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Márcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini1, Angélica Ferreira Fonseca2, Luciana Dias de Lima3
ABSTRACT The article discusses the meanings and implications of the changes introduced by the
National Policy of Primary Healthcare 2017, which promote the relativization of universal cover-
age, the segmentation of access, the recomposition of the teams, the reorganization of the work
process and the weakening of the national policy coordination. It is argued that its review indi-
cates serious risks to the achievements obtained with the strengthening of the Primary Health
1Fundação Oswaldo Care in Brazil. In the current conjuncture of strengthening neoliberal ideology, these changes
Cruz (Fiocruz), Escola reinforce the subtraction of rights and the process of deconstruction of the Unified Health System
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV) in progress in the Country.
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
mvgcmorosini@gmail.com
KEYWORDS Primary Health Care. Family health. Public policy. Health policy.
2 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV)
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
afonseca@fiocruz.br
DOI: 10.1590/0103-1104201811601 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. 116, P. 11-24, JAN-MAR 2018
12 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD
Básica (Siab), também em 1998, substituindo o das unidades, por meio de um projeto espe-
Sistema de Informação do Programa de Agente cífico, o Requalifica SUS, lançado em 2011.
Comunitário de Saúde (Sipacs). Também em 2011, foi instituído o
Ainda visando à reorientação do modelo Programa Nacional de Melhoria do Acesso
de atenção, foi criado, em 2002, o Projeto e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-
de Expansão e Consolidação do Saúde da AB), que incorporou elementos da AMQ e
Família (Proesf ), voltado para os municí- ampliou as vertentes de avaliação, tendo
pios com mais de 100 mil habitantes, expli- como finalidade a certificação das EqSF.
citando a compreensão da saúde da família Esse Programa permitiu vincular formas
como uma estratégia viável não apenas nas de transferência de recursos do PAB variá-
pequenas cidades e no meio rural, onde se vel aos resultados provenientes da avalia-
implantou originalmente. No âmbito do ção, constituindo-se em um mecanismo de
Proesf, foi criada, em 2005, a Avaliação indução de novas práticas9.
para a Melhoria da Qualidade (AMQ), que Em termos de cobertura, dados dispo-
instituiu uma metodologia de avaliação em nibilizados pelo Ministério da Saúde (MS)
diversos níveis: gestores, coordenadores, indicam que a ESF alcançava 58% da popu-
unidades de saúde e Equipes da Saúde da lação, em outubro de 2017, e sabe-se que essa
Família (EqSF), com o propósito de qualifi- cobertura chegou a atingir 100% em alguns
cação da AB por meio da avaliação9. municípios. Tudo isso mediante novos servi-
A agenda política de fortalecimento da ços, modalidades e arranjos de equipes mul-
APS por meio da ESF consolidou-se grada- tiprofissionais, com destaque para as equipes
tivamente e, em 2006, tornou-se uma das ampliadas pela saúde bucal e pelos Núcleos
dimensões prioritárias do Pacto pela Vida10. de Apoio à Saúde da Família (Nasf ). Mesmo
Naquele mesmo ano, foi publicada a PNAB1, reconhecendo a persistência de problemas
revisada em 20112, buscando preservar a no acesso, na qualidade e na continuidade da
centralidade da ESF para consolidar uma atenção, diversos estudos sugerem avanços
APS forte, ou seja, capaz de estender a cober- decorrentes das políticas de APS na redução
tura, prover cuidados integrais e desenvolver de internações evitáveis e dos gastos hospi-
a promoção da saúde, configurando-se como talares12, e para a melhoria das condições de
porta de entrada principal do usuário no vida e saúde da população brasileira13,14.
SUS e eixo de coordenação do cuidado e de
ordenação da Rede de Atenção à Saúde (RAS).
Esse processo envolveu um amplo escopo de Notas sobre a conjuntura e
ações, mobilizando instituições e sujeitos o texto da Política Nacional
sociais para responder aos desafios colocados
para a formação de trabalhadores, a organi-
de Atenção Básica 2017
zação do processo de trabalho, as interações
com a comunidade, a compreensão do territó- Presenciou-se, recentemente, a reorganiza-
rio e as relações entre os entes federados. ção das forças políticas conservadoras no
Segundo Magalhães Júnior e Pinto11, há, Brasil, o que resultou no impedimento de
pelo menos, dois indicadores importantes da Dilma Rousseff e na condução do seu vice
centralidade dada à PNAB no âmbito federal Michel Temer à Presidência. Ao mesmo
das políticas de saúde. São eles: o aumento tempo, observa-se o rápido fortalecimento
superior a 100% dos recursos repassados de uma pauta antidemocrática e autoritária,
aos municípios para o financiamento da AB, orientada para o aprofundamento da mer-
entre 2010 e 2014; e a aplicação de recursos cantilização dos direitos sociais brasileiros.
para a qualificação e a ampliação da estrutura Seguiu-se a aprovação de medidas ditas
‘racionalizantes’, sob a justificativa da ne- forças muito desfavorável aos que defen-
cessidade de enfrentar o desequilíbrio fiscal, dem a saúde como um direito universal17.
atribuído ao descontrole das contas públicas Desde então, as notícias sobre a revisão da
decorrentes de ‘políticas paternalistas’, que PNAB foram se intensificando, mas sua produ-
teriam agravado a crise econômica. A orienta- ção foi pouco divulgada oficialmente e sua dis-
ção é modificar a destinação dos recursos do cussão manteve-se em espaços restritos, como
fundo público, limitando as políticas sociais, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e
promovendo a redução da dimensão pública as reuniões entre os técnicos do MS. Em 27
do Estado e ampliando a participação do setor de julho de 2017, o texto preliminar foi apre-
privado. Do mesmo modo, opera-se uma ofen- sentado na CIT e encaminhado para consulta
siva contra a classe trabalhadora, atingindo pública por dez dias. Apesar do curto prazo, a
conquistas fundamentais, como os direitos consulta recebeu mais de 6 mil contribuições,
trabalhistas e previdenciários. Trata-se de um sem que tenham gerado, entretanto, mudanças
conjunto de reformas supressoras de direitos expressivas no texto original ou tenham sido
sociais, em uma represália sem proporções divulgados os seus resultados. A nova PNAB
ainda calculadas, do capital contra o trabalho. foi aprovada em 30 de agosto de 2017, pouco
Entre as alterações legislativas que viabi- mais de um mês após tornar-se oficialmente
lizam esse processo, destaca-se a promulga- pública. Uma característica marcante do texto
ção da Emenda Constitucional nº 95/2016, da nova PNAB3 é a explicitação de alternativas
conhecida como a emenda do ‘Teto dos para a configuração e implementação da AB,
Gastos’, que congela por 20 anos a destina- traduzindo-se em uma pretensa flexibilidade,
ção de recursos públicos e produz efeitos nas sustentada pelo argumento da necessidade de
diversas políticas, especificamente no finan- atender especificidades locorregionais.
ciamento do SUS. Supostamente, amplia-se a liberdade de
Essas medidas incidem sobre uma relação escolha dos gestores do SUS, o que poderia
frágil entre o SUS e a sociedade brasileira, ser visto como positivo por responder às
e caminham em paralelo ao fortalecimento demandas de um processo de descentraliza-
ideológico do setor privado como alterna- ção mais efetivo. Entretanto, esse processo
tiva de qualidade para o atendimento das só se completaria com a transferência de
necessidades de saúde. Conforma-se, assim, recursos necessários à autonomia de gestão
o terreno propício para dar prosseguimento pelos municípios, e com os mecanismos de
à desconstrução do SUS, cujo financiamento controle social e participação popular. A pre-
jamais alcançou um patamar de suficiência e sente análise não valida o raciocínio otimis-
estabilidade, ao passo que as empresas priva- ta, justamente porque é fruto de uma leitura
das de planos de saúde sempre foram objeto informada pela atual conjuntura, que indica
de fortalecimento, por meio da destinação de limites rigorosos, a partir dos quais essa polí-
incentivos financeiros contínuos15. tica e suas possibilidades se realizarão.
Nessa conjuntura, as tendências que Pode-se dizer que o discurso da PNAB
orientavam a revisão da PNAB 2011 já se constrói de modo ambivalente, incorpo-
vinham sendo anunciadas, pelo menos, rando verbos como sugerir e recomendar,
desde outubro de 2016, quando foi reali- que retiram o caráter indutor e propositivo
zado o VII Fórum Nacional de Gestão da da política e expressam a desconstrução de
Atenção Básica, cujos indicativos para tal um compromisso com a expansão da saúde
revisão foram publicados em um docu- da família e do sistema público. Entende-se,
mento-síntese16. Ali, já se apresentava uma ainda, que essa estrutura de texto tem o pro-
perspectiva regressiva, especialmente pre- pósito de blindá-lo à crítica, tornando suas
ocupante, considerando-se a correlação de proposições de mais fácil assimilação, afinal,
a partir do que está escrito, diversas opções máximo de moradores vinculados a cada
seriam possíveis. Esta ambivalência é um equipe, evidenciando a preocupação com as
recurso que permite omitir escolhas prévias condições que poderiam diretamente afetar
(ideológicas), que parecem determinar o pro- a qualidade da atenção.
cesso de revisão da PNAB no momento político No texto da PNAB 2017, anterior à con-
atual. Tais escolhas remetem a uma concepção sulta pública, não há nenhuma referência à
de Estado afinada com a racionalidade neo- cobertura universal. A referência a 100% de
liberal, que aponta para o sentido inverso a cobertura é retomada no texto publicado,
uma maior presença do Estado, requerida para porém restrita a certas áreas:
a continuidade do SUS como projeto e da AB
como estratégia principal para a garantia da Em áreas de risco e vulnerabilidade social, in-
saúde como direito universal. cluindo de grande dispersão territorial, o nú-
Feitas essas considerações mais gerais, mero de ACS deve ser suficiente para cobrir
apresenta-se a discussão de elementos es- 100% da população, com um máximo de 750
pecíficos presentes na nova PNAB, inventa- pessoas por agente, considerando critérios
riando os riscos potenciais detectados para o epidemiológicos e socioeconômicos3(71).
SUS e seus princípios.
A flexibilização da cobertura populacional
está relacionada também aos parâmetros da
Relativização da cobertura relação equipe/população apresentados no
item ‘Funcionamento’. Ali se lê que a popula-
Como ressaltado, a universalidade é um ção adscrita recomendada por equipe de AB e
princípio estruturante da atenção à saúde EqSF é de 2 mil a 3,5 mil pessoas. Entretanto,
no âmbito do SUS, que, aliada à integrali- neste mesmo item, de acordo com as espe-
dade, tem distinguido a PNAB de confor- cificidades do território, prevê-se também
mações simplificadas e focalizantes de APS. a possibilidade de “outros arranjos de ads-
Baseadas nesses princípios, as PNAB 2006 e crição”3(70), com parâmetros populacionais
2011 vinham projetando a expansão da ESF, diferentes, que podem ter alcance “maior ou
nas duas últimas décadas. Considerando menor do que o parâmetro recomendado”
este movimento, o tema da cobertura da AB 3(70). A decisão a esse respeito fica a cargo do
produz adesão ao setor privado por exclusão Art. 4º – A PNAB tem na saúde da família
do setor público. Entretanto, não é óbvio com- sua estratégia prioritária para expansão e
preender que a exclusão do setor público deve consolidação da Atenção Básica. Contudo,
ser ativamente produzida e se faz por meio da reconhece outras estratégias de organização
restrição ao acesso, associada à baixa qualidade da Atenção Básica nos territórios, que devem
dos serviços. É esta combinação que acarreta a seguir os princípios, fundamentos e diretrizes
evasão de parte das classes populares ou a não da Atenção Básica e do SUS descritos nesta
adesão da classe média ao SUS. portaria, configurando um processo progres-
Compreende-se que estão em curso três sivo e singular que considera e inclui as es-
eixos de ação: a) definir padrões mínimos pecificidades locorregionais, ressaltando a
e ampliados para a AB; b) estabelecer uma dinamicidade do território3(68).
“regulação que permita menos cobertura
e menos custo”20; e c) colocar no mercado Essa ambiguidade torna-se mais visível
planos baseados na oferta de um rol mínimo quando se analisam, em conjunto, certos
do mínimo20,21 de serviços. Articuladas, elementos dessa política. Destacam-se, prin-
estas ações integram um processo que, pela cipalmente, alterações nas regras de compo-
exclusão do SUS, pode gerar clientela para sição profissional e de distribuição da carga
os planos privados e viabilizar planos inca- horária dos trabalhadores nas equipes de AB.
pazes de atender às necessidades de saúde. A presença dos ACS não é requerida na
Neste cenário, a nova PNAB tende a servir composição mínima das equipes de AB,
como plataforma para o avanço de políticas diferentemente do que acontece na ESF.
que aprofundem tais possibilidades. Considerando as recentes conquistas desses
A naturalização da ingerência do setor trabalhadores, em relação aos vínculos em-
privado no SUS, expressa por pensamentos pregatícios e à definição do piso salarial da
tais como ‘isso já acontece’, contribui para categoria, entende-se que esta é uma pos-
ofuscar o fato de que a AB vinha se consti- sibilidade que desonera financeiramente
tuindo como um contraponto a essa reali- a gestão municipal, tornando-se extrema-
dade. Uma vez sustentado o movimento de mente atraente no contexto de redução de
expansão e qualificação da ESF, a AB ten- recursos já vivenciado, e cujo agravamento
deria a concretizar, a médio e longo prazo, a é previsto.
experiência do acesso à atenção à saúde, efe- A presença desse trabalhador e a conti-
tivamente pública. Esta é a aposta que está nuidade, com regularidade, das ações por
sendo suspensa ou interrompida. ele desempenhadas nunca estiveram tão em
risco. O prejuízo recai principalmente sobre
as ações educativas e de promoção da saúde,
O reposicionamento da pautadas pela concepção da determinação
Estratégia Saúde da Família social do processo saúde-doença e da clínica
ampliada, que configuram bases impor-
e a retomada da Atenção tantes para a reestruturação do modelo de
Básica tradicional atenção à saúde.
Em relação à carga horária, determina-se
Em relação ao papel da ESF, o texto da PNAB o retorno da obrigatoriedade de 40 horas
2017 apresenta uma posição, no mínimo, para todos os profissionais da ESF, inclusi-
ambígua. Ao mesmo tempo em que mantém ve os médicos, cuja carga horária havia sido
a ESF como prioritária no discurso, admite e flexibilizada na PNAB 2011. Esta alteração
incentiva outras estratégias de organização retoma condições estabelecidas desde a
da AB, nos diferentes territórios: implantação do PSF, que são consideradas
positivas para favorecer o vínculo entre relação a esse propósito, criando as condições
profissional e usuário, e potencializar a res- para a expansão da AB tradicional e fortalecen-
ponsabilidade sanitária das equipes e a conti- do o binômio queixa-conduta.
nuidade do cuidado. Entretanto, sabe-se que
a flexibilização da carga horária dos médicos
de 40 para 20 horas buscava equacionar a Integração das atribuições
dificuldade de fixação desse profissional nas ou fusão dos Agentes
equipes, um problema que persiste.
Diferentemente do que é previsto para a
Comunitários de Saúde e
ESF, a carga horária projetada para as equipes dos Agentes de Combate às
de AB (médico, enfermeiro, auxiliar ou Endemias?
técnico de enfermagem) deve atender às se-
guintes orientações: a soma da carga horária, Desde a realização do já mencionado VII
por categoria, deve ser, no mínimo, de 40 Fórum de Gestão da Atenção Básica, em
horas; a carga horária mínima de cada profis- outubro de 2016, pelo MS, com o propósi-
sional deve ser de 10 horas; o número máximo to de produzir subsídios para a revisão da
de profissionais por categoria deve ser três. PNAB, tem circulado a ideia de fundir as atri-
Operacionalmente, são inúmeros os ar- buições dos ACS e dos Agentes de Combate
ranjos possíveis para a composição das às Endemias (ACE), tornando-os um único
equipes de AB. Para fins de ilustração, uma tipo de profissional17.
equipe pode ser composta por três médicos, A PNAB 2017 desenvolve a materializa-
dos quais dois devam ter cargas horárias de ção dessa ideia e afirma que “as atividades
20 horas e um de 10 horas; três enfermeiros, específicas dos agentes de saúde (ACS e
com 40 horas cada; um auxiliar ou técnico de ACE) devem ser integradas”3(73) sob o argu-
enfermagem, com 40 horas; e nenhum ACS. mento da necessidade de união entre a AB
Isto significa que, pelo menos, três fatores e a vigilância em saúde, visando ao sucesso
tornam mais atraente a composição de das ações desenvolvidas nos territórios. Em
equipes no modelo de AB tradicional: contam seguida, define as atribuições que devem ser
com menos profissionais do que a ESF e, comuns a ambos os agentes e as atribuições
portanto, podem ter um custo mais baixo; específicas de cada um.
são mais fáceis de organizar, em função da Nessa distribuição, percebem-se três mo-
flexibilidade da carga horária; e, agora, são vimentos. O primeiro é a inclusão, na lista de
também financeiramente apoiadas. É impor- atribuições comuns aos ACS e aos ACE, das
tante relembrar que a referência de popula- atividades historicamente destinadas aos ACS,
ção coberta também foi flexibilizada. tais como: o desenvolvimento de ações de
Embora essas alterações possam ser lidas promoção da saúde e prevenção de agravos e
como meros instrumentos de gestão, visando riscos; a realização de visitas domiciliares pe-
à redução de custos, cabe questionar, ainda, riódicas para o monitoramento da situação de
os seus possíveis efeitos sobre o modelo de saúde das pessoas; a identificação e o registro
atenção à saúde. Tal formatação de equipes de situações de risco à saúde; e a orientação, a
tende a fortalecer a presença de profissionais informação e a mobilização da comunidade.
cuja formação permanece fortemente orienta- O segundo movimento é a predominância, na
da pelo modelo biomédico, curativo e de con- lista das atribuições específicas dos ACS, de ati-
trole de riscos individuais. Neste sentido, antes vidades de produção e registro de uma série de
mesmo que a ESF tenha avançado significativa- dados e informações pelas quais somente este
mente na transformação do modelo de atenção, trabalhador é responsável. O terceiro corres-
a PNAB 2017 representa uma regressão em ponde à manutenção do trabalho atualmente já
desenvolvido pelos ACE na lista das atribuições devem ser organizadas em uma rede des-
específicas desse trabalhador. centralizada, regionalizada e hierarquizada
Em síntese, o ACE preserva a responsabili- de serviços. Vários aspectos influenciam
dade sobre práticas tradicionalmente associa- a implantação deste modelo, entre eles, as
das ao seu trabalho, mas sofre um acréscimo características da federação brasileira, que
em suas tarefas ao incorporar as atividades se distingue pelo reconhecimento dos mu-
hoje atribuídas aos ACS. Estes, por sua vez, nicípios como entes autônomos a partir
sofrem uma descaracterização do seu traba- da Constituição de 1988. Tais municípios
lho, que já vem sendo esvaziado das ações (5.570, no total) são muito desiguais entre si
de educação em saúde, em virtude da priori- e, em sua maioria (cerca de 90%), possuem
zação de atividades associadas às ‘linhas de pequeno ou médio porte populacional e li-
cuidado’, que têm assumido um foco na pre- mitadas condições político-institucionais
venção de doenças, assim destinando a esses para assumirem as responsabilidades sobre
trabalhadores ações mais pontuais. a gestão das políticas de saúde que lhes são
É preciso também considerar o quanto a atribuídas.
integração entre esses profissionais estaria Diversos foram os esforços empreendidos
mais a serviço do corte de custos, pela di- na trajetória de implantação do SUS para
minuição de postos de trabalho, do que do lidar com as tensões do federalismo brasilei-
aprimoramento do processo de trabalho e ro. As políticas direcionadas para o fortale-
do aumento da eficiência das EqSF. Um re- cimento da ESF permitiram a consolidação
sultado provável para esta relação será uma do papel coordenador da União no pacto
intensificação ainda maior do trabalho dos federativo da saúde22. Normas e incentivos
agentes que restarem nas equipes. financeiros federais favoreceram a implan-
Ainda que se concorde com a necessida- tação das políticas pelos municípios, com
de de aproximação e de articulação entre os desconcentração de serviços no território
campos da vigilância e da atenção à saúde, e consolidação da ESF como referência na-
isto não se resume à fusão de seus agentes. cional para organização da AB no SUS. Essas
Enquanto ainda não se efetivaram esforços políticas também possibilitaram uma redis-
suficientes para se alcançar a integração dos tribuição não desprezível de recursos finan-
ACE nas EqSF, conforme estabelecido pela ceiros, com privilegiamento de municípios
PNAB de 20112, projeta-se um processo de situados em regiões mais carentes, mesmo
trabalho que desconsidera as especificidades em um contexto de dificuldades de financia-
dessas áreas técnicas e suas respectivas polí- mento da saúde23.
ticas. Além disto, não se desenvolvem pontos A nova PNAB, ao flexibilizar o modelo de
de integração no planejamento do trabalho e atenção e do uso dos recursos transferidos
da formação, nem projetos de ação conjunta por meio do PAB variável, fragiliza o poder
entre esses trabalhadores, nos territórios e de regulação e indução nacional exercido
nas unidades de saúde. pelo MS, responsável por avanços significati-
vos no processo de descentralização do SUS.
No que tange ao financiamento, ressalta-se a
Fragilização da ausência de mecanismos de valorização di-
coordenação nacional no ferenciada da ESF em relação às chamadas
equipes de AB, para as quais, anteriormente,
pacto federativo da saúde não eram destinados esses recursos.
O fato é que passa a ser facultada à gestão
O SUS possui caráter nacional e universal, municipal a possibilidade de compor equipes
e integra um conjunto amplo de ações que de AB, de acordo com as características e as
necessidades do município. Mais uma vez, média e alta complexidade no SUS. A escas-
aparece o recurso às especificidades locais sez de recursos públicos disponíveis para a
como justificativa para a flexibilização do saúde também tenderá a aumentar as dispu-
modelo de AB. No discurso dos gestores, tas redistributivas, favorecendo a influên-
a abertura de ‘novas’ possibilidades de fi- cia de interesses particulares nas decisões
nanciamento e organização da AB tem sido alocativas do setor, a implantação de planos
valorizada quase como um reparo às supos- privados de cobertura restrita e de modelos
tas ‘injustiças’ cometidas contra as formas alternativos à ESF, com resultados duvidosos
tradicionais de configuração da AB. O MS para a organização da AB.
justifica as mudanças alegando que as regras
praticadas nas PNAB anteriores acarretaram
um desfinanciamento de parte dos serviços Considerações finais
de AB existentes no País.
Entretanto, esses argumentos mostram-se Desde o início dos anos 1990, para grande
falaciosos na medida em que suprimem do parte da população brasileira, a AB tem sido
debate as análises que mostram os impactos a face mais notável de um sistema de saúde
positivos da adoção e expansão da ESF nas orientado por princípios de universalidade,
condições de vida e saúde da população. integralidade e equidade. Confrontada com
Também não levam em consideração que tendências que priorizam programas foca-
as especificidades locorregionais já eram lizantes e compensatórios, mais afeitos à
objeto das PNAB anteriores e de incentivos racionalidade neoliberal hegemônica, a ESF
financeiros vigentes, sendo possível obser- tem se configurado como meio de expansão
var a adoção de adaptações ao modelo pre- do acesso e de realização do direito à saúde.
conizado pela ESF em vários municípios do Alçada à condição de estratégia de reo-
País. Além disto, tais mudanças acabam por rientação do modelo de atenção à saúde, tem
favorecer as capitais e os centros urbanos ainda um longo caminho a percorrer e obstá-
metropolitanos, que aderiram à ESF de culos a ultrapassar, antes que seja alcançado
modo tardio e apresentam menor cobertura. o objetivo de efetivar uma clínica ampliada,
Isso poderá acarretar um redirecionamento que articule diferentes saberes, trabalhado-
de recursos para regiões mais desenvolvidas res e setores da política pública, de modo a
e com maior capacidade de arrecadação de compreender e enfrentar os determinantes
tributos, comprometendo os avanços aloca- sociais do processo saúde-doença.
tivos do setor. Há muito a ser reorganizado e modifica-
Por fim, mais uma vez, chama a atenção do em função dos resultados das pesquisas e
a ausência de uma análise contextualizada das avaliações realizadas sobre a AB. A qua-
sobre o impacto das mudanças que estão lificação de trabalhadores de todos os níveis
sendo propostas na PNAB 2017, e que serão de formação que compõem as EqSF, visando
implementadas nos próximos anos. A liber- ao trabalho baseado no território; a integra-
dade e a maior autonomia requeridas pelos ção entre prevenção, atenção e promoção da
gestores locais se inserem em uma conjuntu- saúde; a organização de processos de trabalho
ra de ameaças aos direitos sociais, e de forte mais democráticos e participativos, nos quais
restrição fiscal e orçamentária, com agrava- os trabalhadores tenham papel importante no
mento da situação de subfinanciamento do planejamento das ações, na definição e dis-
SUS. Esse contexto condicionará as escolhas cussão das metas e prioridades das equipes; a
políticas, ampliando as dificuldades locor- gestão pública do trabalho e dos serviços de
regionais para a manutenção de serviços de AB; e a regularização dos vínculos contratuais
AB frente aos custos elevados da atenção de são questões que precisam ser priorizadas.
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