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ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE 11

Política Nacional de Atenção Básica 2017:


retrocessos e riscos para o Sistema Único de
Saúde
National Policy of Primary Healthcare 2017: setbacks and risks to the
Unified Health System

Márcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini1, Angélica Ferreira Fonseca2, Luciana Dias de Lima3

RESUMO O artigo discute os significados e as implicações das mudanças introduzidas pela


Política Nacional de Atenção Básica 2017, que promovem a relativização da cobertura uni-
versal, a segmentação do acesso, a recomposição das equipes, a reorganização do processo de
trabalho e a fragilização da coordenação nacional da política. Argumenta-se que sua revisão
indica sérios riscos para as conquistas obtidas com o fortalecimento da Atenção Primária à
Saúde no Brasil. Na conjuntura atual de fortalecimento da ideologia neoliberal, tais modifi-
cações reforçam a subtração de direitos e o processo de desconstrução do Sistema Único de
Saúde em curso no País.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde. Saúde da família. Política pública. Política de


saúde.

ABSTRACT The article discusses the meanings and implications of the changes introduced by the
National Policy of Primary Healthcare 2017, which promote the relativization of universal cover-
age, the segmentation of access, the recomposition of the teams, the reorganization of the work
process and the weakening of the national policy coordination. It is argued that its review indi-
cates serious risks to the achievements obtained with the strengthening of the Primary Health
1Fundação Oswaldo Care in Brazil. In the current conjuncture of strengthening neoliberal ideology, these changes
Cruz (Fiocruz), Escola reinforce the subtraction of rights and the process of deconstruction of the Unified Health System
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV) in progress in the Country.
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
mvgcmorosini@gmail.com
KEYWORDS Primary Health Care. Family health. Public policy. Health policy.
2 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV)
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
afonseca@fiocruz.br

3 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sérgio
Arouca (Ensp), Programa
de Pós-Graduação em
Saúde Pública – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
luciana@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.1590/0103-1104201811601 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. 116, P. 11-24, JAN-MAR 2018
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Introdução a posição relativa da ESF; a configuração das


equipes; e a organização dos serviços.
Transcorridos 27 anos desde a promulga- Inicialmente, foram identificados alguns
ção das Leis nº 8.080 e nº 8.142, de 1990, é marcos instituintes da AB no Brasil e suas
possível dizer que, mesmo com dificuldades contribuições para a configuração do SUS.
e lacunas, foram as políticas direcionadas Na sequência, procurou-se situar o contexto
para o fortalecimento da Atenção Primária à de formulação dessa nova política e discutir
Saúde (APS) no Brasil que mais favoreceram prováveis riscos e retrocessos das alterações
a implantação dos princípios e diretrizes do propostas para o SUS.
Sistema Único de Saúde (SUS).
Expressas por meio de documentos es-
pecíficos, as Políticas Nacionais de Atenção Apontamentos sobre a
Básica (PNAB)1-3 tiveram papel fundamental trajetória da política de
nesse processo, permitindo inflexões impor-
tantes, principalmente no modelo de atenção
Atenção Básica no Brasil
e na gestão do trabalho em saúde nos muni-
cípios. Isso ocorreu de modo articulado à in- Em 1994, a criação do Programa Saúde da
trodução dos mecanismos de financiamento Família (PSF) permitiu ampliar a cobertura
que desempenharam papel indutor na sua em saúde, em um movimento inicialmente
adoção como eixo estruturante da organiza- voltado apenas para a parte da população
ção das ações e serviços de saúde4,5. brasileira em situação social mais vulnerá-
Em setembro de 2017, foi publicada uma vel. Configurou-se um modo de compor a
nova PNAB3, que suscitou a crítica de or- equipe e de organizar o processo de trabalho,
ganizações historicamente vinculadas à com base territorial e responsabilidade sani-
defesa do SUS, como a Associação Brasileira tária, referências sustentadas pelas sucessi-
de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro vas políticas.
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Com a Norma Operacional Básica do SUS
Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). de 1996 (NOB/96), o PSF assumiu a condi-
Em nota conjunta, as três instituições de- ção de estratégia de reorientação da APS,
nunciaram, entre outras coisas, a revogação em substituição às modalidades tradicionais.
da prioridade dada à Estratégia Saúde da A NOB/96 instituiu os componentes fixo e
Família (ESF) na organização do SUS com variável do Piso da Atenção Básica (PAB) e
a provável perda de recursos para outras estabeleceu incentivos financeiros aos muni-
configurações da Atenção Básica (AB), em cípios que adotassem o Programa de Agentes
um contexto de retração do financiamen- Comunitários de Saúde (Pacs) e o PSF, tor-
to da saúde. Demonstraram preocupação nando automática e regular a transferência
com retrocessos em relação à construção de de recursos federais para o financiamento
uma APS integral, que vinha direcionando o desses programas7.
modelo de AB baseado na ESF6. Essa priorização teve repercussões con-
Este artigo teve como objetivo analisar cretas, e, em 1998, foi estabelecido o primeiro
as alterações nas diretrizes da AB promovi- Pacto de Indicadores da Atenção Básica8, pro-
das no texto da PNAB 2017, tomando como cesso que se renovou periodicamente por meio
Este é um artigo publicado em parâmetros a PNAB 2011 e os princípios da da negociação intergestores de metas para a
acesso aberto (Open Access)
sob a licença Creative Commons universalidade e da integralidade da atenção avaliação e o monitoramento da AB no SUS.
Attribution, que permite uso,
distribuição e reprodução em
à saúde, na perspectiva de uma APS forte e Desdobrou-se, também, em outros dispositivos
qualquer meio, sem restrições, de uma rede integrada de atenção à saúde no de fortalecimento da AB, como, por exemplo, a
desde que o trabalho original seja
corretamente citado. SUS. Os temas analisados foram: a cobertura; criação do Sistema de Informação da Atenção

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Básica (Siab), também em 1998, substituindo o das unidades, por meio de um projeto espe-
Sistema de Informação do Programa de Agente cífico, o Requalifica SUS, lançado em 2011.
Comunitário de Saúde (Sipacs). Também em 2011, foi instituído o
Ainda visando à reorientação do modelo Programa Nacional de Melhoria do Acesso
de atenção, foi criado, em 2002, o Projeto e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-
de Expansão e Consolidação do Saúde da AB), que incorporou elementos da AMQ e
Família (Proesf ), voltado para os municí- ampliou as vertentes de avaliação, tendo
pios com mais de 100 mil habitantes, expli- como finalidade a certificação das EqSF.
citando a compreensão da saúde da família Esse Programa permitiu vincular formas
como uma estratégia viável não apenas nas de transferência de recursos do PAB variá-
pequenas cidades e no meio rural, onde se vel aos resultados provenientes da avalia-
implantou originalmente. No âmbito do ção, constituindo-se em um mecanismo de
Proesf, foi criada, em 2005, a Avaliação indução de novas práticas9.
para a Melhoria da Qualidade (AMQ), que Em termos de cobertura, dados dispo-
instituiu uma metodologia de avaliação em nibilizados pelo Ministério da Saúde (MS)
diversos níveis: gestores, coordenadores, indicam que a ESF alcançava 58% da popu-
unidades de saúde e Equipes da Saúde da lação, em outubro de 2017, e sabe-se que essa
Família (EqSF), com o propósito de qualifi- cobertura chegou a atingir 100% em alguns
cação da AB por meio da avaliação9. municípios. Tudo isso mediante novos servi-
A agenda política de fortalecimento da ços, modalidades e arranjos de equipes mul-
APS por meio da ESF consolidou-se grada- tiprofissionais, com destaque para as equipes
tivamente e, em 2006, tornou-se uma das ampliadas pela saúde bucal e pelos Núcleos
dimensões prioritárias do Pacto pela Vida10. de Apoio à Saúde da Família (Nasf ). Mesmo
Naquele mesmo ano, foi publicada a PNAB1, reconhecendo a persistência de problemas
revisada em 20112, buscando preservar a no acesso, na qualidade e na continuidade da
centralidade da ESF para consolidar uma atenção, diversos estudos sugerem avanços
APS forte, ou seja, capaz de estender a cober- decorrentes das políticas de APS na redução
tura, prover cuidados integrais e desenvolver de internações evitáveis e dos gastos hospi-
a promoção da saúde, configurando-se como talares12, e para a melhoria das condições de
porta de entrada principal do usuário no vida e saúde da população brasileira13,14.
SUS e eixo de coordenação do cuidado e de
ordenação da Rede de Atenção à Saúde (RAS).
Esse processo envolveu um amplo escopo de Notas sobre a conjuntura e
ações, mobilizando instituições e sujeitos o texto da Política Nacional
sociais para responder aos desafios colocados
para a formação de trabalhadores, a organi-
de Atenção Básica 2017
zação do processo de trabalho, as interações
com a comunidade, a compreensão do territó- Presenciou-se, recentemente, a reorganiza-
rio e as relações entre os entes federados. ção das forças políticas conservadoras no
Segundo Magalhães Júnior e Pinto11, há, Brasil, o que resultou no impedimento de
pelo menos, dois indicadores importantes da Dilma Rousseff e na condução do seu vice
centralidade dada à PNAB no âmbito federal Michel Temer à Presidência. Ao mesmo
das políticas de saúde. São eles: o aumento tempo, observa-se o rápido fortalecimento
superior a 100% dos recursos repassados de uma pauta antidemocrática e autoritária,
aos municípios para o financiamento da AB, orientada para o aprofundamento da mer-
entre 2010 e 2014; e a aplicação de recursos cantilização dos direitos sociais brasileiros.
para a qualificação e a ampliação da estrutura Seguiu-se a aprovação de medidas ditas

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‘racionalizantes’, sob a justificativa da ne- forças muito desfavorável aos que defen-
cessidade de enfrentar o desequilíbrio fiscal, dem a saúde como um direito universal17.
atribuído ao descontrole das contas públicas Desde então, as notícias sobre a revisão da
decorrentes de ‘políticas paternalistas’, que PNAB foram se intensificando, mas sua produ-
teriam agravado a crise econômica. A orienta- ção foi pouco divulgada oficialmente e sua dis-
ção é modificar a destinação dos recursos do cussão manteve-se em espaços restritos, como
fundo público, limitando as políticas sociais, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e
promovendo a redução da dimensão pública as reuniões entre os técnicos do MS. Em 27
do Estado e ampliando a participação do setor de julho de 2017, o texto preliminar foi apre-
privado. Do mesmo modo, opera-se uma ofen- sentado na CIT e encaminhado para consulta
siva contra a classe trabalhadora, atingindo pública por dez dias. Apesar do curto prazo, a
conquistas fundamentais, como os direitos consulta recebeu mais de 6 mil contribuições,
trabalhistas e previdenciários. Trata-se de um sem que tenham gerado, entretanto, mudanças
conjunto de reformas supressoras de direitos expressivas no texto original ou tenham sido
sociais, em uma represália sem proporções divulgados os seus resultados. A nova PNAB
ainda calculadas, do capital contra o trabalho. foi aprovada em 30 de agosto de 2017, pouco
Entre as alterações legislativas que viabi- mais de um mês após tornar-se oficialmente
lizam esse processo, destaca-se a promulga- pública. Uma característica marcante do texto
ção da Emenda Constitucional nº 95/2016, da nova PNAB3 é a explicitação de alternativas
conhecida como a emenda do ‘Teto dos para a configuração e implementação da AB,
Gastos’, que congela por 20 anos a destina- traduzindo-se em uma pretensa flexibilidade,
ção de recursos públicos e produz efeitos nas sustentada pelo argumento da necessidade de
diversas políticas, especificamente no finan- atender especificidades locorregionais.
ciamento do SUS. Supostamente, amplia-se a liberdade de
Essas medidas incidem sobre uma relação escolha dos gestores do SUS, o que poderia
frágil entre o SUS e a sociedade brasileira, ser visto como positivo por responder às
e caminham em paralelo ao fortalecimento demandas de um processo de descentraliza-
ideológico do setor privado como alterna- ção mais efetivo. Entretanto, esse processo
tiva de qualidade para o atendimento das só se completaria com a transferência de
necessidades de saúde. Conforma-se, assim, recursos necessários à autonomia de gestão
o terreno propício para dar prosseguimento pelos municípios, e com os mecanismos de
à desconstrução do SUS, cujo financiamento controle social e participação popular. A pre-
jamais alcançou um patamar de suficiência e sente análise não valida o raciocínio otimis-
estabilidade, ao passo que as empresas priva- ta, justamente porque é fruto de uma leitura
das de planos de saúde sempre foram objeto informada pela atual conjuntura, que indica
de fortalecimento, por meio da destinação de limites rigorosos, a partir dos quais essa polí-
incentivos financeiros contínuos15. tica e suas possibilidades se realizarão.
Nessa conjuntura, as tendências que Pode-se dizer que o discurso da PNAB
orientavam a revisão da PNAB 2011 já se constrói de modo ambivalente, incorpo-
vinham sendo anunciadas, pelo menos, rando verbos como sugerir e recomendar,
desde outubro de 2016, quando foi reali- que retiram o caráter indutor e propositivo
zado o VII Fórum Nacional de Gestão da da política e expressam a desconstrução de
Atenção Básica, cujos indicativos para tal um compromisso com a expansão da saúde
revisão foram publicados em um docu- da família e do sistema público. Entende-se,
mento-síntese16. Ali, já se apresentava uma ainda, que essa estrutura de texto tem o pro-
perspectiva regressiva, especialmente pre- pósito de blindá-lo à crítica, tornando suas
ocupante, considerando-se a correlação de proposições de mais fácil assimilação, afinal,

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a partir do que está escrito, diversas opções máximo de moradores vinculados a cada
seriam possíveis. Esta ambivalência é um equipe, evidenciando a preocupação com as
recurso que permite omitir escolhas prévias condições que poderiam diretamente afetar
(ideológicas), que parecem determinar o pro- a qualidade da atenção.
cesso de revisão da PNAB no momento político No texto da PNAB 2017, anterior à con-
atual. Tais escolhas remetem a uma concepção sulta pública, não há nenhuma referência à
de Estado afinada com a racionalidade neo- cobertura universal. A referência a 100% de
liberal, que aponta para o sentido inverso a cobertura é retomada no texto publicado,
uma maior presença do Estado, requerida para porém restrita a certas áreas:
a continuidade do SUS como projeto e da AB
como estratégia principal para a garantia da Em áreas de risco e vulnerabilidade social, in-
saúde como direito universal. cluindo de grande dispersão territorial, o nú-
Feitas essas considerações mais gerais, mero de ACS deve ser suficiente para cobrir
apresenta-se a discussão de elementos es- 100% da população, com um máximo de 750
pecíficos presentes na nova PNAB, inventa- pessoas por agente, considerando critérios
riando os riscos potenciais detectados para o epidemiológicos e socioeconômicos3(71).
SUS e seus princípios.
A flexibilização da cobertura populacional
está relacionada também aos parâmetros da
Relativização da cobertura relação equipe/população apresentados no
item ‘Funcionamento’. Ali se lê que a popula-
Como ressaltado, a universalidade é um ção adscrita recomendada por equipe de AB e
princípio estruturante da atenção à saúde EqSF é de 2 mil a 3,5 mil pessoas. Entretanto,
no âmbito do SUS, que, aliada à integrali- neste mesmo item, de acordo com as espe-
dade, tem distinguido a PNAB de confor- cificidades do território, prevê-se também
mações simplificadas e focalizantes de APS. a possibilidade de “outros arranjos de ads-
Baseadas nesses princípios, as PNAB 2006 e crição”3(70), com parâmetros populacionais
2011 vinham projetando a expansão da ESF, diferentes, que podem ter alcance “maior ou
nas duas últimas décadas. Considerando menor do que o parâmetro recomendado”
este movimento, o tema da cobertura da AB 3(70). A decisão a esse respeito fica a cargo do

destaca-se como um importante indicador gestor municipal, em conjunto com a equipe


da intencionalidade da PNAB 2017. de AB e o Conselho Municipal ou Local de
Retrospectivamente, percebe-se que, Saúde, com a ressalva de que fica assegurada
entre os itens necessários à implantação da a qualidade do cuidado.
ESF nas PNAB 2006 e 2011, encontrava-se Na PNAB 2011 havia a seguinte indicação:
uma única referência à cobertura universal. “quanto maior o grau de vulnerabilidade,
Ela se construiu de forma mediada, repre- menor deverá ser a quantidade de pessoas
sentada pela relação entre o número previs- por equipe”2(55). Segundo essa redação, o
to de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) critério de flexibilização de parâmetros po-
por equipe e a cobertura de 100% da popula- pulacionais apontava claramente a intenção
ção cadastrada. Nessas PNAB, constava que, de favorecer aqueles que apresentassem
para a implantação de EqSF, seria necessário maior necessidade de atenção. O mesmo não
um número de ACS suficiente para cobrir pode ser dito em relação à nova PNAB, que,
100% da população cadastrada, com um mais uma vez, se descompromete a adotar
máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 ACS parâmetros que favoreçam um processo de
por EqSF. A PNAB 2011 acrescentou o alerta atenção progressivamente mais qualificado.
de que não se deveria ultrapassar o limite Ao desconsiderar a relação entre quantidade

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e qualidade, a afirmação de que deve ser as- descompromete é o da integralidade. Isto se


segurada a qualidade do cuidado torna-se dá, principalmente, por meio da definição de
mera retórica. padrões diferenciados de ações e cuidados
A cobertura é igualmente relativizada por para a AB, novamente, sob o argumento das
meio da indefinição do número de ACS, uma condições ou especificidades locais. Estes
vez que a PNAB 2017 indica que padrões distinguem-se entre ‘essenciais’ e
‘ampliados’.
o número de ACS por equipe deverá ser defi- Os padrões essenciais são ‘as ações e os
nido de acordo com base populacional (crité- procedimentos básicos’, que deveriam ser
rios demográficos, epidemiológicos e socioe- garantidos pelas equipes em todo o País.
conômicos), conforme legislação vigente3(71). Embora sejam apresentados como condi-
ções básicas de acesso à atenção à saúde, e
Deste modo, pode-se compor equipes com de qualidade do cuidado oferecido, a própria
apenas um ACS. Quando uma política, simul- segmentação os remete à ideia de mínimos.
taneamente, torna indefinido o número de Assim, o termo ‘básico’ se esvazia do sentido
ACS por equipes e flexibiliza os parâmetros de que é tão caro a alguns autores da literatura
cobertura, reforça-se o risco de serem recom- sobre APS no Brasil, isto é, como distintivo
postas barreiras ao acesso à saúde de parte da do compromisso da AB, de ser o primeiro
população. Lembre-se, aqui, que o ACS é um nível de acesso a um sistema universal, que
trabalhador que deveria ser o ‘elo’ entre os abrange uma rede integral e complementar
serviços de saúde e a população, contribuin- de atenção à saúde, capaz de resolver 80%
do para facilitar o acesso e proporcionar uma dos problemas de saúde da população.
relação estável e contínua entre a população Os padrões ampliados correspondem a
e os serviços de APS. Tal formulação compro-
mete, também, um conjunto de processos já ações e procedimentos considerados estra-
instituídos na ESF, que se estruturam por meio tégicos para se avançar e alcançar padrões
da presença constante de um trabalhador da elevados de acesso e qualidade na AB, con-
saúde no território. Entre esses processos, des- siderando as especificidades locais e decisão
tacam-se a escuta e a percepção de problemas da gestão3(70).
e necessidades que poderiam ser invisíveis aos
serviços, bem como a identificação e a criação Entretanto, tais padrões são apenas reco-
de possibilidades de intervenção, dadas a partir mendados. A PNAB projeta um compromis-
de seus conhecimentos sobre a dinâmica da so que se limita aos padrões essenciais, que,
vida no território. como já advertido, tendem a se configurar
Essas alterações articuladas abrem um em torno de cuidados mínimos, recuperando
precedente inédito na história da PNAB, que a concepção de APS seletiva.
desestabiliza o compromisso da política com Não há nenhum conteúdo especificado
a universalidade da atenção à saúde no SUS. que possibilite conhecer e analisar a que
corresponderiam tais padrões. Não se sabe
quais procedimentos e ações integram o
A segmentação do cuidado: padrão básico e, portanto, mantém-se a in-
padrões essenciais e certeza sobre a capacidade de esse padrão
atender as necessidades de saúde que deve-
ampliados de serviços riam ser contempladas na APS. Em relação
ao padrão ampliado, cabe questionar:
Pode-se dizer que, além da universalidade, existem ações e cuidados que integram a
outro princípio com o qual a PNAB 2017 se AB hoje, e que podem ser negligenciados a

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ponto de constituírem um padrão opcional, desenvolvimento de um SUS seletivo, que


ou seja, apenas recomendável? A análise em- universaliza mínimos e estratifica padrões
preendida conclui o inverso. Este é um modo de atenção, justificados por situações precá-
de consentir com o aprofundamento das rias, cuja superação não está no horizonte de
desigualdades e a segmentação do acesso e compromissos das políticas públicas proje-
do cuidado que marcam a APS em diversos tadas no atual contexto. São sentidos opostos
países da América Latina, como apontam de utilização de uma noção – o território
Giovanella et al.14. – que se fortaleceu no processo de consoli-
O risco colocado, pela diferenciação entre dação da saúde da família como estratégia
os serviços ‘essenciais’ e ‘ampliados’, é de que de ordenamento da AB no Brasil. Daí, o seu
se retome a lógica da seletividade com dire- apelo positivo. Mais uma vez, trata-se da
trizes que reforcem a segmentação e a frag- apropriação e ressignificação negativa de
mentação dos serviços e das ações de saúde uma ideia-chave para os defensores da APS
no SUS, a partir da APS. Segundo Conill, forte, que contribui para confundir o leitor
Fausto e Giovanella18, a segmentação e a quanto às intenções da nova PNAB.
fragmentação são categorias fundamentais Entretanto, a desconstrução do compro-
para a compreensão dos problemas dos siste- misso com a universalidade e com a integra-
mas de saúde. Estão relacionadas à garantia lidade parece fazer parte de um quadro mais
dos direitos sociais e são muito sensíveis aos amplo, que não nos permite ilusões. O hori-
problemas de financiamento público, com zonte imediato do setor da saúde, na pers-
efeitos restritivos às possibilidades de acesso pectiva das forças políticas hegemônicas,
aos demais níveis de atenção e à constituição revela-se em uma fala proferida pelo minis-
de redes integradas de atenção à saúde19. tro Barros sobre o tema ‘Gestão transforma-
A segmentação propugnada pela PNAB dora para a saúde pública’, em um encontro
deve ser examinada de modo articulado à com líderes empresariais ocorrido em 2016:
racionalidade, aos interesses e à perspectiva
de sistema de saúde enunciada pelo atual Queremos mais recursos para a saúde e,
ministro da saúde, Ricardo Barros, segundo a como estamos nessa crise fiscal, se tivermos
qual seria desejável compreender os setores planos acessíveis com modelos de que a so-
público e privado suplementar como partes ciedade deseje participar, teremos R$ 20 [bi-
de um todo único. Neste sentido, ampliam- lhões] ou R$ 30 bilhões a mais de recursos,
-se as condições para que a saúde suplemen- que serão colocados para atendimento de
tar passe a integrar o sistema de serviços de saúde. Isso vai aliviar nosso sistema, que está
saúde, desta vez diretamente impulsionado congestionado20(1).
pelo desenho das políticas públicas.
A base argumentativa para a segmen- Com o intuito de viabilizar esse propósi-
tação do cuidado, na nova PNAB, deturpa to, o MS criou um Grupo de Trabalho (GT)
a ideia de especificidades territoriais que para elaborar um projeto que possibilite a
antes justificavam e davam consistência ao oferta de planos de saúde com número de
princípio da equidade, este que remete à serviços inferior ao definido como cobertu-
obrigação ético-política de se estabelece- ra mínima pela Agência Nacional de Saúde
rem parâmetros e processos visando à su- Suplementar (ANS). A adesão a esses planos
peração de desigualdades historicamente ‘populares’ de saúde – entendidos aqui como
produzidas na sociedade brasileira, de modo simplificados – seria voluntária.
a revelar e interferir sobre as condições que Como se gera a ‘adesão voluntária’ ao setor
as produzem. Contrariamente, esta seg- privado? A resposta que esta reflexão busca
mentação do cuidado traz as bases para o oferecer pode parecer óbvia ou redundante: se

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produz adesão ao setor privado por exclusão Art. 4º – A PNAB tem na saúde da família
do setor público. Entretanto, não é óbvio com- sua estratégia prioritária para expansão e
preender que a exclusão do setor público deve consolidação da Atenção Básica. Contudo,
ser ativamente produzida e se faz por meio da reconhece outras estratégias de organização
restrição ao acesso, associada à baixa qualidade da Atenção Básica nos territórios, que devem
dos serviços. É esta combinação que acarreta a seguir os princípios, fundamentos e diretrizes
evasão de parte das classes populares ou a não da Atenção Básica e do SUS descritos nesta
adesão da classe média ao SUS. portaria, configurando um processo progres-
Compreende-se que estão em curso três sivo e singular que considera e inclui as es-
eixos de ação: a) definir padrões mínimos pecificidades locorregionais, ressaltando a
e ampliados para a AB; b) estabelecer uma dinamicidade do território3(68).
“regulação que permita menos cobertura
e menos custo”20; e c) colocar no mercado Essa ambiguidade torna-se mais visível
planos baseados na oferta de um rol mínimo quando se analisam, em conjunto, certos
do mínimo20,21 de serviços. Articuladas, elementos dessa política. Destacam-se, prin-
estas ações integram um processo que, pela cipalmente, alterações nas regras de compo-
exclusão do SUS, pode gerar clientela para sição profissional e de distribuição da carga
os planos privados e viabilizar planos inca- horária dos trabalhadores nas equipes de AB.
pazes de atender às necessidades de saúde. A presença dos ACS não é requerida na
Neste cenário, a nova PNAB tende a servir composição mínima das equipes de AB,
como plataforma para o avanço de políticas diferentemente do que acontece na ESF.
que aprofundem tais possibilidades. Considerando as recentes conquistas desses
A naturalização da ingerência do setor trabalhadores, em relação aos vínculos em-
privado no SUS, expressa por pensamentos pregatícios e à definição do piso salarial da
tais como ‘isso já acontece’, contribui para categoria, entende-se que esta é uma pos-
ofuscar o fato de que a AB vinha se consti- sibilidade que desonera financeiramente
tuindo como um contraponto a essa reali- a gestão municipal, tornando-se extrema-
dade. Uma vez sustentado o movimento de mente atraente no contexto de redução de
expansão e qualificação da ESF, a AB ten- recursos já vivenciado, e cujo agravamento
deria a concretizar, a médio e longo prazo, a é previsto.
experiência do acesso à atenção à saúde, efe- A presença desse trabalhador e a conti-
tivamente pública. Esta é a aposta que está nuidade, com regularidade, das ações por
sendo suspensa ou interrompida. ele desempenhadas nunca estiveram tão em
risco. O prejuízo recai principalmente sobre
as ações educativas e de promoção da saúde,
O reposicionamento da pautadas pela concepção da determinação
Estratégia Saúde da Família social do processo saúde-doença e da clínica
ampliada, que configuram bases impor-
e a retomada da Atenção tantes para a reestruturação do modelo de
Básica tradicional atenção à saúde.
Em relação à carga horária, determina-se
Em relação ao papel da ESF, o texto da PNAB o retorno da obrigatoriedade de 40 horas
2017 apresenta uma posição, no mínimo, para todos os profissionais da ESF, inclusi-
ambígua. Ao mesmo tempo em que mantém ve os médicos, cuja carga horária havia sido
a ESF como prioritária no discurso, admite e flexibilizada na PNAB 2011. Esta alteração
incentiva outras estratégias de organização retoma condições estabelecidas desde a
da AB, nos diferentes territórios: implantação do PSF, que são consideradas

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positivas para favorecer o vínculo entre relação a esse propósito, criando as condições
profissional e usuário, e potencializar a res- para a expansão da AB tradicional e fortalecen-
ponsabilidade sanitária das equipes e a conti- do o binômio queixa-conduta.
nuidade do cuidado. Entretanto, sabe-se que
a flexibilização da carga horária dos médicos
de 40 para 20 horas buscava equacionar a Integração das atribuições
dificuldade de fixação desse profissional nas ou fusão dos Agentes
equipes, um problema que persiste.
Diferentemente do que é previsto para a
Comunitários de Saúde e
ESF, a carga horária projetada para as equipes dos Agentes de Combate às
de AB (médico, enfermeiro, auxiliar ou Endemias?
técnico de enfermagem) deve atender às se-
guintes orientações: a soma da carga horária, Desde a realização do já mencionado VII
por categoria, deve ser, no mínimo, de 40 Fórum de Gestão da Atenção Básica, em
horas; a carga horária mínima de cada profis- outubro de 2016, pelo MS, com o propósi-
sional deve ser de 10 horas; o número máximo to de produzir subsídios para a revisão da
de profissionais por categoria deve ser três. PNAB, tem circulado a ideia de fundir as atri-
Operacionalmente, são inúmeros os ar- buições dos ACS e dos Agentes de Combate
ranjos possíveis para a composição das às Endemias (ACE), tornando-os um único
equipes de AB. Para fins de ilustração, uma tipo de profissional17.
equipe pode ser composta por três médicos, A PNAB 2017 desenvolve a materializa-
dos quais dois devam ter cargas horárias de ção dessa ideia e afirma que “as atividades
20 horas e um de 10 horas; três enfermeiros, específicas dos agentes de saúde (ACS e
com 40 horas cada; um auxiliar ou técnico de ACE) devem ser integradas”3(73) sob o argu-
enfermagem, com 40 horas; e nenhum ACS. mento da necessidade de união entre a AB
Isto significa que, pelo menos, três fatores e a vigilância em saúde, visando ao sucesso
tornam mais atraente a composição de das ações desenvolvidas nos territórios. Em
equipes no modelo de AB tradicional: contam seguida, define as atribuições que devem ser
com menos profissionais do que a ESF e, comuns a ambos os agentes e as atribuições
portanto, podem ter um custo mais baixo; específicas de cada um.
são mais fáceis de organizar, em função da Nessa distribuição, percebem-se três mo-
flexibilidade da carga horária; e, agora, são vimentos. O primeiro é a inclusão, na lista de
também financeiramente apoiadas. É impor- atribuições comuns aos ACS e aos ACE, das
tante relembrar que a referência de popula- atividades historicamente destinadas aos ACS,
ção coberta também foi flexibilizada. tais como: o desenvolvimento de ações de
Embora essas alterações possam ser lidas promoção da saúde e prevenção de agravos e
como meros instrumentos de gestão, visando riscos; a realização de visitas domiciliares pe-
à redução de custos, cabe questionar, ainda, riódicas para o monitoramento da situação de
os seus possíveis efeitos sobre o modelo de saúde das pessoas; a identificação e o registro
atenção à saúde. Tal formatação de equipes de situações de risco à saúde; e a orientação, a
tende a fortalecer a presença de profissionais informação e a mobilização da comunidade.
cuja formação permanece fortemente orienta- O segundo movimento é a predominância, na
da pelo modelo biomédico, curativo e de con- lista das atribuições específicas dos ACS, de ati-
trole de riscos individuais. Neste sentido, antes vidades de produção e registro de uma série de
mesmo que a ESF tenha avançado significativa- dados e informações pelas quais somente este
mente na transformação do modelo de atenção, trabalhador é responsável. O terceiro corres-
a PNAB 2017 representa uma regressão em ponde à manutenção do trabalho atualmente já

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desenvolvido pelos ACE na lista das atribuições devem ser organizadas em uma rede des-
específicas desse trabalhador. centralizada, regionalizada e hierarquizada
Em síntese, o ACE preserva a responsabili- de serviços. Vários aspectos influenciam
dade sobre práticas tradicionalmente associa- a implantação deste modelo, entre eles, as
das ao seu trabalho, mas sofre um acréscimo características da federação brasileira, que
em suas tarefas ao incorporar as atividades se distingue pelo reconhecimento dos mu-
hoje atribuídas aos ACS. Estes, por sua vez, nicípios como entes autônomos a partir
sofrem uma descaracterização do seu traba- da Constituição de 1988. Tais municípios
lho, que já vem sendo esvaziado das ações (5.570, no total) são muito desiguais entre si
de educação em saúde, em virtude da priori- e, em sua maioria (cerca de 90%), possuem
zação de atividades associadas às ‘linhas de pequeno ou médio porte populacional e li-
cuidado’, que têm assumido um foco na pre- mitadas condições político-institucionais
venção de doenças, assim destinando a esses para assumirem as responsabilidades sobre
trabalhadores ações mais pontuais. a gestão das políticas de saúde que lhes são
É preciso também considerar o quanto a atribuídas.
integração entre esses profissionais estaria Diversos foram os esforços empreendidos
mais a serviço do corte de custos, pela di- na trajetória de implantação do SUS para
minuição de postos de trabalho, do que do lidar com as tensões do federalismo brasilei-
aprimoramento do processo de trabalho e ro. As políticas direcionadas para o fortale-
do aumento da eficiência das EqSF. Um re- cimento da ESF permitiram a consolidação
sultado provável para esta relação será uma do papel coordenador da União no pacto
intensificação ainda maior do trabalho dos federativo da saúde22. Normas e incentivos
agentes que restarem nas equipes. financeiros federais favoreceram a implan-
Ainda que se concorde com a necessida- tação das políticas pelos municípios, com
de de aproximação e de articulação entre os desconcentração de serviços no território
campos da vigilância e da atenção à saúde, e consolidação da ESF como referência na-
isto não se resume à fusão de seus agentes. cional para organização da AB no SUS. Essas
Enquanto ainda não se efetivaram esforços políticas também possibilitaram uma redis-
suficientes para se alcançar a integração dos tribuição não desprezível de recursos finan-
ACE nas EqSF, conforme estabelecido pela ceiros, com privilegiamento de municípios
PNAB de 20112, projeta-se um processo de situados em regiões mais carentes, mesmo
trabalho que desconsidera as especificidades em um contexto de dificuldades de financia-
dessas áreas técnicas e suas respectivas polí- mento da saúde23.
ticas. Além disto, não se desenvolvem pontos A nova PNAB, ao flexibilizar o modelo de
de integração no planejamento do trabalho e atenção e do uso dos recursos transferidos
da formação, nem projetos de ação conjunta por meio do PAB variável, fragiliza o poder
entre esses trabalhadores, nos territórios e de regulação e indução nacional exercido
nas unidades de saúde. pelo MS, responsável por avanços significati-
vos no processo de descentralização do SUS.
No que tange ao financiamento, ressalta-se a
Fragilização da ausência de mecanismos de valorização di-
coordenação nacional no ferenciada da ESF em relação às chamadas
equipes de AB, para as quais, anteriormente,
pacto federativo da saúde não eram destinados esses recursos.
O fato é que passa a ser facultada à gestão
O SUS possui caráter nacional e universal, municipal a possibilidade de compor equipes
e integra um conjunto amplo de ações que de AB, de acordo com as características e as

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necessidades do município. Mais uma vez, média e alta complexidade no SUS. A escas-
aparece o recurso às especificidades locais sez de recursos públicos disponíveis para a
como justificativa para a flexibilização do saúde também tenderá a aumentar as dispu-
modelo de AB. No discurso dos gestores, tas redistributivas, favorecendo a influên-
a abertura de ‘novas’ possibilidades de fi- cia de interesses particulares nas decisões
nanciamento e organização da AB tem sido alocativas do setor, a implantação de planos
valorizada quase como um reparo às supos- privados de cobertura restrita e de modelos
tas ‘injustiças’ cometidas contra as formas alternativos à ESF, com resultados duvidosos
tradicionais de configuração da AB. O MS para a organização da AB.
justifica as mudanças alegando que as regras
praticadas nas PNAB anteriores acarretaram
um desfinanciamento de parte dos serviços Considerações finais
de AB existentes no País.
Entretanto, esses argumentos mostram-se Desde o início dos anos 1990, para grande
falaciosos na medida em que suprimem do parte da população brasileira, a AB tem sido
debate as análises que mostram os impactos a face mais notável de um sistema de saúde
positivos da adoção e expansão da ESF nas orientado por princípios de universalidade,
condições de vida e saúde da população. integralidade e equidade. Confrontada com
Também não levam em consideração que tendências que priorizam programas foca-
as especificidades locorregionais já eram lizantes e compensatórios, mais afeitos à
objeto das PNAB anteriores e de incentivos racionalidade neoliberal hegemônica, a ESF
financeiros vigentes, sendo possível obser- tem se configurado como meio de expansão
var a adoção de adaptações ao modelo pre- do acesso e de realização do direito à saúde.
conizado pela ESF em vários municípios do Alçada à condição de estratégia de reo-
País. Além disto, tais mudanças acabam por rientação do modelo de atenção à saúde, tem
favorecer as capitais e os centros urbanos ainda um longo caminho a percorrer e obstá-
metropolitanos, que aderiram à ESF de culos a ultrapassar, antes que seja alcançado
modo tardio e apresentam menor cobertura. o objetivo de efetivar uma clínica ampliada,
Isso poderá acarretar um redirecionamento que articule diferentes saberes, trabalhado-
de recursos para regiões mais desenvolvidas res e setores da política pública, de modo a
e com maior capacidade de arrecadação de compreender e enfrentar os determinantes
tributos, comprometendo os avanços aloca- sociais do processo saúde-doença.
tivos do setor. Há muito a ser reorganizado e modifica-
Por fim, mais uma vez, chama a atenção do em função dos resultados das pesquisas e
a ausência de uma análise contextualizada das avaliações realizadas sobre a AB. A qua-
sobre o impacto das mudanças que estão lificação de trabalhadores de todos os níveis
sendo propostas na PNAB 2017, e que serão de formação que compõem as EqSF, visando
implementadas nos próximos anos. A liber- ao trabalho baseado no território; a integra-
dade e a maior autonomia requeridas pelos ção entre prevenção, atenção e promoção da
gestores locais se inserem em uma conjuntu- saúde; a organização de processos de trabalho
ra de ameaças aos direitos sociais, e de forte mais democráticos e participativos, nos quais
restrição fiscal e orçamentária, com agrava- os trabalhadores tenham papel importante no
mento da situação de subfinanciamento do planejamento das ações, na definição e dis-
SUS. Esse contexto condicionará as escolhas cussão das metas e prioridades das equipes; a
políticas, ampliando as dificuldades locor- gestão pública do trabalho e dos serviços de
regionais para a manutenção de serviços de AB; e a regularização dos vínculos contratuais
AB frente aos custos elevados da atenção de são questões que precisam ser priorizadas.

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Entretanto, as modificações introduzidas Estas questões articuladas agravam o risco


na PNAB 2017 apontam para outra direção. de desassistência de parte significativa da
Em um breve inventário, destacam-se alguns população, e de perda na qualidade dos servi-
mecanismos da nova política que promovem ços da AB. Tais ameaças tornam-se especial-
a relativização da cobertura universal, a de- mente graves em um momento de ruptura
finição de padrões distintos de serviços, a das relações e instituições democráticas, e
recomposição das equipes e a reorganização de naturalização de um processo crescente
do processo de trabalho na AB, entre outras de subtração de direitos e aprofundamento
mudanças importantes, que também devem da desigualdade. Consolida-se um processo
ser consideradas. A revisão empreendida anticivilizatório do capital, que precisa mer-
atinge principalmente as conquistas alcan- cantilizar cada vez mais espaços de produção
çadas pela ESF e os processos em curso, que e reprodução da vida humana. Desassistir
pavimentam caminhos para se concretizar frações da classe trabalhadora com alguma
uma APS forte, parte fundamental de redes capacidade de comprar serviços de saúde –
de atenção em um sistema universal de como parece ser o horizonte desenhado pela
atenção integral à saúde. PNAB 2017 – significa que o Estado brasilei-
Em nome de uma suposta maior autono- ro atua, mais uma vez, em favor da ampliação
mia dos municípios, o MS renuncia à sua res- da participação do setor privado na saúde,
ponsabilidade de coordenação e indução de em detrimento de um sistema que nunca
bases nacionais para a PNAB, fato bastante pôde ser inteiramente público.
arriscado em um país com realidades locor- Em contraposição, como projeto de luta
regionais tão distintas e com um processo de e transformação, defende-se que os princí-
descentralização que carece de aprimora- pios do SUS, democraticamente constituídos
mentos. São particularmente preocupantes e legalmente estabelecidos, deveriam ser
as consequências do possível descompro- tomados como valores éticos, que precedem
misso dos gestores com a oferta universal e orientam a reconfiguração das políticas de
dos serviços de AB; a segmentação do acesso saúde. Portanto, não devem e não podem ser
ao cuidado; a desvinculação das equipes dos transgredidos ou sequer flexibilizados, seja
territórios; e a desqualificação do trabalho de em função da tão aludida crise econômica
ACS e ACE, acentuando o caráter utilitarista vigente, muito menos em atenção às neces-
de suas atividades e o reforço à privatização. sidades do mercado. s

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Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde 23

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