou muito perto de uma juventude eterna. Você meio que reexamina a sua
vida, e tem uma porção de coisas que você não gosta, de que você se arrepende, que
você não fez, mas tem uma coisa de que eu estou muito orgulhosa. Por causa da
diferença de idade entre nós, eu me arrependo do fato de que eu perdi uma boa parte
do seu passado que eu não compartilhei com ele... a solução dele foi imediata: ele
escreveu suas memórias em 5000 páginas (escrito à mão).

Adão e Eva perderam a inocência no pecado original. Não há vergonha de estar nú,
mas há vergonha da concupiscência.

“... um dia ele (o pai de D von Hildebrand) chegou para sua esposa e 5 filhas e disse:
algo absolutamente extraordinário aconteceu comigo – ele tinha em torno de 53 ou 54
anos -; ele disse: pela primeira vez na minha vida eu tenho uma modelo com a
perfeição da beleza feminina – ele já tinha visto centenas de modelos. Mas uma vez
ele viu uma que era absolutamente perfeitamente bela. E ele dizia que é mais difícil
achar um belo corpo do que um belo rosto – que já é bastante difícil. Então ele disse a
eles: vem ao meu estúdio para ver isso. Então o pequeno garoto, que tinha 13 anos,
disse: pai eu não quero ir. E todo mundo ficou surpreso: como você não vai!? Só
imagina: a beleza feminina perfeita! Mas ele disse: não, eu quero guardar o dia de ver
uma mulher nua para o grande dia do meu casamento quando eu me comprometer
para a vida toda; eu não quero ver uma mulher nua antes desse dia.”

Meu marido estava convencido de que a esfera íntima deve ser o domínio em que o
homem e a mulher unidos no matrimônio expressão o desejo de união. É algo sagrado.

-//-

A Bíblia designou um livro específico só para falar sobre o amor conjugal, que tem um
elemento sensual intrínseco, e que é expresso de forma cabal e sublimada no Cântico
dos Cânticos. O amor sensual do Cântico de Salomão é descrito de forma “pura” e
“sublimada”, quer dizer, ele não descreve os desejos desse amor da forma como eles
aparecem na imaginação humana, mas de forma metafórica, relacionando o amor
sensual com a beleza da criação. Fora esse livro, nenhum outro livro da Bíblia expressa
o amor sensual inerente ao amor conjugal. Nos evangelhos, na vida de Nosso Senhor
Jesus Cristo, o elemento sensual do amor é omitido em toda parte, bem como nos
outros livros da Bíblia. Nas Epístolas, a ênfase do amor está na caridade, e o amor
sensual só é visto explicitamente na sua forma viciosa e ilícita; a forma válida de amor
sensual é omitida. Isso não significa que o amor sensual não tem sentido no contexto
da História Divina, da Salvação de Deus. Uma interpretação mais coerente com a
realidade seria de que o lugar de expressar o amor sensual é dentro do casamento e
privadamente, no coração do amado, como diz a Bíblia em alguma parte: “e falou ao
seu coração”. A sensualidade do amor não é simplesmente omitida, ela é como que
pudoradamente escondida, porque é o sentimento mais íntimo e pessoal do coração, é
o que diz respeito ao “meu corpo” apenas, à minha individualidade junto ao meu
amado e a mais ninguém, à minha felicidade pessoal.

O amor sensual tem um elemento intrínseco de procriação, de modo que a sua


finalidade só se encontra no mundo terrestre. Onde não há procriação biológica não
pode haver amor sensual. Mas o amor sensual tem uma finalidade espiritual que é
expressar a união de duas almas num amor mútuo pessoal, íntimo e exclusivo. Essa
espiritualidade do amor sensual o faz símbolo de algum amor sensual eterno, que não
diz respeito mais à procriação, e é esse amor que nos é comunicado pelo Cântico dos
Cânticos. E, não dizendo mais respeito à procriação, a imagem corporal desse amor
sensual, a sua expressão corpórea, já não tem mais sentido. Porém, sendo outrora
apenas símbolo dessa união espiritual mais profunda, o sexo, que no céu não tem
sentido (não tem finalidade), não precisa mais ser realizado como um ritual, mas vira
apenas uma lembrança terrestre daquela realidade que se atualiza perfeitamente no
próprio Paraíso Celeste. O caminho de expressão do amor conjugal na terra já não
mais existirá no céu, onde este amor estará plenamente consumado e as almas dos
amantes verdadeiramente e inseparavelmente unidas. Não podendo mais a alma
intencionar a procriação, e não podendo o corpo sentir dor, o amor conjugal não se
manifestará no corpo de forma sexual, envolvendo o órgão sexual, pois o corpo
entenderá que não tem mais aquela participação nesse amor, sendo uma ressonância
perfeita da voz da alma.

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O desejo

Eu não sei qual a origem do meu desejo de ter mulher, que para mim parece ser algo
como um desejo de ter mulher em geral, que pode se atualizar sempre que eu olho
para uma mulher bela (que tem um corpo cuja figura se assemelha mais perfeitamente
com a forma ideal da mulher). Eu não desejo necessariamente uma mulher bela
quando ela aparece diante de mim, mas me é sempre possível deseja-la.

Esse não me parece ser o puro desejo de prazer – que eu não acredito que exista –
nem mesmo um simples desejo desordenado, mas é algo que está dado na estrutura
do ser varão, como um puro desejar se unir a uma mulher. Eu não acredito que um
varão possa desejar uma mulher somente pelo prazer sexual, porque o prazer sexual
sem a mulher não é nunca buscado nem na imaginação. O varão busca a mulher e não
o sexo, mesmo que ele se atenha praticamente só ao prazer sexual que tenha com ela.

Mas esse desejo de ter mulher não é o mesmo que desejar essa ou aquela mulher em
específico, é um sentimento meio vago como se estivéssemos sentindo falta de
alguém que deveria estar aí para nós, mas “estar aí” de um modo específico, isto é, no
amor conjugal.

O fato da mulher bela ser mais atraente, e da mulher feia não ser atraente, significa
que o desejo do homem pela mulher não acontece sem que haja o elemento da
beleza do corpo feminino. O corpo da mulher bela de fato proporciona mais prazer,
como se este corpo fosse mais adequado à união conjugal do que os outros menos
belos e os feios. Daí que se a atenção do homem está constantemente voltada para o
prazer, ele poderá desejar uma mulher visando esse bem acidental da união conjugal
que é o próprio prazer.

Porém, eu não posso imaginar como um homem pode desejar uma mulher sem que
ele a deseje justamente na expectativa de um prazer sensual que ele imaginou poder
ter com ela.
O desejar mulher tem uma conotação um pouco diferente do simples desejo sexual.
Quando eu falo “desejar mulher”, estou me referindo ao desejo sexual incorporado
por uma personalidade humana completa que deseja se unir ao outro no amor. Ou
seja, aqui o desejo sexual adquire um sentido espiritual mais elevado.

Toda vez que se deseja mulher existe a expectativa do prazer sensual, mas essa
expectativa pode ser o centro motivante do desejo ou pode ser uma espécie de
termômetro que indica o grau de felicidade da união que se busca. Se a união buscada
é parcial, isto é, viciosa, o prazer será uma motivação predominante do desejo do
sujeito. Mas se o sujeito está centrado no seu próprio coração, então o prazer é como
que um termômetro que indica a qualidade da união que ele busca.

Se um homem tem o habito de fantasiar relações sexuais com as mulheres que o


atraem, é provável que ele será sempre incapaz de amar qualquer uma delas, sendo
seu desejo pela mulher pervertido por uma inclinação viciosa para o prazer sensual.

Além do mais, quando mais uma pessoa vive uma vida mais animal, se atendo quase
que exclusivamente ao aspecto corporal do seu ser, o desejo dele de ter mulher será
praticamente só desejo sexual, isto é, o elemento de interação entre corpos irá
predominar nesse desejo sobre o elemento de união espiritual ou então de uma
amizade mais elevada.

Já uma pessoa que se conhece suficientemente para ter um contato mais humano com
outras pessoas, quando desejar uma mulher, desejará não só um corpo bonito mas ao
mesmo tempo uma amiga fiel, e o prazer será muito maior caso encontre uma amiga
mais virtuosa além de bela.

Um homem é capaz de amar uma mulher de verdade, ao mesmo tempo em que a


deseja, se ele for capaz de ouvir a voz do próprio coração, e depois buscar ouvir a voz
do coração da sua amada. Se ele está centrado no próprio coração, ele poderá atingir o
coração dela, e todo seu desejo será unir seus corações.

A melhor explicação para o fundo desse desejo não é que o homem está em busca de
prazer sexual ou de segurança, reafirmação, etc., mas que é simplesmente bom para o
homem ter uma mulher. Sempre que a possibilidade de ter mulher se apresenta, o
homem sente um desconforto, uma tensão, de modo que se ele não souber o que
quer para sua vida, se ele não estiver compromissado com outra, se for uma pessoa
sem rumo ou dissoluta, ele facilmente se envolverá com qualquer uma que apareça.
Mas não é isso que o homem realmente quer, não é se envolver superficialmente com
qualquer mulher, isso é apenas um erro ou uma queda. O fato, é que para o homem
acertar na sua escolha de ter uma mulher, ele precisa levar diversos elementos em
conta, que são todos os elementos que formam a trama do relacionamento entre um
homem e uma mulher, para assim poder ser capaz de projetar o seu relacionamento
com essa mulher específica, e aí poder constatar se no todo essa mulher é mais ou
menos desejável ou se lhe agrada ou não. Se ele não estiver centrado em seu coração,
ele será incapaz de reunir todos esses elementos e projetá-los.

Ora, é bom ter mulher, mas isso não significa que seja lícito olhar para uma mulher
desejando-a.

O problema é que quando se está casado com uma mulher que lhe agrada, o homem
ainda assim não deixa de poder desejar outras mulheres, e essa possibilidade como
que o persegue aonde quer que ele vá, de modo que sempre que ele está lidando
pessoalmente com uma mulher bonita é possível sentir essa tensão das possibilidades
que há entre os dois sexos, possibilidades de serem felizes como um casal.

O homem busca a felicidade, e um bom casamento muitas vezes significa felicidade


para o homem. Mas se o homem não para de desejar outras mulheres quando está
comprometido com sua esposa, então como ele poderá ser feliz? Porque ele sempre
poderá desejar uma outra, e nunca poderá ter o que ele realmente deseja: que é
desejar uma mulher só. Ele nunca poderá ter todas as mulheres, e, mesmo se pudesse,
essa não seria a sua felicidade. O homem deseja ter uma mulher só, e nisso consiste a
virtude da fidelidade.

É possível para o homem se unir de tal modo a uma mulher, que ele não desejasse
nenhuma outra quando estivesse na ausência da sua própria mulher? Ou a libertação
dessa tensão do desejo teria uma outra causa? Para muitos homens, parece que sua
felicidade está na realização do amor conjugal com a pessoa amada.

Se eu estiver perfeitamente e espiritualmente unido a minha mulher no amor, então o


que serão para mim as outras mulheres?

Existe também o atrativo da mulher exercido sobre a curiosidade do homem. O


homem quer conhecer muitas mulheres porque ele é curioso, ávido por novidades. Ele
quer amar todas, mas não ama nenhuma, porque se contenta com a imitação do amor
que pratica com cada uma delas, sem que de fato as conheça mais profundamente.

Mesmo estando unido com a minha mulher, eu terei que amar as outras mulheres de
um modo diferente de como eu amo os outros homens, porque as mulheres
compartilham do mesmo sexo que a minha mulher, e continuam tendo todos os
atrativos que na minha mulher a tornam minha mulher, e a única diferença é que a
minha mulher me foi dada a mim, enquanto que a outra mulher foi dada a outro
homem.

É possível que, se a beleza da minha mulher está o tempo todo diante dos meus olhos,
eu não tenha olhos para nenhuma outra. Se eu estou unido à minha mulher, o amor
tem poder de o tempo todo me lembrar que eu a prefiro sobre todas as outras, e que
ela é a única com quem eu quero estar unido para sempre. Se, além disso, eu soubesse
que só minha mulher me ama, e que as outras mulheres amam outros homens, e os
outros homens outras mulheres, de tal modo que todos os casais já estivessem
perfeitamente formados, e todos soubessem disso, então a tensão de desejar outra
mulher não existiria mais.

O que precisaria, então, desaparecer para que a tensão de desejar mulher também
desaparecesse? Seria preciso que o homem fosse de tal modo uno que, mantendo essa
unidade orgânica sem esforço, o desejo pelas outras mulheres fossem absolutamente
frustrados o tempo todo em que qualquer uma delas estivesse diante dele, pelo
simples fato da inviabilidade real desse desejo. Ou seja, ao levar em conta a pessoa
como um todo, a união conjugal seria impossível na realidade, de modo que o desejo
não poderia nunca chegar a ser concebido no coração. Isso é assim porque, na
verdade, o desejo por mulher só é concebido no coração porque ele não tem o tempo
todo consciência total do seu ser inteiro. Não sendo uno, o coração é capaz de
conceber desejos parciais, isto é, como se fosse possível se unir a uma pessoa apenas
em alguns de seus aspectos e não como um todo. Assim, se espelhando o coração
numa alma fragmentada, ele acaba respondendo à realidade também de modo
fragmentado, não levando em consideração a individualidade mais profunda da pessoa
como um todo, e sim apenas alguns de seus aspectos. Por isso o coração é capaz de
desejar muitas mulheres diferentes, e ao mesmo tempo, podemos conhecer algumas
pessoas que desejaram uma mulher só a vida inteira, e com todas as forças.

O desejo de união que se tem pela mulher certa “faz sentido”. O desejo por qualquer
mulher não tem sentido, porque se o meu coração não responde com desejo total de
união.

No entanto, existem homens que ainda não encontraram a mulher certa mas que a
buscam de algum modo, como que advinhando que deve ou deveria existir alguma
mulher no mundo que lhe foi destinada unicamente a ele. Não há desejo maior do que
esse, porque a pessoa inteira está na voz do seu coração, e o seu coração deseja se
unir a outra como um todo, não aceitando nada menos que isso.

-//-

D. von Hildebrand afirma que o amante ama porque capturou um vislumbre da beleza
do amado. É a individualidade daquela personalidade tomada como um todo que nós
vemos como bela e preciosa para nós que desperta em nós o amor; e esse vislumbre é
algo que nos é “dado”, é um dado objetivo acerca do valor daquela pessoa como tal.
É essa beleza que afeta o amante e o fascina de tal modo a despertar o seu amor.
Hildebrand garantiria que a beleza de uma pessoa não se mostra igualmente a todo
tipo de olhar, e isso nos coloca a questão do que é que vem primeiro: é o amor que
nos permite enxergar essa beleza ou, pelo contrário, é porque enxergamos essa beleza
que passamos a amar? A melhor resposta é que as duas coisas acontecem
simultaneamente: no momento em que contemplo essa “beleza total” do outro como
pessoa ela desperta em mim o amor com que eu já a amava no momento em que a vi.
Mas aí eu sempre posso perguntar: e por que essa pessoa, essa beleza, e não uma
outra? É claro que deve entrar aí um elemento “subjetivo”, ou seja, alguma
informação do meu próprio ser (e mais a influencia da circunstância, do Destino, etc.)
que faz com que o meu coração responda dessa forma a essa beleza particular e a
nenhuma outra. Eu não sei se o Hildebrand explorou essa questão em algum lugar.

A pessoa que eu amo é para mim como uma pérola que vale mais que todas as outras:
ela tem por si mesma um valor único, que eu contemplo, e que é ao mesmo tempo um
bem objetivo para mim, na medida em que diz respeito à minha realização pessoal
como esposo. Eu a amo porque ela é ela e nenhuma outra, e por ela ser ela é que ela é
um bem para mim que a amo.

A atração constante que ela exerce sobre a minha pessoa é uma provocação para o
meu aperfeiçoamento pessoal.

O QUE É SER ESPOSO?

Eu não escolho quem amar, o amor é algo que me acontece, sem saber por que me
aconteceu. A partir do momento em que estou amando a minha amada é
incomparavelmente bela; isso não significa que eu a escolhi por ser ela a mais bela,
mas essa beleza é significativamente diferenciada por uma informação a mais que me
é dada pelo próprio amor, que é um canal de comunicação com o coração da pessoa
amada. Eu me encontro de algum modo ligado a ela, por um vínculo que não posso
desfazer por mim mesmo, e que está presente para a minha pessoa do mesmo modo
que a gravidade da terra para o meu corpo. Eu posso comparar objetivamente a beleza
da minha amada com a beleza de outras mulheres, e posso até achar algumas que
sejam objetivamente mais belas sob algum aspecto, e até sentir algum apetite sensual
por usufruir dessa beleza estética, mas a consciência disso em nada afetará a minha
experiência do amor. Mesmo que eu esqueça da minha experiência do amor, e volte
minha atenção para outras coisas, por exemplo, me atendo à sensualidade do corpo e
me distraindo com a satisfação de meus apetites mais baixos, buscando novidades e
fragmentando minha memória e minha personalidade, o amor é irrevogável e continua
me chamando à unidade, tão presente como uma dor de dente toda vez que o efeito
anestésico do orgulho e do prazer se enfraquece na minha consciência e ela volta aos
poucos a ouvir os ruídos do coração.
O amor como resposta afetiva causa ainda um deleite afetivo. Tem aí um tipo de
prazer envolvido nesse estado afetivo de “estar amando”. Esse prazer está ligado com
a expectativa de união amorosa que só é possível com a pessoa amada. É a própria
possibilidade dessa união amorosa, que o sujeito vislumbra como que por
encantamento, que ilumina o seu mundo interior com uma promessa de felicidade
cheia de sentido, e que se torna logo o seu objeto de mais alta esperança.

A felicidade de uma união amorosa, ainda que vislumbrada apenas como esperança, é
uma volta ao Paraíso Terrestre, e já é uma participação (como símbolo) daquela
perfeita felicidade que pode ser alcançada no céu. A própria expressão “união
amorosa”, aqui no caso do amor conjugal, já indica aquela unidade transcendente que
é constituída de dois seres opostos, varão e mulher, que buscam se harmonizar num
plano superior. Quer dizer que quando um homem se une a uma mulher, o que só é
possível pela diferenciação sexual (diferenciação biológica que simboliza um certo tipo
de polaridade existencial), os dois estão buscando um estado de existência superior
onde nem um nem outro poderiam viver apenas como homem ou apenas como
mulher. Agora, é o homem unido à sua mulher e a mulher unida ao seu homem. Que
tipo de união é essa? O que eu chamo de união com minha esposa indica um estado
espiritual que só poderia se realizar no âmbito do amor conjugal, e esse estado me
lembra o Paraíso, ele é tudo o que eu encontro na minha vida que me remete à uma
imagem da vida como deveria ser no Paraíso Terrestre, e creio que seja assim porque
esse estado me indica de algum modo a perfeição ou plenitude da natureza humana
(justamente por transcender a condição de dualidade intrínseca dessa natureza).

Só a experiência de “estar amando” pode dar à pessoa humana o vislumbre dessa


felicidade que é ela mesma participação na felicidade eterna. A característica mais
distintiva dessa felicidade é que, na experiência de estar amando, essa felicidade é
sentida como a verdadeira e única felicidade; já não há nenhum outro lugar no mundo
onde se possa encontrar a felicidade senão nos braços da pessoa amada – e essa
felicidade é inerente à experiência do amor conjugal. A felicidade é eterna porque o
amor é eterno. Por isso a felicidade eterna é mais proximamente análoga à felicidade
que existe na união conjugal (entre pessoas que se amam desde o fundo do coração), e
é por isso que a união conjugal é verdadeiramente o arquétipo do Paraíso e da união
com Deus.

O vislumbre dessa felicidade que vem com a experiência de “estar amando” é como a
experiência de encontrar uma pérola que vale mais do que tudo no mundo, ou de
encontrar um tesouro que você vende tudo o que tem para comprar o terreno onde
ele está. Essa experiência é sempre radical, reformando todo o senso das proporções
do sujeito com relação ao valor objetivo que as coisas têm para ele à vista dessa
felicidade eterna que só pode ser alcançada na união amorosa com a pessoa amada.
Essa experiência impõe para o sujeito decisões radicais na medida em que não pode
haver nada mais importante para um pessoa do que a sua plena felicidade e realização
pessoal. Então, se a experiência de “estar amando” traz consigo a expectativa de uma
completude que se remete de algum modo à felicidade eterna, tudo na vida do sujeito
será redimensionado, enquanto objeto de valor pessoal, segundo a profundidade
dessa experiência, que é a experiência daquilo que há de maior e mais profundo no
mundo: o amor.

Mas nem o amor nem a felicidade podem ser elas mesmas realizadas pelo próprio
homem como produto de algo que ele faz. O amor é um dom, e a felicidade é um
mistério. O amor aparece para mim como algo “dado”; não fui eu quem o produziu, e
eu nada poderia fazer para apaga-lo. O amor não pode ser ignorado, ele compromete
a totalidade do meu ser desde o coração; ele altera o meu próprio modo de existência:
antes eu não estava amando, agora estou amando. A verdadeira felicidade, por outro
lado, é a perfeição do momento – algo que eu não tenho poder de produzir por
nenhum meio. O que pode o amante fazer diante disso? Não sei o que fará, mas deve
confessar duas coisas: 1) é melhor amar do que não amar e 2) ele precisa de ter o seu
amor correspondido. Independentemente se ele terá ou não o seu amor
correspondido, ao confessar a primeira coisa ele terá de se conformar com as
exigências do amor, terá de lutar para ser um verdadeiro amante.

Onde está a sua felicidade aí estará o seu entusiasmo. O coração da pessoa que ama se
acende com o entusiasmo pela pessoa amada, responde a ela com entusiasmo. O
entusiasmo é fervorosa devoção e permite uma entrega espontânea e ígnea da sua
própria pessoa. A presença do entusiasmo na relação amorosa significa que tudo
aquilo diz respeito ao seu íntimo, ao que é mais propriamente “seu”. Aonde está o seu
entusiasmo ali está o seu “trono”. Assim, você se entrega na união amorosa não como
escravo mas como rei, do mesmo modo como um rei se entrega a seu povo. A relação
entre esposo-esposa é análoga a relação entre rei-povo: o rei é ao mesmo tempo
senhor e servo do seu povo. Assim, também, Cristo é Senhor e Servo da Igreja, é o
primeiro e o último. Essas três relações são perfeitamente análogas.

O coração, sendo um símbolo perfeito do núcleo do ser ou da individualidade,


representa o “aonde” a pessoa está. Você está aí aonde está o seu coração. Se o
coração responde ao valor com a adequada afetividade, então essa afetividade é
também um sinal daquilo que aquele valor representa para a sua pessoa como um
todo (a sua pessoa como tal). Assim como a sua inteligência te informa algo sobre o
Ser, e a sua vontade te informa algo sobre o que é bom, o seu coração te informa algo
sobre o sentido da vida. Daí vem a expressão “seguir o próprio coração”, que significa
realizar-se como pessoa, porque é o coração que nos informa sobre quem nós
devemos nos tornar, sobre a beleza daquilo que devemos ser – “beleza” porque é o
fundo do nosso ser que nos chama a realiza-lo e a fazermos com que nossa vida
concorra para ele. A pessoa que ama ganha assim uma coragem para seguir o seu
coração, para enfrentar seus medos, para preferir arriscar tudo do que buscar
segurança e conformação com o meio social.

O propósito de se unir a outra pessoa transcende o próprio propósito de ser você


mesmo. É claro que quem não é ninguém não pode se unir a ninguém, mas quem
deseja ser alguém sempre pode se perguntar: e para que eu quero me tornar alguém?
Quem ama sempre pode responder: eu quero ser alguém para a pessoa que amo. A
finalidade de ser alguém é ser alguém para alguém, em especial, e depois para a
comunidade (filhos, amigos, vizinhos, etc..). O objetivo de ser bom só tem sentido no
âmbito do amor. Qual é a finalidade de ser bom? ser bom para si mesmo? Só é bom
ser bom porque Deus nos ama, mas se outra pessoa também nos ama então o nosso
ser é convidado à realização. Se sou eu quem amo, é porque meu ser já foi chamado à
se realizar. É no amor que o meu ser entra em movimento com força total – é quando
eu amo, quando participo do Amor.

Se é no relacionamento amoroso que eu encontro todo o meu prazer e a minha


felicidade, (sendo este o lugar onde a realização pessoal do próprio ser encontra o seu
sentido pleno, isto é, eu sendo eu com relação à pessoa com quem desejo e posso me
unir), então aí a pessoa amada se torna um bem objetivo para mim na medida em que
eu encontro a minha felicidade na minha relação com ela e vice-versa. Agora eu me
dou a ela de um jeito único, desejando ser para ela como que a fonte da sua felicidade,
do mesmo modo que me dou a ela desejando ao mesmo tempo aquela mais profunda
felicidade que encontro no meu relacionamento com ela. Mas não é que a fonte da
felicidade seja realmente a pessoa amada, mas é no relacionamento com a pessoa
amada que está a fonte da felicidade. É no relacionamento ele mesmo onde a unidade
do casal pode ser efetivada, é aí onde está a fonte da felicidade do casal.

É como se a pessoa amada estivesse constantemente invocando o meu eu mais


profundo, chamando em mim aquilo que de mais digno, mais nobre e mais valoroso eu
posso ser. É diante da beleza da pessoa amada, e da felicidade que o seu amor me
promete, onde eu me deparo com a necessidade de encontrar a minha própria
dignidade, e só aí a busca do caráter bom e nobre ganha pleno sentido. Essa é uma
das cosias mais interessantes que acontecem no amor: Na medida em que eu conheço
o amor e participo dele eu me descubro num estado de total miséria onde já nada me
satisfaz e do qual eu não posso sair nem fazer nada para me ajudar, necessitando
totalmente do amor do outro para ser feliz novamente. Mas eu querer que o outro me
ame desse mesmo jeito é eu querer que o outro passe pela mesma experiência que eu
de se sentir miserável enquanto não tiver o meu amor. Isso é bastante confuso,
porque a minha felicidade agora depende de uma submissão do outro a mim, mas uma
submissão que não pode ser causada por nada senão por uma força maior que nos
transcende, ou que vem do fundo do nosso ser interior. Ora, tendo a intuição imediata
do amor em mim, e sabendo o que ele significa para mim, isto é, sabendo que o amor
me dá totalmente para a pessoa que amo, como se eu fosse para ela um presente do
céu, prometendo a felicidade completa caso a outra pessoa esteja aberta a me receber
no seu coração, entendendo o significado disso, eu tenho uma vergonha tremenda de
sequer desejar que essa outra pessoa me ame do mesmo jeito que eu a amo, dado que
eu jamais poderia pedir um presente tão grande em valor quanto a minha melhor
existência possível. Mas de algum modo o amor que já recebi como dom me promete
uma felicidade da qual eu sei imediatamente que não sou digno. De fato, a minha
felicidade agora está encarnada numa pessoa a quem amo pelo seu próprio valor
intrínseco e que por isso desejo possuir; ou seja, a minha própria felicidade e
realização pessoal mais elevada, pela qual eu daria tudo o que tenho para possui-la, é
agora representada por uma outra pessoa cujo valor intrínseco para mim é equivalente
à minha única felicidade na vida. Mas se eu não desejo para mim mesmo que alguém
me possua, então é certo que não posso desejar possuir alguém; mas, por outro lado,
é por pura necessidade do amor que eu desejo possuir a pessoa que amo. Existem aí,
portanto, dois desejos: um deles é o desejo de ser feliz, e o outro o desejo de alcançar
os meios para ser feliz. Algumas pessoas se concentraram em adquirir os meios para
essa felicidade no amor, outras pessoas se concentraram em tornarem-se dignos do
amor para caso essa felicidade venha a lhes acontecer.

O amor conjugal é uma resposta afetiva do meu coração ao valor de uma pessoa como
pessoa (a sua qualidade individual que a faz única e irrepetível; o valor objetivo da sua
existência como pessoa diante de Deus e dos homens) e como bela (num conjunto
harmonioso). Por um lado, o meu coração simboliza o núcleo do meu ser, a unidade
orgânica da minha pessoa – aonde está o meu coração, é aí que “eu” estou; por outro
lado, o valor existe objetivamente na pessoa do outro, e ele me afeta e move meu
coração na medida em que me é dado contemplá-lo naquela pessoa que é bela. É aí
que o amor aparece como autotranscendência na medida em que me movo na direção
do outro por ele mesmo e não por qualquer motivo que eu possa conceber por mim
mesmo; é um movimento do coração para algo que está além do “si mesmo”, como
uma exigência interior de algo que não existe absolutamente no meu mundo interior e
nem pode existir, que é a outra pessoa. O amor é uma necessidade humana, mas não
um relacionamento amoroso, ainda mais com essa pessoa específica.

Então, a pessoa amada, aparecendo para mim radiante no seu valor, me desperta para
o amor movendo a minha afetividade. Mas se eu não pudesse contemplar esse valor
do outro como pessoa e como bela, o meu coração não poderia responder a ela com
amor. É o valor intrínseco que eu encontro na pessoa do outro que toca de algum
modo meu coração fazendo com que ele responda com a afetividade adequada; e é
essa energia afetiva que me lança na busca do outro nele mesmo. Essa busca é posta
em movimento por um ato da vontade, tendo por base a minha resposta afetiva como
um desejo espontâneo e sincero do coração.

A “saída de si” ou “êxtase” amoroso só ocorre se a captação do valor intrínseco que o


outro tem para mim como esposo ou esposa tiver um alcance transcendente. O ato de
alcançar o valor intrínseco do outro só é transcendente se eu puder contemplar o valor
que o outro tem como esposo ou esposa para mim por ser a pessoa única que ele(a) é.
Ou seja, se a pessoa do outro aparece para mim como única e, na sua totalidade,
perfeitamente bela, então aí é que se alcança a contemplação do verdadeiro valor da
outra pessoa como um todo.

-//-

A nova realidade do amor

Quando acontece de encontrarmos uma pessoa (ou será “a” pessoa?) que desperta
em nós o amor, algo novo acontece, algo essencialmente diferente de tudo o mais.

O amor é algo que me acontece. É intrínseco à realidade do próprio amor que quando
nós amamos nós não queremos nem desejamos não amar mais ninguém que não a
pessoa que amamos. O único modo de não mais amar essa pessoa seria odiando a
própria realidade do amor. Mas mesmo que você odeie o amor, você sabe que ele é
um dado da sua experiência, de algo que te aconteceu, e que não pode ser mais
apagado de todo mas apenas esquecido ou encoberto por tecidos de mentiras e
preconceitos.

Eu sou grato pela existência da pessoa que eu amo, e fico feliz por poder amá-la; e
esse é um dado do próprio amor. A própria realidade do amor me informa que a
pessoa que eu amo é a que me foi dada, que é insubstituível para mim como esposa
ou esposo.

-//-

A pessoa certa

“Assim diz Kierkegaard em algum lugar de seus diários: “Oh, será que eu posso mesmo
acreditar nas estórias dos poetas, que dizem que quando alguém vê sua amada pela
primeira vez ele tem a impressão que a tem amado desde há muito tempo, e que todo
amor é um rememoração (anamnese), tal como o conhecimento o é?”.

Nós não amamos qualquer pessoa; mas quando eu amo uma pessoa ela faz sentido,
quer dizer, faz sentido que seja ela quem eu amo, e isso porque ela é ela.
-//-

Amor predestinado?

“ser ordenado para” é uma condição moral “a priori” que está gravada na natureza
humana. Por exemplo, nós somos ordenados para Deus, e por isso Santo Agostinho
disse “Oh, Senhor, Vós nos fizestes para Vós”. A pessoa é capaz de responder a um
valor porque ela é ordenada ao bem, à verdade, à beleza... mesmo que a Providência
divina governe as nossas vidas, ainda assim podemos perceber a clara diferença entre
essas duas situações: quando nós respondemos a algo ao qual nós não somos
particularmente ordenados, e essa outra situação quando nós respondemos a algo
para o qual nós somos objetivamente ordenados e pelo que nós temos um senso de
preenchimento e realização. Um exemplo dessa última situação é o encontro com uma
pessoa que gera em nós um profundo amor e que nos parece ser a realização de tudo
aquilo pelo que nós sempre ansiamos.

Nós estamos ordenados para bens e valores no sentido de que devemos ar a resposta
apropriada à essas cosias. Às vezes isso também pode significar que eu como indivíduo
tenho uma afinidade particular por este bem, mas nesse caso o “ser-ordenado-para”
sempre se revela precisamente na resposta-ao-valor, na capacidade de dar essa
resposta. Nós somos objetivamente chamados a dar esta resposta.

-//-

Os tipos de amores são determinados pelo tipo de valor presente no amado e que
move o coração daquele que ama. Se o meu amor é gerado primeiramente pelo
charme da outra pessoa ou pela sua fascinante riqueza intelectual ou pela bondade e
pureza do outro, isso naturalmente tem uma grande influencia sobre a qualidade do
meu amor. Ou seja, em qual domínio do valor eu encontro a pessoa amada? quanto
mais elevado esse domínio, mais sublime é a resposta de amor.

Mas a personalidade daquele que ama também tem uma grande influencia na
qualidade do amor. A personalidade que você ama é extremamente característica de
quem você é. Cada resposta-ao-valor, cada ser-afetado, pressupõe na pessoa a
profundidade e a sensibilidade ao valor que possibilita a pessoa ser afetada por esse
valor ao invés de por um outro, ou responder a esse valor ao invés de algum outro.

-//-

De todas as respostas-ao-valor, o amor é a única que não define objetivamente o valor


da pessoa. Se o meu amor me desse um julgamento objetivo do valor da pessoa
amada enquanto pessoa e como bela, então todos os homens que tivessem o mesmo
nível de sensibilidade que eu também amariam aquela pessoa do mesmo jeito, ou de
um jeito muito semelhante, dado que ela provocaria em todos nós a mesma resposta
ao seu valor. Por outro lado, é possível que uma mulher ame um homem de todo
inferior a ela, e vice-versa; e, mesmo que ele não a mereça, o amor faz com que ela
seja dele de certo modo. O amor faz com que ele seja o meu rei ou ela seja a minha
rainha. Se eu dissesse que venerasse essa pessoa acima das outras, eu a estaria
julgando objetivamente mais venerável que as outras; mas se eu digo que “ela é tudo
para mim”, não existe esse tipo de resposta-ao-valor em jogo. Assim, Walther von der
Vogelweide diz de sua amada em relação às outras mulheres: “talvez elas sejam
melhores, mas você é boa”.

Então, o amor não corresponde a um valor objetivo da pessoa amada como pessoa,
mas não porque o amor seja algo só subjetivo, ou arbitrário, mas porque o próprio
valor que uma pessoa carrega como tal é relativo à outra pessoa. Eu sempre posso me
perguntar: “por que eu vim a amar essa pessoa e não alguma outra?”; isso não
significa que o amor é somente subjetivo, porque o meu coração respondeu ao valor
dessa pessoa por um dado objetivo de que ela é boa e bela por quem ela é. O fato é
que nunca foi encontrado nenhum dado objetivo que pudesse determinar que “eu”
fosse amar apenas esta mulher e nenhuma outra. No amor, o valor objetivo da pessoa
amada está objetivamente ligado à subjetividade de quem ama, de modo que esse
valor é objetivamente diferente segundo os olhos de quem o contempla. Mas por que
deveríamos esperar que uma pessoa, que não é uma “coisa”, fosse valorada como se
fosse uma “coisa”? Se um ícone sagrado suscita devoção em uma pessoa pelo seu
próprio valor artístico, então ele suscitará devoção em todas as pessoas que puderem
contemplar o seu valor, que forem sensíveis à sua beleza. Mas se uma mulher suscita
amor em mim, isso não significa que meu melhor amigo também responderá a ela com
amor, mesmo que ele seja sensível à sua beleza num nível mais estético. Isso é assim
porque o valor de uma pessoa é objetivamente diferente para cada outra pessoa, e é
essa diferença que irá suscitar as diferentes formas de amor nas outras pessoas.
Existem diferentes formas de amor porque as próprias pessoas podem significar coisas
diferentes para mim, por quem elas são como pessoa. O próprio fato de eu poder
amar uma mulher que não é considerada objetivamente a mais bela, ou a “melhor”,
mesmo eu admitindo isso, já mostra que o que ela significa para mim não é nenhum
dado puramente objetivo, isto é, que pode ser avaliado sem levar em conta a minha
individualidade como pessoa. O amor não é uma resposta a um dado universal mas
sim a um dado particular, porque não existe o universal de um indivíduo concreto;
mas eu estou dizendo que amo este indivíduo aqui por quem ele é e não por uma
característica universal sua – e esse é o mistério do amor. Todas as outras respostas-
ao-valor se referem a valores universais, que suscitam a mesma resposta em qualquer
indivíduo capaz de ser impressionado por aquele valor; mas o amor é uma resposta
que se refere a um indivíduo único, porque pessoal, e cujo valor também é único e
relativo a cada outra pessoa que o contempla. Ou seja, um indivíduo concreto não
carrega um valor universal, porque como pessoa ele significa coisas diferentes para
pessoas diferentes. Uma pessoa só pode ter um valor absoluto para Deus; para as
outras pessoas o seu valor é sempre relativo. Se isso é assim, podemos dizer que não
existe uma “forma” universal do amor, que cada amor é único e pessoal, que o
próprio Amor só pode ser uma Pessoa e não uma qualidade ou característica.

Mas a visão de Hildebrand sobre isso que coloquei acima pode ser um pouco diferente.
(pg 66-67). Ele diz que a passagem de um valor individual do outro para a sua beleza
tomada como um todo pode ser feita mesmo antes de amarmos o outro. Mas no tipo
único de afirmação sobre outra pessoa que pertence ao amor, há aí uma atuação
pessoal nessa passagem. – Ou seja, a relação entre aquela beleza e a minha
subjetividade se torna algo pessoal para mim.

No amor, nós “entronamos” o amado como um todo independentemente de qualquer


falha ou deficiência que ele possa ter; ele não é, como um todo, “feito”
(“produzido”/”criado”) ser precioso, mas, antes, é “declarado” ser precioso no amor. –
o “entronamento”, aqui, é uma característica intrínseca do amor. O “entronamento”
do amor tem uma qualidade especificamente diferente do que ocorre com outras
respostas afetivas; o trono em que o amado é colocado apresenta uma característica
diferente. Esse trono é o domínio do prazer e da felicidade. O próprio dado de valor
que pressupõe o amor se distingue eminentemente por ser especificamente
prazeroso. O trono em que a pessoa amada é colocada pela afirmação do amor é o
trono do prazer e da felicidade, e por isso o “entronamento” adquire uma qualidade
bem diferente daquela do que se refere a outras respostas afetivas. Esse trono afeta a
minha subjetividade de um modo específico, e altera o tipo de relação pessoal que eu
tenho para com a pessoa amada.

-//-

Assim eu falava à minha esposa, quando ela se reestabeleceu de uma grave


enfermidade muito dolorosa:

- Eu queria ter sofrido no seu lugar; eu me arrependo de não ter sofrido no seu lugar,
mas Deus sabe como eu sou fraco. Eu preciso confessar isso. Eu sou um nada, eu sou
totalmente miserável. Não tenho nada para te oferecer. Você é melhor do que eu;
você é perfeita; você tem tudo o que precisa sem mim. Eu não te mereço. Sabe por
que, então, eu estou com você? Sabe por que tenho a ousadia de querer você? Porque
eu te amo, e porque a única coisa que eu tenho certeza receber constantemente de
Deus é amar você como seu esposo. A única coisa que posso te dar é esse dom do
amor que recebi de Deus, porque é a única coisa que possuo de valor; só que, na
verdade, esse dom também não é meu. Eu não possuo meu amor, é ele que me possui.
O Amor me tem em suas mãos. O Amor me deu a você, ele quer que meu coração seja
seu, e mesmo se eu quisesse resistir eu não teria forças para isso. Por força do Amor,
eu sei que sofreria mil vezes todos os males do mundo por você, e isso não seria nada.
Então, eu te peço, te imploro, aceite o meu nada e permita que eu seja teu escravo.
Porque você é boa. Aceita a oferta do meu coração, e deixa eu servir a Bondade em
você. Meu Senhor e meu Deus, deixa eu servir nela a Sua Bondade!

-//-

No amor nós estamos lidando com uma qualidade de valor único e totalmente
individual; a beleza do indivíduo como um todo; estamos lidando como que com a
ideia irrepetível de Deus que ele é.

O amor não se refere à pessoa amada como portador daquela beleza total que
desperta meu amor, como se eu a amasse apenas pela sua beleza, mas a própria
pessoa vale o meu amor, de modo que eu a amo por ela mesma e enquanto bela.

A beleza é fundamental para despertar o amor (o tipo de beleza segundo o tipo de


amor), sendo o amor em si uma resposta a um indivíduo como belo. Este indivíduo em
particular vale o mau amor porque é extremamente agradável para mim, sendo ele
mesmo todo belo enquanto é quem ele é de verdade.

Dizer que eu amo a pessoa enquanto bela não é dizer que eu amo a beleza dela ou que
eu a amo por causa da sua beleza; mas é dizer que a beleza daquele indivíduo invoca o
meu amor porque ele é aquela pessoa em particular. A beleza de uma pessoa tomada
como um todo é tão particular quanto a própria pessoa, de modo que dizer que eu a
amo porque ela é “toda bela” é o mesmo que dizer que eu a amo porque ela é quem
ela é. Quando digo “toda bela”, me refiro à sua pessoa como um todo. Assim, não é
possível uma pessoa se apresentar para mim como “toda bela” sem que eu a ame.
Aqui, a beleza total da pessoa está intimamente ligada à sua individualidade como tal:
ela é “toda bela” porque ela é “assim”. E eu a amo porque ela, sendo “assim”, é toda
bela. É impossível, portanto, não amar uma pessoa que aparece para mim como sendo
“toda bela”, nesse sentido. Mas isso parece contrariar o pensamento de Hildebrand,
que disse que a passagem de um valor individual do outro (de uma virtude particular
que ele tenha) para a beleza do seu indivíduo tomado como um todo pode ser feita
mesmo antes de amá-lo. Por outro lado, ele diz que o amor é uma resposta afetiva à
essa beleza do outro como um todo; se é uma “resposta”, então é necessário que essa
resposta apareça sempre que apareça o valor ao qual ela responde. O que ele parece
querer dizer aqui é que essa “passagem” pode ser percebida primeiramente sem que
eu afirme ou negue o que estou vendo (como no fenômeno da “simples apreensão”).
Ele estava falando que o tipo de afirmação que eu faço da outra pessoa quando digo
que a amo é um tipo único no qual existe uma atuação pessoal no reconhecimento da
beleza do outro como um todo. Sendo a beleza o dado de valor fundamental que
corresponde ao amor, a sua característica específica de tornar o seu portador
agradável e encantador também qualifica o tipo de afirmação que eu faço do amado,
estabelecendo um novo tipo de relação interpessoal. Declarar o outro como amável é
ao mesmo tempo reconhece-lo como subjetivamente (com relação à minha
subjetividade) agradável e encantador, como alguém que me faz feliz e torna minha
vida mais agradável. Isso é o que Hildebrand chamou de “entronamento”. Como toda
afirmação do amor está relacionada com a beleza, Esse entronamento está presente
em todo amor.

QUAL A RELAÇÃO ENTRE AMOR E BELEZA?

-//-

O amor transcende toda a resposta-ao-valor.

Vamos supor que, mesmo sendo intrinsecamente impossível que algo assim ocorra,
que eu encontrasse uma mulher diferente daquela que eu amo mas que possuísse
uma individualidade qualitativamente igual e que sua beleza total fosse
qualitativamente a mesma: essa pessoa certamente não poderia tomar o lugar
daquela que eu amo, e eu que amo jamais poderia ter nem o sentimento de amor por
ela nem amá-la (com amor conjugal), como se não houvesse nenhuma diferença em se
é essa ou aquela pessoa que retorna o meu amor. É esta pessoa irrepetível, única e
concreta que eu amor e por quem eu desejo ser amado de volta. A pessoa que eu amo
é inteiramente temática. O amor vai além de uma pura resposta-ao-valor por quanto
envolve um comprometimento extremamente pessoal que não é obrigatório e que dá
algo que transcende toda resposta-ao-valor.

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Uma aparente “antimonia” do amor.

O amor é uma porta de entrada a um novo mundo de valores. É um mundo renovado


pelo amor. O mundo se torna mais belo e mais real quando eu amo. Ela, que
despertou em mim esse amor, representa para mim a encarnação desse novo mundo
de valores.

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Palavra de Deus

“Além disso, em toda categoria natural do amor sempre há, em acréscimo à resposta-
ao-valor, uma consciência de uma afinidade especial, de ser feito um para o outro, de
ter a ver um com o outro – é como se uma palavra especial de Deus tivesse sido
proferida entre os dois. Esse fator não é só decisivo para que se possa vir a apreender
a beleza do outro como um todo, para ser capaz da resposta-ao-valor do amor, mas
também é, à parte dessa função no amor, um fator importante por si mesmo, que é
experienciado como tal mesmo depois que o amor passou a existir.” (final do cap3).
“Uma esposa é um presente dado ao homem para consolá-lo da perda do Paraíso.” Johann Wolfgang von
Goethe. Aforismos.

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Santo Agostinho diz que o sexo no casamento, sem a intenção de ter filho, é sempre
impelido pelo mal hábito, ainda que não seja fornicação, porque ele não é praticado
por causa do matrimônio, mas é perdoado por causa do matrimônio (On the good of
marriage, 6).

Mas aí eu pergunto: como o sexo não é praticado por causa do matrimônio? Se um


homem e uma mulher casam porque se amam, e se o desejo sexual é inerente à essa
forma de amor, então as pessoas se casam para se amarem mutuamente, e o sexo é
como um ritual que celebra esse amor. É claro que a dimensão biológica e social de ter
filhos e educa-los não pode ser excluída da ordem do matrimônio, mas não podemos
ainda dizer que o matrimônio tenha sido feito em primeiro lugar para isso; quer dizer,
a finalidade última do matrimônio pode ser a geração e criação de filhos, mas a sua
finalidade primária, ou interna, é a própria união dos esposos, que é simbolicamente
efetuada por meio do ato sexual. Portanto, se os esposos tem o desejo de ter filhos
maior do que o desejo de usar um ao outro, mas se não é conveniente ter filhos no
momento, não podemos dizer que a única força que os impele a fazer sexo num
período de provável infertilidade da mulher seja a força do mal hábito, porque o
próprio amor que os une contém em si um elemento de desejo sexual pelo outro, pois
de outro modo o amor-conjugal seria apenas uma mistura de amor com luxúria, o que
é inconcebível se nós admitirmos que no princípio Deus criou o homem e a mulher
para que eles se reproduzissem – e como iriam se reproduzir se o sexo não fosse
subordinado ao amor?

Quando o esposo ou a esposa faz sexo porque ama, ele tem naturalmente o desejo de
ter filhos, mas nem sempre tem a possibilidade material de cria-los. Além do mais,
nem sempre há a possibilidade de ter filhos por esse meio. O que acontece com um
casal estéril? Se se amam, sofrem por não poderem ter filhos, mas o casamento
continua, não porque eles esperam por um milagre, porque o milagre pode não
acontecer, como geralmente não acontece, mas porque eles continuam se amando, e
é se amando que continuam fazendo sexo na esperança de terem filhos, ainda que
sabendo que não podem ter. A finalidade do sexo, além de ser um pedido a Deus para
a geração de filhos-de-Deus, é ao mesmo tempo a expressão interna do amor do casal,
e por isso a pratica do sexo, para ser virtuosa, não está submetida à condição de se ter
filhos. Portanto, não é impossível que haja um momento em que a força predominante
que impele o casal para o ato sexual é o desejo de se expressar e se relacionar com a
pessoa amada, por causa do amor que se tem por ela, enquanto que o desejo de ter
filhos fica apenas como que no fundo dessa relação, como uma possibilidade, mas não
como uma intenção primária que leve ao ato sexual. Do mesmo modo que algumas
pessoas mais sensíveis sentem mais devoção do que outras, e são mais impelidas a
orações e práticas devotas, que no fundo são também uma forma de expressão da sua
gratidão a Deus, assim, do mesmo modo algumas pessoas amam de uma forma mais
pura, e sentem maior necessidade de se expressar e se relacionar com a pessoa que
ama, sendo o sexo para essas pessoas a maneira única e excelente de dizer “o que
você significa para mim”, isto é, dizendo com o próprio corpo. O sexo, sendo praticado
no âmbito do matrimônio, por ocasião do amor sincero do coração, é de fato uma
renovação da aliança matrimonial, como que o frescor da beleza primaveril lançando
novo perfume para dentro da relação. O sexo é para fazer memória à beleza do amor
conjugal.

Mas, enquanto o desejo sexual está incluído no amor-conjugal, a intenção de ter filhos
está incluída no ato sexual. Desejo sexual não é mal, nem impelido pelo mal hábito, e
nem é desejo de ter filhos. Mas o desejo de ter filhos está de algum modo ligado ao
amor-conjugal. Esposos que realmente se amam sempre desejaram ter filhos juntos,
mas isso não significa que ter filhos seja a única motivação boa deles para fazer sexo;
pelo contrário, ter filhos não pode ser uma boa motivação para fazer sexo se não há
amor que une o casal. Se o amor que une o casal é apenas caridade, amor ao próximo,
a única motivação boa que eles terão para o sexo é a geração de filhos. Mas se o amor
que os une for o amor-conjugal, é o próprio amor que os impele a se relacionarem
desta forma, sendo a geração de filhos apenas uma consequência da finalidade
primeira que é a união dos esposos. Para pessoas que se amam com amor-conjugal, a
continência no casamento é uma abnegação muito mais extrema do que para os
outros casais – não é só um ato de virtude, é um ato de sacrifício.

Santo Agostinho diz que o ato sexual que não visa a geração de filhos é pecado venial,
mas, existem aí duas coisas: ele está falando do desejo de ter filhos ou da intenção de
ter filhos “agora”? Como eu mostrei, a intenção de ter filhos “agora” não pode ser uma
motivação para o ato sexual, pelo simples fato de que ninguém nunca ficou
sexualmente excitado PARA ter filhos, mas as pessoas ficam excitadas para fazer sexo.
Isso não significa que o desejo de ter filhos seja excluído do desejo sexual, mas
também não podemos dizer que a intenção deliberada de ter filhos “agora” seja
necessária para tornar o ato sexual lícito. De certo modo, o mero desejo de ter filhos já
faz com que o ato sexual esteja visando a fecundidade; a simples aceitação ou
abertura para a geração de filhos já é o suficiente para que o sexo movido pelo amor
não seja vicioso.

Daí Santo Agostinho diz que “a continência absoluta é melhor até mesmo do que o ato
sexual no casamento visando a geração de filhos”. Ou seja, se nós partimos do
princípio de que a única motivação lícita para o ato sexual é a geração de filhos, e que
sempre haverá um elemento de luxúria envolvido no ato sexual, então só podemos
chegar à conclusão de que a continência total é a melhor coisa no que diz respeito a
sexo. Assim, a meta de todo casal seria alcançar a virtude da continência. No entanto,
isso não pode ser justo, porque entre as pessoas que se amam a continência já não
significa mais simplesmente continência, porque ela vem junto com um sacrifício, com
o sacrifício de algo que é lícito e bom para eles.

O que eu afirmo é que o sexo pode ser praticado de modo virtuoso sem que a intenção
primária do casal seja a geração de filhos, e que isso faz bem ao casal por meio de
renovar integralmente a sua relação e mesmo dar um novo alento a cada um deles na
sua vida espiritual. Eu não digo que o sexo possa ser praticado como se pratica uma
virtude, com a finalidade de crescer espiritualmente, pois o ato sexual em si não serve
para nada, sendo um meio apenas para a geração de filhos. O sexo não é instrumento
ou meio para nada que não seja a geração de filhos; mas, por outro lado, o sexo é em
si uma forma de expressão; ele significa alguma coisa por si mesmo; isto é, quando o
casal unido pelo amor encontra o momento mais propício para demonstrar
fisicamente o que cada um deles significa para o outro – e essa é uma necessidade
também espiritual –, o sexo tem aí um significado próprio e independente de que se a
procriação aconteça. Assim, se o casal se ama na humildade de coração, o sexo entre
eles será mais semelhante àquele que deveria acontecer entre um homem e uma
mulher antes do Pecado Original, não sendo motivado pela geração de filhos, mas pelo
amor, ainda que intrinsecamente indissociável da intenção de geração de filhos.

Santo Agostinho afirma que a causa do matrimônio é a geração de filhos. Eu digo que
essa é apenas a causa final. A causa formal do matrimônio é o amor-conjugal. O
matrimônio existe para a geração de filhos, mas ele existe por causa do amor-conjugal
– e não estou falando do amor que pode ou não haver entre os esposos, mas de uma
forma de amor eterno que é manifestado na própria forma do matrimônio em si. Só
por isso o casamento pode ser em si mesmo um motivo de felicidade entre pessoas
que se amam. Não devemos nos surpreender, portanto, que o casamento possa ser
anulado caso um dos dois seja estéril. Se a geração de filhos fosse a causa da existência
do matrimônio, TODO casamento estéril seria nulo. Mas, como a verdadeira causa da
existência do matrimônio é uma forma especial e manifestação do Amor Divino, o
casamento estéril apenas PODE vir a ser considerado nulo, isto é, caso a intenção que
os esposos tivessem de se unir no casamento fosse subordinada à sua intenção de ter
filhos, o que nem sempre acontece desse modo, pois algumas vezes os esposos
desejam primeiro a união no amor, o que constitui para eles a sua felicidade,
independentemente se a expressão dessa união venha a ser um meio de geração de
filhos ou não. E esse casamento de amor é válido, mesmo que ambos sejam estéril, e
mesmo que não queiram adotar filhos ou não possam fazê-lo, e isso é assim porque, se
os esposos se amam, a esperança de ter filhos coma pessoa amada está dada no
fundo do desejo sexual, na medida em que esse desejo brota do amor-conjugal e não
do vício, e essa esperança é o que pode fazer com que o sexo entre esses esposos, no
amor, seja um ato também de fé, enquanto estiverem abertos à possibilidade do
milagre – no entanto, não podemos absolutamente dizer que esse casamento existe e
é válido apenas tendo em vista esse possível milagre. De fato, a geração de filhos como
causa final do casamento não precisa ser realmente efetivada para que o casamento
venha a existir como tal, podendo permanecer apenas em potência; e é a própria
possibilidade do milagre da geração de filho numa mulher estéril que garante
absolutamente a causa final do matrimônio. Assim, do mesmo modo, a própria
intenção deliberada de ter filhos “agora” não precisa existir para que o matrimônio
seja efetivado, nem para que o sexo seja lícito e praticado de forma virtuosa dentro
dele, bastando que ambos os cônjuges estejam abertos à possibilidade de ter filhos, e
que assumam com humildade a esperança dessa realização que repousa no fundo do
seu amor mútuo. No entanto, se o casal não deseja ter relações sexuais, o casamento
simplesmente não acontece; não há casamento sem sexo, ainda que haja casamento
sem filhos.

A tensão que existe aqui é que, por um lado, temos como elemento intrínseco do amor
conjugal o desejo sexual; e o desejo sexual expressa, por meio do corpo, uma dupla
intenção do amor conjugal: a intenção de união e a esperança de que essa união dê
frutos. E o problema é que as causas naturais (biológicas, psicológicas, sociais,
cósmicas, etc.) que influenciam a procriação estão em desarmonia com aquelas que
influenciam a excitação sexual. Isto é, o desejo sexual carrega em si duas intenções
que no amor se encontram unidas como que numa semente, mas que na realidade do
corpo, no mundo corpóreo, estão numa conflituosa desarmonia. Ou seja, as causas
que regem o amor no coração estão em plena desarmonia com as causas que regem a
sua possibilidade de manifestação no mundo. Uma manifestação desse conflito é que
às vezes um casal que se ama não pode se casar por questões sociais, ou não pode ter
filhos, enquanto que um casal que casa apenas por questões sociais podem ter filhos e
conviver como se se amassem com um tipo de amor que realmente não têm um pelo
outro. Ora, existem muitas forças alheias ao amor-conjugal que impelem o indivíduo a
ter desejo de sexo; e tantas e tão fortes que, se o indivíduo não for virtuoso, o próprio
amor-conjugal pode ser inteiramente pervertido por essas influencias (externas ao seu
coração), de modo que o sexo aí passa a servir quase que somente para alimentar o
seu orgulho e não para expressar a união do casal no amor. É justamente essa tensão
entre a realidade do coração e a realidade do mundo, a interferência entre esses dois
campos de realidade, que tem o seu momento agudo de máxima intensidade na
questão sexual, é justamente essa tensão que torna a moralidade da relação sexual tão
complicada. O matrimônio é ao mesmo tempo uma realidade que vem do coração do
homem e da mulher que se unem no amor e uma realidade social que independe do
que se passa no coração de cada um para acontecer. O sexo é ao mesmo tempo a
expressão do amor-conjugal, que vem do coração da pessoa, e um ato corporal pelo
qual se gera filhos, que é uma realidade biológica e independente do que se passa no
coração de cada conjuge. E, mais ainda, essa tensão também é expressa na imagem do
casamento como relação entre Deus e a sociedade humana: a forma de organização
dessa relação no mundo é sempre complexa e cheia de conflitos internos, ainda que
Deus esteja de fato unido ao Coração da Sua Igreja. O próprio matrimônio, e o ato
sexual dentro dele, é o ponto mais alto e agudo da ligação entre o coração humano e a
sociedade humana.

A continência só tem sentido dentro do sacramento do matrimônio, e como um


sacrifício por amor a Deus, um sacrifício oferecido por ambos os esposos em união.
Porém, note que, o sexo, para esposos que se amam com todo o coração, significa
uma coisa muito distinta daquilo que representa o sexo entre esposos que não se
amam desse mesmo modo; assim, para esposos que se amam com o coração, a
continência significa um tipo de sacrifício, e para os esposos que se amam de outro
modo, essa continência representa um outro tipo de sacrifício. A diferença é que os
esposos que se amam oferecem, junto com a negação da satisfação de um impulso
corpóreo, o silêncio do próprio coração, enquanto que os esposos que não se amam
desse modo oferecem apenas a negação do impulso sexual, já que o sexo para eles
não é a expressão de uma necessidade do próprio coração.

Para Santo Agostinho, a continência é melhor que o casamento, na medida em que a


continência tende para a eternidade (não prescindindo de relação corporal), e o
casamento tende para o arranjo da vida neste mundo. Nesse sentido, a continência
prepara para a vida eterna pela negação da vida terrena, enquanto que a vida conjugal
é de certa forma uma negação da morte pela afirmação da continuidade da espécie
humana no mundo. Mas, por outro lado, a esperança de continuidade da espécie
humana nesse mundo contém um elemento de eternidade, é ao mesmo tempo uma
esperança de imortalidade, que é dada também no próprio amor-conjugal, que deseja
se eternizar; enquanto que na própria continência também existe um elemento de
desespero e negação da eternidade, na medida em que cala e sufoca o mesmo amor-
conjugal.

Para Santo Agostinho, o ato sexual será “destruído” tal como o conhecimento será
“destruído”, de modo que, no céu, onde viveremos “como anjos”, estaremos livres do
sexo, e, como disse São Paulo, só o amor continuará eternamente. Ou seja, se a causa
final do sexo cessa de existir, que é a procriação, então o sexo cessa de existir; mas,
como vimos, a causa formal do sexo é o amor-conjugal, e, se o sexo deixa de existir, o
amor-conjugal deixa de existir, pois enquanto houver amor-conjugal haverá, ao menos
em potência, a necessidade do ato sexual. Mas, na eternidade do Paraíso Celeste, é
necessário que todo amor se realize plenamente, em todas as suas formas, pois de
outro modo o mundo terrestre teria um elemento a mais que o mundo celeste, caso a
dimensão sexual do homem só se realizasse na terra mas não no céu. Ou seja, se o
amor-conjugal existe como manifestação do amor puro de Deus na dimensão sexual
da humanidade assim criada por Ele, ela deve continuar existindo formalmente
enquanto existirem varão e mulher. Se existe amor-conjugal, o ato sexual já está dado
aí em potência. Mas se não há necessidade de procriação, não há necessidade de
realizar o ato sexual, portanto ele não será atualizado. Mas se o ato sexual nunca mais
será realizado, corporalmente, isso não significa que formalmente ele tenha cessado
de existir, isto é, como símbolo do amor-conjugal. Se o sexo nada significasse, e fosse
totalmente destruído, então o tipo da relação conjugal também seria destruído, e o
matrimônio nada poderia significar, e o amor-conjugal seria um mero absurdo. mas, se
o sexo tem algum sentido com relação ao amor entre os esposos, sendo a realidade do
“esposo” em si uma realidade mais espiritual do que temporal, então o fato de não
haver ato sexual não contradiz a existência da própria disjunção sexuada da espécie
humana, dado que “varão” e “mulher” são também realidades mais espirituais do que
temporais. Ou seja, o ato sexual nunca será realizado no Paraíso, mas será uma
potência já realizada, subsistindo como sinal na própria forma do amor-conjugal entre
os “casais”, amor este que, por sua vez, não precisará mais ser expresso de forma
sexual-corpórea, devendo haver uma forma análoga e superior de realização para ele.
De fato, se o sexo significa alguma coisa na terra, é justamente isso que ele significa
que já estará realizado no Céu, de modo que o casal já não precisará reafirmar aquilo
que será perfeitamente realizado e manifesto na união entre os esposos.

A continência é algo que só pode existir no âmbito cristão, porque só aí existe a


possibilidade de abdicar de todas as coisas do mundo para servir a Cristo na Igreja.

9. Para Santo Agostinho o casamento é um bem que serve para a propagação da


espécie humana. Mas ele diz que a amizade é um bem que vale por si mesmo. Isso
significa que o casamento não deve ser buscado por si, mas tendo em vista o bem da
geração de filhos, e da assistência mútua entre os esposos para a superação da
concupiscência. Mas, se eu amo uma mulher, eu não sinto que quero casar com ela
por causa de nenhuma dessas duas coisas, mas eu só quero casar com ela porque eu a
amo, porque é a pessoa dela que eu amo, e só com ela quero estar unido como
esposo; só que, como esse amor na terra é unido ao desejo sexual, por meio do corpo,
é só no casamento que esse amor pode encontrar sua realização. Isso não significa que
o desejo sexual seja fruto apenas da concupiscência, algo que deve ser superado, mas
ele está, na verdade, à serviço de um tipo de amor que é uma finalidade em si mesmo,
sendo a procriação e o ato sexual apenas efeitos colaterais desse amor e dessa união
que ele promove entre os esposos. As estórias de amor que surgiram na Idade Média,
por todo o mundo civilizado, estavam tentando mostrar que o relacionamento
conjugal é em si mesmo uma necessidade para as pessoas que amam, não por força do
vício, mas por força do amor. Se, por um lado, o adultério e a fornicação não podem
surgir do amor, por outro, o próprio matrimônio se torna inútil e dispensável para o
próprio amor. O que essas estórias querem mostrar é que existe uma dimensão do
amor-conjugal que é totalmente independente do mundo, das relações sociais, do
matrimônio, e da continuidade da espécie; e, por outro, esse mesmo amor, por causa
do seu elemento sexual, só pode ser realizado na terra por meio do matrimônio, e,
portanto, do serviço prestado pelos esposos para a geração e educação dos filhos. O
amor entre os esposos é único e irredutível a uma simples amizade onde acontece
relação sexual. No amor-conjugal “eros” e “caridade” estão unidos de tal maneira que
não se pode saber aonde é que um termina e começa o outro; os dois amores se unem
num amor com características próprias e com uma área de realização própria na vida
humana; e, sem esse amor a própria diferenciação sexuada da espécie humana seria
ridícula senão absurda.

Mas, como o amor-conjugal se manifesta como uma resposta afetiva que envolve o
desejo sexual, ele está necessariamente ligado à geração de filhos e, portanto, ao
contrato do matrimônio. O matrimônio, como o âmbito de realização do amor-
conjugal, é, de certo modo, independente da procriação; ou seja, a própria relação
conjugal entre os esposos possui uma finalidade em si mesma: é a própria união
esponsal que é desejada. Mas a sua realização, no plano terrestre, se dá de modo
sexual. O matrimônio, independente do amor, é apenas um meio para os esposos
servirem como suporte material para a geração e educação de descendência, podendo
servir também como remédio para a concupiscência. Mas, de fato, não existe apenas
uma parte do matrimônio, que nós podemos chamar de “Marta”, que é o serviço à
Deus por meio do trabalho bruto, mas também existe a parte que diz respeito a
“Maria”, que é a vivência interior do próprio amor-conjugal que une marido e mulher,
sendo assim a relação conjugal uma relação simultaneamente e indissoluvelmente
mundana e espiritual, como se o amor-conjugal fosse a imagem da própria ordem
divina da manutenção da ordem terrestre, do amor de Deus pela Sua Criação. Esposos
que se amam sustentam o matrimônio e a vida no mundo por amor, e é esse amor que
é a vida deles, que os sustenta e os une. As estórias de amor que surgiram na Idade
Média nos mostram claramente essa outra dimensão do matrimônio, que até então
vivia na obscuridade do inconsciente, que é fundamentada num tipo de amor
profundamente pessoal e que diz respeito a uma outra individualidade única e
insubstituível.

O que estamos tentando mostrar aqui é que o matrimônio não é uma realidade
puramente social, mas encontra o seu fundamento na própria realidade do amor-
conjugal, que brota do coração dos amantes. Todas as obrigações sociais do
matrimônio já estão dadas no grão do amor, na forma mesma do tipo de união que o
próprio amor impõe aos amantes.

Mas se o desejo sexual pode ser despertado por força do amor, e não só de uma
condição viciosa, ou pela fraqueza da carne, então ele já adquire um outro sentido que
não o de mero “apetite” do corpo. E acontece que, antes da Idade Média, o desejo
sexual era visto apenas como um apetite do corpo, algo como a fome ou a sede, e não
algo como um “apetite” positivo, tal como o desejo de conhecimento, por exemplo,
que não é exatamente o preenchimento de um vazio. E, no entanto, em todos os
lugares existe essa analogia entre o ato sexual e o conhecimento: todo mundo se
refere ao ato sexual dizendo “João conheceu Joana, e eles tiveram um filho...”.

9. Santo Agostinho diz que casar é bom porque ter filhos é bom, porque é bom ser
mãe de família, mas que guardar a continência é melhor, para manter uma sociedade
pura. Eu não vejo dessa forma, porque eu não sei como o estado de continente pode
ser absolutamente melhor que o estado de casado. Na verdade, o estado de
continente só pode ser dito melhor ou pior, realmente, relativamente às circunstâncias
de cada um. De nada adiante dizer que o estado de continente se assemelha mais à
vida do Cristo, ou à vida do espirito, do que o de casado, porque eu não sou Cristo,
nem sou anjo, e a minha necessidade de casar pode ser simplesmente porque eu amo
alguém, e isso diz respeito à minha felicidade como pessoa. Se você vem a amar
alguém, e você despreza esse amor em nome de uma pretensa continência que não te
foi dada por Deus, então o que pode sair de bom disso tudo? E, no entanto, o homem
envelhece, e na velhice o estado de todo homem moderado tende a se igualar.

10. Daí Santo Agostinho diz, baseando-se em São Paulo, que aconselha a se casar
somente os que “não se contém”, como se o casamento só existisse para os fracos e
pecadores, e não para os santos, que já superaram essa necessidade. É verdade que
nunca ouvimos falar de santos que se casaram santos, ouvimos falar apenas de santos
casados. Mesmo supondo que santos não precisem casar, e que o casamento seja um
meio de santificação para os que “ardem de desejo” e “não conseguem se conter”,
existe ainda uma outra força que impele os indivíduos a se casar: a felicidade de se
unir coma pessoa que se ama. Esse amor não é levado em conta em nenhum lugar na
Antiguidade, tal como se ele nem existisse. Que direito eu tenho de desprezar a minha
própria felicidade? O erro mais comum hoje em dia, no que diz respeito a “vocação”, é
justamente o sujeito escolher o modo de vida “melhor”, “mais perfeito”, “mais
espiritual”, desprezando assim aquilo que é a única coisa que ele sente que o faria
feliz. Ora, é fácil dizer que nós estamos enganados, que aquilo que a gente quer só nos
faz feliz porque a gente é mal e gosta de pecar, etc.; mas, pensando bem, se Deus
mora em nossos corações, talvez seja aí mesmo que Ele se comunique conosco, nos
chame, nos prepare, e nos guie para fazer a Sua Vontade. Deus está no coração é não
na cabeça. Portanto, não é lícito ignorar o coração para por em prática o que está na
cabeça, mas, pelo contrário, deve-se buscar Deus no coração justamente para que
possamos descobrir o que Ele preparou para nós, de modo que a nossa felicidade
possa realmente estar em fazer a Vontade de Deus, e não que seja feita apenas de
palavras da nossa cabeça. Portanto, se a continência é mais perfeita que o matrimônio,
pode ser que, por outro lado, o matrimônio seja perfeito para mim, e que a
continência não diga respeito a mim pessoalmente. E se isso tem a ver ou não com a
“dureza” do meu coração, eu só posso descobrir isso depois de ter seguido o meu
coração, e nunca apenas com a minha própria cabeça. Se eu não for feliz seguindo o
caminho que eu estava seguindo, é porque eu estava enganado, e devo me converter,
mas isso só é possível se eu estiver sinceramente buscando a verdade no meu coração.
Se, por outro lado, eu achar que domino a Verdade por meio de palavras, e decidir
tudo sozinho a partir da minha cabeça, então eu seguirei sempre no caminho errado e
nunca irei me converter, por mais que eu sofra, porque o caminho que escolhi é o
caminho “logicamente melhor”. Por fim, se eu experimento a felicidade como sendo
necessariamente melhor do que a infelicidade, então com que direito, entre dois
caminhos lícitos, um dito “bom” e outro dito “melhor”, eu vou escolher aquele que
não move o meu coração, e não aquele onde eu vejo a minha felicidade se realizando?

A maneira dos Padres da Igreja, em geral, de abordar o matrimônio, é sempre sob uma
perspectiva “angelicamente objetiva” e impessoal, e até platônica, como se todas as
pessoas fossem espíritos presos em corpos mortais. A dimensão “subjetiva”
(Eigenleben) do homem, aquilo que diz respeito especialmente à sua própria alma
imortal e a nenhuma outra, é totalmente ignorada nos escritos antigos. Aquilo que me
diz respeito pessoalmente não importa, o que importa é eu querer todas aquelas
coisas boas que os sábios da religião me disseram que é a Vontade de Deus – é isso o
que deve me importar. Mas a hierarquia de valores que eu encontro na teologia não
determina aquilo que eu devo buscar para mim na minha vida pessoal, porque tudo o
que eu encontro no mundo tem um significado único para mim, e a minha relação com
Deus se dá por meio da minha percepção daquela Realidade que Ele quer me mostrar
no meu coração, de modo que ignorar a resposta que o meu coração dá àquelas coisas
que eu encontro no mundo que “me dizem respeito” é a mesma coisa que ignorar a
Palavra de Deus no meu coração. O fato é que Deus não costuma nos mostrar a Sua
Vontade por meio de raciocínios – mas Ele fala diretamente no fundo do nosso
coração. É claro que os Padres falavam desse jeito por um motivo, e, muito
provavelmente, eles queriam mostrar uma realidade que não pode ser acessível para
nós somente pelos seus textos, mas eles próprios deveriam ser homens quase
angélicos, de tão bons que eram e tão belas as suas almas. E, no entanto, se homens
dessa estatura não mais estão aí para nos falar, esse mesmo fato é também
providencial, e nós não podemos ler os seus escritos como se estivéssemos vendo a
mesma Verdade que eles viram quando escreveram aquilo. A Verdade do nosso tempo
é outra.

Além disso, o casamento é em si mesmo um valor, e é um bem para mim na medida


em que contemplo a sua beleza, bondade e verdade. Eu posso querer ser esposo
porque é bom ser esposo, e porque é bom ter uma esposa. Ter esposa pode ser bom
para mim, porque a própria esposa é um bem – e eu a recebo como se recebesse um
presente das mãos de Deus. O casamento para mim pode ser uma boa forma de viver,
não porque eu estou ardendo de desejo, nem porque eu quero ter filhos, mas
simplesmente porque a própria relação matrimonial é em si mesma bela, boa e
verdadeira, e eu contemplo a beleza do amor e todo o bem que isso significa para
mim, e me encanto e me sinto atraído para realizar essa imagem que concebi do
matrimônio. E, quando eu digo “realizar essa imagem” eu não quero dizer que eu
idealizei o casamento, mas simplesmente que eu contemplei o que ele tem de bom,
belo e verdadeiro, e imaginei que possa existir para mim um estado de vida tão bom,
belo e verdadeiro quanto eu seja capaz de conceber, sem que eu precise mentir ou me
iludir. Não é porque muitas pessoas se iludem com o matrimônio, com a esposa(o), ou
com a sua fonte de felicidade, que o matrimônio ou qualquer outra coisa não pode
realmente ser um meio para se alcançar a felicidade.

Hoje em dia, quando as pessoas leem a vida dos santos, elas têm a impressão de que a
santidade consiste em você ser indiferente à sua própria felicidade, como se você
devesse ser indiferente se você mesmo é feliz ou infeliz, de modo que tudo o que você
fizesse não fosse para você mesmo, mas fosse, como que num ato de obediência,
apenas uma resposta ao valor de cada coisa com que você se depara. É claro que é
muito fácil você dizer que o santo é feliz, mas, na prática, o que você faz é apenas
assumir que essa felicidade santa que você acredita desejar é alguma coisa
desconhecida que você só vai alcançar se abrir mão daquela felicidade que lhe é
conhecida no momento. Daí o sujeito pega a hierarquia de valores presente em
qualquer compilação de doutrina da Igreja, e acredita piamente que viver santamente,
viver “para Deus”, significa ignorar a voz do seu coração, ignorar todas as suas
respostas afetivas, que provavelmente estão erradas, já que você não é santo, e, por
um ato de vontade, de acordo com a capacidade da sua inteligência, passar a se
dedicar mais àquelas coisas que tem um valor mais elevado, do ponto de vista da
doutrina angélica dos Doutores da Igreja, e passando por cima de todos os seus
desejos, sonhos, ambições, etc., etc.. Esse erro é fatal. Esse erro consiste em esquecer
a dimensão “subjetiva” do homem, a sua individualidade como pessoa. Tudo na vida
da pessoa se refere à esse centro misterioso que constitui o caráter de sujeito do
homem. A “subjetividade” do homem tem as suas características próprias, e está
intimamente ligada com a dignidade da pessoa humana. Acontece que, se existe uma
hierarquia de valores nos bens que são encontrados no mundo, externa ao sujeito,
também existe uma constituição interna do próprio sujeito, que vai determinar,
segundo as suas circunstâncias, aquilo que é melhor “para mim”. Não adiante você
buscar a santidade, porque a “santidade” é uma abstração, é só uma palavra que você
usa para dizer que faz parte do grupo dos bonzinhos. Você tem que buscar a sua
felicidade na Verdade, e isso significa ser humilde, porque muita gente pode ser feliz
na mentira, mas a felicidade deles vai durar pouco. Eu não quero uma felicidade que
dure pouco, eu quero a felicidade eterna; então, enquanto eu viver, eu vou buscar a
minha felicidade, porque eu já sei que a minha felicidade está em Deus, mas eu ainda
não sei quem é esse tal de Deus, então eu vou ter que descobrir isso. E para alcançar
essa felicidade, mesmo na terra, só existe uma regra: você não pode mentir; ao
contrário, você é obrigado a confessar, e confessar significa confessar o que se passa
de verdade com a sua subjetividade. Se você ignora a sua subjetividade, porque você
tem medo de se desviar do caminho, então aí você acabou de abandonar o Caminho,
porque você nunca mais vai conseguir ser sincero na sua confissão. Conheça-te a ti
mesmo; você está na sua felicidade; Deus é a sua felicidade.

Se eu passo a ignorar a minha subjetividade, como se fosse algo ruim, então sobre o
que eu vou falar com Deus? Porque se você não fala com Deus sobre as coisas dEle que
dizem respeito à sua pessoa, à sua subjetividade, então porque você iria pedir a Deus
pelas outras pessoas? Quando você nega a sua subjetividade e considera apenas sua
salvação, a “salvação” para você é apenas uma abstração, e não a salvação de uma
pessoa real, pois uma pessoa real possui uma subjetividade que deseja ser salva. O
valor de uma pessoa está relacionado ao valor da sua subjetividade, e não é o mero
valor da sua alma abstrata. Uma alma sem subjetividade ama o que nos outros?
apenas a sua alma? mas o que é uma alma sem subjetividade? Não é uma alma apática
que “ama” tudo o que é bom, mas não gosta de nada? Que caridade é essa,
desinteressada da própria felicidade? A verdadeira caridade só é possível caso o
sujeito ame a sua própria subjetividade, porque a caridade é a união de todas as
subjetividades em Cristo. Como alguém pode se importar com alguma coisa por causa
de Deus, sem que se importe com nada por causa de si mesmo? Ou, dito de outro
modo, se Deus se importa COMIGO, o que isso significa? Não significa que ele se
importa comigo enquanto sendo alguém que possui uma subjetividade que deseja ser
plenamente realizada? Mas, se Deus se importa com a minha subjetividade, então isso
significa que ao desprezá-la eu estou desprezando o próprio Deus. Reconhecendo que
eu sou uma pessoa única e irrepetível, que algumas coisas dizem respeito
especialmente a mim, como se fossem palavras de Deus recitadas especialmente para
mim, como uma música particular de Deus na Obra da Criação, eu peço a Deus para
que Ele ordene a minha vida no mundo de acordo com todas essas coisas e pessoas
por que eu me interesso e que constituem o que há de mais importante para mim na
vida, isto é, abaixo de Deus; do mesmo modo, parece que Deus pede de mim que eu
contribua para a ordem da Sua Criação, da Realidade, por meio da caridade, servindo à
propósitos que vem da “Subjetividade” de Deus. Se há uma relação pessoal entre Deus
e o homem, ela deve ser baseada nesse tipo de relação, onde há realmente uma
analogia com a relação matrimonial: sendo Deus a cabeça do homem, e o homem
sendo obediente a Deus, e Deus servindo o homem, e o homem servindo a Deus; do
mesmo modo que a Caridade ordena todo amor e é maior do que todas as formas de
amor que constituem a vida subjetiva do homem. O homem cria o seu mundo
subjetivo, organiza a vida segundo as coisas que lhe interessam, desde que seja tudo
não só aprovado por Deus, mas dado pelo próprio Deus, que também se interessa pela
vida subjetiva do homem. E, o homem, deve não só obedecer a Deus, mas receber
tudo somente dEle, tanto os bens quanto os males, e recebendo-os do mesmo modo,
pois Deus é maior que o homem, e o homem deve ser submisso e servir a Deus com
obediência e fé. Daí a caridade é cuidar das coisas por causa de Deus, mas ela não
exclui as outras formas de amor, que dizem respeito à vida pessoal e íntima do
homem, pois Deus também se importa com estas coisas, sendo o provedor da
individualidade do homem. Existe aí uma tensão entre a “Subjetividade” de Deus e a
subjetividade do homem, e, se o mundo da subjetividade do homem fosse aniquilado,
não podemos imaginar que significado teria a palavra “relacionamento” para ele. Jesus
disse “quem fizer isso a um desses é a mim que o faz”; ou seja, o “relacionamento”
com o próximo, por causa de Deus, isto é, da Caridade, é na verdade um
relacionamento com o próprio Deus. Ora, não existe somente o relacionamento com
Deus, existe o relacionamento com os outros seres humanos, e que podem assumir
várias formas diferentes. Quem duvida que a amizade seja um dom? Se Deus nos dá
esse dom, então ele o deu para quem? Para a minha alma sem subjetividade e que,
portanto, toma o seu amigo como se fosse qualquer outro desconhecido? Tanto a
caridade quanto o mundo da subjetividade fazem parte da nossa relação com Deus, e,
sem um desses dois, essa relação não existiria de fato, porque a caridade é o que Deus
pede de nós, e o mundo da nossa subjetividade é o que nós pedimos de Deus (e que,
antes de pedirmos, já nos foi dado).

Tudo o que existe de belo na obra de arte é fruto da subjetividade humana. O que o
artista expressa não é outra coisa senão a sua subjetividade, ou o que há de verdade
divina nela. Em toda obra artística, bela, o seu conteúdo deve ser algo que toque a
intimidade do autor, a sua subjetividade, o seu coração. A matéria da arte é algo que
toca o autor de modo pessoal, íntimo, que tem um sentido especial para ele, na vida
dele. A dança, a música, a pintura, a escrita poética, tudo isso é belo e necessário para
a vida humana, e é produto de uma subjetividade, de um sujeito que ama o que lhe foi
dado por Deus de modo singular, e expressa isso de forma única. Nenhuma obra de
arte, tal como seu autor, é repetível, reproduzível. E, ainda assim, a obra de arte é
capaz de tocar muitas pessoas, cada uma a recebendo à seu próprio modo, e sendo
tocada de um jeito diferente por ela; e isso só é possível porque aquela obra diz
respeito à algo que toca profundamente o seu próprio autor, mas a expressão desse
algo é uma forma genérica que pode servir para a expressão de outras coisas
semelhantes que nos tocam a nós pessoalmente, e que em nós é diferente em
conteúdo daquilo que tocou o autor mesmo da obra. A beleza da obra de arte prova o
valor intrínseco de cada subjetividade humana capaz de ser tocada pela arte. Isso
equivale a dizer que a vida humana é bela não só na sua estrutura, como também no
seu conteúdo subjetivo, na sua interpretação do que é a sua própria vida e das coisas
que te pertencem de modo singular porque têm um sentido especial para você. Nesse
sentido, uma vida bela é uma bela autobiografia, ou uma autobiografia contada de
forma bela. O que é uma autobiografia senão “todas as coisas que eu interpreto
subjetivamente como dizendo respeito a mim pessoalmente de modo singular”? Eu
escrevo na minha autobiografia as coisas que entendo dizerem respeito à minha vida,
e todas elas me tocam de um modo singular, único. Se a minha subjetividade pudesse
ser aniquilada, isso significa que a minha autobiografia cessaria de existir, pois eu não
teria como selecionar dentre tudo o que me aconteceu aquelas coisas que dão sentido
à minha história. Isso acontece porque o próprio sentido da vida humana é feito de
tudo o que é humano e subjetivo: a felicidade, o prazer do amor e da amizade, a dor
do sofrimento, o medo da morte, a alegria da vida, o sentimento de valor, o
sentimento de derrota e de vitória, etc., etc.. Todas essas coisas formam a melodia
subjacente à letra da nossa própria vida. No fim, a vida também é algo que se padece:
e você é o sujeito da sua vida.

Isso não significa que a minha felicidade (terrena ou eterna) é a coisa mais importante
para mim independente de tudo o mais, nem que tudo o que eu faça tenha relação
direta com a minha felicidade ou a minha subjetividade. Buscar o Reino de Deus e a
Sua Justiça está em primeiro lugar, e a Justiça do Reino de Deus diz respeito não só à
minha felicidade, mas à felicidade de todo o mundo. Isso significa que é mais
importante, para mim, buscar a Justiça de Deus do que buscar a minha própria
felicidade pessoal, ou, em outras palavras, buscar a Glória de Deus mais do que a
minha própria salvação, porque Deus é absolutamente mais importante do que eu, e o
meu reconhecimento disso, de que eu sou criatura dEle, e não consubstancial a Ele,
esse reconhecimento é absolutamente necessário para que a minha própria
subjetividade ganhe vida, para que eu viva a minha própria vida de modo pleno; isso é
o que significa “quem perder a sua vida por mim, ganhá-la-á”, isto é, quem submeter a
sua subjetividade à Subjetividade de Cristo, mesmo que perca a sua felicidade no
mundo, ela lhe será restituída plenamente no Céu, e é isso mesmo o que prefigura a
história de Jó, que, depois de ter perdido tudo na terra, e depois de ter visto Deus, e se
arrependido de seus pecados, Deus o restituiu com todos os seus bens.

Isso significa apenas que a minha felicidade, aquilo que toca o meu coração, tem para
mim prioridade sobre aquelas coisas que não importam para a minha subjetividade. Eu
dou preferência à realização daqueles bens que me animam e movem o meu coração
de modo mais pessoal (personalizado) do que à realização de bens que não me afetam
subjetivamente. Para fazer isso de modo justo, é necessário reconhecer que o outro
também é um sujeito como eu – e eu devo ser justo porque a Justiça é de Deus. É isso
o que fundamenta a possibilidade de eu competir honestamente com alguém por um
mesmo emprego; é claro que eu prefiro que eu esteja empregado e não o outro, mas
isso não significa que eu esteja sendo egoísta. Do mesmo modo, se eu desejo que meu
amigo consiga certo emprego que ele deseja, porque eu acredito que ele realmente o
mereça e seja capaz de exercer tal ofício tanto quanto os outros candidatos, eu estou
dando preferência ao meu amigo sobre todos os outros competidores, e essa
preferência é legítima pelo mesmo motivo que é legítimo eu preferir que eu seja
empregado e não os que estão competindo comigo: é que, dado que seja justo que
qualquer um dos competidores consiga o emprego, eu prefiro que seja o meu amigo,
porque ele tem um lugar na minha vida que os outros não têm. Ou seja, dentro da
Justiça de Deus, eu só posso me preocupar de verdade com aquilo que é da minha
conta, que diz respeito à minha subjetividade. Se eu for indiferente à minha própria
subjetividade, eu não terei lugar no mundo, e nem desejarei que as outras pessoas
sejam felizes, porque desprezando a minha própria felicidade eu automaticamente
desprezarei a subjetividade dos outros. Não podendo desprezar o meu próprio lugar
no mundo, o que me foi dado, tudo aquilo que eu encontro que toca a minha
qualidade de sujeito, a minha pessoa, o meu coração, mas, pelo contrário, sendo
obrigado a realizar a minha pessoa no mundo, eu só posso dar preferência àquilo que
é preferido para mim desde a minha perspectiva. Se eu não me reconheço como um
“centro” em redor do qual gira um campo de interesses pessoais, então eu não posso
reconhecer o outro como sendo um “centro”. Mas o que seria o puro desinteresse? O
que seria a justiça impessoal? Se Deus nos criou como pessoas, é porque ele quer que
nos realizemos como pessoas, e é por isso que é preciso buscar a Sua Justiça, que
consiste na relação harmônica de todas as subjetividades. Mas, se as pessoas passam a
se desinteressar da sua própria subjetividade, então a Justiça Divina é uma ordenação
do quê? De seres vazios que não atualizam nada de si, que não sabem reconhecer o
valor da própria criação, que não conhecem o significado de ser um “eu”.

A ideia é que nós estamos aqui para sermos como instrumentos nas mãos de Deus
para a salvação das almas, que aqui não é o lugar de ser feliz, mas a nossa felicidade
está no Paraíso, após a morte, e aqui no exílio nós só podemos trabalhar e ter alguma
consolação, mas não estamos aqui para buscar a felicidade no mundo, que não
podemos ter, porque é tudo ilusão. Só que essa ideia tem um quê de gnosticismo, pela
separação radical que faz entre, por um lado, a vida terrestre, e, por outro, a vida
espiritual, como se a nossa vida no mundo não tivesse nenhum significado, nenhum
sentido em si mesma, sendo toda a criação apenas uma ilusão maligna para nos
desviar de fazer a Vontade de Deus e levar as almas para o inferno. Quer dizer que
Deus criou tudo isso só para que a gente sofresse e lutasse para alcançar o Céu? Ou
será que a minha real felicidade seria viver como se eu fosse um anjo, mas que eu não
sinto essa felicidade somente por que eu sou mal de coração, preferindo assim a vida
de pecado, ou uma mistura de pecado e virtude? Mas os santos são felizes por causa
do seu estado de vida, ou porque eles ganharam algo melhor do que tudo aquilo que
eles abdicaram? Mas eles realmente abdicaram de tudo, ou, antes, é que na verdade
eles preferiram uma outra coisa “melhor”, (sendo que esse “melhor” não exclui o valor
dos bens que eles deixaram de buscar, nem o que aqueles bens significam para eles,
mas os transcende), uma coisa que lhes foi dada como tendo um valor mais alto do
que aquelas outras que ele buscava, por dizer respeito diretamente à salvação da sua
alma e da dos outros, mas uma coisa que foi dada diretamente à subjetividade dele, e
não como um preceito geral para todo mundo, de modo que só aquela pessoa daquele
santo pudesse responder a esse valor mais alto, e de forma única, abdicando de outras
coisas que ele poderia ter tido, mas que para ele já não são necessárias, em face da
sua nova missão sobre a terra, que exige dele apenas toda a disponibilidade do seu
coração com exclusividade e de modo permanente. A vocação religiosa, ou sacerdotal,
do mesmo modo, deve ser uma resposta ao valor dada a partir da subjetividade do
sujeito, e não como uma deliberação puramente objetiva. Ou seja, por que você está
fazendo voto de castidade? É porque ela existe já no seu coração ou é porque você
está pensando que isso que você chama de deus vai te achar “mais perfeito” se você
fizer isso? Note bem que, assim como há casamentos “arranjados”, assim como existe
a pessoa que casa com a pessoa errada por pura ilusão, existem também pessoas que
fazem votos religiosos por engano, por ilusão, ou porque simplesmente são obrigadas
a dar um jeito de se arranjarem no mundo. Para essas pessoas, ainda que a entrada
delas no casamento ou na vida consagrada tenha sido um erro, um engano, ou uma
fatalidade do destino, ainda assim elas devem cumprir os votos que fizeram, e arcarem
com as consequências de seus atos, pois essa é a coisa mais madura e responsável a
seu fazer. Além do mais, tudo o que nos acontece tem um sentido, e nos serve para
que nós venhamos a conhecer o nosso próprio coração, e nele o nosso Criador. Tudo
pode se converter em um bem para nós; no entanto, não devemos pensar que
podemos fazer o que quisermos, quer dizer, que qualquer escolha que fizermos será
igualmente boa: escolher ignorar o que é melhor para você não é uma boa escolha.

“Eu estou interessado num bem de relevância moral por causa dele mesmo”, diz Von
Hildebrand em The Nature of Love. Do memo modo, eu posso não estar interessado
no casamento como meio para nada, mas eu posso desejar estar casado simplesmente
porque eu me sinto realizado sendo esposo, e essa realidade me toca de modo
especial, como sendo uma palavra de Deus para mim.

19. Santo Agostinho fala da maior santidade das pessoas casadas do Antigo
Testamento, porque naquela época ter filhos era um dever moral e uma obra de
piedade, enquanto que hoje em dia é apenas uma vontade carnal de ter filhos.

20. Ele fala que era lícito para os homens ter várias mulheres, mas não era lícito nem
nunca vai ser, que uma mulher possa ter vários maridos, devido à própria ordem da
relação entre homem e mulher, que é análoga à relação entre mestre e escravo. Um
escravo não pode ter vários mestres, mas um mestre pode ter vários escravos. E ele diz
que o matrimônio cristão é somente entre um homem e uma mulher, porque no
matrimônio cristão a relação matrimonial passa a ser análoga à relação de Cristo com a
Igreja, que é Una – apesar de ele dizer que o concubinato do AT prefigure a união das
várias Igrejas (bispos) com Cristo. Mesmo que a mulher tenha um marido estéril, ela
não pode ficar com outro para ter filhos, porque ela está sujeita ao seu marido.

(Esse não me parece um argumento muito bom para justificar a ligação da mulher ao
homem estéril, no casamento, se você diz que o único propósito do casamento é ter
filhos. Por que é que o matrimônio cristão tem essa estrutura, sendo mesmo um
casamento estéril sagrado e indissolúvel? Se a finalidade única do matrimônio fosse ter
filhos, o próprio sacramento seria uma absurdidade, colocando o homem numa
situação quase absurda. Se o casamento entre pessoas comprovadamente estéril é
válido, então a finalidade dele não pode ser ter filhos, ainda que exista a possibilidade
do milagre, porque Deus em nenhum momento prometeu que daria filhos a todo
mundo que vivesse o matrimônio honestamente. Além do mais, ninguém casa só para
ter filhos, e pessoas velhas que já não terão mais filhos continuam casados, sem que o
matrimônio tenha sido dissolvido como desnecessário, de modo que a relação entre os
esposos continua existindo como tal, isto é, com o marido sendo a cabeça da mulher,
uma relação que São Paulo chamou de “grande mistério”, isto é, com relação à Cristo e
à Igreja.).

Santo Agostinho aprece querer dizer que o Celibato é tão bom no tempo presente
como o casamento foi no tempo passado, para os Patriarcas, ao passo que no passado
o celibato seria uma demonstração menor de virtude, enquanto que hoje o casamento
é que é um “degrau abaixo na santidade”.

25. novamente afirma que todo mundo que pode ser continente, que o seja.

26. Diz que a virtude pode existir como disposição na mente do sujeito, e ser invisível,
ou pode se manifestar numa ação dele. Que Abraão tinha o celibato como disposição
da mente, e João Batista o tinha como prática, mas que a castidade de João não era
maior que a de Abraão.

Baseando-se na palavra de Jesus, “quem puder receber isso, receba-o”, Santo


Agostinho diz que com essa palavra Jesus inaugura um novo tempo, onde a procriação
não é mais um dever sagrado, e onde a virtude do celibato é manifesta para o mundo,
criando um lugar na sociedade para a prática dessa virtude.

O problema é que geralmente nós não sabemos se temos ou não essa virtude. Talvez,
como disse São Paulo, a melhor solução seja essa: cada um continue no estado em que
está. Mas nem sempre isso é possível ou conveniente. O que fazer se você quer casar
ou quer fazer votos religiosos? Por outro lado, dificilmente uma pessoa que realmente
deseje a virtude do celibato não a receberá de Deus; no entanto, querer ser celibatário
não é algo que as pessoas costumam desejar, ainda que elas reconheçam que é melhor
ter essa virtude do que ser incontinente. E, mesmo quando uma pessoa tem essa
virtude, ao menos em potencial, não me parece ser necessário, daí, que ela não possa
querer contrair matrimônio, não por uma obrigação, mas porque ser pai de uma
família que ele ame é para ele um bem melhor, para ele, nas suas circunstâncias, do
que viver só; ou, ainda, ele pode querer casar com quem ele ama, porque para ele é
melhor estar casado com quem ama do que estar sozinho e longe da pessoa amada.
Note que, nesse caso, a questão não é a maior ou menor atenção dada às coisas de
Deus, pois o que o afasta de outros estados de vida não é a incontinência, nem o
desejo de coisas mundanas, mas o medo da solidão, e o fato dele não encontrar
amigos em nenhum desses lugares religiosos, e, ao mesmo tempo, desejar ter uma
amiga especial com quem ele possa compartilhar a vida. Nesse caso, o meio ou menor
valor do celibato, com relação à vida matrimonial, bem como a questão de servir mais
ou menos à Igreja, não conta absolutamente para que o sujeito busque esse ou aquele
estado de vida. Existem inúmeros outros fatores que contam para que alguém possa
querer ou não contrair matrimônio, e geralmente esses fatores não são pensáveis na
sua totalidade, de modo que a sua escolha, em última análise, é sempre um “chute”; e
não há como alguém dizer que toda pessoa humilde e virtuosa, que busca a Deus, vai
sempre preferir o celibato ao casamento, em qualquer circunstância onde essa escolha
for “livre”. E eu acredito que isso seja assim porque, para a pessoa estar disposta ao
celibato, é necessário mais do que o conjunto das virtudes, é preciso que ela encontre
um meio de viver apropriado às suas qualidades espirituais e aptidões físicas, e, acima
de tudo, é preciso que a sua escolha de um estado de vida leve em consideração toda
a sua biografia, ou seja, que sentido isso terá para a vida dele como um todo, levando
em conta inclusive quem ele quer se tornar e qual o problema que ele precisa resolver
com a sua vida. Se o sujeito com todas as virtudes sente que a vida dele encontra seu
sentido pleno sendo pai e esposo, então o que significa dizer que o estado de vida no
qual ele está é “menos perfeito”?

No tempo de Santo Agostinho, era evidente que a Igreja precisava de celibatários, de


pessoas que se dedicassem aos trabalhos litúrgicos, pastorais, e intelectuais, para
transmitir o Evangelho e formar uma cultura eclesiástica sólida. Nos nossos tempos, de
modo geral, o celibato já não tem o mesmo sentido que ele tinha no contexto da vida
de Santo Agostinho. Acontece que o homem não foi feito para o celibato, o celibato é
que foi feito para o homem.

31. Santo Agostinho afirma que, se alguém faz sexo sem que seja para ter filhos, isso é
uma “imperfeição”, e por isso mesmo isso foi desculpado pela palavra do Apóstolo.
Agora, se não é mais necessário ter filhos, então todo matrimônio, ou praticamente
todo, é sempre um estado imperfeito. A única maneira do cristão evitar essa
imperfeição é permanecendo virgem.

Só que o anjo disse a Daniel que ele deveria se deitar com a sua prometida esposa
mais para ter filhos do que por desejo sensual, ele não disse “somente para ter filhos”.
Está aí, implícito, não que o anjo duvidasse da continência de Daniel, mas que é
impossível duas pessoas que se amam quererem fazer sexo só para ter filhos, porque,
se elas se amam, elas se desejam sexualmente, não para ter filhos mas simplesmente
porque se amam, e isso é necessariamente assim para um casal que se ama. É por isso
que Jacó, que não duvidaremos da sua virtude, quis ter Raquel por esposa e não Leá. É
verdade que nos nossos tempos ter filhos não é um dever sagrado, sendo até mesmo
algo muito dispensável; no entanto, há ainda um outro motivo para o casamento,
igualmente virtuoso, que é o de caminhar rumo ao Céu junto com a pessoa que se
ama. A relação matrimonial é um tipo específico de relação, com um sentido próprio e
especial, que pode oferecer a uma pessoa aquilo que ela precisa para a sua
santificação, para o fortalecimento da sua vida espiritual, para a sua perseverança e
crescimento na fé. A solidão, por outro lado, não é uma virtude, mas um sofrimento, e
“não é bom que o homem esteja só”. Nem todo mundo é capaz de viver isoladamente
do mesmo modo. Não é o mesmo viver numa comunidade religiosa e conviver
intimamente com outra pessoa com quem se está casado. A comunhão entre esposos
é um tipo de relação específica, ainda que vivida entre duas pessoas continentes. É
possível que toda a constituição psico-física do indivíduo clame por esse tipo de união
mais profunda com uma outra pessoa de carne e osso.

Mas, além disso, é importante notar que para Santo Agostinho, e no contexto em que
ele escreveu, o sexo não é em si mesmo um bem, mas apenas um “meio”, do mesmo
modo como um alimento, que dá prazer, é um “meio” para a nutrição do corpo, e não
algo que deve ser buscado em si mesmo. No entanto, Deus dispôs todas as coisas de
modo que houvesse alimentos mais saborosos e alimentos menos saborosos, e, mais
ainda, de modo que o ser humano, pela arte, pudesse tornar mais saborosa a sua
refeição. Ainda que a refeição vise a nutrição do corpo, o ser humano prefere aquela
que é mais saborosa, e não só prefere como dá mais valor a ela, como sendo uma
refeição melhor. Ou seja, uma refeição tem o seu valor em primeiro lugar pela sua
capacidade de alimentar, mas se essa refeição tivesse um odor podre, ela dificilmente
serviria bem ao seu propósito. E, no entanto, mesmo as refeições tendo naturalmente
um sabor agradável, o ser humano sempre valorizou uma refeição bem preparada e
bem temperada, acrescentando ao valor nutritivo do alimento um valor artístico que o
torna mais agradável. Ora, o agradável pode ser bom ou mal para nós, do mesmo
modo que a dor pode ser boa ou má; mas o agradável é em si mesmo um bem, e não
algo ruim. E, se é um bem, o agradável pode ser buscado por si mesmo NAS COISAS.
Ou seja, se podemos escolher entre duas cosias que servem à mesma finalidade, é
possível que a mais agradável seja a melhor para nós. Assim, não foi pecado ter Santa
Teresinha pedido para suas irmãs comprarem para ela uma bomba de chocolate
quando ela estava enferma, pouco antes de sua morte. Do mesmo modo, o sexo no
casamento não tem somente um valor devido à sua finalidade, mas ele tem um valor
em si mesmo por servir como TEMPERO da relação. Eu não estou dizendo que é lícito
buscar o sexo para ter prazer, o que eu não considero nem mesmo algo possível de ser
feito, mas estou dizendo que, na relação conjugal como um todo, o sexo possui um
valor de tempero, uma demonstração afetiva de um alto grau de comprometimento
absolutamente indispensável para a manutenção da relação, e até necessária, na
maior parte dos casos, para que os esposos aprendam a se amar e se relacionar COMO
ESPOSO(A), e assim alcancem o grau de união necessário para serem uma família
estável e poderem ajudar um ao outro no caminho da perfeição cristã. Por isso, nas
leis civis de todas as sociedades tradicionais, mesmo na lei judaica, por exemplo, era
previsto o número de vezes que O HOMEM deveria cumprir o ato conjugal com a
esposa, de acordo com sua classe, e, caso ele não cumprisse o seu dever conjugal, sua
esposo podia pedir o divórcio, o que era garantido por lei. Isso mostra que,
naturalmente, o homem sempre entendeu que o sexo, justamente por ser sensual e
prazeroso, tem uma função essencial na relação matrimonial, e de certo modo a
define, distinguindo-a de todas as outras formas de relação humana (lícitas); e essa
função nunca foi encarada como sendo visando apenas à procriação, o que seria um
absurdo pois isso é realmente impossível. O ato sexual tem em si mesmo uma função
essencial na relação matrimonial, o que fica subentendido inclusive no próprio
sacramento do matrimônio, ao proclamar casados os esposos que comprovadamente
não podem ter filhos juntos um com o outro. Essa função tem a ver com o próprio tipo
de relação interpessoal que se estabelece no matrimônio, de modo que a pratica do
sexo entra nessa relação tal como um tempero, algo que torna mais agradável o sabor
da própria relação. Por isso, mesmo que a finalidade biológica do sexo seja ter filhos, o
que pode ser interpretado, como fora interpretado na Antiguidade, como sendo
também o propósito divino e absoluto do sexo, ele também pode ser praticado
licitamente sem que se tenha o propósito direto de ter filhos, mas desde que essa
possibilidade continue existindo naturalmente, isto é, sem que se atente
deliberadamente contra o processo natural de geração de filhos. Ou seja, desde que
Deus tenha criado o homem e a mulher de modo tal que, de acordo com ciclos
biológicos estáveis, houvesse períodos em que a mulher estivesse fértil para
engravidar, e períodos de altíssima improbabilidade dela engravidar, e, por outro lado,
Ele também os criou de modo a poderem praticar o sexo em qualquer tempo,
diferentemente de todos os animais, de modo desapegado dos ciclos biológicos que
regem a reprodução, dado essas duas coisas, é natural pensarmos que a pratica do
sexo num tempo em que a mulher esteja num período biológico de altíssima
improbabilidade de engravidar seja não só lícita, mas até mesmo algo que é por si
mesmo desejável e bom. Com relação ao sexo praticado deste modo, dizemos que há
aí um propósito “indireto” de ter filhos, isto é, uma “aceitação passiva” da finalidade
biológica do próprio ato sexual; enquanto que, quando o casal quer ter filhos, e se
programa para isso, de modo que eles procuram fazer sexo num período onde a
mulher possa conceber, nesse caso dizemos que há uma “aceitação positiva” da
finalidade biológica do sexo, isto é, há uma vontade ativa de que a procriação se
efetive. Do mesmo modo, nós dizemos que Deus não criou o mal, mas ele “permitiu
que o mal existisse”; no entanto, os Antigos, mesmo quando interpretavam isto desse
mesmo modo, diziam que Deus faz o mal, tal como Jó: “Se Deus dá o bem, por que não
dará também o mal?”; e diz Deus por outro profeta: “Eu, o Senhor, e não há outro,
faço a luz e crio as trevas, produzo a paz e crio os males”. Ou seja, se Deus não teve a
intenção de fazer os males, ele teve a intenção passiva de os fazer na medida em que
os permitiu. Afinal, a nós, homens, não nos é permitido deixar que seja cometido
contra alguém um mal que nós mesmos podemos impedir, pois é como se nós, ao
permitir esse mal, tivéssemos assentido com ele. Assim, a minha distinção é
perfeitamente cabível aqui, porque o sexo possui a sua finalidade biológica, (que na
Antiguidade era também uma finalidade sagrada), e, por outro lado, uma finalidade
afetiva, sendo em si mesmo um bem para o relacionamento conjugal; e, somando-se a
isso, Deus parece ter criado o homem para que ele pudesse fazer sexo para ter filhos
ou não. Ou seja, daí só podemos concluir que, quando Santo Agostinho e outros
Doutores nos dizem que o propósito do sexo é ter filhos, eles estão pensando
unicamente na finalidade biológica e no dever sagrado, que são realidades que estão
SEMPRE presentes em todo ato sexual, mas que, no entanto, não são as únicas
realidades presentes. Se o sexo deve atender a outra finalidade diversa, é preciso que
essas duas finalidades estejam de acordo – é preciso que elas não sejam realmente
contraditórias. E, o modo de como isso é possível, é que há duas maneiras de se
interpretar o “propósito de se ter filhos”, do mesmo modo que há duas maneiras de
dizer que intencionamos qualquer coisa: a positiva e a negativa. Deus não faz o mal
(positivamente), mas Deus faz o mal (negativamente – para daí tirar um bem maior);
eu posso matar (positivamente), ou eu posso matar (negativamente – impedindo de
matar um inimigo para salvar uma pessoa); e, do mesmo modo, eu posso querer ter
filhos (positivamente), ou eu posso querer ter filhos (negativamente – por meio de não
impedir artificialmente o processo de ter filhos). Então, para que o sexo seja lícito, de
acordo com a ordem da natureza tal como criada por Deus, a primeira finalidade a ser
atendida deve ser a da procriação, e ela pode ser atendida desses dois modos: ou
tendo o propósito “positivo” de ter filhos ou o propósito “negativo” de ter filhos. Com
isso fica demonstrado que, quando duas pessoas fazem sexo sem ter o propósito
“positivo” de ter filhos, elas não só não pecam, como NÃO É NECESSÁRIO daí que eles
estejam sendo movidos unicamente pela concupiscência, mas podem estar sendo
motivados quase que somente pelo próprio amor-conjugal que os uniu, já que a
concupiscência na verdade está sempre conosco para nos mover ao excesso e ao
usufruto desordenado de todo e qualquer bem de que dispomos.

A questão é essa: na era do AT os santos casavam porque acreditavam que ter filhos
era um dever religioso, de modo que o matrimônio é assim submetido à finalidade da
procriação. Mas, hoje, as pessoas não precisam ter mais filhos, porque a finalidade da
procriação não é mais uma ordem divina, sendo assim meramente a finalidade
biológica dada no próprio ato sexual. Então, quando as pessoas casam hoje, elas não o
fazem para ter filhos, mas têm filhos apenas ou por desejo carnal ou porque estão
casados; isto é, a pessoa não se casa para ter filhos, mas têm filhos porque se casaram,
de modo que o ter filhos está agora submetido ao matrimônio, e não o contrário.
Então, antigamente os santos casavam para ter filhos, mas hoje as pessoas têm filhos
porque casam (mesmo que esteja mesclado aí um desejo carnal de ter descendência).
Vamos ignorar se os santos casam ou não hoje em dia. Existem alguns problemas aqui.
Se no tempo do AT era considerado uma obrigação religiosa o ter filhos, essa podia ser
uma força de pressão social para o casamento, mas não há nenhum ensinamento
explícito com relação a não ser aquela ordem do Gênesis: “crescei e multiplicai-vos”.
Só que essa ordem não serve só para aquele tempo, ela também serve para este
tempo, já que Jesus nunca a revogou. Se essa ordem existia como uma força social e
cultural da época, ela hoje pode continuar existindo no coração do homem. De fato,
como já mostrei, quando um homem ama uma mulher, com amor-conjugal, o desejo
de ter filhos com ela está intrinsecamente relacionado com o tipo de amor que ele tem
por ela. Nesse sentido, casar por amor é o mesmo que casar por desejar ter filhos. E,
mesmo que o ter filhos não seja agora uma obrigação religiosa, ele é um ato de amor,
ratificado pelo Sacramento do Matrimônio; pois, tal como os antigos receberam a Lei,
e nós recebemos o Verbo Divino feito carne, assim os antigos obedeciam a Lei e
submetiam sua vida exterior à letra da lei, enquanto nó obedecemos à Cristo que nos
livrou da letra morta da Lei. Portanto, nós somos livres para casar por amor, o que não
foi dado a Jacó, porque ele estava preso à letra da Lei, enquanto nós fomos libertos
por Cristo. Na nossa liberdade de espírito, no Sacramento do matrimônio, nós
podemos contrair um matrimônio fundado no amor-conjugal, e não na obediência à
letra da Lei. Podemos dizer que os antigos nunca conheceram o verdadeiro significado
do matrimônio, que foi dado por Cristo, e por isso não conheceram o matrimônio
baseado no amor e na liberdade do Espírito, porque viviam no tempo da Lei. Hoje, no
tempo do Espírito, o homem está cada vez mais livre para se desenvolver
individualmente e buscar por seus próprios meios a sua santificação, coisa que não
acontecia na Antiguidade, onde cada um tinha o seu papel claro e distinto que
precisava exercer e o seu lugar pronto na sociedade.

32. Os três bens do matrimônio: o propósito de ter filhos (mesmo sendo um desejo
carnal), a fidelidade, e o sacramento (indissolubilidade do matrimônio).

A fidelidade, para Santo Agostinho, inclui a “natural parceria dos esposos”. Mas ele diz
que a primeira e natural finalidade do matrimônio é ter filhos; eu digo que a parceria
dos esposos é uma finalidade natural “concorrente” com aquela. As duas finalidades
estão juntas, pois a comunhão entre os esposos é, por um lado, para ter filhos, mas,
por outro lado, é um bem em si mesmo, e pelo qual se pode vir a ter filhos. O
matrimônio não é apenas um meio para se ter filhos, bem como ter filhos não é a
única finalidade do matrimônio.

Se o casamento dos Patriarcas foi especial porque foi profético, o próprio casamento
em si mesmo também tem um sentido espiritual. Acontece que, na época do AT, esse
sentido era social, e, hoje, ele é mais individual, como sendo algo que é “dado” a cada
pessoa conhecer, isto é, o sentido do matrimônio na vida dela. Isso é assim porque, na
cosmovisão antiga, a sociedade humana se dirigia para o tempo da vinda do Messias,
e, com a vinda do Cristo, todas as coisas são renovadas, e o próprio sentido do
matrimônio é renovado, pois agora o matrimônio não serve mais principalmente para
garantir a procriação da espécie humana, como um dever social, mas adquire um novo
sentido pessoal e individual no amor, agora livre de toda obrigação social. E é no
tempo da Idade Média que essa separação se manifesta na literatura, com as primeiras
estórias de amor romântico: é a distinção do duplo significado do matrimônio: um de
ordem social e outro de ordem individual e pessoal. Novamente, com o advento do
Cristo, o matrimônio deixa de ser uma instituição apenas social, e passa a ser um
vínculo livre entre duas pessoas que se amam, e isso é feito justamente por meio da
abolição da Antiga Lei, e por meio de, ao mesmo tempo, renovar a instituição do
matrimônio por um novo mandamento dado diretamente por Cristo. Cristo mesmo
ratificou a dignidade do matrimônio, ao afirmar a sua indissolubilidade, e com isso ele
está dizendo que o matrimônio deve ser um meio de santificação para os esposos, tal
como São Paulo depois vai ensinar; mas que deve buscar esse meio de santificação?
Todo aquele que precisar desse meio para se santificar... Não podemos dizer, como
São Paulo, que só casem aqueles que “ardem de desejo”, porque não entendemos o
que essa palavra significa hoje. Hoje as pessoas são livres para “permanecerem no
estado em que se encontram”, mas, por outro lado, nem sempre é conveniente “estar
a serviço da igreja” enquanto comunidade de pessoas, pois o trabalho da Igreja vai
além desses círculos. Portanto, às vezes é conveniente se casar, quando aparece uma
pessoa disponível a quem se pode amar e com quem se pode viver uma vida bela e
virtuosa.

O amor-conjugal, que tem um elemento de desejo sexual envolvido, não é o mesmo


que apetite sexual, ou incontinência. Amor-conjugal não significa amor-incontinente;
não é amor “imperfeito” nem amor misturado com “apetite sexual”. Quando eu amo a
pessoa com a qual quero casar, não é que eu fique “ardendo de desejo” por ela,
porque o que eu sinto por ela é um desejo que vem do coração: eu quero poder falar
ao coração dela, e unir os nossos corações. Jacó não tinha nenhum apetite sexual
incontrolável, e ainda assim ele trabalhou mais sete anos por Raquel, o que ele não
faria por Leá, caso as coisas tivessem ocorrido de outro modo. O amor-conjugal é
exatamente isso: é o misterioso “algo a mais” do matrimônio, que está para além de
qualquer obrigação social ou religiosa. Isso também é indicado pelo primeiro milagre
de Jesus na ordem da natureza. Quando Jesus transfora água em vinho, isso significa
que a Nova Aliança, o Novo Casamento, realiza aquilo que o Antigo prefigurava, e que
a diferença entre uma e outra é análoga à diferença entre a água e o vinho para uma
festa de casamento. Quem precisa de água numa festa de casamento? Nós queremos
vinho, porque é para manifestar o que se passa no coração. Mas a finalidade do vinho,
para o praticante da virtude, não deve ser apenas a saúde do corpo? Mas não é por
isso que Maria pede vinho a Jesus, é porque o vinho é necessário para que a alegria
dos noivos seja plena, e a festa não acabe antes do tempo. Ou seja, no amor, a
finalidade das coisas adquire um sentido mais elevado; o vinho não serve mais à sua
finalidade biológica apenas, mas passa a servir também a um propósito espiritual, o de
significar na festa de casamento a alegria do coração dos noivos. E isso também
significa que, naquele momento, não é ruim beber um pouco mais do que o
necessário, porque o motivo pelo qual eles bebem mais do que manda a lei do corpo é
que aquele é um momento propício para expressar a alegria do coração. Assim, no ato
sexual, a Lei define e limita a vontade do homem, mas o Amor impera, motiva e
justifica a ato da vontade que está de acordo com a Lei.

Santo Agostinho termina a carta dizendo que o mérito do celibato é maior do que a do
matrimônio, bem como a glória que irá receber no céu quem consagrou sua
virgindade. Mas isso com relação ao corpo, existem outros méritos relativos a outras
coisas.

Eu entendo que o mérito do celibato é maior, porque é um sacrifício maior, prestado a


Deus por meio da fé em Cristo, representando o oferecimento de toda a sua
subjetividade, tal como acontece no amor-conjugal, onde um conjuge “doa-se” ao
outro por inteiro, dá ao outro um lugar especial com relação à sua subjetividade. A
vida consagrada é simbolicamente um casamento com Deus por meio da Igreja de
Cristo, por meio dos votos religiosos, de modo que a pessoa que se consagra de corpo
e alma vive como se fosse a encarnação da própria Igreja, que vive inteiramente, de
corpo e alma, só para Cristo. E, na prática, isso significa que a pessoa abdicou de toda
sua subjetividade, de toda a sua felicidade terrena, e esse é o maior sacrifício que
alguém pode fazer sobre a terra. O sacrifício da sua virgindade é o maior sacrifício que
se pode fazer, caso a pessoa viva em consonância com o significado desse sacrifício.

O que é maior que a castidade conjugal é o celibato cristão, que representa o


oferecimento total da pessoa diretamente a Deus, e que só é possível por causa da
Encarnação de Cristo e do Seu convite para deixar tudo e segui-lO. Mas a vida
consagrada não é a morte da subjetividade, é a sua máxima ampliação para que ela
possa caber o mundo todo. O celibato é maior no que diz respeito à caridade, e a
continência é uma força que permite o sujeito a ter uma vida melhor. Mas, aí é que
está, a diferença entre o casamento e o celibato é só que o celibatário é mais “forte”
do que o sujeito que quer casar? O casamento existe por causa de uma “imperfeição”?

No fim das contas o celibato e o matrimônio não dão no mesmo? Não são caminhos
diferentes para se alcançar a mesma coisa? Tanto quem opta pela vida celibatária
quanto quem opta pela vida matrimonial tem que aprender a se desapegar das coisas
do mundo e tomar mais consciência da sua alma imortal, nos dois casos nós temos que
aprender a morrer, porque é para lá que estamos indo. Quem busca a vida celibatária
é mais apressado. Mas por que o mérito da virgindade é maior que o da castidade
conjugal? É mais difícil? É mais difícil para quem? O desejo sexual está mesclado à
concupiscência? O amor entre um homem e uma mulher foi manchado pela
concupiscência? Mas e se isso não influenciar a relação do casal? Quer dizer que as
pessoas só casam por cederem à concupiscência? Todo amor sexual é fruto do pecado
original? Isso não é possível, então tem que haver um desejo sexual ideal ausente de
concupiscência, ou no qual a concupiscência é desprezível. Assim, tem que haver um
casamento em si mesmo perfeito. Então, por que eu abdicaria desse casamento pelo
celibato? Isso não vai depender do bem que eu posso fazer em cada caso? Essa minha
escolha não depende do bem que eu quero realizar no mundo e das minhas
circunstâncias? Não depende de quem eu sou e aonde estou, de qual o meu lugar no
cosmos? De que modo o celibato para mim é melhor do que o matrimônio? Santo
Agostinho me diz que o celibato é um bem mais alto do que a castidade conjugal, mas
como eu posso saber isso? – se eu não sei, talvez seja porque eu não tenho essa
virtude. Para mim, o celibato só é uma virtude para quem é “chamado” a esse estado,
como um “chamado” para que o sujeito venha a por em prática essa virtude, essa
força que ele vai precisar para por em prática aquela obra. Fora isso, como eu posso
escolher abdicar de algo para viver uma vida que eu nem sei por que seria melhor que
aquela que eu gostaria de viver? O celibato só é maior que a castidade conjugal porque
o celibato inclui a castidade conjugal, porque ele a transcende, é uma abdicação da
castidade conjugal, é um bem maior que outro bem – mas é um bem que não pode ser
buscado por ele mesmo, ele tem que ser “dado” de cima, porque o sujeito tem que ter
um motivo para negar um bem para buscar outro maior, e esse motivo não pode ser
dado pela autoridade dos padres e teólogos, ele tem que ser motivado pelo pré-
conhecimento daquilo que ele já vê como sendo o melhor por experiência própria. Por
outro lado, talvez, se um sujeito pode se beneficiar muito do matrimônio, talvez ele
não possa se beneficiar em nada do celibato, ainda que o celibato seja em si um estado
“superior” ao matrimônio. Existe uma hierarquia de valores, mas nenhum desses
valores é absoluto – o único Absoluto é Deus; cada valor universal é relativo ao bem
que ele proporciona a esta pessoa em particular na sua situação concreta. Nós não
seremos julgados pelas nossas virtudes, que vieram todas de Deus, mas pelo uso que
fizemos delas, de acordo com nossas capacidades. De que adianta eu buscar as
virtudes mais elevadas, do estado de vida mais alto, se para isso eu vou ter que ignorar
a única realidade da minha vida que faz sentido para mim? Tudo deve ser feito
ordenadamente, sem saltar etapas. O bem que eu busco deve estar em consonância
com a unidade da minha vida e da minha pessoa. Eu devo buscar primeiro aquilo que
me foi dado, e esperar que eu faça o uso correto disso para poder receber mais depois.

O estranho é que, enquanto eu estou solteiro, uma esposa é a única coisa de que eu
sinto falta; e isso não é desejo sexual, é um sentimento mais parecido com saudades
de algo que não aconteceu ainda, uma espécie de vazio que quer ser preenchido. Não
se pode resolver isso optando pela vida celibatária. Mas também não preciso
“procurar mulher”. “Cada um continue como está”, e esperarei para ver o que
acontece. Daonde vem esse desejo por mulher (esposa)? Consupiscência? Não me
parece. Mas, se eu não o tivesse, seria mais fácil consagrar minha vida a Deus de corpo
e alma. Porque, como eu posso me consagrar a Deus, excluindo de vez o matrimônio,
se eu tenho esperança de ser mais feliz no matrimônio e nenhuma esperança de ser
curado por meio da vida celibatária?

No cristianismo, é como se Deus dissesse: olha, aqui está a vida perfeita, a vida ideal.
Mas essa não é a vida que você quer. A vida que você quer também é boa, e Deus
aceita ela, mas não é a melhor. Você deveria viver sempre tendo em vista a vida
melhor, ainda que você queira uma vida diferente. Mas isso não significa que você
deva querer a vida melhor só porque disseram que ela é melhor, é preciso realmente
enxergar esse melhor, de modo que você não corra o risco de estar se enganando a
seu próprio respeito, pensando que você é bom quando na verdade está apenas se
escondendo de si mesmo.

A nossa glória nos céus depende do que Jesus pede de cada um, e o quanto nós nos
entregamos a Ele. Se estamos totalmente entregues a Deus, pouco importa se Ele
pede que a gente não tenha nada no mundo, ou que a gente seja um rei poderoso,
porque no Céu ele nos tratará de acordo com o quanto de nós é dEle, e não de acordo
com o tamanho das nossas obras.

Sobre matrimônio e concupiscência

Em outra carta, Santo Agostinho diz que “a castidade conjugal faz uso do mal da
concupiscência para a geração de filhos”, o que dá a entender que o desejo sexual é
pura concupiscência...

-//-

“Augustine held that continence should be understood as God’s gift and motivated by
love for God.” – The Goods of Marriage in Canon Law.

“He believed that original sin was passed on through sexual intercourse and that sinful
lust was a primary manifestation of original sin.”.

“Prior to original sin, Augustine thought that the sexual “organs which are now excited
only by lust could have been completely controlled by deliberate choice...”. Sexual
intercourse remained a good within marriage even if it had been disordered as a
consequence of original sin.”.

“A newly discovered letter of Saint Augustine distinguishes between lawful


concupiscence in marriage and the disordered concupiscence of the fallen human
condition. In this letter, which is dated to about 421 AD, Augustine writes to the Bishop
of Constantinople acknowledging that there may have been a sinless sexual desire in
pre-lapsarian Paradise. This possibility seems consistent with his thought about the
fullness of the threefold goodness of the marriage between the Virgin Mary and her
chaste spouse Joseph.” (p. 7).

• A minha tese é que esse desejo sexual não pecaminoso ainda existe, só que
misturado com a concupiscência, ao menos para aquele que está destinado a
amar uma pessoa só.
“When c. 1055, 83 CIC, defines the co-equal ends of marriage as the good of the
spouses and procreation of children, it reflects a development in the Church’s
understanding that is rooted in the traditional Augustinian analysis.”.

“Unlike the 17 CIC and Casti Connubii, Gaudium et


Spes declined to articulate a hierarchy of ends of
marriage.”.
“Number 48 of Guadium et Spes states that the good of the spouses is “rooted in the
will and embraces the good of the whole person.” … these canonists have opined that
the good of the spouses represents a new fourth good of marriage.”.

“A second group of canonists have found it helpful to distinguish between the good of
the spouses as an end of marriage and the traditional three goods of marriage. Saint
Augustine thought that the threefold goodness of marriage represented qualities that
made marriage objectively beneficial for society and individuals. Fidelity, children, and
stability are all qualities of the intrinsic and overall objective good which is marriage. In
contrast, the good of the spouses is an end in the sense that one of the goals of
marriage is to increase and deepen the love between the spouses. The traditional view
of marriage as an objective societal good did not focus on the interpersonal nature of
the spouses’ relationship and the deepening of the love between them. Rather, the
Augustinian analysis of the goodness of marriage suggests that fulfilling the threefold
goodness of marriage contributes to the good of the spouses. In light of this distinction
between the inherent traditional goods and inseparable ends of marriage, the good of
the spouses depends on the fulfillment of the traditional threefold goods. Exclusive
sexual fidelity, openness to the gift of children, and sacramental permanence of the
marriage deepens the love between the spouses. Vatican II’s recognition of the good
of the spouses as an end of marriage acknowledges the profound nature of marital
love.” (p.9).

In Love and Responsibility, the


future pope wrote: “Neither sensuality nor even concupiscence is a sin in itself, since
only that which derives from the will can be sin—only an act of a conscious and
voluntary nature (volunatrium).”

O que significa ser fiel à sua esposa? Significa você querer amar somente ela como
esposa, e nenhuma outra, nunca, enquanto ela (ou você) estiver viva. É fidelidade à
união do matrimônio, que é até a morte. Mas também existe um amor que promete
fidelidade eterna...

-//-

“Para comprender un poco mejor esta inefable procesion de amor, dejemos por un
momento la metafisica divina e interroguemos simplemente a nuestro corazon, y el
nos dira que en el amor consiste toda su vida. El corazon late, late continuamente
hasta que muere. Y en cada latido no hace sino repetir: Amo, amo; esa es mi mision y
unica ocupacion. Y cuando encuentra, finalmente, otro corazon que le comprende y le
responde: ≪Yo tambien te amo≫, |oh, que gozo tan grande! Pero .que hay de nuevo
entre estos dos corazones para hacerlos tan felices? .Acaso el solo movimiento de los
latidos que se buscan y confunden? No. Estoy persuadido que entre mi y aquella
persona que amo existe alguna cosa. Esta cosa no puede ser mi amor, ni tampoco el
amor de ella; es, sencillamente, nuestro amor, o sea, el resultado maravilloso de los
dos latidos, el dulce vinculo que los encadena, el abrazo purisimo de los dos corazones
que se besan y se embriagan: nuestro amor. !Ah, si pudieramos hacerlo subsistir
eternamente para atestiguar, demanera viva y real, que nos hemos entregado total y
verdadeiramente el uno al otro! Esta fatal impotencia, que, en los humanos amores,
deja siempre un resquicio a incertidumbres crueles, jamas puede darse en el corazon
de Dios.” - El gran desconocido EL ESPIRITU SANTO y SUS DONES, (p. 20 no pdf) -
Antonio Royo Marin

-//-

No documentário por Josias Teófilo a esposa do Olavo aparece dizendo “ele me


embeleza”.

Calcídio diz que a matéria almeja o aperfeiçoamento ou embelezamento como a


fêmea deseja o macho. (Imagem Descartada p70).

Soneto de Camões: “e o vivo e puro amor de que sou feito/ como matéria simples
busca a forma”.

-//-

Para mim, “eu te amo” significa “eu quero morrer com você, para você, e em você”.
-//-

Diversos autores consideram significativa a «seriedade» que invade os amantes


no
momento da união dos corpos. Cessa nesse momento toda a brincadeira,
frivolidade,
toda a vã galanteria, todo o desgaste sentimental. Nem o libertino, nem a
própria
prostituta, a não ser que esteja anestesiada devido a um regime de prestação
passiva
e indiferente do começo ao fim, constituem exceções. «Quando se ama não se
ri;
talvez se sorria apenas... Durante o espasmo está-se sério como na morte
(69).»
Cessa toda a distração. Para além da seriedade, o ato sexual comporta um grau
de
concentração particularmente elevado, mesmo que seja frequentemente uma
forma
de concentração involuntária, imposta ao amante pelo próprio desenvolvimento
do
processo. Por este motivo, tudo o que o possa distrair pode ter sobre ele um
efeito
imediato eroticamente ou até psicologicamente inibitório. Emotiva e
figurativamente é
isto o que, no ato sexual, implica o «dom» de um ser ao outro, mesmo quando
tem o
caráter de uma união fortuita e sem continuidade. Essas características, essa
seriedade, essa concentração, são reflexos do sentido mais profundo do ato de
amor
e do mistério que encerra.

Já na Introdução mencionamos a dificuldade que há em recolher testemunhos


acerca do que se passa no homem e na mulher no limite do ato sexual,
dificuldade
que é devida não somente a um natural escrúpulo em falar, como ao fato de o
climax, o acume, corresponder frequentemente a condições de consciência
reduzida,
e, por vezes até, a soluções de continuidade, isto é, a interrupções da
consciência.

No sexo a alma está maximamente “encarnada”. não só a alma se torna mais


corpórea, mas o corpo também se torna mais sutil, e entre os dois se dá a tal
da “embriaguez erótica”.
Aristóteles escreveu o seguinte sobre a procriação: «O macho representa a
forma
específica; a fêmea, a matéria. Enquanto a fêmea é passiva, o macho é ativo
(3).

É possível que um homem estupre uma mulher, mas o contrário não é possível:

Como determinações ulteriores poderemos fazer corresponder o masculino e o


feminino ao ser e ao devir, aquilo que tem o princípio em si mesmo, e ao que
tem o
início num outro: a ser (imutabilidade, estabilidade) e vida (mutação, alma ou
substância animadora, substância materna do devir).

Este autor também põe o ser em contacto com , que é um outro termo
cujo
sentido original é difícil de compreender nos nossos dias: é o princípio
intelectual
concebido como princípio olímpico, presença imutável e pura luz que tomam,
para
Plotino, a figura de Logos quando considerado como a ação que fecunda e faz
mover
a matéria ou poder cósmico. O feminino é, ao contrário, a força-vida; é como
Psique,
«a vida do ser eterno» e quando a manifestação «procede» de Um e toma
forma,
«perpetua» o ser, isto é, desenvolve no tempo, no devir, nas situações em que
os
dois princípios estão unidos e diversamente misturados, mantendo-se o
masculino, ou
Logos, em tudo o que é, se mantém idêntico a si próprio, não devem, e é o
princípio
puro da forma (5).

Encontramos igualmente em Aristóteles uma


polaridade com este sentido: perante o νους imóvel, que é o ato puro,
encontra-se a
«natureza», em que o primeiro pela sua simples presença como «imobilidade
móvel»
desperta o movimento real, a passagem da possibilidade informe ou «matéria»,
à
forma, à individualização. São equivalentes a esta dualidade a díade Céu e
Terra, a
polaridade do princípio uraniano e do princípio telúrico ou ctónico, imagens
cósmicosimbólicas
dos eternos masculino e feminino.

E possível, neste plano, encontrar um outro símbolo para o feminino, do qual,


de
resto, já falamos, ou seja, o das águas. As Águas compreendem sentidos
diversos.
Representam em primeiro lugar a vida indiferenciada, anterior à forma, que
ainda não
está fixada à forma; simbolizam em segundo lugar, o que corre, flui e é,
portanto
instável e mutável, ou seja, o princípio do que está submetido à procriação e ao
devir
no mundo contingente denominado pelos Antigos, mundo sublunar; por fim
representam, também, o princípio de toda a fertilidade e crescimento, segundo
a
analogia demonstrada pela ação fertilizante que a água exerce sobre a terra.
Fala-se,
de um lado, do «princípio úmido da geração» e do outro das «águas da vida» e
também das «águas divinas». Acrescentemos que às Águas está associado o
símbolo
de horizontal, correspondendo à categoria aristotélica do ser deitado xeíOac,
que se
opõe ao da vertical — e à categoria de éxety, no sentido específico do ser, o
ser
direito, o ser ereto; sentido este cuja relação com o princípio masculino foi
expressa,
entre outros, pelo símbolo fálico e itifálico (o falo em ereção).

o fogo

este símbolo, considerado no seu


aspecto de chama que aquece e alimenta, pôde ser igualmente utilizado como
símbolo do elemento feminino, desempenhando, deste modo, um papel muito
importante nos cultos hindo-europeus: Atar, a Hestia helênica e a Vesta romana
são
personificações da chama tomada neste sentido (Ovídio — Fast., VI, 291 — diz:
Vesta
é a chama viva); estava também relacionado com o aspecto feminino do divino
considerado como força-vida e elemento vivificante o eterno fogo sagrado que
brilhava nos palácios dos Cesares
Ao yin é também
própria a sombra, o obscuro, relacionado com as potências elementares
anteriores à
forma que, no ser humano, correspondem ao inconsciente, à parte vital e
noturna da
sua psique, o que nos conduz diretamente à relação que sabemos ter existido
entre
as divindades femininas e as divindades da noite e das profundezas da terra, à
noite,
Nyx, hesiódica, considerada mãe do dia: tendo dia neste caso a qualidade clara,
iluminada, («ensolarada») do yang que é própria das formas manifestas,
definidas e
acabadas que se destacam da obscuridade ambígua, da indeterminação do seio
materno da substância feminina ou matéria-prima.

I Cor 11:
6 Se a mulher não cobre a cabeça, deve também cortar o cabelo; se, porém, é
vergonhoso para a mulher ter o cabelo cortado ou rapado, ela deve cobrir a
cabeça.
7O homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele é imagem e glória de Deus;
mas a mulher é glória do homem.
8Pois o homem não se originou da mulher, mas a mulher do homem;
9além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por
causa do homem.
10Por essa razão e por causa dos anjos, a mulher deve ter sobre a cabeça um
sinal de autoridade.
11No Senhor, todavia, a mulher não é independente do homem nem o
homem independente da mulher.
12Pois, assim como a mulher proveio do homem, também o homem nasce da
mulher. Mas tudo provém de Deus.

-//-

O que os poetas medievais queriam dizer com o amor cortes?

O amor cortes, no seu significado mais profundo e talvez de caráter sagrado senão
iniciático, não tem nada a ver com a simples paixão entre um homem e uma mulher.
Esse amor é uma experiência que lava os amantes a terem uma relação tão diferente
da relação mundana, tão separada da vida neste mundo, que é como se o amor entre
um homem e sua amante fosse completamente ininteligível para o seu marido e para
as outras pessoas, e fosse uma relação que dissesse respeito somente aos dois, sem
que ninguém mais pudesse compreender o que ela significa, daí o caráter oculto desse
amor e a necessidade que tem de ser expresso nos romances sob a forma de adultério.
Porque a relação matrimonial diz respeito à vida nu mundo, enquanto que esse outro
amor diz respeito somente à união eterna dos amantes, de modo que a relação deles
visa unicamente ao crescimento espiritual de cada um, sem que a formação de uma
família tenha nenhum sentido para esses amantes, já que eles não querem ter uma
vida mundana mas visam unicamente a união eterna de suas almas. É claro que existe
uma contradição profunda entre essas duas coisas, o casamento e o “amor cortes”. Ele
cria uma divisão radical entre amor e casamento: o esposo mundano, que constitui a
ordem da sua vida no mundo, sem a qual a mulher não é nada, e o esposo do coração,
aquele com quem ela está unida tão intimamente que não tem que prestar contas a
mais ninguém, que diz respeito somente à sua própria subjetividade e não altera o seu
estado de vida e as suas obrigações de mulher mundana para com seu marido e filhos.
Nós sabemos que geralmente esses dois esposos se confundem, mas eles representam
áreas perfeitamente distintas da vida humana.

Na estória de Tolstói, a personagem Ana Karenina tem um sonho onde ela está na
cama, e de um lado da cama aparece o seu amante segurando a sua mão, e do outro
lado o seu esposo segurando a sua mão, e ela diz, chorando: nossa, me surpreende
que eu estivesse tão aflita antes, porque agora tudo se resolveu de modo tão simples!
– Ou seja, a felicidade dela é muito simples: bastava que o esposo e o amante se
tornassem um! Isto é, a vida dela estava radicalmente dividida, e isto de fato a matou.

-//-

Ter o conhecimento do bem e do mal significa poder sentir prazer tanto no bem como
no mal. Significa que o seu “eu” é livre para se identificar tanto com o que é mau
quanto com o que é bom (sendo bom e mau aqui se referindo à experiência total do
ato bom ou mau). Você é conhecedor do bem e do mau porque você é tão capaz de se
identificar com o Bem como de se identificar com a perversão (seja você pervertido ou
não). O Julgamento Final é justamente a divisão definitiva, absoluta, entre o bem e o
mal, de modo que a possibilidade de queda (de identificação com o mau) não exista
mais para o homem bom, sendo ele colocado definitivamente no seu lugar próprio,
(estabelecido como rei no seu reino pessoal), nem exista a possibilidade de conversão
para o homem mau, que agora é definitivamente estabelecido no lugar que escolheu
estar. Enquanto estivermos na terra, no mundo intermediário, temos a possibilidade
de nos identificarmos com o mal ou com o bem, e podemos sentir prazer com o mau
na medida em que nos identificamos com ele, e podemos sentir prazer com o que é
bom na medida em que nos identificamos com Bem; mas essa identificação com o
Bem ou com o mal não é nunca absoluta, ela é às vezes uma “experiência”, uma
“tentativa”, uma “prova”, e só de pouco a pouco a pessoa vai realmente preferindo
ficar no mundo do bem ou no do mal.
Mas parece que existe também uma diferença de “gosto” entre ser bom e ser mau.
Algumas pessoas acham que o prazer pervertido é muito mais intenso que o prazer
que é justo, outras pessoas acham que a dor é muito maior no prazer perverso do que
a dor que existe misturada ao justo prazer que podemos ter; mas isso também
dependerá de outros fatores não relacionados com o bem e o mal, mas com a própria
constituição psicofísica da pessoa, e com aquilo que o seu organismo é capaz de
experimentar fisiologicamente devido à sua própria constituição interna ou a traumas
passados.

--//--

“No sabeis que sois templo de Dios y que el Espiritu de Dios habita en vosotros? Si
alguno profana el templo de Dios, Dios le destruira. Porque el templo de Dios es santo,
y ese templo sois vosotros” (1 Cor 3,16-17).

Ou seja, qualquer coisa que se faça corporalmente sem que se tenha um propósito
“íntegro”, ou incluído num propósito espiritual mais elevado, isto é, se o corpo não
expressa uma intenção espiritual, então ele está a serviço do mundo, do demônio ou
de si mesmo, sendo assim profanado.

“O no sabeis que vuestro cuerpo es templo del Espiritu Santo, que esta en vosotros y
habeis recibido de Dios, y que, por lo tanto, no os perteneceis?” (1 Cor 6,19).

Ou seja, o corpo não é para expressar os desejos mundanos ou “carnais” da alma


humana, nem para servir ao demônio pela perversão da alma, mas é para expressar
em tudo o sentido da vida humana, servindo também como testemunha do Espírito
que nele habita.

“Pues vosotros sois templo de Dios vivo” (2 Cor 6,16).

Ou seja, se toda ação corporal (voluntária e, às vezes, mesmo as involuntárias) é


intencional, então o corpo deve agir conforme o Espírito que nele habita, e não deve
fazer coisas que são a expressão do que o Espírito Santo não pode ser.

-//-

Santo Agostinho

On Marriage and Concupiscence

Começa dizendo que a concupiscência carnal é um acidente no matrimonio, que,


nascendo do pecado original, emerge no matrimonio.
Diz que esse mal é retamente empregado no matrimônio para a geração de filhos.

** Aí é que está! O que é essa concupiscência de que fala Santo Agostinho? Ela está
evidentemente ligada à atração sexual, ao desejo sexual e, portanto, à excitação
sexual. Se o desejo sexual é concupiscência, então, não importa o motivo do casal
fazer sexo, será sempre através da concupiscência. No entanto, será mesmo que o
desejo sexual seja idêntico à concupiscência? O próprio Santo Agostinho não parece
acreditar nisso quando diz que é possível que Adão e Eva tivessem procriado no
paraíso mesmo se não tivessem pecado.

** Essa concupiscência que se origina no pecado original parece ser uma espécie de
desordem que “libera” o desejo sexual da sua ligação com a vida espiritual, de modo
que ele passa a ter certa autonomia e até mesmo uma característica de caos e
desordem.

** Essa concupiscência, já que é consequência do pecado original, continua operando


na alma de todo ser humano, de modo que mesmo no caso de um desejo sexual que
se originasse da virtude seria manchado por essa concupiscência de algum modo.
Mesmo durante o ato sexual o homem teria que lutar contra a concupiscência, porque
essa inclinação para o prazer de pecar estaria o tempo todo presente de qualquer
maneira.

** Então, de certo modo, Santo Agostinho está falando sobre um aspecto real do
matrimônio, porém, ele se omite acerca de se o desejo sexual é pura concupiscência
ou se ele pode ter alguma outra fonte, sendo apenas mais ou menos contaminado pela
concupiscência, segundo a virtude de quem ama.

Santo Agostinho diz que o pecado original é transmitido por meio do contato carnal
manchado pela concupiscência carnal, que por sua vez vem do próprio pecado
original.

“... enquanto que o casamento teria existido mesmo se o homem não tivesse pecado,
já que a geração de filhos no corpo que pertence a esta vida teria se efetivado sem
esse mal no qual “o corpo dessa morte” não pode estar separado do processo de
procriação.”.

** Se o casamento teria existido mesmo que o homem não tivesse pecado, como seria
então o desejo sexual aí? Como as pessoas se ligariam então? A minha tese é que as
pessoas, mesmo que tenham esse corpo de morte, (um desejo sexual manchado pela
concupiscência), ainda podem experimentar algo daquela atração sexual sem culpa,
daquele desejo sexual baseado na intenção simples de um coração puro.

--//--
Não é possível falar sobre a sua relação sexual, a sua relação com a pessoa que você
ama, com uma terceira pessoa, pois o sentido da relação conjugal amorosa é
inseparável do próprio ato sexual, de modo que não é possível conceber o sentido
dessa relação sem praticá-la, isto é, desde fora. Isto quer dizer que uma relação sexual
concebida do ponto de vista de uma terceira pessoa se transforma automaticamente
em pornografia.

Se uma amiga me conta sobre a relação sexual que ela teve com o marido, então, eu,
que sou homem, não poderei me identificar com ela para poder compreendê-la, antes
irei me identificar com o marido dela, e isto me colocará na situação de imaginar-me
fazendo sexo com esta amiga e desejando-a, o que, por fim, poderá fazer com que eu
acabe desejando-a para mim mesmo (o que, de qualquer modo, acontecerá durante
aquele tempo em que eu estiver imaginando aquilo que ela me contar sobre a sua
intimidade com o marido). Se uma mulher me contar sobre suas relações com seu
marido, é como se ela estivesse pedindo para que eu a desejasse ou a visse desde
daquele ponto de vista.

Entrar na intimidade do casal é destruir essa intimidade. Uma vez que o casal tem
consciência de que um terceiro sabe sobre a intimidade deles, eles passam a
considerar e imaginar a própria intimidade entre eles do ponto de vista da terceira
pessoa, do mesmo modo que, quando queremos julgar nossas ações na sociedade, nós
também somos levados a nos imaginar do ponto de vista neutro de uma terceira
pessoa.

Mas Jesus disse: “aquele que desejar uma mulher já comete adultério com ela em seu
coração”. Desejar uma mulher é concebê-la desde o ponto de vista do seu marido, ou
seja, do amor conjugal. Desejar uma mulher não significa que eu realmente a amo,
significa apenas que eu me imagino desde o ponto de vista de alguém que a ama ou
que tem direito sobre o corpo dela. O que Jesus disse é que nós nuca devemos nos
colocar desde esse ponto de vista quando olhamos para as pessoas do sexo oposto. É
como se o coração do homem desejasse a mulher eternamente, mas o homem
trocasse essa sua mulher eterna por alguma mulher que lhe atrai no momento e
fantasiasse que é desta que o seu coração está falando.

A relação sexual não pode ser mostrada, exposta ao público. Não estou dizendo isso
como um preceito moral, estou dizendo que é impossível que ela seja mostrada na sua
integralidade. Quando a relação sexual é mostrada, ela se transforma em pornografia;
e se um casal quiser fazer pornografia, a relação sexual aí será apenas aparente, sem
verdadeira substância, dado que a relação entre os dois indivíduos será apenas teatral.
Do mesmo modo que não se pode mostrar o “eu” eterno senão pelos seus atos,
também não é possível mostrar a intimidade de uma relação interpessoal senão
exercendo-a. Ou seja, a relação sexual, que acontece na intimidade do casal, só existe
para aqueles que a praticaram, não podendo ser concebida na ausência de um ou de
outro conjuge. Isso é assim porque na relação conjugal o esposo escolhe ver a pessoa
da sua esposa de uma forma única, que só é permitida dentro do matrimônio, e é a
incorporação do amor conjugal à sua personalidade que o torna o esposo da sua
esposa. Essa relação é única, exclusiva e personalizada, não sendo possível ser esposo
de mais de uma esposa ao mesmo tempo e vice-versa.

Mesmo que não se tenha amor ou intimidade com a pessoa com quem se está casado,
a fidelidade jurada no matrimônio significa que só essa pessoa você verá como esposa
e que você não exporá a sua relação com sua esposa para que ela seja diminuída e
aviltada por terceiros. A visão que você tem da sua esposa não pode ser transmitida,
porque você não pode fazer um outro homem olhar para a sua esposa como sendo o
esposo dela, como sendo você. Você pode até fazer outro homem desejar sua esposa,
mas não pode fazer com que ele a deseje como você a deseja, porque cada indivíduo
ama outro indivíduo a seu próprio modo.

O modo mais sublime de amor conjugal é quando desde a unidade do nosso coração, e
num único relance, nós enxergamos a individualidade da pessoa do outro em
harmonia com a beleza da sua criação. Em resposta à essa beleza, o próprio núcleo do
seu ser é tomado de amor, e o desejo que brota do meu coração é tão profundo que
isso me leva a afirmar que “essa pessoa foi feita para mim”. A beleza que meu coração
contempla só existe para mim na individualidade daquela pessoa, que é única, e meu
coração deseja conhece-la como a ninguém mais, como se só ela fosse a sua
verdadeira morada. Eu posso conhecer outras pessoas, mas não na sua totalidade
abissal, não como se elas fossem o lugar de meu repouso eterno.

-//-

Um sinal do pecado original presente na relação conjugal é a vergonha da própria


nudez, sinal de que uma motivação pecaminosa emerge à consciência do homem. Uma
intenção boa e uma intenção má competem entre si em cada ato, e o homem não é
capaz de se livrar de nenhuma das duas absolutamente. Se ele opta em seguir a
intenção boa, a intenção má não deixa de atraí-lo; se ele opta pela má, a intenção boa
pesa na sua consciência. Ou seja, por causa do pecado original, o corpo estando
desarmonicamente ligado à alma, manifesta o estado dela por meio de reações brutas
motivadas por forças inferiores à vontade orientada ao bem, de modo a recordar a
alma do seu próprio estado de miséria, o que causa a vergonha que é por sua vez
manifesta no próprio corpo (+psique).

A consequência dessa desarmonia na composição corpo-alma se manifesta na


fragmentação da consciência como os vícios capitais e seus derivados, que são faltas
de virtude que levam o corpo (psico-físico) a agir fora do âmbito da Razão, isto é, da
vontade iluminada, ficando assim à mercê de tudo o que não é a graça de Deus. Não é
que o corpo sozinho não se submeta ao espírito, mas sim que a mente não é capaz de
harmonizar as reações do corpo com as ações do espírito, ligando um ao outro e
submetendo o corpo integralmente ao espírito.

A conclusão disso é que aquilo que faz o homem ficar sexualmente excitado não é uma
motivação puramente espiritual, mas uma reação sempre mais ou menos decaída pela
desobediência do corpo ao espírito, e por isso São Paulo diz que o sexo dentro do
matrimônio é “desculpado” – não é que o sexo seja pecado em si, mas o que leva ao
sexo nunca ou quase nunca é uma motivação perfeitamente espiritual.

-//-

Resumindo o ensinamento de Santo Agostinho sobre isso:

No cap 8 [vii] de On Marriage and Concupiscence ele compara o matrimônio com um


homem coxo que vai coxeando até um objeto que é bom. Por um lado, a conquista do
objeto não é má só porque o homem foi coxeando até ele; por outro lado, o fato do
homem ser coxo não se torna um bem só porque ele alcançou um objeto que é bom
coxeando. Assim também o matrimônio não se torna um mal só porque a luxúria o
acompanha, nem a luxúria se torna um bem porque está no matrimônio.

-//-

Santo Agostinho entende a concupiscência como uma “doença do desejo”, seguindo


São Paulo (Ts 4, 3-5).

-//-

Cap.13: ... Todo mundo que nasce de ato sexual é de fato carne de pecado, já que o
único que não tem carne de pecado é Jesus Cristo, que não nasceu de ato sexual entre
homem e mulher. Mesmo assim o ato sexual não é pecado em si mesmo, quando se
tem a intenção de procriar; porque a boa-vontade da mente conduz o prazer do corpo,
ao invés de se deixar guiar por ele; e a (livre) vontade humana não é desviada pelo
jugo do pecado pressionando a consciência (que não se deixa distrair), na medida em
que o golpe do pecado é devidamente direcionado outra vez para o propósito da
procriação.

Esse golpe do pecado tem uma certa atividade lúdica com a qual joga o rei na
imundície do adultério, e fornicação, e lascívia, e impureza; enquanto que nos deveres
indispensáveis do estado matrimonial, ele mostra a docilidade de um escravo... Essa
luxúria, portanto, não é um bem da instituição matrimonial; mas é uma obscenidade
nos pecadores, uma necessidade nos pais geradores, o fogo das indulgências
lascívias, a vergonha dos prazeres nupciais.

-//-

Para Santo Agostinho a luxúria do pecado original “assiste” a procriação, como um


efeito colateral ocasionalmente bom da queda.

A luxúria move o órgão sexual de um modo que a pura vontade não o pode fazer. O
fato de que o órgão deve ser excitado por um estímulo sedutor e não por livre escolha
gera vergonha. Essa é a concupiscência carnal gerada pelo Pecado Original.

Se o órgão sexual obedecesse a nossa vontade livre tal como os outros membros do
corpo, nós não nos envergonharíamos dele.

A concupiscência permanece após o batismo apenas nos seus efeitos, mas já não é
mais pecado. A concupiscência diminui nas pessoas de idade avançada e aumenta em
pessoas incontinentes. A culpa do pecado é apagada no perdão, mas a concupiscência,
sua consequência, continua agindo no corpo de morte. Assim, do mesmo modo, o
adultério pode ser perdoado, mas o filho do adultério continua existindo, de modo que
Deus permite esse mal para que dentro de seu círculo de consequências possa fazer
nascer um bem maior.

A “lei do pecado” mantém a carne parcialmente sobre seu domínio, o que se


manifesta nos desejos pecaminosos que nós temos mesmo sem querer.

O batismo significa que, se o sujeito não reconhecer que tem que nascer de novo, se
ele não rejeitar seu corpo mortal e se ele não confessar que sua alma não é capaz de
se manter firme no seu caminho sem cair para o desejo da carne, ele continuará
carregando essa culpa de não odiar aquilo que o faz cair. Se o sujeito odeia aquilo que
o faz cair, se ele quer lutar contra a tentação para poder viver na ordem do espírito,
então aí ele está pronto para ser batizado. Mas se o sujeito é criança, o batismo
facilitará a sua percepção, mais tarde, da realidade do pecado original e da
necessidade da Redenção.

-//-

A luta no matrimônio é que você não quer querer ceder para a vontade da carne.

-//-
A maior parte do prazer da luxúria está no sentimento de poder. Mas o “poder” aqui é
o poder feminino. Isso significa que o homem se sentirá poderoso na sua luxúria por
meio da adoração que prestará à mulher, desejando-a sobre todas as coisas e
desejando que ela tenha poder total sobre sua alma, desde que ela seja somente sua.
Ele vende sua alma para a mulher para que ela o tome como seu único adorador e se
glorie com isso. A mulher tem poder sobre o homem admitindo-o como seu escravo,
ou melhor, como escravo de seu corpo, e se gloria na sensação de que ele a adora e
necessita somente dela para fazê-lo quem ele é. A vida dele é necessitar que ela o
satisfaça e o admita como único em sua vida. Na luxúria, o homem seduz a mulher
mostrando submissão total a ela, quer dizer, à sedução dela; e a mulher excita a
luxúria no homem quando se sente orgulhosa do poder que a sua beleza tem sobre a
carne dele. A mulher se sente excitada pelo poder quando o homem faz o papel que
ela deseja que ele faça, realizando assim o desejo mal dela de se sentir como senhora
do homem.

Dói no homem ver a beleza feminina sendo instrumento da sua queda. A beleza da
mulher, ao invés de deixar o homem alegre e esperançoso, torna o seu coração triste e
intimidado por causa da dor do desejo.

A luxúria é uma abertura na alma para o pecado do prazer ilícito; é falta de virilidade.
Eu nunca devo submeter a minha alma ao desejo da luxúria, nunca devo submeter-me
a esse estado, para que eu não me acostume com ele e perca a visão do céu e minha
inteligência se apague e eu morra. Uma vida de luxúria é uma vida de falsidade. Um
homem e uma mulher nunca poderão ser felizes na luxúria, pois não é possível servir a
Deus e ao diabo, de modo que não é possível ter uma vida cheia de caridade e de
luxúria ao mesmo tempo. A luxúria os separará pelo ódio, por uma vida sem sentido,
mesmo que eles se agarrem ainda mais ao seu pecado; um dia o castigo chega, para
provar que o pecado existe. O homem que curtiu a luxúria será sempre mais fraco,
mais acabado. A mulher que se glorificou da queda dele será sempre mais frustrada e
sem amor, sem merecer o amor do homem de verdade, sem saber como merecê-lo,
sem saber porque não é digna de ser olhada, e, por fim, sem nem mesmo querer ser
salva da sua ilusão.

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Por experiência eu sei que posso me apaixonar por outra mulher. Essa possibilidade
também existe na literatura e em obras biográficas. Essa possibilidade indica que a
união entre um homem e uma mulher é dependente das circunstâncias, não só da
personalidade de um e de outro. São duas pessoas inteiras que buscam se unir, é a
pessoa com a sua circunstância que busca se unir ao outro e com a circunstância dele.
A paixão inicial é a afirmação pessoal (um juízo) de um vislumbre da possibilidade do
outro me fazer feliz nessa união de nossas vidas, e essa possibilidade pode ser
vislumbrada com relação a várias pessoas diferentes. Ou seja, eu só me apaixono por
uma pessoa se eu quiser olhá-la de certo modo após ter estimado a felicidade que ela
me traria na sua união comigo. Essa estimativa do outro é algo mais sutil do que um
raciocínio, é na verdade uma estimativa da beleza total da personalidade do outro.
Essa personalidade é sentida como agradável pelo mesmo modo de como o lobo é
sentido como uma ameaça. Mas, quando eu me apaixono, eu me vejo de tal modo
comprometido com essa personalidade, que todas as outras, não importa o quão
bonitas sejam, me parecem sem graça e não tem encanto sobre mim. A paixão tem um
elemento de afirmação, sutil e instantânea, da possibilidade de felicidade na união
com o outro, e que é ao mesmo tempo a negação de todas as outras uniões possíveis.
Todo o movimento interior da pessoa com relação ao sexo oposto muda, e toda a sua
atenção passa a se dirigir para aquela pessoa que você assumiu ser o seu par perfeito,
ao menos nas presentes circunstâncias da sua vida. Você necessariamente cria uma
expectativa com relação a aceitação da outra pessoa, porque essa união que você
deseja só pode acontecer se a outra pessoa fizer o mesmo processo de afirmação da
possibilidade de você fazê-la feliz que você fez dela. É importante notar que esse
vislumbre da possibilidade que o outro tem de te fazer feliz numa união conjugal é
uma estimativa e não um ato de imaginação – é por isso que o “amor à primeira vista”
é possível. A imaginação só é desencadeada porque antes se estimou essa
possibilidade de ser feliz com o outro. Quando a pessoa imagina muito e medita muito
sobre o seu parceiro, é provável que ela não possa ser tão feliz com ele, porque nós
temos muito mais chances de sermos falsos na nossa imaginação, com relação aos
nossos sentimentos, do que na impressão que nos é dada pela estimativa, que é
imediata, intuitiva, mesmo que se demore um pouco mais para podermos traduzir
esses dados em intenções e pensamentos.

Ou seja, todo mundo que se apaixona quis se apaixonar, e é justamente por isso que é
quase impossível se “desapaixonar”, porque a paixão tem a característica de ser uma
afirmação que já traz embutido nela a intenção de felicidade suprema na união com o
outro, e ninguém vai querer trocar essa felicidade por nada nesse mundo, sendo
desistir dela tão difícil quanto desistir do próprio Paraíso que ela simboliza. A intenção
de união no amor é definitiva. Se apaixonar é como se lançar num abismo sem volta; é
uma escolha que escolhe a irrevogabilidade dada na própria escolha. Na paixão, você
escolhe amar aquela pessoa, e sem essa escolha não há propriamente paixão, mas
uma mera atração física, que pode ser mais ou menos ardente. Você também pode
fingir que se apaixonou pela pessoa só para aumentar a sua luxúria, ou até pensar
mesmo que se apaixonou, como um viciado, só para poder usufruir de certo prazer, e
então a paixão acaba junto com a luxúria saciada, até que novamente desperta, e
assim por diante. A paixão da luxúria e a paixão do amor são distinguidas pela
sinceridade e pureza do coração, de onde elas vêm, e para onde cada uma se dirige, se
para cima ou para baixo.
Se for assim, então a tendência em se apaixonar rapidamente por alguém é uma falta
de virtude, é uma falta de esperança e de paciência para saber o momento certo de se
relacionar com alguém ou de saber se essa é a pessoa certa ou não dentro das suas
circunstâncias. Acontece que, algumas vezes, pode acontecer se ser praticamente
impossível de se resistir ao impulso de afirmar na mesma hora em que se vê a mulher:
essa é a mulher que eu quero para mim.

Quanto mais se está apaixonado por uma mulher, mais se tem ciúmes do corpo dela
ao mesmo tempo em que se despreza o sexo de todas as outras. O ato sexual é uma
expressão tão perfeita da intenção de união, que o amor de uma pessoa faz com que o
sexo para ela (e a luxúria) se identifique com a pessoa amada de uma forma singular,
única. O sexo despersonaliza o homem, mas o amor personaliza o sexo. A relação
amorosa dá um novo sentido ao sexo. É impressionante que um homem possa desejar
somente a sua própria esposa, na mesma medida em que sente ciúmes só dela, além
de não ter nenhuma inclinação para imaginar a vida sexual das outras mulheres.

O que diminui com o tempo é a luxúria e não a paixão; mas se a paixão do início era
luxúria, então se dirá que acabou a paixão; mas se a paixão do início era também
amor, então com o tempo, pelo convívio com a mesma pessoa, a luxúria diminui, mas
a paixão continua afetando o coração dos amantes.

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O amor romântico é o amor personalizado.

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“...ainda nas formas inferiores de amor, se fazem os “gestos” que fingem sua
inexistente realidade. O homem é capaz de mostrar o verdadeiro mediante falsidades,
e ao fazê-lo está descobrindo o que aquilo que faz ou que se passa “deveria ser”.” p.
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Eu não me apaixono só por uma pessoa enquanto ela mesma, eu me apaixono por ela
e pela circunstância dela. A pessoa é inseparável da sua circunstância, da sua história,
e irreconhecível sem ela, indiferenciável sem ela. Assim como uma pessoa se
reconhece na e através da sua história, ela precisa da sua circunstância para fazer-se e
ser quem ela é. Essa circunstância, e a maneira de como a pessoa se apropria dela,
transformando esse mundo no seu mundo, eu não a vejo distintamente da própria
pessoa, mas eu vejo a pessoa na sua circunstância, quer dizer, eu não abstraio a
pessoa da sua circunstância, mas eu a reconheço na própria circunstância da minha
vida em intercessão com a dela. As circunstâncias de duas pessoas estão
maximamente unidas (em intercessão) quando os seus projetos pessoais, as suas
“trajetórias radicais” são mutuamente referidas um ao outro, porque aí tudo aquilo
que diz respeito a quem essa pessoa é irá influenciar em quem a outra pessoa deve ser
para essa e vice-versa. Ou seja, tudo o que é radicalmente importante para que eu seja
eu mesmo deve ser também radicalmente importante para que minha esposa seja ela
mesma, e tudo o que é radicalmente importante para que minha esposa seja ela
mesma, é também radicalmente importante para que eu seja eu mesmo, de modo que
a própria pessoa dela se torna o meu projeto pessoal e vice-versa. Sem esquecer de
que as nossas vidas se dão numa determinada circunstância.

Quando eu vejo uma mulher e a amo, eu não vejo só ela mesma, ou só a sua
circunstância, mas eu vejo a sua “personalidade total”, eu vejo ela e a circunstância
dela indissoluvelmente unidas assim como a alma está unida ao corpo.

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O adultério é o símbolo do pecado ele mesmo.

“aquele que olhar para uma mulher desejando-a já cometeu adultério em seu
coração”.

A misteriosa atração que a beleza feminina tem sobre o homem, às vezes, pode ser de
um tipo absurdo, obscuro, “sem fundo”, sem consistência, que se assemelha mais a
uma fraqueza ou uma falta de ser. O desejo que o homem concebe pela mulher, nesse
estado, é símbolo do puro desejo de pecar. Isso é algo na alma do homem que o deixa
vulnerável ao pecado, que o expõem à tentação. O símbolo da tentação por excelência
é a sedução feminina, da mulher, porque o homem é indefeso contra ela. O homem
não é capaz de não desejar a mulher pela sua beleza, pela influência que a beleza dela
tem sobre ele; e isso não é somente “luxúria”, não é desejo de prazer, mas é algo
muito mais profundo, como uma incapacidade de se manter no nível do espírito.

Por isso, tal como o ser humano está constantemente exposto ao pecado, como sendo
uma possibilidade constante neste mundo, o homem está constantemente exposto ao
adultério, pois ele não é capaz de não sentir a sua fraqueza diante de uma mulher bela.
O homem sempre se sentirá fraco diante da beleza feminina, porque ele não quer
querer deseja-la do modo como ela se apresenta desejável para ele, mas mesmo assim
ele a sente como desejável.
Se um homem não é capaz de desejar somente a sua própria esposa, então ele não é
livre, e assim não pode ser feliz. A tentação do adultério é um desejo sem sentido, que
paralisa a alma do sujeito e excita o seu corpo, e faz o seu coração sofrer de angústia
com a expectativa de uma felicidade absurda. Essa fraqueza do homem faz com que
ele nunca esteja seguro de estar com a pessoa certa, de ter casado com a pessoa certa,
ou de amar sua esposa como deveria. Ele não sabe se só deve amar uma mulher,
porque a fraqueza dele diz respeito à mulher em geral, e geralmente o homem é
atraído tanto pela beleza da mulher quanto por sincera afeição, de modo que ele não
sabe o que é fraqueza e o que é amor. O homem vive inseguro da sua felicidade,
porque a sua felicidade é sempre colocada em cheque pela sua fraqueza principal, que
é a sua “queda” pela beleza da mulher. O homem quer amar todas as mulheres, mas
ele não pode ser feliz desejando todas elas. O homem quer desejar uma mulher só,
porque a felicidade está no casamento, na união do varão com a mulher, mas ele não é
capaz de parar de sentir a atração que qualquer outra bela mulher exerce sobre ele.
Então, o homem que está com o coração aberto para o amor conjugal vive um certo
dilema: ele precisa desejar somente a sua mulher, mas pode desejar qualquer outra
pela sua beleza; ou seja, ele sempre se sentirá “limitado”, não podendo “ir além” no
seu relacionamento com outras mulheres.

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Questões de método

O método para uma filosofia do amor é confrontar as diversas experiências de amor


disponíveis na literatura, criando conceitos que permitam descrever cada elemento
dessas experiências de modo a abranger o máximo possível os testemunhos do amor
que chegaram até mim, tudo isso dentro de uma visão mais abrangente da pessoa
humana e da vida humana, de modo a poder descobrir também o(s) sentido(s) que o
amor conjugal pode ter para uma pessoa. Como explicar as atitudes das diferentes
personagens das diferentes estórias com relação ao amor ou à pessoa amada? essas
explicações devem convergir para a unificação da experiência do amor em todos os
seus sentidos.

É preciso descobrir se o amor existe, e, se existe, se são várias cosias com o mesmo
nome; e, depois, qual a sua essência. Se for alguma coisa, é preciso descobrir se o
amor tem causa ou se é ele uma causa ou um princípio.
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A paixão suscita a ilusão de amor eterno.

A paixão é ambígua. A paixão amorosa é um sentimento que corresponde à realidade


da dualidade corpo-alma, é um sentimento que surge da contradição íntima entre o
corpo mortal e a alma imortal. Os amantes desejam o amor e a morte ao mesmo
tempo.

Essa paixão está intimamente relacionada à beleza, tanto da mulher como do homem,
mas mais propriamente da beleza da mulher. Sem beleza sem paixão. Quanto mais
íntegra é a unidade do todo da personalidade de um indivíduo, mais ele será capaz de
sentir uma paixão cada vez mais forte, e de suscitar uma paixão cada vez mais forte no
outro pela sua beleza, de modo que a paixão também admite graus.

A paixão amorosa é subjetiva, quer dizer, é o modo do sujeito sentir-se com relação ao
seu relacionamento. Na paixão, o amante participa com o seu coração daquilo que o
amor conjugal simboliza, e essa participação se dá na esfera da subjetividade do
indivíduo. Na paixão, o indivíduo é alterado na sua subjetividade: ele se torna um
apaixonado; mas é a sua subjetividade que se altera. É só para a sua subjetividade que
aquele amor tem sentido, tem voz, e é real. É porque o indivíduo possui uma
subjetividade, um modo todo pessoal e único de ver e sentir a si mesmo e o mundo em
torno, que ele é capaz de apaixonar-se. Apaixonar-se é experienciar na realidade e de
modo único e pessoal o sentido último e simbólico que todo relacionamento conjugal
tem. Você vivencia a experiência do símbolo. O casamento, e o sexo dentro do
casamento, é um símbolo e um mistério em si mesmo. O casamento é um rito, porque
ele simboliza de modo dinâmico um mistério eterno, e um rito pode ser vivido em
vários graus de experiência. Existem graus de participação num rito. A paixão é sinal de
que o indivíduo participa do amor não só com o corpo e a mente como também com o
coração, isto é, ele sente com o coração o que aquela relação e a pessoa amada
significam para ele. Não existe uma definição para “sentir com o coração”, porque
existe o tipo de realidade que diz respeito ao coração do mesmo modo que existe o
tipo de realidade que diz respeito à mente, e outro tipo que só diz respeito à visão, e
outro à audição, etc.. Nós sabemos que o intelecto se dirige ao ser, e a vontade ao
bem, mas e o coração? A que ele se dirige? A que ele responde? O coração responde
àquilo que diz respeito à nossa subjetividade. Aquilo que buscamos, além de ser bom,
belo e verdadeiro, deve fazer sentido para a nossa vida em nossa existência, à luz da
eternidade. Existem certas realidades que “concretizam” o sentido da nossa vida, e nos
faz experimentar a eternidade já aqui na terra; essas realidades, quando nós as
realizamos, nos trazem a maior felicidade, porque dizem respeito a quem nós somos –
já que a nossa subjetividade está para o “eu” substancial como a circunferência para o
ponto. O coração sente a realidade viva do sentido da nossa existência em particular
enquanto nossa vida. Aquilo que conhecemos com a nossa vida, e como a nossa vida,
sentimos com o coração e no coração. Aquilo que nós desejamos com o coração, é o
que torna a nossa vida mais rica, mais valorosa. O desejo do coração pressupõe uma
hierarquia de valores subjetivos (que devem ser o máximo possível compatíveis com a
objetividade dos valores conhecidos pelo próprio sujeito). O indivíduo sempre buscará
o que considera ser o melhor para ele e o que o deixará mais feliz, embora nem
sempre os desejos do seu coração estão em ordem com o seu conhecimento do que é
bom e do que é o melhor a ser buscado. Mas Deus inspira os corações, e distribui uma
diversidade de dons e graças, de modo que cada indivíduo humano será um novo céu
e uma nova terra, isto é, cada um, partindo do que é universal e absoluto, será uma
subjetividade criadora de si mesma por meio daquilo que Deus lhe deu, e por meio
daquilo que não lhe foi dado por Ele. Cada criatura tem um papel relativo no Todo da
Criação, sendo uns dependentes dos outros para a sua plena realização. Por isso, a
hierarquia de valores é diferente para cada subjetividade, ainda que seja também
objetiva, isto é, a mesma na ordem total da Criação; e aí cada pessoa terá um papel
único na realização da Vontade de Deus.

Na amizade ou no amor conjugal o amante descobre no amado aquilo que o torna


único como pessoa, o sentido da sua existência no mundo e a beleza dessa existência
em particular bem como a sua necessidade, isto é, a Vontade mesma de Deus
realizada por meio dessa vida humana. Isto não é só compreendido intelectualmente,
mas sentido com o coração. Esta vida te encanta de modo especial, porque ela, de
algum modo, diz respeito a você e ao sentido da sua própria existência. É como se
essas duas vidas estivessem conectadas desde a eternidade, como se devessem
realizar juntas um sentido que as transcende. A união dessas almas é bela e cheia de
significado, e dessa união nascem novas riquezas para a vida de cada uma em
particular, nascem novos incentivos, novas possibilidades de ação, novas
intepretações. Nessa misteriosa união, mundos são compartilhados, vidas humanas se
confundem: eu tenho consciência de que participo da vida do outro e a atualizo para
ele enquanto ele significa o mesmo para mim. É como se caminhássemos juntos e nos
encontrássemos numa mesma região da existência, como que vizinhos espirituais. Um
entende a vida do outro e vê que ela é bela e necessária, e se anima com a sua
existência na medida em que esta ilumina a dele própria. É quando o sentido da
existência do amado enriquece e embeleza o sentido da existência do amante, e este
assim o sente e o deseja.

A relação entre o amor conjugal e o sentido da vida é complexa:

Na paixão, tem-se a impressão de que o amado é o sentido da vida do amante, como


se este tivesse nascido para conhecer aquele. Isso acontece porque o amor, afetando o
núcleo da subjetividade do indivíduo, está presente em todas as áreas da sua vida; mas
não é verdade que só o amor conjugal basta, ao contrário, ele deve ser repetidamente
deixado para trás e realimentado para que não pereça. Assim, o homem precisa deixar
seu lar e sua esposa para ir a guerra, se ocupando das coisas do mundo, e atuar no
mundo, para depois voltar para a sua esposa, coração do seu lar, e seu próprio
coração, e aí repousar e se revigorar para novamente voltar à ação. O homem age
porque sabe para onde irá voltar. A mulher, por seu lado, se ama, deve guardar o seu
coração, e esconder o coração do seu homem em seu próprio coração, de modo a não
envergonhá-lo – o desejo do homem pela sua mulher é algo que não deve ser
compartilhado. A mulher trai o seu marido quando aceita os desejos de outro homem.
A mulher está sempre à espera do seu homem, e seu coração aberto ao coração dele;
por isso ela ouve de longe ele chegando, sempre desejando recebe-lo de volta,
acolhendo-o no que é dele, no que guardou só para ele. A mulher que ama é guardiã
do coração do homem – um homem feliz é aquele que pode confiar na mulher amada.
Mas a mulher também está no mundo, no “submundo”, isto é, no mundo das relações
sociais mais sutis e determinantes, aonde as primeiras coisas acontecem, nas relações
entre famílias. Então, existe essa dualidade: amor conjugal e amor pelo mundo;
nenhuma das duas coisas pode ser excluída do sentido da vida. O homem se realiza
tanto no amor quanto no mundo, e um não pode ser sem o outro. No amor, ele escapa
do mundo para se deleitar na amada, e, no mundo, ele deixa a amada para cumprir a
sua missão e chamado. A volta para a amada representa a volta à matéria prima, à
potência, e a ida para o mundo representa o ato de ser. (Se um homem não é casado,
o seu lar é seu próprio coração; mas se ele tem uma esposa, o seu coração é o coração
dela). Esses dois movimentos são necessários à vida humana, e ninguém pode se
realizar somente em um deles.

O ser homem e o ser mulher não é algo que possa ser definido ou explicado de modo
absoluto, mas existe uma rede de analogias que diferenciam o ser homem do ser
mulher, sendo que um sexo se remete diretamente ao outro em todas essas analogias.
Essa rede de analogias forma o tecido mesmo da vida humana na sua diferenciação
enquanto homem ou mulher.

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