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Ayala Gurgel

BIOÉTICA

São Luís

2014
Governadora do Estado do Maranhão Edição
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a prévia autorização desta instituição.

Gurgel, Ayala
Bioética / Ayala Gurgel. - São Luís: UemaNet, 2012. 2a. rev.
atualizada (2014).

131 p.

ISBN: 978-85-63683-46-5

1. Bioética. 2. Ensino a distância I. Título.

CDU: 171
ÍCONES

Orientação para estudo

Ao longo deste fascículo serão encontrados alguns ícones utilizados


para facilitar a comunicação com você.

Saiba o que cada um significa.

ATIVIDADES ATENÇÃO SAIBA MAIS

PENSE GLOSSÁRIO REFERÊNCIAS


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO

UNIDADE 1
BIOÉTICA: genealogia e definições .................................................... 21
As bases históricas da Bioética .................................................. 21
Avanços científicos ............................................................. 22
Cidadania militante ..................................................................... 23
Medicalização da vida ................................................................ 23
Emancipação do paciente ......................................................... 24
Comitês de Ética em Pesquisa .................................................. 25
Necessidade de um paradigma moral ..................................... 26
Salvação da Ética ........................................................................ 27
As bases conceituais da Bioética .............................................. 28
Definição de Fritz Jahr ............................................................... 28
Definições de van Rensselaer Potter ....................................... 29
Definições de Warren T. Reich .................................................. 30
Definições de David Roy ............................................................ 32
Considerações sobre o conteúdo da unidade ............................... 34

UNIDADE 2
BIOÉTICA: discursos, paradigmas e enfoques ................................... 39
Critérios para tipologia dos discursos bioeticistas ......................... 39
Classificação dos paradigmas de Pessini e Barchinfontaine ...... 41
Classificação dos enfoques de Zoboli ...................................... 41
Classificação das vertentes valorativas de Pozzi .................... 41
Classificação das valorações axiológicas de Gurgel ............... 43
Teoria dos Enfoques em Bioética ................................................ 43
Enfoque principialista ....................................................................... 44
Enfoque da casuística ....................................................................... 44
Enfoque das virtudes ........................................................................ 47
Enfoque do cuidado ......................................................................... 52
Considerações sobre o conteúdo da unidade ............................. 53

UNIDADE 3
BIOÉTICA: princípios e aplicações .................................................... 59
Princípios em Bioética .............................................................. 59
Princípio de autonomia .................................................. 60
Princípio de Beneficência ............................................... 61
Princípio de Não-Maleficência ....................................... 62
Princípio de Justiça ........................................................ 62
Estudos de caso em Bioética ................................................... 66
Caso 1: Ética em pesquisa ............................................... 68
Caso 2: Executivos americanos retardam envelheci-
mento com hormônios .................................................. 69
Caso 3: Caso E.M ............................................................ 73
Caso 4: Caso Ryan Gracie ............................................... 79
Considerações sobre o conteúdo da unidade ........................ 82

UNIDADE 4
BIOÉTICA: problemas e reflexões .................................................... 87
A questão do especismo nas ciências ..................................... 87
Argumentos a favor da experimentação com animais ............ 89
Argumentos contrários à experimentação com animais ......... 91
Há solução para a questão ética da experimetação animal ...... 95
A questão da morte digna ....................................................... 98
A medicalização do morrer ............................................ 99
A qualidade de vida terminal ......................................... 104
Considerações sobre o conteúdo da unidade ......................... 106

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 114

Referências ................................................................................... 123


PLANO DE ENSINO
DISCIPLINA: Bioética
Carga horária: 60 horas

EMENTA
Origem e evolução da Bioética. Filosofia, Deontologia Médica e
Ética Aplicada. As diferentes concepções da Bioética. O princípio
da sacralidade da vida e princípio da qualidade da vida. Bioética das
situações cotidianas: exclusão, cidadania, solidariedade e compromisso
social; bioética das situações limites ou de fronteira; questões de
nascimento, da vida, da morte e do morrer. Bioética e plurarismo moral.

OBJETIVOS

Geral
Demonstrar compreensão do instrumental teórico-metodológico
bioeticista.

Específicos
• Identificar os eventos que originaram a Bioética e as formações
conceituais iniciais desse movimento;

• Tipificar os paradigmas, enfoques, vertentes e valorações


classificatórias das narrativas bioeticistas;

• Conceituar os princípios bioeticistas e suas propriedades por meio


da aplicação a casos selecionados;

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


• Analisar questões filosóficas que fazem interfaces com as questões
bioeticistas.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

UNIDADE 1
ORIGEM, EVOLUÇÃO E DEFINIÇÕES DE BIOÉTICA

UNIDADE 2
DIFERENTES CONCEPÇÕES E PARADIGMAS DE BIOÉTICA

UNIDADE 3
PRINCÍPIOS DE BIOÉTICA E SITUAÇÕES COTIDIANAS

UNIDADE 4
BIOÉTICA, PLURALISMO MORAL E QUESTÕES DE VIDA E MORTE

METODOLOGIA
O desenvolvimento e a avaliação da disciplina serão realizados de
acordo com as diretrizes e orientações para a Educação a Distância.

AVALIAÇÃO
A avaliação se dará em função dos objetivos propostos, levando em
consideração: a leitura dos textos sugeridos, o desenvolvimento das
atividades propostas, as anotações e os questionamentos levantados
e a participação nas discussões nos momentos presenciais.
APRESENTAÇÃO

Caro estudante,

Seja bem-vindo ao curso de Bioética.

Como iremos perceber, Bioética deveria ser uma palavra usada sempre
no plural, tantos são os seus significados, usos e abordagens. Talvez
tenhamos que falar dela como um movimento diverso e difuso, cuja
uma das interfaces é com a Filosofia. Talvez tenhamos que tratá-la como
algo em construção. Algo que ainda não dominamos completamente,
mas que já tem uma função social muito importante para a construção
do saber e das condutas morais no trato com as questões inerentes
aos avanços científicos, especialmente aquelas que envolvem a
manipulação de organismos vivos.

Este curso está direcionado para alunos de Filosofia ou pessoas que,


de algum modo, estão envolvidas com a Filosofia, mas não se limitam a
questões filosóficas. Pois, como se sabe, as questões examinadas pela
Bioética são patrimônio da humanidade, debatidas por todas as áreas. Não
há como separar Bioética e multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e
diversidade cultural, jurídica, moral e religiosa. Todos os saberes estão
convidados a discutir as questões que examinaremos. Somos todos
atingidos por elas, conscientes ou não disso.

Nessa perspectiva, com o objetivo de compreender como os


bioeticistas operam suas análises e chegam às suas conclusões, este
curso irá trabalhar em duas linhas, uma mais hitórico-conceitual, na
qual introduziremos o debate acerca da diversidade de modelos de
Bioética, e outra mais pragmática, na qual os conceitos, princípios e
paradigmas de Bioética serão desafiados pela realidade dos problemas
associados aos diversos desenvolvimentos técnico-científicos.

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


Nem sempre encontraremos respostas para as questões aqui levantadas.
Isso é normal em Bioética. Algumas dessas questões estão ainda no
nível de elaboração. Outras, terão respostas conflitantes e sem solução
consensual. Isso também é normal em Bioética. Contrário à normatividade
tradicional, Bioética não tem respostas morais prontas e acabadas. Não
tem imperativos categóricos (apesar da proposta de Jahr), mandamentos,
leis ou regras inalienáveis (apesar da evocação de algumas “regras de
ouro”). Ela tem mais questões, diretrizes, apelos e interfaces dialogais do
que qualquer outra forma de regulação do comportamento.

É normal que ao longo do curso fiquemos, em alguns momentos,


confusos e nos sintamos carentes de mais informações. É normal
também que encontremos certas dificuldades para manejar termos
técnicos de outras áreas. Contudo, isso não deve nos desestimular.
Ao contrário, o filósofo ao se deparar com dificuldades dessa natureza
sente-se em casa para ir além, investigar mais. A internet tem sido
bastante amigável nessa tarefa e se mostrado importante fonte de
recursos. Conversar com pessoas de outras áreas também ajuda
bastante. Livros e filmes sobre o assunto existem aos milhares. Só não
pode faltar disposição e interesse.

Para facilitar o acesso ao instrumental teórico, conceitual,


epistemológico, metodológico e pragmático de Bioética, o curso
oferece a seguinte organização:

Inicialmente, abordaremos Bioética em sua genealogia. Não para contar


uma historinha, mas para relacionar os eventos importantes com os
quais ela se relaciona e o porquê de diversos intelectuais, das mais
diversas áreas, terem consensualizado a importância de uma disciplina
dessa natureza. Aqui, veremos que Bioética vem sendo formada aos
poucos, como um movimento plural, por meio de cada coletivo ou de
pensadores isolados que tomaram para si as preocupações com as
consequências dos mais diversos desenvolvimentos técnico-científicos
contemporâneos, especialmente aqueles que envolvem a manipulação
de organismos vivos.

Na segunda unidade, examinaremos como esse movimento tem sido


catalogado em diversos paradigmas, cada qual com uma proposta
diferenciada. Veremos que Bioética está longe de ser um movimento
homogêneo. Que sem a interface dialogal e dialógica, cada paradigma
pode se isolar em suas propostas e não atingir seus objetivos. Que
essa pluralidade não é danosa, mas faz parte da própria lógica da
organização dos saberes e reguladores de comportamento da
sociedade contemporânea. A diversidade que se apresenta dentro
de Bioética é correlata à diversidade que se apresenta nos nossos
processos de valoração sobre o mundo, portanto legítima.

Na terceira unidade, intitulada “Bioética: princípios e aplicações”,


introduziremos os estudos de caso. Não sem antes apresentarmos os
princípios que irão nortear as suas análises. Isso não significa uma adesão
ao principialismo nem à casuística. Não temos a intenção de orientá-
lo para nenhum princípio, enfoque, vertente ou valoração bioeticista.
A decisão de como você irá se posicionar dentro de Bioética é sua.
Queremos apenas ajudá-lo nisso, oferecendo algumas ilustrações de
como os bioeticistas operam, o que será discutido na unidade seguinte.

Na quarta unidade, Bioética: problemas e reflexões, analisaremos


duas questões bastante familiares do filósofo: o especismo e a morte
digna. À luz das reflexões bioeticistas, essas questões dizem respeito
a duas perguntas: podemos dispor dos animais? Podemos dispor da
forma de nossa morte? Ambas, portanto, são enfrentadas a partir do
paradigma de que toda decisão tem um fundamento axiológico. Qual
o fundamento que está por trás da (in)disposição dos outros animais
para a experimentação científica e qual o que se encontra por trás das
decisões em busca de uma forma digna de morte serão os norteadores
dessa unidade.

Ao término de cada unidade oferecemos um conjunto de questões para


fazê-lo pensar sobre o que foi estudado. É importante não ter pressa e
não precisa se isolar para respondê-las. Essas questões foram projetadas
para gerar um tipo de postura perante as informações aqui lançadas: um
pensamento crítico, profundo e preciso, como são as questões bioeticistas.

Este fascículo não esgotará todas as complexidades envolvidas em


Bioética. Ele é, antes de tudo, um convite para adentrar nessa maneira
de pensar as questões que os diversos modelos de desenvolvimento
técnico-científicos nos lançam diariamente. Justamente por isso,
paralelo a cada unidade, ofereceremos sugestões para aprofundar o
assunto, bem como as referências bibliográficas e sítios da internet que
poderão ser úteis nessa tarefa.

Bom estudo!

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


INTRODUÇÃO
Em tempos de sensacionalismo falar em Bioética pode soar como mais
um modismo. Mais uma onda que vem e vai, na vã tentativa de preencher
a relatividade de sentido estabelecida com aquilo que se conhece nas
palavras de Debord (1997) como “Sociedade do espetáculo”.

Debord (1997) chama de “Sociedade do espetáculo” a nossa atual


sociedade, pois ela transformou a vida real em algo que precisa ser
reapresentado sob a forma de um modelo que se dá à imitação,
que não basta ser, mas tem que aparecer como um produto que
precisa ser consumido. Por exemplo, uma camisa, que é uma
mera vestimenta, ganha um caráter fetichista e passa a valer
pela imitação que ela é capaz de realizar: ser a imitação de uma
camisa que determinada celebridade usou em uma festa. Ou a
camisa de uma determinada marca. As pessoas passam a consumir
essa camisa, primariamente, não porque precisam se agasalhar,
mas porque precisam dar o seu show particular, uma exibição de
status, de participação no espetáculo geral. Os modelos, quanto
mais próximos do original mais caros, quanto mais distantes e
mais grosseiros, mais acessíveis às camadas menos favorecidas da
sociedade. No entanto, a sociedade cria artefatos para que todos,
de algum modo, partilhem da ilusão de que participam do mesmo
espetáculo.

Não há como negar que algumas formas de Bioética não passam de um


show, algo para inglês ver, ou, como diziam Cazuza e Frejat (2008), “uma
ideologia para viver”. Em razão disso, não vamos argumentar contra a ideia
de que Bioética seja mais uma dessas coisas da “Sociedade do espetáculo”,
afinal ela surgiu como discurso consolidado justamente nessa época (a pós-

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


moderna), e, portanto, está relacionada diretamente às suas conjunturas.
No entanto não vou aceitar que Bioética se resuma a isso. Há algo nos
discursos que forjaram esse termo que o postulam para além do espetacular
ou do contemporâneo, afinal, nem tudo que é coexistente a uma forma de
organização social está, necessariamente, subsumido à sua lógica.

Digo isso porque postulo que a noção de sociedade é apenas uma


abstração racional de uma realidade muito mais complexa que comporta
inúmeras contradições, algumas das quais extemporâneas. Se tem sido
assim com tanta frequência nos últimos séculos, por que seria diferente
agora? Por que justamente quando vivemos o modelo social que mais
nega a existência de modelos teríamos cessado nossas contradições?
Certamente que não. Estamos, na verdade, exponenciando-as ao seu
limite. Ao limite da evidência. E por ser tão evidente é que se parece tão
enigmática, pois, como já dizia Heidegger (1993), nada é mais obscuro
do que o óbvio.

Nessa perspectiva, o curso que apresentaremos sobre o que vem a ser


isso que se nomeia por Bioética será, prioritariamente, uma busca pelo
sentido oculto desse termo, aquilo que pode resistir tanto ao instante
contemporâneo quanto à natureza do espetáculo; que sobrevive aos
arroubos dos discursos mais inflamados e eloquentes.

Mas, o que significa sentido oculto? Significa que há algo para além ou
aquém daquilo que se nomeia como Bioética? Sentido oculto não nos
remeteria à ideia de que Bioética é um evento de má fé? Ou mesmo que
há a necessidade de ritos iniciáticos associados a esse vocábulo? Ou
ainda que estaríamos lidando com uma conspiração tramada contra as
Sentido oculto de Bioética ciências, cujo termo seria apenas a sua forma pública de manifestação?
é o seu sentido ontológico,
aquele que subsiste Não é nessa direção que nos guiaremos. Neste curso, sentido oculto
às diversas operações
axiológicas que os bioeticistas
tem o mesmo significado de sentido ontológico, aquele que designa
particulares fazem. Não é um
sentido metafísico, no sentido
as propriedades de um termo cuja valência está para além de suas
de afastado da realidade, delimitações consensuais.
mas, ao contrário, é aquele
sentido que está por trás do
significado, da valência, da Esse sentido pode ser buscado em muitos lugares, de muitos modos.
palavra cada vez que ela é
usada. Vamos buscá-lo na sua serventia – ou seja, no uso que se faz dele –
seguindo o método da axiologia formal, de clara inspiração na lógica
ilocucionária de Vanderveken (1990-1991; 2004). Isso porque as
definições mais comuns e as pesquisas mais recentes tendem a colocar
Bioética como um tipo de ética, senão como parte integrante dos
estudos morais contemporâneos, o que a torna uma especificidade
dos discursos axiológicos mais gerais. E, como tal, ela fica submetida às
mesmas regras de qualquer valoração.
Operação axiológica é
Nessa ótica, uma operação axiológica realizada por um bioeticista é, na qualquer operação semântica
que implique uma valoração,
verdade, a apropriação de regras gerais da valoração. Saber, portanto, como são os juízos de valor
que fazemos sobre os estados
como operamos as nossas valorações é de fundamental importância de coisa. Por exemplo,
quando digo “é bom que se
para decifrarmos as valorações bioeticistas em particular. fale a verdade em um tribunal
para evitar perjúrio”, isso
é uma operação axiológica
E sobre o quê operam as valorações bioeticistas? Elas operam e o termo “é bom que” é o
operador axiológico.
basicamente sobre as mudanças, consequências e promessas de
mudanças, no âmbito da organização da vida, ocorridas com as ciências
nos últimos séculos.

Isso porque, nos dois últimos séculos, mais especialmente nos últimos
trinta ou quarenta anos, aconteceram coisas nas áreas da ciência e da
tecnologia que os maiores visionários não ousavam tirar do âmbito da
ficção. Falamos por celulares comprados em supermercados, usamos
microchips com milhares de informações, estudamos pela internet,
temos acesso a bibliotecas do mundo inteiro, baixamos filmes raros,
temos carros cada vez mais velozes, água potável reciclada a partir
de água salgada ou de esgotos, guerras com armas que possuem alta
precisão de ataque, transplantes de órgãos e clonagens de organismos,
vírus capazes de destruir a humanidade em questão de meses. Alguns
nomeiam isso de “avanços”, outros de “loucura”, outros ainda, os mais
religiosos, chamam de “sintomas do apocalipse”. Seja o que for, tais
eventos afetam tanto a nossa vida que não é possível ficar apático a
eles. Cedo ou tarde teremos que debater com alguém, em algum lugar,
alguma questão perpassada por um desses eventos.

Dentre essas mudanças, as que acontecem na área das ciências


Embora a vida em geral, e
biológicas e da saúde nos chamam ainda mais a nossa atenção: o homem, em particular a vida humana,
nunca tenha sido devidamente
de criatura, se tornou criador. Ele desenvolveu ciência e tecnologia nos respeitada, já houve em
muitas épocas concepções
últimos anos mais do que durante toda a história da humanidade. Se filosóficas, teológicas, políticas
ou até mesmo científicas,
por um lado aumentou a sua capacidade de se adaptar e sobreviver que pregavam uma defesa
irrevogável da vida, como um
neste planeta, também aumentou o seu poder de destruição: a vida sacrossanto mistério intocável.
Veja, por exemplo, a postura
perdeu a sua sacralidade e deixou de ser o último recanto sobre o qual jusnaturalista de Thomas
Hobbes, exposta em obras
não se exercia o poder de destruição. como Leviatã, ou Do Cidadão.

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


Nessa área, somos bombardeados com notícias provenientes de todas
as diferentes partes do mundo, relatando (fora as que não são relatadas)
a utilização de novos métodos investigativos, de novas técnicas, de
novas eficiências, de mais eficácia de determinados métodos revistos,
da descoberta de fármacos mais eficazes, da extensão de mais anos de
vida, do controle da degeneração de certas células, do retardamento
do envelhecimento, das novas combinações alimentícias, do
conhecimento e controle de doenças até então silenciadas como
sinônimo de morte certa, do conhecimento e manipulação dos átomos
e dos genes. O mundo, atônito, vê o desenvolvimento de tudo isso sem
tempo para assimilar o que está a acontecer, tamanha é a velocidade e
complexidade com a qual tudo isso se passa.

Mal temos tempo para pensar sobre um acontecimento, já vem


outro e mais outros a demandarem da nossa capacidade cognitiva
e moral, respostas e posturas à altura e na rapidez que eles se
desenvolvem.

Graças a essa rapidez, nossas posturas chegam a ser as mais


antagônicas: de uma completa aceitação e aplauso ao desenvolvimento
tecnocientífico, ao completo oposicionismo a uma prática que põe o
homem no lugar de Deus. Excessos à parte, essa é uma situação que
precisa ser compreendida e vivenciada com a cautela que as questões
envolvidas exigem. Não se trata mais de uma simples equação
metodológica ou técnica para saber se funciona ou não. É mais que
isso: a de saber quais as prováveis implicações presentes e futuras
para os envolvidos no processo, para a espécie e para o planeta como
um todo.

Trata-se de uma contradição Há dois argumentos em jogo que precisam ser analisados. Ambos
entre ideias de um mesmo
discurso, ou de contradições compõem uma antilogia. Um de cada lado contradiz o outro. De um
entre as partes ou os passos
de um livro ou obra literária.
lado, o argumento que diz: “não é importante o que vai acontecer com
Quando há uma antilogia, o planeta e a vida que nele habita”; do outro lado, a sua negação: “é
somente um dos lados pode
ter razão, mas não é fácil importante o que vai acontecer com o planeta e a vida que nele habita”.
decidir qual.
Se ainda não ficou claro e suficientemente decidido o que vamos fazer
com a vida deste planeta, é preciso então mais cautela.

O laboratório e o cientista não são mais compreendidos como


isolados do resto da sociedade, cujas pesquisas ficam à mercê
única e exclusivamente de sua consciência (ou da consciência das
agências fomentadoras). Seja com a literatura, seja com a filosofia
ou a ciência responsável, desde o século XIX que temos reflexões
(algumas bastante severas) sobre os limites da prática científica
(metódica e tecnologicamente). Assim, a denúncia representada pela São órgãos públicos, privados
ou de economia mista que
irresponsabilidade do Dr. Jekyll, ou da arrogância do Dr. Frankenstein, financiam as pesquisas. CNPq
e CAPES são exemplos de
mais as reflexões de Weber (1993), Marx (1973) e Nietzsche (2006), agências públicas de fomento.

colocam a ciência no seu devido posto: como uma instituição social


devotada a um modelo de sociedade.

No caso do Dr. Victor Frankenstein (não confundir: quem é Frankenstein


é o médico, não a criatura, que sequer tem um nome), da obra de
Mary Shelley Frankenstein ou o moderno Prometeu, ele pretendia criar
um meio que desse ao homem uma vida imortal ou longeva, livre de Dr Jekyll e Mr. Hyde diz
respeito aos personagens
doenças e fadigas. O resultado foi uma criatura dócil e inteligente, mas literários criados por Louis
Stevenson na obra O Estranho
que, graças à ignorância dos homens, acabou se tornando uma criatura Caso do Dr. Jekyll e Mr Hyder
(às vezes traduzida como O
assassina e fugitiva. Médico e o Monstro). O Dr.
Jekyll queria isolar a maldade
do homem para poder destruí-
No mundo contemporâneo, especialmente no final do século XX e la, contudo, acabou criando
um monstro mais poderoso do
início do século XXI, essa discussão tem tomado cada vez mais fôlego, que ele.
cujo destaque são as contribuições de Bioética e do Biodireito.

No século XX, Jonas (1990), entre outros, procurou reatar a cisão feita
em meados do século XIX que rompera filosofia e ciência. Para esse
autor, a reflexão filosófica sobre a ética tinha que urgentemente fazer
parte da mentalidade do homem tecnológico. Sem tal reflexão esse
homem poderia muito bem não só desorganizar a vida deste planeta,
como também mudar radicalmente os fundamentos da vida, de criar e
destruir a si mesmo. Uma consequência não desejável é que a ciência
se tornaria elitista e, mais que antes, a qualidade de vida se tornaria um
status discriminatório, fazendo com que todos os avanços políticos,
toda a tradição democrática, toda a luta por justiça e isonomia entre
os povos e as pessoas estivesse prontamente decidida como uma
hipótese falida.

Pensemos a respeito:

Informações e poder concentrados nas mãos de poucas pessoas não


seria a fórmula perfeita da mais fria e eficiente (sem deixar de ser
dolorosa) forma de holocausto mundial? Quem poderia impedir que

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


pessoas inescrupulosas lançassem mão de informações privilegiadas
para fins eugênicos? Quem poderia impedir que se lançasse mão de
informações sobre as probabilidades de uma pessoa vir a desenvolver
determinada doença no futuro devido a uma falha em seu código
genético, para usá-las contra essa mesma pessoa? Quem poderia
impedir que grupos religiosos mais radicais não utilizassem informações
eugenistas com fins de eliminação racial, ou que cientistas militares não
lançassem mão desses conhecimentos com o intuito de produzir armas
cada vez mais letais e genocidas? Pode parecer desesperador, mas há
ainda a hipótese de uma seleção geneticamente induzida, mudando
completamente o perfil da vida humana no planeta, ou talvez, da vida
em geral.

Às vezes esse discurso pode parecer uma barreira a mais enfrentada


pela ciência e pela tecnologia. Não bastassem as dificuldades inerentes
à pesquisa científica, a falta de incentivos fiscais e apoio financeiro, o
amparo e remuneração ao pesquisador, a socialização das informações,
além da formação e capacitação profissional, da defasagem e
sucateamento dessa área; agora essa de moralizar e controlar a
pesquisa científica. No entanto, não se trata propriamente de ser um
Você acha que toda e
qualquer pesquisa científica é obstáculo ao exercício da pesquisa científica. Trata-se, antes de tudo,
válida? Que qualquer modelo
de ciência deve ser aceito pela
de decidir responsavelmente por modelos aceitáveis de pesquisas
sociedade? científicas.

Ou melhor, trata-se de contextualizar as mais diversas produções


científicas e as suas serventias, uma vez que não há a pesquisa científica,
a ciência ou a tecnologia, como se houvesse um único modelo ou um
modelo dominante. O trabalho que começou com a literatura no século
XIX (cuja temática é recorrente ao longo da história da humanidade) e
tomou fôlego com as teses de Kuhn (1973) denunciam a diversidade
dos modelos e métodos científicos. Não há a Ciência, há ciências. Há
as mais diferentes tecnologias a serviço dos mais diferentes interesses
e modelos de sociedade. É justamente isso que a reflexão filosófica
recente traz sobre as ciências, sob a tutela de Bioética. Assim, não se trata
de ser um obstáculo contra o desenvolvimento da pesquisa científica,
mas, uma vez que se decida o modelo de sociedade que queremos e o
modelo de homem que nela habitará, podemos questionar as práticas
e princípios científicos que com esses se ajustam.
O século XX, preocupado com essa questão, em especial após
acontecimentos históricos de proporções monstruosas que faz de obras
como O estranho caso do Dr. Jekill e Mr. Hyder e Frankenstein parecerem
contos infantis, resolveu pensar ética e cientificamente os limites da
prática científica. Apareceu, portanto, Bioética. Essa é, justamente, a
matéria sobre a qual trataremos neste curso.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2010.

______. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2010.

JONAS, H. Il Principio Responsabilità. Un’etica per la civiltà tecnológica.


Turim: Einaudi Editore, 1990.

KUHN, T. The structure of scientific theories. Illinois: University of


Illinois Press, Ed. F. Suppe, 1973.

MARX, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economía


política. 8. ed. Grundrisse. Ciudad de México: Siglo XXI, 1973. v.2.

NIETZSCHE, F. W. A genealogia da moral. São Paulo: Editora Escala,


2006.

SHELLEY, M. Frankenstein ou o moderno Prometeu. São Paulo: Martin


Claret, 2001.

STEVENSON, R. L. O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyder. Rio de


janeiro: Newton Compton Brasil, 1996.

WEBER, M. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na


ciência política. In: _________. Metodologia das Ciências Sociais. 2. ed.
São Paulo: Cortez Editora, 1993, p.107-154, v. 1.

VANDERVEKEN, D. Meaning and Speech Acts (2 tomos). Cambridge:


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______. Success, Satisfaction and Truth in the Logic of Speech Acts and
Formal Semantics. In: DAVIS, S; GILLAN, B. (eds) Semantics A Reader.
Oxford: University Press, 2004.

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições


BIOÉTICA: genealogia e definições

OBJETIVO DESTA UNIDADE:

Identificar os eventos que originaram a Bioética e as


formações conceituais iniciais desse movimento.

As bases históricas da Bioética

Bioética não aparece como uma forma unívoca ou


homogênea para pensar os desafios da prática
científica. Antes, faz parte do espírito de uma época
(cujo ápice é a década de 1970) orientado pelo
holismo responsável e crítico.

Nesse espírito, a questão da manipulação


da vida passa a ser contemplada a partir de
variados ângulos: bio-técnico-científico, Unidade

1
político, econômico, social, jurídico, moral,
multidisciplinar, multicultural, humano, crítico
e, sobretudo, competente (não panfletário).

O Brasil também tem participado dessas


discussões. E, tal como as demais nações, aqui
também têm se pactuado critérios e princípios
para nortear as pesquisas envolvendo seres
humanos, embora ainda se aguarde por
decisões políticas mais seguras, como a criação de um conselho nacional
de Bioética, de políticas emancipatórias, da implementação de câmaras
de decisão e controle social da população nos hospitais etc.

Rothman (1991), ao tentar pontuar os eventos mais importantes que


deram origem ao movimento da Bioética, acabou criando uma tendência
entre os estudiosos do assunto. Clotet (2003) segue essa tendência e
enumera um grupo importante de sete classes de mudanças que justificam
o surgimento da Bioética, bem como sua expansão pelo mundo:

Avanços científicos

O progresso das ciências biológicas e biomédicas, segundo Rothman (1991),


altera os processos da Medicina tradicional. Alguns desses eventos são:

• A descoberta da estrutura helicoide do DNA em 1953, por J Watson


e F. Crick, que permitiu, posteriormente, o seu mapeamento e a
associação de diversas qualidades fenotípicas a essa estrutura;

• A construção do primeiro gene por via sintética, em 1970, por H. G.


Khorana, o que abre a possibilidade de manipulação, para os mais
diversos fins, e correção na organização genética de um organismo;

• A prática de reanimação-ressuscitação, a DNR (do-not-resuscitate-


orders) e a CPR (cardiopulmonary resuscitation), cuja questão
central é o poder de decidir reanimar ou desistir de prolongar a vida
por meios artificiais;

• A descoberta da máquina de hemodiálise, em 1961, por Belding


Scribner;

• O primeiro transplante de coração, em 1967, realizado por Christian


Barnard, o que evocou não somente o conceito de morte encefálica
(note-se, o transplante foi realizado antes da definição de morte
encefálica), bem como a possibilidade de realização de transplantes
de órgãos complexos;

• O nascimento do primeiro bebê fecundado in vitro e congelado,


em 1978, no Oldham Public Hospital, Londres, por Robert Edwards e
Patrick Steptoe, entre outras.

22 Curso de Bioética
Estes avanços têm produzido uma alteração na postura dos profissionais das
áreas biomédicas, como também no comportamento do público assistido.

Cidadania militante

A socialização do atendimento médico e a questão da cidadania


ligada diretamente a uma consciência de luta por garantias individuais
têm produzido conquistas e ganhos nas formas da organização e
distribuição dos recursos e benefícios das áreas biomédicas.

O médico deixou de ser um produto privativo das elites e passou a


ser um profissional do Estado. Assim, para Clotet (2003, p.17), a “[...]
imagem do médico que conhecia o paciente e cuidava dele anos a fio,
já não é mais comum. Novos padrões de conduta presidem as relações
e decisões na medicina contemporânea”.

Essas alterações de caráter e na forma de abordar os interesses


individuais e coletivos, especialmente nos países capitalistas centrais,
é produto de muitas lutas sociais e não podem ser ignoradas na
genealogia da Bioética.

Medicalização da vida

Há uma aproximação da sociedade com a prática médica. Ou melhor,


uma justaposição entre vida, morte e Medicina, de modo que, como
expôs Clotet (2003, p.17), “[...] existem especialidades médicas para
as diversas etapas da vida: neonatologia, pediatria, clínica médica,
obstetrícia, geriatria”, entre outras.

Se antes a vida social tinha outros centros de referência, como por


exemplo, o domicílio ou a igreja (pois as pessoas nasciam em casa e
ali eram tratadas quando adoeciam, bem como morriam em casa,
geralmente assistidas por um sacerdote e cercada de parentes e
amigos), ela foi transferida para o hospital, sob a tutela médica (hoje, a
maioria das pessoas nascem, são cuidadas quando adoecem e morrem
nos hospitais. Essa morte geralmente é afastada da família e amigos e
cuidada por desconhecidos).

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 23


A aproximação entre as ciências biomédicas e a vida social cria alguns
problemas (a dependência médica, a manipulação da consciência
pela indústria farmacêutica, a expropriação da saúde pela empresa
médica, a prática da eutanásia, distanásia, mistanásia, ortotanásia
– falaremos sobre esses conceitos na terceira unidade) e exige a
definição de prioridades para que as conquistas dessas ciências sejam
universalizadas, acessíveis e, principalmente, na ótica mais social,
disponibilizadas ao público carente.

Emancipação do paciente

Embora o médico ainda possa ser chamado de “déspota benigno”,


conforme propõe Lockwood (apud CLOTET, 2003, p.18), no sentido
de que “[...] nem sempre é dada ao paciente a informação necessária
relativa ao diagnóstico e prognóstico da doença, nem solicitado o seu
consentimento para o processo terapêutico”, há avanços considerados
na conscientização da relação médico-paciente. Na opinião de Clotet
(idem) isto é uma repercussão da “[...] ênfase social e política pelo
reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas”.

Entre esses direitos fundamentais, Clotet (2003, p.15) ressalta a


importância da vida e da saúde, “[...] cuja posse e distribuição
determinam o grau de desenvolvimento e qualidade de uma sociedade
e da eficiência de um governo”.

Podem ter contribuído para isso as denúncias de Henry K. Beecher,


em 1966, contra 22 pesquisas nos EUA, em que seres humanos eram
tratados à moda nazista; mesmo depois das edições do Código de
Nuremberg, em 1947, e da Declaração de Helsinque, em 1964. Desse
modo, práticas, posturas e procedimentos das áreas biomédicas,
embora clássicas, são questionadas e julgadas abertamente, ao passo
que são substituídas por alternativas mais humanistas.

Código de Nuremberg, é um documento, com 10 tópicos, retirado


após o Tribunal Internacional de Nuremberg, em 1947, que, ao
julgar os crimes nazistas, decidiu que não seriam mais toleradas

24 Curso de Bioética
as práticas médicas e científicas com seres humanos, que não
respeitassem a dignidade do ser humano e o poder de consentir
sua livre participação ou submissão a pesquisas e procedimentos
clínicos. Você pode acessar esse código, na íntegra e em português
no sítio http://www.bioetica.ufrgs.br/nuremcod.htm (acessado em
14/06/2012).

Declaração de Helsinque, ou Declaração de Helsinki, é um


documento da Associação Médica Mundial, elaborado inicialmente
em 1964, mas já revisado diversas vezes e motivo de discórdia
entre vários países, especialmente aqueles que são polos da
indústria farmacêutica. Esse documento resguarda os princípios
do Código de Nuremberg e assegura obrigações de reparação a
danos causados em virtude de pesquisas ou procedimentos aos
sujeitos da pesquisa, bem como o acesso aos resultados e produtos
por parte da população. Você pode acessar esse documento, na
íntegra e em português no sítio http://www.bioetica.ufrgs.br/
helsin1.htm (acessado em 14/06/2012).

Isso tudo cria uma nova linguagem, incluindo termos como: É muito importante notar que
emancipação e autonomia não
consentimento informado (que após a Resolução 196/96 do CNS/MS são sinônimos. A autonomia
diz respeito à capacidade de
mudou para Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), princípios de um indivíduo ser reconhecido
independência, emancipação e autonomia do paciente, entre outros. como capaz de tomar
certas decisões, o que será
sempre condicionado ao seu
repertório de possibilidades
efetivas para agir ou deixar de
Comitês de Ética em Pesquisa agir. A emancipação, por sua
vez, é a condição indispensável
para que um sujeito possa
ser considerado autônomo.
Ela é a ampliação dos seus
A criação e funcionamento dos CEH (Comitês de Ética Hospitalar), dos repertórios.
CBHs (Comitês de Bioética Hospitalar) e dos CEPs (Comitês de Ética em
Pesquisa) são também diferenciais genealógicos de Bioética.

Segundo Clotet (2003, p.18), tais comitês foram criados em um espírito


de proteção e orientação das pesquisas envolvendo seres humanos,
e não para funcionarem como empecilhos ao desenvolvimento da
pesquisa científica das áreas biomédicas. Por isso, a “[...] função
primária desses organismos não é decidir nem policiar, mas proteger
e orientar”, de onde se exige a participação da sociedade na formação
desses comitês.

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 25


Justamente por essa ampla participação, bem como pela representação
de usuários, tais comitês diferem dos comitês e tribunais de ética
tradicionais, cuja composição dominante, quando não exclusivamente,
é escolhida entre os pares. Os comitês de ética têm uma forte
aproximação com o “princípio da alteridade” de Emanuel Levinás, de
onde se oriunda a clara exigência da participação do usuário para a sua
formação.

A primeira manifestação oficial brasileira data de 1988, quando


foi promulgada pelo Conselho Nacional de Saúde a Resolução
01/88, ficando praticamente inoperante até a sua substituição
pela Resolução 196/96, do mesmo conselho. Dessa resolução em
diante, Bioética despontou em todo o território nacional como um
verdadeiro movimento social, abrangendo tanto as instituições
públicas e privadas, quanto os indivíduos.

Ganham destaque nesse movimento, os Comitês de Ética em


Pesquisa, os Comitês de Bioética, os Comitês de Ética Hospitalar,
além dos Comitês de Bioética ligados a laboratórios, empresas,
conselhos profissionais e associações, bem como a implementação
de disciplinas e cursos de Bioética para a população.

Os Comitês de Ética em Pesquisa estão ligados em rede dentro


do sistema CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). As
informações sobre composição e funcionamento desses comitês
podem ser encontradas no sítio oficial da CONEP: http://conselho.
saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html (acessado em
14/06/2012).

Necessidade de um paradigma moral

A necessidade de um paradigma moral que possa ser compartilhado por


pessoas de moralidades diferentes é outra base genealógica sobre a
qual Clotet (2003, p.19) funda a Bioética. Para ele, existe uma exigência
mundial de se encontrar “[...] alguns princípios comuns para que se
resolvam problemas também comuns, decorrentes do progresso das
ciências biomédicas e da tecnologia científica aplicada à saúde”.

26 Curso de Bioética
Essa base comum não pode ser como na ética tradicional, uma ética
de máximas, do mesmo modo que também não pode ser aos moldes
da ética analítica, que apenas examina os proferimentos morais sem
propor decisões concretas. Por essa razão, e outras, Adela Cortina
propõe uma ética de mínimos.

Cortina (2009) critica os excessos cometidos pela ética analítica, ao


que ela chama de ética sem moral, e defende uma moral de mínimos,
em contrapartida à moral de máximas, como a kantiana. Parte do
procedimentalismo e do discurso da ética, em defesa da racionalidade
no âmbito prático e o caráter universalista e dialógico da ética. Do
mesmo modo, defende que a racionalidade sozinha não fundamenta
a ética. É preciso ter em conta as circunstâncias históricas e culturais
que operam as valorações, bem como lutar por elas. A inserção da
virtude como regra dos princípios seria a solução para não se cair em
um principialismo vazio.

Salvação da Ética

Entende-se a “Salvação da Ética” como o crescente interesse da Ética


para os temas que se referem à vida, à reprodução e à morte do ser
humano.
Você acha que a ética
analítica, de fato, afastou
Para autores como Clotet (2003) e Cortina (2009), a ética analítica teria a ética filosófica da moral?
Que a única preocupação da
afastado a ética filosófica da moral e, consequentemente, deixado ética analítica seja, de fato, a
resolução de problemas da
de se preocupar com problemas concretos para se preocupar apenas linguagem moral?

com problemas de linguagem. Cortina (2009), a esse respeito, frisa,


sobretudo, a salvação da Ética filosófica e da Ética teológica, uma vez
que está bastante influenciado pela obra de Walters, que relaciona
Teologia e Bioética sob um paradigma cristão-católico. Esse tópico
realça uma dupla importância no universo das teorias: o da Ética sobre
as práticas médicas e o das práticas médicas sobre a Ética.

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 27


As bases conceituais da Bioética

Apesar de a origem do termo nos remeter ao trabalho de Fritz Jahr,


ainda no início do século XX, as definições mais utilizadas de Bioética
foram, certamente, as elaboradas por Van Rensselaer Potter, Warren T.
Reich e David Roy. Isso porque, quando foi fundado, em 1971, o Instituto
Kennedy de Ética na Universidade de Georgetown pelo neonatologista
André Hellegers, como o primeiro Centro Nacional para a Literatura
de Bioética e primeiro programa de pós-graduação em Bioética do
mundo, estava-se assumindo uma tradição discursiva que ditaria as
regras conceituais do termo.

Justamente por isso, tem sido bastante difícil para qualquer outra
concepção de Bioética manter-se, a não ser como uma vertente
revisionista ou apócrifa dessa tradição. Mesmo os países em que as
experiências de pesquisa e atentado à dignidade humana ou convivência
ambiental são totalmente distintas das que deram suporte às reflexões
dessa tradição são obrigados a se colocarem à sua disposição.

Definição de Fritz Jahr

Fritz Jahr apresentou em um artigo da revista Kosmos, em 1927, a


proposta de um termo, Bio Ethik, como a necessidade emergente de
obrigações éticas não apenas com o homem, mas com todos os seres
vivos.
É a postura filosófica,
teológica e moral que elege
as qualidades de uma espécie De cunho religioso-franciscano e evidentemente não-especista, a
(geralmente a espécie
humana) como critério para proposta de uma atenção indiferenciada à vida reaparecerá entre
julgar as demais espécies. O
especismo tem como principal bioeticistas católicos (como Leonardo Boff), com um antiespecismo
oponente o antiespecismo,
mas também existe o moderado, e ateus (como Peter Singer), com um antiespecismo radical,
especismo moderado e o não-
especismo. dando forte respaldo às reflexões antiespecistas de Jahr.

O termo proposto por Jahr (1927) seria a reunião da palavra Bio + Ethik,
oriundas do alemão e se refere não a um conceito, no sentido clássico,
mas a um imperativo, o que ele chamou de imperativo Bioético, sob a
forma: “Respeita cada ser vivo em princípio como uma finalidade em si
e trata-o como tal na medida do possível” (JAHR, 1927, p.2).

28 Curso de Bioética
Nesse sentido, não só a ideia de Bioética como uma ética antiespecista,
mas igualmente como ética deontológica, ou seja, baseada no princípio
das ações, são, portanto, credoras da elaboração de Jahr.

Definições de Van Rensselaer Potter

A primeira das definições de Van Rensselaer Potter é considerada


por muitos autores como a própria inauguração da Bioética. Essa
definição procura combinar os conhecimentos das ciências da vida
(representados pela Biologia) com os conhecimentos humanísticos.

Na intenção de Potter, Bioética não seria apenas uma reflexão social


ou uma crítica literária, mas uma ciência. Ciência essa preocupada com
prioridades profissionais e ambientais para o que ele chamou de uma
sobrevivência aceitável.

A sua primeira definição apareceu em 1970, por ocasião da publicação de


um artigo intitulado Bioethics: the Science of Survive, quando escreveu:

Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar


os dois componentes mais importantes para se atingir
uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente
necessária: o conhecimento biológico e valores
humanos (POTTER, 1970, p.128).

Contudo, o conceito que passou para a história, como o conceito de


Bioética potteriano, foi aquele publicado em 1971, por ocasião do
lançamento de seu livro: Bioethics: the Bridge to the Future.

A Bioética é a combinação da biologia com


conhecimentos humanísticos diversos constituindo
uma ciência que estabelece um sistema de prioridades
médicas e ambientais para a sobrevivência aceitável
(POTTER, 1971, p.2).

Essa definição estaria sob a tutela da ética, como mais adiante ele
coloca, e se deteria sobre temas ligados às ciências da vida. Assim,
Bioética é também “[…] o ramo da ética que enfoca questões relativas
à vida e à morte, propondo discussões sobre alguns temas, entre os
quais prolongamento da vida, morrer com dignidade, eutanásia e
suicídio assistido (POTTER, 1971, p.117).

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 29


Esse conceito, revisto e reafirmado pelo próprio Potter, em 1988, em
seu livro Global Bioethics. Building on the Leopold Legacy, consolidou-
se como a definição de Bioética mais usada pelos potteristas. Uma
contribuição importante para essa difusão foi dada por André Hellegers,
quando passou a utilizá-lo e divulgá-lo de modo institucional, “[...] para
significar o novo campo de pesquisa biomédica” (CLOTET, 2003, p.33),
com a criação, em 1971, do The Joseph and Rose Kennedy Institute for
the Study of Human Reproduction and Bioethics, e, posteriormente, o
Kennedy Institute of Ethics.

Percebe-se, portanto, que as definições de Potter, com o suporte e


a orientação dados por Hellegers, apresentam Bioética como algo
diferente da orientação deontológica de Jahr (1927). Não se trata
de uma verificação dos princípios de ação, mas das escolhas que
fazemos para tornar o futuro suportável ou não, o que significa que
suas definições coadunam com as éticas consequencialistas, para as
quais são as consequências das ações ou de princípios, o que deve ser
especialmente observado nas escolhas morais.

Igualmente se percebe certa tendência de superação do especismo


potteriano. Se, inicialmente, a concepção de Bioética dele o aproxima
da defesa de uma sobrevivência humana, como aparece em 1970, isso
é revisado até o ponto de ceder às intenções não-especistas, com a
assunção de uma Bioética global, em 1988. Com essa noção de Bioética
global, que considera tanto o ser humano como um todo quanto todas
as espécies de vida deste planeta, Potter (1988) se afasta bastante
do que propôs em 1970, quando a preocupação era apenas com a
sobrevivência humana. Digamos, contudo, que ele não assume uma
postura antiespecista, mas apenas a de um não-especismo, uma vez
que ainda continua antropocêntrico. O que ele faz, é apenas reconhecer
que essa sobrevivência humana não depende exclusivamente dele,
mas também da sobrevivência de outras espécies.

Definições de Warren T. Reich

A primeira definição elaborada por Warren T. Reich, membro do


Kennedy Institute of Ethics, em 1978, é menos ousada que as de Potter
(1970; 1971), haja visto que Reich (1978) não advoga um estatuto

30 Curso de Bioética
científico para Bioética, se contentando em apresentá-la como um
estudo sistemático. No entanto ele procura explicitar o caráter moral
desse estudo, acrescentando-lhe o atributivo variedade metodológica.
Ainda não fala de interdisciplinaridade como inerente a Bioética,
mas apresenta-a como um cenário no qual esse estudo deverá se
desenvolver. Intuitivamente Reich (1978) diferencia ética de moral e as
reúne em Bioética. Essa definição apareceu na Encyclopedia of Bioethics,
nos seguintes termos: "Bioética é o estudo sistemático da conduta
humana, no âmbito das ciências da vida e da saúde, examinada à luz
de valores e de princípios éticos" (REICH, 1978, p.116), que depois foi
revisada, em um artigo de 1995, ‘The word bioethics: the struggle over
its earlier meaning, para uma definição mais definitiva e usual entre os
pesquisadores, compilada, inclusive na edição de 1995, da Enciclopédia
de Bioética:

Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais


– incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas
– das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando
uma variedade de metodologias éticas em um cenário
interdisciplinar. âmbito das ciências da vida e da saúde,
examinada à luz de valores e de princípios éticos
(REICH, 1995, p.XXI).

Evidentemente especista, ou, no mínimo, de um antropocentrismo


radical, as definições de Reich (1978, 1995) estão mais preocupadas
com a eliminação do caráter epistemológico presente em Potter (1970;
1971), ou seja, com a natureza de Bioética. A eliminação do caráter
epistemológico (e sua substituição por uma reflexão mais aberta) é
apenas uma face do imperativo político com o qual Reich (1978, 1995)
se depara: a vida acadêmica. Essa vida acadêmica está centrada nas
subjetividades (ou nos egos) com os quais os moralistas se deparam, o
que exige que seus discursos sejam direcionados para as suas condutas,
fazendo dessa concepção de Bioética uma aproximação com a ética
das virtudes, pois o foco é o caráter moral dos agentes.

Outra aproximação da vida acadêmica é a exigência da elaboração de


certas sínteses intelectuais – uma influência kantiana nas universidades,
certamente, o que descamba para a visão enciclopedista. No entanto,

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 31


uma definição enciclopédica não satisfaz a totalidade dos pesquisadores,
em especial, porque novas questões e novos paradigmas aparecem
constantemente, desafiando as sínteses recém acabadas. Dentre os
novos desafios impostos à Enciclopédia estão aqueles abertos com a
pós-modernidade, ou a revisão das éticas especistas.

Definições de David Roy

A definição elaborada por David Roy, na verdade, faz parte de uma


tradição católica canadense de Bioética, revisionista da tradição
americana, que envolve também nomes como Engelhardt (1991) e
Durant (1995).

Tal tradição, próxima da visão enciclopedista, também não tem a


pretensão de apresentar Bioética como uma ciência, mas como um
estudo interdisciplinar, do mesmo modo que se mantém no horizonte
da ética das virtudes, porque foca no caráter dos agentes.

No entanto, diferente da visão de Reich (1978, 1995), ela acrescenta duas


propriedades essenciais à Bioética: a qualidade da interdisciplinaridade como
inerente à Bioética, o que não apareceu em Reich (1978, 1995), mas estava
presente em Potter (1970; 1971), e o termo responsável: a administração
deve ser responsável, que vai aparecer na definição de 1988 de Potter.

A máxima dessa tradição é que Bioética deve facilitar um consenso


responsável tornando a sobrevivência aceitável. Ou seja, mantém um
foco evidente no caráter dos agentes, mas assume perspectivas con-
sequencialistas. No entanto seu consequencialismo é assumidamente
especista, uma vez que, como Roy (1979) defendeu, Bioética deve es-
tudar exatamente as condições exigidas para a administração da vida
humana. E por vida humana se compreende tanto o seu aspecto geral
(a vida humana) quanto o seu aspecto particular (a pessoa humana).
Ou seja, o que é importante nas elaborações de Bioética é a vida de
uma determinada espécie.

Na definição de Roy (1979), esse especismo é justificado graças à


preocupação com um rápido e complexo progresso do saber das
tecnologias biomédicas. Assim ficou a sua definição:

32 Curso de Bioética
A Bioética é o estudo interdisciplinar do conjunto
das condições exigidas para uma administração
responsável da vida humana, ou da pessoa humana,
tendo em vista os progressos rápidos e complexos do
saber e das tecnologias biomédicas (ROY, 1979, p.60).

A essa justificação Engelhardt (1991, p.19) acrescentou que Bioética


“[...] funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento
para a negociação pacífica das instituições morais”, ao que Durant
(1995, p. 22) chamou de “[...] pesquisa de soluções para os conflitos de
valores no mundo da intervenção biomédica”. Ou seja, Bioética aparece
como uma mediação de conflitos preocupada com a sobrevivência da
espécie humana, o que é diferente de ser militante ou partidária do
antiprogresso científico.

Dessas definições saíram praticamente todas as tradições de Bioética


com a qual convivemos hoje, desde aquelas mais analíticas às mais
moralistas ou religiosas, cujo resultado significa que quando usamos
o termo Bioética, não estamos pronunciando um termo unívoco. São
muitas as tendências contemporâneas para essa área de reflexão.
No entanto elas têm em comum algumas áreas de atuação, mais
conhecidas como tópicos de abrangência, dentre os quais destacamos:

• Experiências com células-tronco;

• Clonagem;

• Transplante;

• Aborto;

• Eutanásia;

• Mistanásia;

• Ortotanásia;

• Alimentos transgênicos;

• Reprodução Humana Assistida;

• Responsabilidade científica;

• Consentimento;

• Justiça;

• Autonomia;

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 33


• Paternidade;

• Tecnologias Medicamentosas;

• Armas químicas;

• Vírus artificiais;

• Direitos dos animais;

• Patente sobre material biológico, etc

Essas áreas demandam, cada qual ao seu modo, diversos problemas


que são abordados sob as diversas valorações, que chamamos de
paradigmas ou enfoques de Bioética, cujo assunto será tratado na
unidade a seguir.

Considerações sobre o conteúdo da unidade

Embora a maioria dos historiadores e escritores sobre Bioética


remetam a sua origem à década de 1970, nos Estados Unidos, com
Potter, a pesquisa sobre sua genealogia nos apresenta Bioética como
um movimento mais amplo e de origens mais tardias.

Não se trata apenas de dizer que o termo foi forjado em 1927, por
Jahr, muito antes de Potter, em 1970, e que ali já se encontravam as
bases do que a reflexão posterior viria assumir ou negar em termos
de objetos de análises bioeticistas. Mais do que isso, Bioética se
mostrou ser um movimento que começou, paulatinamente, com o
eclodir das ciências ocidentais nos séculos XIX e XX. Ela é a outra face
desses desenvolvimentos. E não começou de uma forma pura, mas
presente em meio a obras literárias, como as de Stevenson e Shelley, e
filosóficas, como as reflexões de Rousseau, Nietzsche, Weber e Marx
sobre as ideologias científicas.

Antes de Bioética ganhar um nome, ela já estava presente e se


solidificando, como uma preocupação com as consequências que um
modelo desenfreado de ciência poderia trazer para os organismos

34 Curso de Bioética
vivos, especialmente os humanos. Ela se projetava entre a classe
intelectual que via, nesse modelo de desenvolvimento científico, um
risco potencialmente danoso e que deveria ser controlado.

Ela germina, portanto, no âmbito das preocupações éticas e científicas,


mas eclode como uma necessidade social especialmente após os
eventos ocorridos nos campos de concentração nazistas, poloneses e
americanos. Do mesmo modo, se mantém como necessidade porque
suspeitam-se, com sérias evidências, que as práticas que sustentaram
as ciências naqueles experimentos não desapareceram do mundo. Elas
são, ainda, uma realidade em muitos países, e não somente em países
distantes e empobrecidos.

Além disso, novas questões surgem. Questões para as quais as


regulamentações de condutas atuais, éticas, religiosas e jurídicas
podem não ter respostas. Surgem em velocidade e complexidade
que nos desafiam a pensá-las, renovadamente, em novos e múltiplos
paradigmas. E, mesmo assim, pode ser que não encontremos respostas
a todos os seus desafios.

Bioética é, talvez, o tipo de desafio às regulamentações de conduta


que mais traz perguntas que respostas. A propriedade dialogal,
multidisciplinar, não é apenas uma ferramenta metodológica dessas
narrativas, mas uma necessidade epistemológica, sem a qual nenhuma
competência cognitiva isolada (a religião sozinha, a ética sozinha, o
direito sozinho) dará conta.

RESUMO

É importante não esquecer que Bioética não é um movimento


homogêneo, mas diversificado e legitimamente divergente. Sua origem
se liga, especialmente, às preocupações com as consequências e os
modelos de desenvolvimentos técnico-científicos contemporâneos
que manipulam organismos vivos ou interferem na sua forma de
organização.

Unidade 1 | Bioética: genealogia e definições 35


Essa preocupação é legitimada pela exposição de experimentos
científicos que foram realizados e causaram muito mal aos seus
participantes, apesar das conquistas para a humanidade decorrente
deles, como aqueles feitos pelos nazistas e que foram denunciados no
Tribunal de Nuremberg. Mas também pela medicalização da vida e sua
consequente expansão do poder médico sobre a população.

Também é importante notar que Bioética não é um movimento de


mão única. Ele envolve diversos sujeitos, individuais e coletivos, e
reúne conquistas (e perdas) de muitas lutas sociais em favor de maior
controle social das pesquisas, mais acesso aos seus resultados e,
principalmente, mais assistência com qualidade à saúde e necessidades
sociais das populações mais carentes.

Além disso, há também aqueles que defendem a importância de


defender a vida do planeta, incluindo nisso a defesa da espécie
humana ou não. É a polêmica em torno da questão do especismo, que
trataremos mais a fundo em outra unidade.

Bioética não tem uma única definição, mas várias, desde as mais
desesperadoras àquelas que acreditam que Bioética é a salvação
da ética. Em meio a esses extremos, muitas outras operam com a
multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade e
convidam a todas as áreas a pensar as questões Bioéticas porque é um
saber necessário, mas inacabado.

Quais são os diversos contextos que originaram Bioética?

Qual é a condição de possibilidade para que a questão


de fundo de todas as propostas de Bioética passem pela
análise do argumento que coloca em pauta a preocupação
ou não com o futuro do planeta e das espécies atuais,
especialmente a humana?

36 Curso de Bioética
Apesar de a origem do termo Bioética nos remeter ao
trabalho de Fritz Jahr, ainda no início do século XX, as
definições mais utilizadas de Bioética foram, certamente,
as elaboradas por Van Rensselaer Potter, Warren T. Reich
e David Roy. Isso porque, quando foi fundado em 1971 o
Instituto Kennedy de Ética na Universidade de Georgetown
pelo neonatologista André Hellegers, como o primeiro
Centro Nacional para a Literatura de Bioética e primeiro
programa de pós-graduação em Bioética do mundo, estava-
se assumindo uma tradição discursiva que ditaria as regras
conceituais do termo. Quais são essas definições?

4 Qual a diferença principal entre as concepções de Fritz


Jahr, Van Rensselaer Potter, Warren T. Reich e David Roy?

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38 Curso de Bioética

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