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O DIREITO TOSTO

E
O DIREITO PRESSUPOSTO

Eros Roberto Grau

Estão reunidos, neste livro, estudos e ensaios destinados


a instrumentar não apenas um saber jurfdico, mas também a
operacionaiização da profissão jurídica.
Prosseguindo a exposição de seu pensamento na linha do
que enunciara em suas obras anteriores, especialmente no Direi­
to, conceitos e normasjurídicas e no A ordem econômica na Cons­
tituição de 1988 (interpretação e crítica), o Autor aponta novos
rumos para a doutrina jurídica brasileira.
O Autor discorre sobre os temas fundamentais da Teoria
Geral do Direito desde a perspectiva crítica, iluminando, a sua ex­
posição, a reflexão sobre o fenômeno jurídico. Afirmando que a
compreensã/j do direito transcende a mera compreensão do direi­
to posto pe/o Estado - isto é, das leis —o Autor encontra na realida­
de ssòiaí, expondo-as ao leitor, as suas raízes (dele, direito).
No capítulo sobre o direito posto e o direito pressuposto
encontra-se o substrato de uma teoria que apresenta o direito
como um plano da realidade e como sistema de princípios. Des­
de esse capítulo, antecedidas pela nota introdutória sobre o direi­
to, desdobram-se exposições a respeito da desestruturação do
direito enquanto direito moderno e enquanto direito formal e a
propósito das questões maiores do direito público, a igualdade, a
legalidade, a discricíonariedade e a separação dos poderes. De
resto, as preocupações do Autor com os princípios e com a nova
hermenêutica jurídica estão presentes ao longo de todo o livro.

ISBN fl57M2Dflbfl-X

iMALHEIROS
iEDITORES
o direito posto
eo
direito pressuposto

eros roberto grau

7a edição
revista e ampliada
E ro s R o b erto G rau

O DIREITO POSTO
E O
DIREITO PRESSUPOSTO
7a edição,
revista e ampliada

= =MALHE1R0S
i V s EDITORES
O D IR E IT O P O S T O E O D IR E IT O P R E S S U P O S T O
© E ros R oberto G rau

Ia edição: 10.1996; 2a ediçao: 09.1998; 3a ediçao: 03.2000;


4a edição: 02.2002; 5a edição: 09.2003; & edição: 04.2005.

ISBN: 978-85-7420-868-8

Direitos reservados desta edição por


MALHEIROS EDITORES LTDA.
Rua Paes de Araújo, 29, cj. 171
CEP 04531-940 - São Paulo - SP
Tal.: (11) 3078-7205 Fax: (11) 3168-5495
URL: w w uj .malheiroseditores.com.br
e-mail: malheiroseditores@ferra.com.br

Composição
Virtual Laser Editoração Eletrônica Ltda.

Capa
Vânia Lúcia Amato

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
03-2008
“Para que possamos servir-nos sem peri­
go de uma teoria é necessário que, anterior­
mente, tenhamos perdido completamente a
f é nela. ”
(v o n I h e r in g )
SUMÁRIO

N o ta à 7a e d iç ã o ................................................................ 11
N o ta à 5® e d iç ã o .................... ........................................... 12
N o ta à 4a e d iç ã o ..................................... .......................... 12
N o ta à 3a e d iç ã o ................................................................ 12
N ota e x p lic a tiv a ............................... .............................. 13
P r ó lo g o .................................... .......................................... 15

I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO


1. Os diferentes modos de ver o direito............................. 17
2. O direito e os direitos .................................................... 19
3. Sistema e princípios jurídicos........................................ 21
4. Direito e conflito ............................................................ 23
5. Políticas públicas e análise funcional do direito ...... 25
6. A visão formalista e positivista do direito e a doutrina
real do direito ............................. ................................. 30
7. O direito: ciência ou prudência? ....................................36

I I — O D IR E ITO PO STO E O DIREITO PRESSUPO STO


1. Nota introdutória........................................................... 43
2. A relação entre economia e direito................................. 44
3. O direito posto e o direito pressuposto .......................... 59
4. Direito pressuposto e princípios ....................................70
5., O direito pressuposto, ainda .........................................71
6. Ainda o direito posto ................................ ..................... 77
8 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

7. A noção de direito pressuposto na literatura jurídica . 78


8. A pretexto de conclusão ................................................ 83

m — O TEMA DA LE G ITIM ID A D E DO D IR E IT O ...............84

I V — OS MODELOS DE D IR E IT O FORMAL E D E D IR EITO


MODERNO E A DUPLA DESESTR UTXJRAÇÃO
D O D IR E IT O ............................................................... 94
1. O “direito formal” ............................... ...........................95
2. Pequena nota a respeito do direito e da m o ral...............97
3. O “direito moderno” ....................................................... 99
4. O direito formal /direito moderno e a conservação dos
meios .................... .................................................... 104
5. A ju s tiç a ............... ...................................................... 105
6. A dupla desestruturação do direito............................ 106
7. Contraponto: pequena nota a respeito da é tica .......... 110
8. Princípios e va lores..................................................... 112
9. Conclusão prospectiva................................................ 113

V — O D IR E ITO DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITA LISTA


E A TEORIA DA R E G U LA Ç Ã O ................................ 118
1. O direito do modo de produção capitalista.................. 118
2. A teoria da regulação......................:........................... 127
3. Apêndice sobre a desregulação da econ om ia............. 135

VI — A C R ÍTIC A DO D IR E IT O E O (iD IR E IT O
A L T E R N A T IV O ” .... .....'........................................... 148

V II — NOTA SOBRE A IG U A LD A D E ........... .................... 162

V in — CRÍTICA
\ E DEFESA DA LE G A LID A D E ....;.... 168

I X — CRÍTICA DA DISCRICÍONARIEDADE
E RESTAURAÇÃO DA LEGALIDADE
1. Posição da questão ............ ........................................ 191
SUMÁRIO 9

2. A doutrina brasileira..... ....................... ......... ........... 193


3. Os conceitos jurídicos {conceito e noção)................... 195
4. Ainda a posição da doutrina brasileira....................... 205
5.. A interpretação do direito ....................... 207
6. Discricionariedade versus interpretação...... .......... . 210
7. A chamada discricionariedade técnica.........................214
8. Exame e controle, pelo Poder Judiciário, dos atos
discricionários........................................... ................215
9. Observações conclusivas ......................... .................. 222

X — C R ÍT IC A DA “SEPARAÇ ÃO DO S P O D Ê R E S ” :
A S FU N Ç Õ ES E S T A T A IS , OS R E G U LA M E N TO S
E A LE G A L ID A D E NO D IR E IT O B R A S IL E IR O,
A S “LE IS -M E D ID A ”
1. A “separação” dos poderes......................................... 225
2. Poder e função..............................................................236
3. Norma ju ríd ic a .......................... ..................................238
4. Função normativa e função legislativa........................ 240
5. O a leguiaiuemos e a. iegaiida.de no direi lo brasileiro ... 244
6 . As leis-medida ..............................................................254

X I — O E S TA D O , A L IB E R D A D E E O D IR E IT O
A D M IN IS T R A T IV O .................................................. 256

X I I — NO TA SOBRE A G LO BA LIZA ÇÃ O ......................... 270

X III — EQÜIDADE, RAZOABILIDADE,


PROPORCIONALIDADE
E PRINC ÍPIO DA M ORALID ADE.............................280

X IV — NO TA SOBRE A MORALIDADE
E O DIR EITO MODERNO ....................................... 288

X V — SOBRE A ÉTICA JUDICIAL


,1. Sobre a ética e a ética ju d ic ia l.................................... 292
2. A interpretação/aplicação do direito............................294
10 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

3. A funçao de ju lg a r .......................................................294
4. Os cânones fundamentais da ética judicial ......... . 297

XVI — IM UNIDADE PARLAMENTAR E PRERROGATIVA DE


FORO; A D ISTIN Ç Ã O Ê N TR E PRERROGATIVA E
P R IV IL É G IO ................................................ ...... .... 299

X V II— ARBITRAGEM E CONTRATO ADMINISTRATIVO ... 303


1. Jurisdição e arbitragem............................................. 303
2. A equivocada noção de “contrato administrativo” ..... 304
3. Indisponibilidade do interesse público e
disponibilidade de direitos patrimoniais.................. 311

X V III — o FUTURO DO DIREITO


1. O futuro, há mais de dez an os..................................... 315
2. Os juristas, a subsunção, a preservação das
estruturas e o não-futuro........................................... 316
3. O direito - o posto e o pressuposto - e as
transformações................................... ...................... 319
4. Soberania, violência e direito, exceção ....................... 320
5. O não-lugar da soberania............................................ 321
6. Um novo nomos da terra? ............. ..............................324
7. Um direito (= ordenamento) sem nomos da terra? ......325
8. Nova Lex Mercatoria e arbitragem transnacional........ 327
9. A exceção ..... ............................................................ 328
10. Contraponto.............................. .................................332
11. Ainda a exceção.......... ............................................... 333
12. Conclusão: a super-soberania, a exceção e
o novo nomos................... ;.......................................... 334

B ib lio g r a fia ......................... ......................................... . 336

ín d ic e a lfa b é tic o -r e m is s iv o ..........................................352

ín d ic e o n o m á s tic o .......................................................... 363


NOTA À 7” ED IÇÃO

Introduzi, nesta sétima edição, os capítulos XIV a XVIII. O


primeiro deles, atínente à “moralidade e o direito moderno”, de
certa forma complementa o capítulo XIII, incorporado à sexta
edição. Outro capítulo respeita à “ética judicial”, consubstan­
ciando o roteiro de uma exposição minha na cidade do México,
em novembro/2005, no Congreso Internacional sobre Ética
Judicial, Profesional y Acadêmica, promovido pelo Instituto de
Investigaciones Jurídicas da UNAM. O texto sobre “imunidade
parlamentar e prerrogativa de foro; a distinção entre
prerrogativa e privilégio” foi extraído de um voto meu no STF
(ADI 2.797); e o referente a “arbitragem e contrato admi­
nistrativo”, de um parecer que elaborei ainda ao tempo em que
não exercia a Magistratura. O capítulo XVIII, em que cogito do
“futuro do direito”, foi escrito para suportar uma exposição
que fiz em Portugal, em janeiro passado, no Encontro Luso-
Brasileiro de Professores de Direito organizado pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra.
NOTA À 5a EDIÇÃO

Introduzi, nesta quinta edição, os capítulos XI e XII, que


compreendem uma crítica à doutrina produzida entre nós em
torno do Direito Administrativo, e uma nota, também crítica,
a respeito da globalização.
Agosto de 2003

N O T A À 4 a E D IÇ Ã O

Alterei substancialmente alguns capítulos para a publi­


cação desta quarta edição, especialmente o segundo e o no­
no. Tratei de modo mais extenso do tema do direito posto e da
relação entre economia e direito, incorporando inúmeras
notas bibliográficas ao texto. Ao nono cápítulo incorporei re­
flexões produzidas em torno dos conceitos jurídicos - desde
leituras de Ascarelli e de Sartre, opondo aos chamados “con­
ceitos indeterminados” as noções — e da proporcionalidade.
Aos demais textos foram incorporados pequenos acréscimos.
Novembro de 2001

NOTA À E D IÇ Ã O

Limitei-me, nesta terceira edição, a introduzir observação


de F r a n c e s c o F e r r a r a no segundo capítulo e a explicitar um
tanto mais o caráter da atribuição conferida, pelo Legislativo
ao Executivo, para o exercício da junção regulamentar.
Fevereiro de 2000
N O TA EXPLICATIVA

Utilizei parcialmente, para a construção deste livro, tex­


tos anteriormente publicados em meu Direito, conceitos e nor­
masjurídicas e em meu A ordem econômica na Constituição de
1988 (interpretação e crítica), ambos esgotados. Não pretendo
publicar nova edição do primeiro, do qual serão extraídos ex­
certos que, enriquecidos com o resultado de minhas pesqui­
sas mais recentes, serão incorporados em outro livro, que ve­
nho preparando, sobre os princípios e a interpretação do direi­
to. Uma eventual terceira edição do A ordem econômica na
Constituição de 1988 (interpretação e crítica) comporá um livro
novo, imediatamente voltado ao direito econômico. O texto so­
bre discricionariedade é versão ampliada daquele que prepa­
rei para ser publicado em coletânea de trabalhos em home­
nagem ao Ministro Seabra Fagundes (in Perspectivas do direi­
to público (Estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagun­
des), Belo Horizonte, Del Rey Editora, 1995); jamais será de­
masiada a repetição dessa homenagem.'
Os outros textos foram elaborados a partir de palestras e
trabalhos apresentados em colóquios e seminários realiza­
dos no México, na Argentina, na Espanha e na França, bem
assim de anotações e esquemas de minhas aulas nos cursos
de Bacharelado e de Pós-Graduação da Faculdade de Direito
daUSP.
O tema do direito posto e direito pressuposto — em conjunto
com o da dupla desestrutúração do direito formal/direito mo­
derno — consubstancia o núcleo de minha exposição, sendo,
14 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ademais, imediatamente, o pretexto do livro. Comecei a


prepará-lo em janeiro de 1995, atravessando com ele todo o
ano, até este mês de fevereiro de 1996, durante o qual proce­
do ao seu acabamento, nos intervalos de tranqüilidade que
minhas atividades acadêmicas na Faculdade de Direito da
Universidade de Montpellier I me proporcionam. Retive-me
diante do impulso de extirpar, de alguns dos seus capítulos,
depois de construído, trechos que em outro(s) estavam já
contidos. Na medida em que a unidade de todos eles restou
assegurada, contudo, o leitor há de, por isso, me perdoar.
Montpellier, fevereiro de 1996
PR Ó LO G O

O vocábulo “direito” é usado, neste livro, com sentido dis­


tinto do correntemente a ele atribuído pelos juristas.
Hegel, na Filosofia, do Direito [§ 211), afirma: “O que em si
é direito é, na sua existência (Dasein) objetiva, qualquer coi­
sa que é estabelecido, isto é, determinado pelo pensamento
para a consciência e conhecido como o que é e tem valor de
direito: é a leU e é por esta determinação que o direito é um
direito positivo em geral” . Aqui, no vocábulo “estabelecido” ,
no original em alemão, um jogo de palavras sobre Gesetz (a
lei) e gesetzt(posto, estabelecido).
Só o que é lei, diz Hegel (§ 212), tem caráter de obrigação
como direito. O direito entra na existência (Dasein) sob a for­
ma da lei (§ 219). Daí se estrutura a concepção, estreita, de
que o direito é a lei estabelecida (posta) pelo Estado: o que tem
valor de direito é apenas a lei.
A generalidade dos que pronunciam discursos sobre o di­
reito (discursos Jurídicos) fala exclusivamente da lei, do direito
posto pelo Estado. E isso de tal modo que o direito passa a ser
concebido como produto do Estado. Tudo quanto não seja tal
não é direito.
Logo, quando atribuo ao vocábulo “direito” outro signifi­
cado, mais amplo do que o acima indicado, a distinção que se
estabelece entre ambos não é meramente semântica, porém
coriceitual. A generalidade dos juristas fala da lei (norma), o
que, sem dúvida, é relevante. O desafio que me ponho, contu­
16 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

do, respeita à compreensão do direito, ainda que isso não me


impeça de também cogitar das normas e inclusive das leis.
“Direito”, assim, no texto que segue, quer significar siste­
ma de princípios (normas) coercitivamente impostos a determi­
nado grupo social p or qualquer organização, social, dotada de
poder para tanto.
I
N O T A INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO

1. Os diferentes modos de ver o direito. 2. O direito e os direitos. 3.


Sistema e princípiosjurídicos. 4. Direito e conflito. 5. Políticas públicas
e análisefuncional do direito. 6. A visãoJbrmalistae positivista do di­
reito e a doutrina real do direito. 7. O direito: ciência ou prudência?

1. Os diferentes modos de ver o direito

1. Podemos descrever o direito de várias formas e desde


várias perspectivas; na verdade, contudo, não descrevemos
jamais a realidade, porém o nosso modo de ver a realidade.
- Ê que a realidade da qual tomamos consciência (isto é: a
consciência do real) existe como existe (= está intrínseca) em
nosso pensamento (ainda que o nosso pensamento — a cons­
ciência — seja p or ela determinado) .
A realidade (realidade da qual tomamos consciência) é o que
aparenta ser (se apresenta = “presentel”) para cada consciência.
Diante de um objeto qualquer, minha consciência recebe o
impacto do que ele representa (como ele se apresenta), para
mim. Posso dizer, então, que minha consciência vê os objetos
exteriores como eles são, visto que eles são (para nós), nas
suas manifestações (aparições), absolutamente indicativos
de si mesmos. Como, porém, os objetos e a realidade existem
em suas manifestações (aparições) para mim, jamais os des­
crevo — os objetos e a realidade; descrevo apenas o modo sob
o qual eles se manifestam (= o que representam) para mim.
18 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Logo, ao afirmar que podemos descrever o direito (note-se


bem que me refiro, aqui, a direito como objeto em nível de
abstração) de várias Jbrmas e desde várias perspectivas, es­
tou a dizer que o direito se manifesta, para nós, de várias fo r ­
mas e desde várias perspectivas. E, também, que não descre­
vemos o direito, .porém os nossos modos de ver o direito.
Posso, exemplificativamente, descrevê-lo como sistema
de normas que regula — para assegurá-la — a preservação
das condições de existência do homem em sociedade. Mas,
de outra parte, posso descrevê-lo, exemplificativamente tam­
bém, desde uma perspectiva crítica, introduzindo, então, a
velha questão, do expositor e do censor (crítico) do direito, da­
quele que explica o direito, tal como o entende, e daquele que
indica o que crê deva ser o direito — a separação entre o que
é e o que deve ser no direito (Bentham). Afirmaremos, então,
que necessitamos mais de censores, críticos do direito, do que
de meros expositores dele — no que também a afirmação de
que os juristas em regra se limitam a interpretar1o direito de
diferentes maneiras, mas o que importa é transformá-lo.

2. A descrição do direito como sistema de normas que re­


gula — para assegurá-la — a preservação das condições de
existência do homem em sociedade é tipicamente descrição
de expositor do direito,
Nas páginas que seguem — e adiante, na seqüência do li­
vro — tentarei, mediante o tratamento de aspectos e temas
distintos, não apenas descrever o direito desde diversas pers­
pectivas, inclusive críticas, mas, além disso, dele cogitar en­
quanto fenômeno jurídico.
Ademais, “direito” é vocábulo que conota [i] norma, [ii] de­
cisão e [iii] ordenamento e estrutura (Carl Schmitt 1972/247 e
ss.). Geralmente, contudo, os significados de norma e de or­
denamento estão entrelaçados, um se diluindo no outro. O nor-
mativismo, enquanto projeção do ideal de Píndaro, posto no
nomos basileus — só a lei comanda e governa — , repudia não
apenas o arbítrio dos homens, mas também as necessidades

1. Não obstante, a interprctração pode conduzir à transformação do di­


reito.
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 19

contingentes, decorrentes de situações que se modificam


sem cessar (Carl Schmitt 1972/252). A partir dessa vertente,
aliás, é que foram estruturadas as teorizações do Estado de
Direito, como “Estado da lei” -— o govemment o f law, not o f
men, dos constituintes norte-americanos. A visualização do
direito apenas como norma, no entanto, é parcial e incomple­
ta. Nomos, tal qual law — como observa ainda Carl Schmitt
(1972/254) — , não significa lei, regra ou norma, mas direito,
que é tanto norma, quanto decisão, quanto, sobretudo, orde­
namento. E as ações do rei, do senhor, do mestre, do gover­
nante, bem assim do ju iz ou de um tribunal — decisões — ,
nos remetem a uma ordem institucional concreta, que não é
somente uma regra. Depois disso, não é qualquer norma de
direito positivo que realiza o nomos basüeus: o nomos, que
deve ser um rei justo, deve comportar em si mesmo determi­
nadas qualidades, supremas e imutáveis, concretas, de uma
ordem. Ora, como observa Ortega y Gasset (1982/62), a or­
dem não é uma pressão que se exerce de fora sobre a socie­
dade, mas um equilíbrio que se cria no seu interior, excluin­
do, como recursos normais, polícia e baionetas. Ademais, a
ordem, assim, é de ser concebida como ato e potência: toda
ordem é, em ato, o que é e, potencialmente, uma nova ordem.

A superposição entre direito e norma, no sistema jurídico anglo-


saxão, decorre da sua assistematicidade. A propósito, note-se que
Roscoe Pound (1965/43-44) a dois grupos de palavras — ius, droit,
Recht, diritto, derecho, direito, de um lado, e lex, loi, Gesetz, tegge,
ley, lei, de outro — opõe, na língua inglesa, o vocábulo law. O co­
nhecimento do fenômeno jurídico reclama, como se vê, seja ele con­
cebido como norma, como ordenamento e como decisão.

2. O direito e os direitos
3. Impõe-se distinguirmos o discurso que trata do direito
no plano das abstrações daquele que dele cogita como rea-
lidade(s) concreta(s). É que não existe, concretamente, o di­
reito-, apenas existem, concretamente, os direitos.
O direito, como adiante demonstrarei, não é uma simples
representação da realidade social, externa a ela, mas, sim,
um nível funcional do todo social. Assim, enquanto nível da
20 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

própria realidade, é elemento constitutivo do modo de produ­


ção social.
Logo, no modo de produção capitalista, tal qual em qual­
quer outro modo de produção, o direito atua também como
instrumento de mudança social, interagindo em relação a to­
dos os demais níveis — ou estruturas regionais — da estru­
tura social global.

4. Visto assim, o direito não há de ser concebido exclusiva­


mente como produto das relações econômicas, externo a elas,
ou apenas como ideologia que oculta a natureza real das rela­
ções de produção, ou, ainda, tão-somente como expressão da
vontade da classe dominante e meio de dominação.
Nível de um todo complexo — a estrutura social global — ,
o direito nela se compõe e resulta da sua própria interação
com os demais níveis desse todo complexo.
Por certo que as relações de produção capitalista não po­
deriam existir, nem reproduzir-se, sem a forma do direito, a
instituir as condições que conferem fluência ã circulação
mercantil.
5. Produto cultural, o direito é, sempre, fruto de uma de­
terminada cultura. Por isso não pode ser concebido como um
fenômeno universal e atemporal.
Lembre-se a finíssima Ironia de von Ihering (1933/313-314),
assim enunciando a profissão de fé jurídico-filosófica: “Creio que to­
das as verdades jurídicas foram dadas ao homem pela Natureza e
lhe são inatas, e que, portanto, o homem necessita apenas pensar
com energia para fazer aflorar todas as riquezas que, em forma em­
brionária, repousam em seu raciocínio. O homem carrega em seu
pensamento jurídico, que, por lhe ter sido conferido pela Natureza,
é sempre o mesmo em todos os povos e em todas as épocas, um
conjunto completo de regras jurídicas; a diversidade histórica dos
direitos, que parece ser incompatível com essa afirmação, deve ser
imputada em parte à imperfeição do pensamento, em parte ao direi­
to positivo, que é Inspirado pelo arbítrio ou por meras razões de
conveniência”.
Assim, ainda que em cada modo de produção social esteja
instalado um determinado direito, pecullarizado, em cada so­
ciedade coexistem vários modos de produção, de sorte tal
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 21

que o direito de cada sociedade resulta da coexistência, nela,


de vários modos de produção.
Em cada sociedade estatal coexistem vários modos de
produção social, ainda que um deles seja característico dela.
Ora, ainda que domine, nela, o direito pressuposto — e desse
tema adiante tratarei — do modo de produção dominante, o
direito posto (pelo Estado) de cada sociedade é resultante da
coexistência histórica de todos esses modos de produção.

Veja-se Aristóteles (1982/261): “il n’est pas possible, en effet,


que les mêmes lois soient bonnes pour toutes les démocratles, s'il
est vrai qu’il existe plusieurs espèces de chacun de ces régimes. et
non pas unlquement une seule démocratie ou une seule oligar-
chie” (IV. 1, 1289 a 20-25).
Daí por que, embora se possa referir um direito do modo
de produção capitalista, em cada sociedade manifesta-se um
determinado direito, diverso e distinto dos outros direitos, que
se manifestam em outras sociedades.

6. Este, pois, o aspecto que ora importa enfaticamente


pontualizarmos: não há que falar, concretamente, no direito,
senão nos direitos, ainda que se lhes possa reconhecer um
papel marcado, enquanto qualificados pela função ideológica
que cumprem, e se possa apontar características que ali­
nham o desenho de um modelo de direito próprio ao modo de
produção capitalista.
Isso, note-se, não compromete qualquer exposição em­
preendida no bojo de qualquer discurso que cogite abstrata­
mente do direito. Nem as que se seguirão, neste livro, nas
quais pretendo alinhar o desenho de certos modelos de direi­
to, considerados no plano do abstrato.

3. Sistem a e princípios ju ríd ico s

7. Do direito falamos, com freqüência, referindo-o como


“sistema jurídico”. Com isso queremos, conscientemente ou
não, aludir ao “sistema do direito” ou ao “sistema” que o di­
reito é. Tomamos, então, o direito como sistema.
24 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ção do conflito é demandada — há, pois, ao menos uma instituição


legal nesta sociedade primitiva. Dizemos, ademais, que o direito é
mecanismo tendente à regulação de conflitos mesmo quando atua
como instrumento de implementação de políticas públicas; estas
polítlcasi afinal, no Estado moderno, justificam-se na medida em
que coerentes com a prevenção dos conflitos sociais.

Quanto à noção de cortflito, desejo lembrar a seguinte ob­


servação de Antoine Jeammaud (reporto-me a conferência
que Jeammaud pronunciou, em 19 de fevereiro de 1994, em
Paris — Règles Juridiques et Conflits; texto não publicado): o
senso comum dos jurista s supõe que os enunciados (as re­
gras) jurídicos prestam-se a assegurar a paz, mediante o tra­
tamento de conflitos decorrentes de sua violação (violação
dessas regras); aí, nessa violação, o “disfunclonamento" do
direito; o conflito se manifesta, então, como a conseqüência
de uma violação das regras de direito. Impõe-se, no entanto,
distinguirmos conflito e litígio.
O que o direito resolve — prossegue Jeammaud — é a
oposição de pretensões Jurídicas; ou seja; o direito resolve lití­
gios, litígios que são limitados pelo objeto da demanda. Em
outros termos: o litígio é a redução do conflito.
' E mais; o litígio se desenvolve entre profissionais agindo
por mandato; e se desenvolve em um,campo específico. Logo,
o litígio é um momento, um episódio do conflito.
Isso se pode verificar com nitidez se imaginarmos um con-
Jlito conjugai no bojo do qual se manifeste o episódio de uma
separação judicial litigiosa, isto é, o litígio. O litígio é, nitida­
mente, um episódio do conflito.
De resto, não seria inusitàda a hipótese de litígio sem con-
Jlito, tantas vezes experimentada pelos profissionais do direi­
to com atividade forense.

12. Daí podermos afirmar que, de fato, o direito ê autopoié-


tico, na medidà em que, no interior do litígio, ele não trata de
problemas empíricos, de problemas sociais, porém apenas de pro­
blemas intémos a si próprio, de seus próprios problemas.

Neste sentido é que afirmo, obviamente com pontas de


ironia e de maldade, ser, o direito, autopoiético; não,, eviden­
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 25

temente, com Intenção de fazer coro com a exposição de Luh-


mann, do direito como sistema autopoiétíco, normativamente
fechado, cognltivamente aberto.
Pois não é senão disso que tratam, imediatamente, os ju ­
ristas — dos problemas do direito, apenas; os Juristas, em re­
gra, não tratam dos problemas que o direito estaria destinado
a resolver.

5. Políticas públicas e análise Jiincionaí do direito

13. A expressão política pública designa atuação do Esta­


do, desde a pressuposição de uma bem marcada separação
entre Estado e sociedade.
O modo de produção capitalista supõe a separação do Es­
tado e da sociedade, no que é reforçada a dicotomla direito pú­
blico/direito privado. Daí por que se afirma que toda atuação
estatal é expressiva de um ato de intervenção na ordem social.
Também aí a separação entre Estado e economia, o que confe­
re sentido às afirmações de que ele “intervém" e cumpre papel
de “regulação” da economia (Nicos Poulantzas 1977/33).
Assim, toda atuação estatal é, neste sentido, expressiva
de um ato de intervenção. O Estado contemporâneo atua, en­
quanto tal, intervindo na ordem social. A mera produção do
direito (onde a Instauração de uma ordem jurídica estatal), a
simples definição das esferas do privado e do público — está
última concebida como o universo dentro do qual gravitam
os interesses tidos como públicos (e que, por isso, encarnam
“questões públicas”) — , desde logo consubstanciam expres­
sões de atuação interventiva estatal.
É fora de dúvida, de toda sorte, que o Estado — institui­
ção somatório de instituições na sociedade inseridas — este­
ve sempre a “intervir” na ordem social e, por isso, a desenvol­
ver políticas públicas. O advento, neste século, do Estado “in-
tervencionista” desencadeia, contudo, um verdadeiro salto
qualitativo, que informa, enriquecendo-o, o conteúdo de suas
atuações.

14. A virada do século assiste ao declínio do capitalismo


concorrencial liberal. A economia de guerra e o evento da re­
26 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

volução bolchevista desferem-lhe golpes mortais. Sombrio o


futuro do capitalismo, impunha-se a sua renovação, para o
quê é chamado a atuar o Estado. A “mão Invisível” de Smith é
substituída pela mão visível do Estado. O Estado assume a
responsabilidade pela condução do processo econômico e,
com isso, os planos econômico e político se correlacionam
(ainda que jamais se tenham dissociado). O conhecimento a
respeito dos mecanismos econômicos, ademais, permitiu
que da economia política caminhássemos para a política eco­
nômica (Comparato 1978/463).
O Estado, entâo, já não “intervém” na ordem social exclu­
sivamente como produtor do direito e provedor de segurança.
Passa a desenvolver novas formas de atuação, para o quê faz
uso do direito positivo como instrumento de sua implemen­
tação de políticas públicas — atua não apenas como terceiro-
árbitro, mas também como terceiro-ord.enad.or.
O Estado social legitima-se, antes de tudo, pela realização
de políticas, isto.é, programas de ação; assim, o govemment by
policies substitui o govemment by law. Fábio Konder Compa­
rato (1985/407-408) observa que “o Estado social não se legi­
tima simplesmente pela produção do direito, mas antes de
tudo pela realização de políticas (policies), isto é, programas de
ação”; em outro texto (1989/102), averba: “O govemment by
policies, em substituição ao govemment by law, supõe o exer­
cício combinado de várias tarefas, que o Estado liberal desco­
nhecera por completo”.
Essas políticas, contudo, não se reduzem à categoria das
políticas econômicas; englobam, de modo mais amplo, todo o
conjunto de atuações eslatais.no campo social {políticas so­
ciais). A expressão políticas públicas designa todas as atua­
ções do Estado, cobrindo todás as formas de intervenção do
poder público na vida social. E de tal forma isso se institu­
cionaliza que o próprio direito, neste quadro, passa a mani­
festar-se como uma política pública — o direito é também, ele
própiio, uma política pública.
A circunstância de o Estado passar a desempenhar um
novo papel na ordem social produziu sensíveis reflexos na
própria teoria geral do direito — vide Bobbio (1977/87). Su­
pera-se a idéia de que a pesquisa da finalidade .e das funções
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 27

do direito seja tarefa monopolizada da sociologia; a leitura de


von Ihering (Der Zweck ím Rechí) toma-se atual.
Passa o Estado a dinamizar técnicas específicas de atua­
ção, técnicas que — a partir da consideração do direito brasi­
leiro — assim classifico; 1. atuação na economia: 1.1 atuação
por absorção, quando o Estado assume, em regime de mono­
pólio, o controle dos meios de produção e/ou troca de deter­
minado setor; 1.2 atuação p or participação, quando o Estado
assume parcialmente (em regime de concorrência com agen­
tes do setor privado) ou participa do capital de agente que de­
tém o controle patrimonial de meios de produção e/ou troca;
2. atuação sobre a economia: 2.1 atuação por direção, que
ocorre quando o Estado exerce pressão sobre a economia, es­
tabelecendo normas de comportamento compulsório para os
agentes econômicos; 2.2 atuação por indução; que ocorre
quando o Estado dinamiza instrumentos de intervenção em
consonância e na conformidade das leis que regem o funcio­
namento dos mercados. A classificação que proponho tem a
virtude de apresentar, com nitidez, o peculiar e distinto cará­
ter jurídico de cada uma das técnicas consideradas. Visua­
liza-se inicialmente a atuação do Estado como agénte econô­
mico (atuação na economia) e como regulador do processo eco­
nômico (atuação sobre a economia). Após, a atuação estatal
mediante a imposição de comandos imperativos, cogentes, a
serem suportados pelos agentes econômicos (atuação por di­
reção) e, de outra parte, mediante a utilização de mecanis­
mos do direito prernial. O impacto dessas técnicas de atua­
ção estatal reflete efeitos sobre a teoria geral do direito, o fe­
nômeno das sanções premiais e da prospèctividade do direito
reclamando a reanãlise da estrutura da norma jurídica. A
utilização do direito como instrumento de implementação de
políticas públicas coloca em pauta outro fenômeno, o da pro­
fusa produção de normas jurídicas pela Administração, que
Camelutti referiu como “inflação normativa”. O direito, ago­
ra, já não mais ordena exclusivamente situações estruturais:
a regulação de situações conjunturais, o que impõe sejam as
normas dotadas de flexibilidade e estejam sujeitas a contí­
nua revisibilidade, nos coloca novamente diante do conceito
de norma jurídica e dos traços que a caracterizam.
28 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

25. A afirmação de que o direito funciona como instru­


mento de implementação de políticas públicas tem o condão
de evidenciar a necessidade de o tomarmos como objeto de
análise funcional.
Note-se bem que análise funcional do direito nada tem a
ver com o Juncionalismo, teoria da sociedade; ela, simples­
mente, importa que se questione as funções do direito.
Embora desde a vertente funcional já viesse sendo desen­
volvida a análise marxista,2um dos seus momentos mais re­
levantes é produzido por Norberto Bobbio (1977), em suas
exposições sobre a função promocional do direito.
Observe-se, de toda sorte, que as idéias de função promo­
cional do direito e de “persuasão” portam em si o intento de
desmentir a afirmação de que o direito não é senão um dis­
curso mais benigno, que “persuade” e “promove”, não porém
pelo terror, mas pelo "convencimento”. Nisso, evidentemen­
te, uma apologia de um certo Estado, produtor de sojt law —
e do direito, que já não poderia ser descrito como discurso
que organiza a violência.

Importante, contudo, a fim de que não nos percamos na ambi­


güidade que tais ideais instalam, distingulrmos entre os sentidos
deôntico e ideológico do direito (v. Oscar Correas, “Kelsen y las difi-
cultades dei marxismo”, in Critica Jurídica 5/75).

Averba Bobbio: “La funzione di un ordenamento giuridico


non è solo quella di controllare i comportamenti degli indivi-
dui, il che può essere ottenuto attraverso la técnica delle
sanzioni negative, ma anche quella di dirigere i c’o mporta-
menti verso certi obiettivi prestabiliti” (1977/87). Observe-
se, de toda sorte, que, embora se possa dizer que o direito
“dirige”, no sentido de encaminhar, persuadir, toda e qual­
quer permissão pode ser reescrita como proibição; todo e
qualquer “direito” pode ser reesciito como dever ou obriga­
ção de outrem.

2. V.g., Karl Renner, Gíí ístltuti dei dtrítto privato e la loro funzione
giurídica, trad. de Comclta Mittendorfer, Bologna, II Mulino, 1981.
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 29

Vincenzo Ferrari, após, em detida monografia sobre as


funções do direito (1987/87 e 90), as Identifica como as fina­
lidades às quais é preordenado o uso da modalidade de ação
social que anteriormente identifica como jurídica — ou seja,
consistente na persuasão dos interlocutores mediante a in­
fluência de mensagens normativas hipotéticas, institucio­
nais, ‘justificáveis” . Importa considerar, nesse contexto, as
finalidades efetivamente funeionalizadas pelo direito — e não
as que deveria ó direito funcionalizar (perspectiva axiológica)
ou a sua contribuição objetiva à estabilidade, ao equilíbrio
ou à vida de um sistema social (sobre a distinção entre causa
e motivo de um negócio jurídico — causa como “Junção eco-
nômico-social” — Vincenzo Ferrari 1987/24; sobre a distin­
ção entre causa, em sentido jurídico puro, ejim ção, em senti­
do sociológico-jurídico, 1987/88-89).

16. A busca de determinação das finalidades e das fun­


ções do direito — repito-o — não é tarefa exclusiva, monopo­
lizada, da Sociologia do Direito. Ao fazê-lo, apenas o toma­
mos (cada direito) pelo seu conteúdo — que é variável — . re­
cusando-nos a concebê-lo unicamente desde a perspectiva
formal. A crítica do direito, por outro lado, supõe recusa da
análise exclusivamente estrutural. E porque a exposição que
a partir dela se empreende não compreende exclusivamente
o tratamento de uma questão científica, mas de qúestão políti­
ca, o recurso à análise funcional envolve postura de deste-
mor diante das influências, tidas como desestabllizadoras —
e, mesmo, subversivas — , que os estudiosos das demais
ciências sociais exercem (ou deveriam exercer) sobre nós ou­
tros, estudiosos do direito (Jeammaud 1986/48).3
Essa postura, evidentemente, confllta com aquela à qual adere
grande parte da nossa doutrina, inebriada ainda — deve-se dizer
— na análise estrutural kelseniana. A importância maior da atitu­
de dos kelsenianos, fundada na análise estrutural, está, aliás,
como já se afirmou, não no seu objeto de estudo, mas, sim, preci­

3, Cumpre-nos — se não nos bastar uma visão apenas parcial do fenô­


menojurídico (o fenômeno normativo, v.g.) — desenvolver nossas Indagações
no campo, sem limites, da “ciência cooperativa".
30 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

samente, no que ela deixa de estudar (Correas 1982/12). Cumpre


apartar, porém, Kelsen dos kelseníanos. Apologistas do direito são
estes últimos. Kelsen, contudo, mantêm permanente posição de
hostilidade em relação a ele. A crítica do’ direito, que produz, é for­
mal, na medida em que, para ele, todo e qualquer direito, sempre,
é descritível como forma de controle e, logo, de dominação social
Daí a necessidade de revisitar-se, criticamente, a obra de Kelsen.

A função do direito, para Kelsen, é a de permitir a realiza­


ção de fins sociais que não podem ser atingidos senão atra­
vés dessa forma de controle social —■o direito não é um fim; é
um meio; quais sejam esses fins, isso varia de sociedade para
sociedade; esse é um problema histórico, não um problema
que possa interessar à teoria do direito (Bobbio 1977/211 e
64 e ss.).
A opção pela análise funcional do direito, de toda sorte,,
não há de ser feita de modo a nos alinharmos entre os acó­
litos de uma interpretação “funcionalista” dele, que se con­
forme em aíirmar a inviabilidade da transformação da ordem
jurídica capitalista. Cumpre, para tanto — tal qual recomen­
da Antoine Jeammaud (1986/59) — , não nos contentarmos
em “determinar as ‘funções’ estruturadoras e reguladoras do
direito nas relações sociais, mas sim procurarmos compreen­
der como os mecanismos e as representações jurídicas orga­
nizam e regulam as relações empíricas dos indivíduos, gru­
pos específicos e classes dentro de sociedades históricas”.
É necessário sublinharmos, ainda, que, esta análise fun­
cional, não se a pode empreender dissociada da considera­
ção das determinações históricas que dão caráter à socieda­
de cujo direito analisamos: h á de ser ele visualizado como
“uma prática social específica que expressa historicamente
os conflitos e tensões dos grupos sociais e dos indivíduos
que atuam em uma formação social determinada” (Cárcova
1988/144).

6. A visão Jorm alista e positivista do direito


e a doutrina real do direito
17. Formalismo e positivismo são as marcas que caracte­
rizam metodologicamente o pensamento jurídico moderno.
1— NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 31

Mas o formalismo, cujas construções são apoiadas sobre


um discurso abstrato, de proposições reduzidas, é insuficien­
te para explicar o direito. Este, ainda quando concebido no
plano abstrato, é objeto histórico-cultural, apresentando-se,
hoje, “como o produto de uma inabarcável complexidade cau­
sai que impossibilita, por completo, explicações integralmente
lógicas ou racionais” (Menezes Cordeiro 1989/XXIX-XXX).
Quanto ao positivismo — concebido como sustentado so­
bre o postulado básico da recusa de quaisquer “referências
metafísicas” — , sua fragilidade e inconsistência desnudam-
se, observa ainda Menezes Cordeiro (1989/XX-XXIII), ao co­
gitarmos de quatro aspectos.
Em primeiro lugar, um positivismo jurídico não pode ad­
mitir a presença dê lacunas, que, não obstante, manifestam-
se no sistema jurídico. Como, em regra, os positivistas não re­
conhecem nos princípios o caráter de norma jurídica, quando
se defrontam com lacunas não apresentam para elas solu­
ções materiais; a sua integração se dá à margem da chamada
ciência do direito, ou seja, do pensamento jurídico.
Em segundo lugar, o positivismo encontra dificuldades
insuperáveis para explicar os chamados “conceitos indeter­
minados”, as normas penais em branco e as proposições ca­
rentes de preenchimento com valorações. O positivismo, as-,
sim, acaba por cair na discricionariedade (mas discriciona-
riedade que se transforma em arbítrio) do juiz.
Em terceiro lugar, o positivismo é também inoperante di­
ante dos conflitos entre princípios. Resta-lhe negá-los, igno­
rá-los, remeter sua solução à discricionariedade do juiz ou —
o que tem sido mais praticado — neles não reconhecer o ca­
ráter de norma jurídica. Na adoção dessa última alternativa,
contudo, as insuficiências do positivismo tomam-se mais
agudas, pois isso importa que se tenha de admitir que o sis­
tema de normas está integrado por não-normas (ou que o sis­
tema é operacionalizado mediante a consideração de elemen­
tos externos a ele).
Em quarto lugar, o positivismo não tem como tratar da
questão da legitimidade do direito. Por isso que, no seu qua­
dro, a legalidade ocupa o lugar da legitimidade.
32 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

18. Tenho sido um critico sistemático do formalismo e do


positivismo, tendo dedicado páginas à censura dos positivis­
tas (Grau 1988/28-34).
A análise do direito — e, note-se: não me refiro apenas ao
estudo do direito, mas ã sua anáUse, empreitada de censor, e
não de expositor, de um objeto — , a análise do direito, dizia, re­
clama a determinação de suas finalidades, o que a tom a análise
funcional. Isso importa tornarmos o direito — e cada direito, so­
bretudo — também pelo seu conteúdo (empírico e axiolõgico},
que é variável. Não se cuida, portanto, como sé vê, no empreen­
dimento dessa análise, de prática de análise formal.
Por isso mesmo impõe-se-nos a exorcização tanto de te­
ses que fragmentam o conhecimento do direito quanto de te­
ses que fragmentam o direito enquanto objeto de conheci­
mento.
Ao estudioso do direito cumpre também conhecê-lo des­
de a perspectiva sociológica. E, por outro lado, a ele se impõe
recusar as reduções do direito, por exemplo, à ciência da
norma, ao procedimento, à tópica.
O normativista — e isso denuncia o caráter individualista
do seu pensamento — vê o direito, como observa Bobbio (1977/
133), sub especie relationis, partindo de uma consideração
atomística da sociedade.
Fui um crítico exacerbado de Kelsen, ousadamente, até o
momento em que verifiquei que há dois Kelsen: o verdadeiro,
crítico formal do direito, e aquele em que o transformam al­
guns dos seus leitores. Percebi, então, que minhas críticas a
Kelsen deveriam ser não a ele destinadas, porém a alguns
supostos kelsenianos, aqueles que fazem com que a teoria
de Kelsen seja importante não pelo que estuda, mas sim pelo
que deixa de estudar.
Basta a visualização do sistema jurídico como uma ordem
teleológica, de toda sorte, pàra que o edifício do formalismo
jurídico resulte 'destruído; basta referirmos o direito pressu­
posto para que sejam desnudadas as insuficiências metodo­
lógicas do positivismo.
Não obstante, observo ainda que a construção kelseniana
é expressão de uma determinada postura ideológica, erigida
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 33

desde a visualização da ordem jurídica como um conjunto de


normas sancionadas pelo Estado. Essa visualização é conse­
qüência ou derivação do liberalismo individualista dominan­
te na política e na economia a partir do século XVIII (Madrazo
1965/6). E isso, paradoxalmente, ainda que a teoria kelse-
niana se preste a justificar qualquer espécie de autorita­
rismo, na medida em que esvazia o direito de qualquer senti­
do axiológico. Daí o ciclo verdadeiramente trágico experi­
mentado pelos que, vinculados ao ideário do liberalismo eco­
nômico e político, são guardiães de uma construção teórica
sempre disponível aos autocratas.
Os kelsenianos são vítimas também da postura metodo­
lógica que assumem diante do direito, como objeto de conhe­
cimento, divisando-o apenas enquanto forma. Isso conduz,
inexoravelmente, a um método peculiar de apreciação das
noções jurídicas: a lógica dessas noções é buscada exclusi­
vamente na razão teórica. É, no entanto, evidente que o direi­
to e as normas jurídicas não podem ser considerados apenas
em sua estrutura abstrata, sem referência à sua função no
contexto social. A respeito, permanecem válidas as palavras
de von Ihering (1943/17): “Não é, pois, o conteúdo abstrato
das leis, nem a justiça escrita no papel, nem a moralidade
das palavras, que decidem o valor dum direito; a sua realiza­
ção objetiva na vida, a energia, por meio da qual o que é co­
nhecido e proclamado, como necessário, se atinge e executa
— eis o que consagra ao direito o seu verdadeiro valor” .
Ao construir uma teoria pura, esvaziada de toda a ideolo­
gia política e de todos os elementos científicos naturais, Kel­
sen construiu uma teoria apartada do jurídico, na medida em
que, como observa Adomeit (1984/46-47), uma ordem jurídi­
ca sem o político resulta carente de impulso, morta; uma
ciência do direito permanece fragmentária se reproduz um
corpo sem coração. Daí por que os kelsenianos hão de se pre­
ocupar única e exclusivamente com a estrutura lógica das
normas jurídicas, sem cogitar de sua interpretação/aplica­
ção — tais cogitações estão para além da teoria pura. Para
que tomem conhecimento do mundo no qual se vive o direito
são obrigados a descer do seu altiplano teórico, para se po­
rem a braços com a Dogmática.
34 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

A propósito das contradições da concepção kelseniana da


norma fundamental, de resto, anota Bobbio (1967/55-56)
que, fundando-se a validade desta,sobre a efetividade do po­
der, transforma-se em uma concepção inócua e supérflua:
sua função é legitimar um poder que encontra sua legitimi­
dade não na circunstância de ser autorizado por uma norma
superior, m as sim no fato de ser efetivamente obedecido. Em
outras palavras: a norma fundamental tem por função legi­
timar um poder que não tem nenhuma necessidade de legiti­
mação jurídica, eis que encontra a sua legitimidade na sua
própria existência. Se o poder último é um poder cuja carac­
terística particular consiste no fato de que sua validade de­
pende de sua efetividade, qual a necessidade de se o validar
através de uma norma superior? Se o poder último é um po­
der de fato, logicamente não reclama norma nenhuma que o
autorize. São cáusticas, aliás, as observações de Hermann
Heller( 1977/216) a respeito da exposição de Kelsen: sua teo­
ria — que é uma teoria do Estado sem Estado — apresenta-se
como impossível, porque é uma teoria do direito sem direito,
uma ciência normativa sem normatividade e um positivismo
sem positividade.
Kelsen realiza a aspiração, dos juristas do final do século
XIX, de fazer ciência, no conceito positivista de ciência, dota­
da de rigor, axiomatizada. O clima positivista do final do sé­
culo XIX clamava por uma “ciência do direito”. Todo o conhe­
cimento, então, era expressado em termos de ciência positi­
va. Natural que os juristas, artífices da jurisprudência, tam­
bém reclamassem para si a qualidade de “cientistas”. Kelsen
os satisfaz, construindo, porém, não uma ciência do direito,
porém a ciência das normas jurídicas. O objeto da teoria pura,
assim, não é o direito, porém as normasjurídicas.
Com isso, Kelsen escapa do desafio de cogitar de um obje­
to ético, substituindo-o, desde a perspectiva que toma para o
desenvolvimento da sua ciência do direito, por um objeto es­
tético. Não exagero: é à consideração de relações formais, com
sentido estético — abandonada qualquer meditação de ordem
ética —, que se volta a análise das normas jurídicas, objeto
da teoria pura do direito. A teoria pura do direito consubs­
tancia, assim, uma teoria juríd ica formal, que, enquanto clên-
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 35

cia, configura um sistema fechado, com legalidade própria,


que não se abre para o campo da metaciência. Seus concei­
tos fundamentais não são definidos: a ciência postula axio­
mas. A teoria pura é concebida como um sistema fechado —
atemporal e inespacial— no qual não há lugar para a con-
ceituação do direito.
A virtude do pensamento kelseniano está justamente na
eleição de axioma que, por não ser definível, confere ao direito
a compostura de ciência. Por isso, diante das duas indagações
— quid juris, quid ju s —, o kelseniano só tem resposta para a
primeira. A atenção que fosse por ele conferida à segunda in­
dagação faria desmoronar todo o edifício da sua ciência. Te­
nho, assim, que os pontos críticos denunciados na teoria pura
do direito decorrem de uma necessidade interna a ela. O rom­
pimento dos limites do seu universo — constituído pela consi­
deração, no nível abstrato, das normas jurídicas — importaria
a ruptura do sistema e o perecimento da ciência*

19. Convencido da insuficiência da exposição kelsenia-


na, tenho de há muito, mesmo anteriormente ao meu conhe­
cimento dos movimentos da crítica do direito, feito referên­
cias a uma doutrina real do direito, que oponho ã teoria jurídi­
ca formal. Isso em parte era devido a uma — por certo — exa­
gerada recusa desta última, que não se pode, no entanto,
deixar de estudar com afinco.
Parece-me virtuosa a referência a ela — ã doutrina real do
direito — como campo no qual praticamos o pensar (a busca
dos significados), e não meramente o conhecer (a busca da
verdade). Insisto em que não há, no direito, o verdadeiro, mas
apenas o aceitável (justificável). A doutrina real do diieito é,
fundamentalmente, mas não exclusivamente, um sistema
semiológico, ao passo que a teoriajurídicaformal é um sistema
lógico. O direito, de resto, não é uma questão cientifica., porém
uma questão política (Oscar Correas 1982/13).
Ademais, o que me parece suficiente a justificar perseve­
rança no trato do modo de pensar assim designado — pois a
doutrina real do direito não designa, para mim, senão isso,
um modo de pensar o direito — , o que me parece suficiente a
justificá-lo, dizia, é o fato de que a sua compreensão plena
36 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

(do direito) transcende a análise exclusivamente da norma.


Não se trata apenas de afirmar que o direito é norma, decisão
e ordenamento e estrutura, mas, sobretudo — repito — , que
o direito é instância da realidade. E que o direito é apreendi­
do do exterior: é uma criação do homem, não redutível às ca­
tegorias e modelos rígidos da lógica formal (Menezes Cordei­
ro 1989/LXI).
Sabê-lo nos coloca diante de inúmeros desafios.
Uma enorme distância aparta o direito positivo — porque
apenas a ele, direito posto pelo Estado, temos dedicado aten­
ção — dos estudos jurídicos que praticamos. É necessário
transpormos essa distância, ainda que isso reclame coragem
e ousadia. Coragem para reformularmos conceitos, critérios
e princípios. Coragem para rompermos com esquemas estru­
turados sobre concepções antigas, no quadro de técnicas de
ensino jurídico ultrapassadas — coragem de criarmos nossos
próprios caminhos, o que reclama ousadia.
Que tanto não nos falte, já que, afinal, não merece o privi­
légio de viver o seu tempo quem não é capaz de ousar.

7. O direito: ciência ou p ru d ên cia ?


20. A indagação assim formulada — “é o direito uma
ciência?" — é análoga à que nos seguintes termos se introdu­
zisse: "as relações entre a terra e o homem são uma ciência?”
Todos sabemos que as relações entre a terra e o homem
não são uma ciência, mas, sim, que há uma ciência — a geo­
grafia humana — que estuda e descreve as relações entre a
terra e o homem.
O mesmo ocorre em relação ao direito. O direito não é
uma ciência. O direito é estudado e descrito; é, assim, tomado
como objeto de uma ciência, a Chamada ciência do direito.
Essa a primeira.-verificação que cumpre sublinhar: o di­
reito não é uma ciência, porém o objeto de uma ciência.

21 . O direito é normativo. O direito não descreve; o direi­


to prescreve.
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 37

Atada quando um texto normativo descreve uma coisa,


estado ou situação, é prescritivo. Ele descreve para prescre­
ver que aquela é a descrição do que cogita.
A ciência que o estuda e descreve não é, no entanto,
normativa. É, enquanto ciência, descritiva.
Impõe-se distinguirmos, assim, a ciência do direito e seu
objeto, o direito. A primeira descreve — indicando como, por
quê e quando — este último.
Essa distinção é de importância fundamental, e inúmeras
vezes deixam de percebê-la os estudiosos do direito. Por isso
se perdem, também inúmeras vezes, esses estudiosos, em
raciocínios contraditórios e equivocados. Um dos temas, por
exemplo, para cujo tratamento é basilar a distinção é o referi­
do aos princípios. Há que ter bem distintos, porque diversos
são, entre si, os princípios do direito e os princípios da ciência
do direito.

22. Sendo, o direito, o objeto da ciência do direito, dela


cumpre cogitarmos.
A ciência do direito produz enunciados sobre o seu obje­
to, isto é, produz enunciados sobre o direito.
Sucede que não há apenas uma ciência do direito, porém
um conjunto de ciências do direito.
Assim, entre as ciências do direito encontramos a Filoso­
fia do Direito, a Teoria Geral do Direito, a História do Direito,
a Sociologia do Direito, a Dogmática Jurídica ou Jurispru­
dência teórica.
Observe-se desde logo que a Jurisprudência prática e o di­
reito (= cada direito) são uma coisa só, ou seja, o objeto da
ciência do direito. Logo, o uso das palavras, aqui também, há
de ser prudente: ao referir a Dogmática do Direito estamos,
concomitantemente, aludindo ã Jurisprudência teórica; ao
referir a Jurisprudência prática, estamos a aludir ao próprio
direito (= a um determinado direito, em regra um direito posto
pelo Estado, isto é, um direito positivo; vale dizer, o direito bra­
sileiro).
' Todas as ciências do direito são ciências sobre o direito. As­
sim, as linguagens das ciências do direito são metcdinguagens.
38 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Dizemos que o direito — objeto da ciência do direito —


não é uma ciência porque, nele, não há possibilidade de defi­
nirmos um a solução exata, senão, .sempre, um elenco de so­
luções corretas. Esta afirmação — de que o direito não con­
duz a soluções exatas, porém a conjuntos de soluções corre­
tas — é um a afirmação sobre o direito e pode, neste plano, ser
tida como um a afirmação científica, porque exata, pronuncia­
da em uma instância de ciência do direito, por quem esteja a
descrever o direito.

Tomo a ciência, neste contexto, como um discurso (conjunto de


enunciados) com pretensão de verdade objetiva, discurso cujo últi­
mo fundamento de validade ê a rdzão (Vemengo 1988/15). Sus­
tento que minha afirmação — de que o direito não conduz a solu­
ções exatas, porém a conjuntos de soluções corretas — é científica
porque a posso racionalmente demonstrar, como a seguir farei; não
obstante, hã quem afirme, cientificamente, precisamente o inverso.

23. Cada uma das ciências do direito o estuda desde uma


perspectiva peculiar. Confundem-se, porém, com freqüência,
os seus âmbitos, de sorte que um dos maiores problemas que
hoje se coloca para o estudioso das ciências do direito é ju s­
tamente o de delimitar o âmbito da teoria do direito (Larenz
1983/73-75).
A Filosofia do Direito, a Sociologia do Direito, a Teoria do
Direito (aí, a Lógica Jurídica ou Lógica Normativa) têm por
objeto o direito em geral.
Já a Dogmática ou Jurisprudência teórica ocupa-se de
um determinado direito, ainda que, para tanto, recorra a refe­
rências, em análises de direito comparado, a outros direitos
(Larenz 1983/75). A Dogmática tem por objeto o estudo de
problemas jurídicos, a serem resolvidos mediante a aplica­
ção, sobre as situações a que respeitam, das normas desse
direito. Está voltada, assim, à indicação de critérios a serem
adotados para a solução de litígios.
A solução desses litígios, no entanto, opera-se no mo­
mento da sua aplicação (= interpretação/aplicação) a cada ca­
so concreto. A Dogmática auxilia a tomada de decisões jurí­
dicas, mas não apenas o dogmático — se assim nos for per­
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 39

mitido chamã-lo — não as toma pelos que as devem tomar


(isto é, pelos juizes), mas também (enquanto só dogmático)
não tem aptidão suficiente para definir qual a decisão que,
em cada caso concreto, deve ser tomada.
A interpretação é atividade que se presta a transformar
disposições (textos, enunciados) em normas; é meio de ex­
pressão dos conteúdos normativos das disposições, meio atra­
vés do qual o juiz desvenda as normas contidas nas disposi­
ções (Zagrebelsky 1990/68 e ss. e Grau 1995/5-7, 1997a/55
e ss. e 1998/65 e ss.). Por isso as normas resultam da inter­
pretação. O intérprete dotado de poder suficiente para assim
criar as normas, a partir delas construindo, em cada caso, a
norma de decisão, é o intérprete autêntico, no sentido conferido
a essa expressão por Kelsen (1979/469 e ss.) — isto é, funda­
mentalmente, o juiz. Não obstante, também os que não preen­
chem os requisitos do intérprete autêntico (os que não são ju i­
zes) interpretamos/aplicamos o direito, até o momento ante­
rior à norma de decisão. No exemplo que atribuo a Camelutti,
o homem faminto que, ao passar por uma barraca de frutas,
não arrebata uma maçã nada mais faz do que interpretar/apli-
car o direito. Nesse caso, no entanto, a interpretação/aplicação
do direito é procedida para evitar conflitos — ou produz a sua
instalação — , não para solucionar um litígio, por isso mesmo
inocorrendo, aí, o momento da norma de decisão.
Assim com a Hermenêutica, parte da Dogmática que res­
peita a como interpretar, mas não indica uma ou a interpreta­
ção verdadeira, também a Teoria Geral do Direito não se
presta a instrumentar a indicá-la, ainda que uma sua seção
estude a decisão jurídica. Esta teoria — teoria sobre a de­
cisão jurídica — , contudo, descreve como se decide, mas não
indica o que se deve decidir. É uma teoria sobre a decisão, e
não uma teoria da decisão.
Isso sucede porque o direito, como tenho insistido, não é
uma ciência e as decisões no seu âmbito tomadas não são
decisões cientificamente determinadas.
Como o direito reclama interpretação — na medida em que
apenas desde que interpretado ele se realiza como jurispru­
dência prática (pois ele é a.jurisprudência prática) — e a inter­
pretação é uma prudência, devo necessariamente concluir
que o direito é uma prudência.
40 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

24. Tenho sustentado, reiteradamente, em outros textos,


que a interpretação é uma prudência— o saber prático, a phró-
nesis, a que refere Aristóteles, na Ética a Nicômano. O homem
prudente, diz o estagirita, é aquele que é capaz de deliberar cor­
retamente sobre o que ê bom e conveniente para si próprio, mas
não sob um aspecto particular (como, por exemplo, aquelas coi­
sas que são boas para a saúde e o vigor), porém de um modo ge­
ral, (considerando) aquelas coisas que conduzem à vida boa em
geral (VI, 5 1.140 a, 25). O homem prudente é aquele capaz de
deliberação. Mas jamais deliberamos sobre coisas que não po­
dem ser de outro modo, nem sobre coisas que não dependem de
nós; por conseqüência, se é verdadeiro que a ciência envolve de­
monstração, mas as coisas cujos princípios podem ser outros
não admitem demonstração (porque todos são igualmente sus­
cetíveis de ser o que não são — isto é, de ser diferentemente;
ou seja: são contingentes) — (VI, 5 1.140 a, 30), e não é possí­
vel deliberar sobre coisas que são por necessidade (VI, 5 1.140
a, 35), a prudência não pode ser nem uma ciência nem uma arte
(VI, 5 1.140 b). O objeto da ciência é demonstrável. A arte visa
à geração (produção) e aplicar-se a uma arte é considerar o mo­
do de produzir alguma coisa que tanto pode ser como não ser,
cujo princípio de existência está no artista e não na coisa produ­
zida. A arte não se ocupa com as coisas que são ou que se ge­
ram por necessidade, nem com os seres naturais, que encon­
tram em si mesmos seu princípio (sua origem) (VI, 5 1.140 a,
10). Assim, a prudência não é ciência nem arte. A prudência é
uma virtude (VI, 5 1.140 b, 20). Logo, a prudência ê uma dispo­
sição (capacidade), acompanhada de razão, capaz de agir na
esfera do que é bom ou mau para. um ser humano (VI, 5 1.140 b,
5): ou, dizendo-o de outro modo, capaz de agir na esfera dos
bens humanos (VI, 5 1.140 b, 20). A prudência é, pois, razão in­
tuitiva, que não discerne o exato, porém o correto — não é saber
puro, separado do ser.
O intérprete autêntico, ao .pnxíuzir normas jurídicas, pra­
tica a ju ris prudentia e não uma j uris scíentia. O intérprete au­
têntico, então, atua segundo a lógica da preferência, e não
conforme a lógica da conseqüência (Comparato 1979/127): a
lógica ju ríd ica é a da escolha entre várias possibilidades cor­
retas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma
I — NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE O DIREITO 4í

entre várias Interpretações possíveis, de modo que a escolha


seja apresentada como adequada (Larenz 1983/86). A norma
não é objeto de demonstração, mas dejustificação.
Por isso a alternativa verdadeiro /falso é estranha ao di­
reito; no direito há apenas o “aceitável” [justificável}. O senti­
do do justo comporta sempre mais de uma solução (Heller
1977/241).
Daí por que afirmo que a problematização dos textos nor­
mativos não se dá no campo da ciência: ela se opera no âmbi­
to da prudência, expondo o intérprete autêntico ao desafio
desta, e não daquela. São distintos um e outro: na ciência, o
desafio de, no seu campo, existirem questões para as quais
ela (a ciência) ainda não é capaz de conferir respostas; na
prudência, não o desafio da ausência de respostas, mas da
existência de múltiplas soluções corretas para uma mesma
questão (Adomeit 1984/36).
Não se tome, no entanto, a afirmação de que a interpreta­
ção do direito não é ciência, mas prudência, como assertiva de
que as decisões jurídicas são imprevisíveis. Isso não é exato.
Precisamente por essa razão, porque são inúmeros os senti­
dos de uso do vocábulo ciência, nada nos impede sustentar
que a decisão jurídica, porque há de ser previsível, estrutura-
se cientificamente (Menezes Cordeiro 1989/LXII). Mas “cienti­
ficamente”, aqui, significa exclusivamente decisão consumada
segundo determinadas regras. Como a prudência, é sempre im­
plementada segundo certas regras, que asseguram um míni­
mo de previsibilidade à decisão nela fundada, poderia ser refe­
rida como cientificamente estruturada.

25. Nego, assim, a existência de uma única resposta cor­


reta (verdadeira, portanto) para todos os casos jurídicos —
ainda que o intérprete autêntico esteja, através dos princí­
pios, vinculado pelo sistema jurídico.
Nem mesmo o ju iz Hércules (Dworkin 1987/105) estará
em condições de encontrar, para cada caso, a única resposta
correta. A concepção dworkniana de one right answer, ade­
mais de tudo, perece no momento em que sustentada sobre a
busca da “melhor teoria possível” como ideal absoluto: na re­
42 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

cusa da pretensão a valores absolutos, porque inserida no


quadro de uma teoria dos valores inaceitável, essa “melhor
teoria possível” resulta um postulado filosófico injustificável
(Aamio 1992/204). Nem os princípios, nem a argumentação
segundo um sistema de regras que funcione como um código
da razão prática (Gesetzbuch der prakttschen VernunfL) (Alexy
1983/35), permitirão o discernimento da única resposta cor­
reta. Essa resposta verdadeira (única correta) não existe.
Pois a interpretação é convencional. Não possuindo reali­
dade objetiva com a qual possa ser confrontado o seu resul­
tado (o interpretante), inexiste uma interpretação objetiva­
mente verdadeira (Zagrebelsky 1990/69).

26. Podemos concluir, destarte, afirmando que o direito,


objeto das ciências do direito, não é uma ciência, mas uma
prudência. Já, aquelas — concebida a ciência como um dis­
curso (conjunto de enunciados) com pretensão de verdade ob­
jetiva, discurso cujo último jundam ento de validade ê a razão
— devem ser tidas como ciências.
n
O DIREITO POSTO E O D IR E IT O PRESSUPOSTO

1. Nota introdutória. 2. A relação entre economia e direito. 3. O direito


posto e o direito pressuposto. 4. Direito pressuposto e princípios. 5. O
direito pressuposto, ainda. 6. Ainda o direito posto. 7. A noção de “di­
reito pressuposto” na literaturaJurídica. S. A pretexto de conclusão.

1. Nota introdutória
1. Há anos cheguei à conclusão, nos meus estudos, de
que é equivocada a descrição, extraída à leitura de Marx, do
direito como mero reflexo da economia. A explicação do fenô­
meno jurídico — sempre me pareceu assim — havia de ser
empreendida a partir da consideração das condições históri­
cas da sociedade na qual ele se manifesta.
Essa explicação, desenvolvi-a, para mim mesmo, median­
te a adoção das noções de direito posto e de direito pressupos­
to. Pretendi, ao assim explicá-lo, privilegiar a sua dimensão
axiológica sem aderir às construções de caráter metafísico
que marcam a noção de direito natural. Cogito, destarte, de
uma explicação histõrico-cultural, que apenas poderia ser
aproximada a um “direito natural histõrico-cultural”; se for
assim, não me oporei a recebê-lo, com a ressalva, contudo,
de que a idéia de direito pressuposto prescinde dele (uma con­
cepção de direito natural é que terá se aproximado da concep­
ção de direito pressuposto, não o inverso).
Pretendi encontrar o fundamento do direito posto na socie­
dade que historicamente o pressupõe, o que me leva a tratar
44 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

não de um direito absoluto, mas do direito de uma determina­


da sociedade (o direito não existe; existem os direitos), aquela
sociedade n a qual ele está inserido. No direito pressuposto
encontramos os princípios (jurídicos) dessa determinada so­
ciedade.
Ademais, após observar que o direito é produzido a partir
de múltiplas inter-relações, compreendi a necessidade de o
pensarmos dialeticamente, estudando-o em movimento, em
constante modificação, formação e destruição — isto é, como
de fato ocorre na realidade concreta.
Por fim — mas ainda não dizendo tudo, nem mesmo se­
não uma pequena parcela do essencial — , pretendi negar
que o direito positivo (direito posto) seja a expressão de uma
classe dominante; ele é a tradução da correlação das forças
produtivas existentes. O direito acolhe as contradições das
relações sociais, reproduzindo-as, de sorte que, nele, os pa­
radoxos não configuram anomalias, porém elementos essen­
ciais do seu discurso.
Ouvi de colegas, com os quais troquei idéias a respeito
das noções (de direito posto e direito pressuposto), além de ob­
servações bastante judiciosas, alguma crítica a minha alusão
à exposição de Marx, desde a qual as estruturo. Um deles,
europeu, chegou, mesmo, a ponderar que qualquer alusão ao
marxismo poderá comprometer o marketing das noções (não
esquecer que a tradução francesa do livro de Domenico Lo-
surdo sobre Hegel, Marx e os liberais castrou, do título da
obra, o vocábulo “Marx”!). Tudo isso seria risível — também o
cinismo faz rir — se não fizesse prova de que o caráter de cer­
tos intelectuais é flexível, mais ainda do que a espinha dorsal
dos próprios; e de que os cripto-intelectuais efetivamente es­
tão convencidos de que seria possível tratar as etapas da evo­
lução do pensamento humano como se pode manipular cai­
xas de verduras em uma central de abastecimento, dispon-
do-as de modo que as de tomate ora precedam as de alface,
ora hão as precedam, e atirarido ao lixo as de batatas sadias.

2. A relação entre econom ia e direito


2. Ao deitarmos atenção ao tema da relação entre econo­
mia e direito cuidamos de discernir o lugar do direito na es­
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 45

trutura social global. Uma das posturas que se poderia ado­


tar a esse respeito -— mas não se deve adotar, logo veremos —
parte da suposição, equivocada, de que o direito corresponde
a um mero reflexo da economia. Essa suposição decorre de
uma leitura equivocada de Mãrx.
Lê-sé no “Prólogo” da Contribuição ã crítica da economia
políticai1 “Nos meus estudos cheguei ã conclusão de que as
relações jurídicas, assim como as formas políticas, não po­
dem ser compreendidas nem por si mesmas, nem pela pre­
tensa evolução geral do espírito humano, fundando-se, pelo
contrário, nas condições materiais de existência, cuja totali­
dade é agrupada por Hegel, a exemplo dos ingleses e dos fran­
ceses do século XVIII, sob a denominação de ‘sociedade civil*,
em razão do quê era necessário buscar a anatomia da socie­
dade civil na economia política. Comecei em Paris a desen­
volver esta investigação, prosseguindo-a em Bruxelas, para
onde havia emigrado após uma sentença de expulsão de M.
Guizot. A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez al­
cançada, serviu de fio condutor aos meus estudos pode ser
resumidamente formulada da seguinte maneira. Na produ­
ção social de sua existência, os homens entram em determi­
nadas relações, necessárias, independentes de sua vontade,
relações de produção que correspondem á um determinado
grau de desenvolvimento de suas forças produtivas mate­
riais. A totalidade dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual
se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual cor­
respondem formas de consciência social determinadas. O
modo de produção da vida material determina o processo so­
cial, político e intelectual da vida em geral. Não é a consciên­
cia do homem que determina o seu ser, mas sim, pelo contrá­
rio, seu ser social é que determina sua consciência. Em um
determinado estado do seu desenvolvimento, as forças mate­

1. Confrontei, para a tradução ao Português, as seguintes edições: Zur


Kritík der Polítischen Okonomie, Erstes Heft, Berlin, Dietz Verlag, 1987, pp.
12-13; A contribution to the critique ojpolltical econonvj, 5® ed., trad. de S. W.
Ryazanskaya, Moscou, Progress Publishers; Contrtbuüion à Ia critique de
iVéconomíe politique. Paris, 1977, pp. 2-3; e Contribución a la crítica de la eco­
nomia política, 2® ed., trad. de Léon Mames, México, Siglo Veintiuno, 1986,
esta última veiculando injustificável erro do tradutor.
46 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

riais produtivas da sociedade entram em contradição com as


relações de produção existentes ou — o que não constitui se­
não uma expressão jurídica delas —: com as relações de pro­
priedade no seio das quais vinham se movendo até então. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram,
essas relações se tom am entraves delas. Inicia-se então uma
época de revolução social. A transformação da base econômi­
ca altera mais ou menos rapidamente toda a enorme super-
estrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre
distinguirmos entre a alteração das condições econômicas de
produção material — que se pode constatar de maneira cien­
tifica à maneira das ciências naturais — e as formas jurídi­
cas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo
ideológicas, através das quais os homens tomam consciência
desse conflito e o resolvem. Assim como não se julga um in­
divíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá ju l­
gar uma tal época de revolução a partir de sua própria cons­
ciência; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência a
partir das contradições da vida material, a partir do conflito
existente entre as forças sociais produtivas e as relações de
produção”.
Note-se, em relação à afirmação de que “não é a consciên­
cia do homem que determina o seu ser, mas sim, pelo contrá­
rio, sua existência social (seu ser social) é que determina suá
consciência”, o seguinte trecho d’A Ideologia Alemã (Marx e
Engels 1986/37): “A moral, a religião, a metafísica e qualquer
outra ideologia, assim como as formas de consciência que a
elas correspondem, perdem toda a aparência de autonomia.
Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao
desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio ma­
terial, transformam também, com esta sua realidade, seu
pensar e os produtos do seu pensar. Não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência”.
\
A leitura do texto evidencia, inicialmente, que nem o po­
sitivismo nem o idealismo são acolhidos pelo pensamento
marxista. O direito não é o direito, nem o direito é a expres­
são da justiça, visto que nem por si nem por apelo ao espírito
pode ser explicado (Miaille 1982/77). De outra parte, a sua
incorreta compreensão — involuntária e mesmo voluntária,
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 47

assumida pelos extremistas de direita e de esquerda — , es­


pecialmente do trecho no qual Marx afirma que “o modo de
produção da vida material determina o processo social, polí­
tico e intelectual da vida em geral”, tem conduzido à conclu­
são de que, no pensamento marxista, a economia (as rela­
ções de produção) determina e condiciona o direito.
Essa conclusão, porque equívoca, deve ser reformulada.
Isso o que pretendo demonstrar, inicialmente desde a
perspectiva, mecanicista, da tese segundo a qual também a
superestrutura influi sobre a base — tese que Tarso Genro
(1988/16) refere como do “vai-e-vem”.

Devo observar introdutorlamente, contudo — mesmo porque


se impõe exorcizarmos fantasmas —, que a proposta de um mate­
rialismo histórico. formulada por Marx, não é senão a proposição
de uma análise cientifica da história.', “materialismo” é, no contex­
to, sinônimo de “ciência", de sorte que a expressão “materialismo
histórico” é sinônima de “ciência da história” (Lenin 1979/18).
Toma-se “ciência”, aqui, como método. Note-se que, na carta
de 6 de março de 1868 a Kugelmann (1969/214), Marx, referindo-
se a Dühring, diz: “Sabe muito bem que meu método de desenvol­
vimento não é hegeliano, uma vez que sou materialista e Hegel é
idealista, A dialética de Hegel é a forma básica de toda dialética,
mas somente depois que ela foi extiipada de sua forma mística, e
isto é precisamente o que distingue o meu método”.
Por outro lado, convém, ainda introdutorlamente, explicitarmos
a circunstância de que o estudo do modo de produção constitui
precisamente a via pela qual se pode realizar a anatomia da estru­
tura econômica da sociedade: os modos de produção são os esta­
dos da estrutura social, Integrada por uiiia base econômica, por
formas jurídico-políticas e por formas ideológicas.2

2. Observe-se também, desde logo, que são os homens que fazem a his­
tória, embora sob as premissas e condições postas pela própria história. Diz
Marx (1969/17): “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem
como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado”, Ainda que com Isso antecipando verificações que adiante serão
apontadas, é oportuna a transcrição, neste passo, de exposição de Jean-
Marie Vincent (1973/30-31): “Pour Cerronl, le renversement matériallste de
. la dialectique hégélienne opéré par Marx ne peut se comprendre comme une
inversion de signes: la matière à la plaee de l’esprit ou du concept. Le
monisme marxlste est selon lui exempt de tout aspect métaphysique ou
48 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

O conceito de modo de produção — modo de produção da vida


social — refere-se à totalidade das estruturas sociais. Não se o
deve confundir, assim, com a noção de modo de produção dos

ontologique: il se refuse à Ia réduction subjectivlste de 1'objet et à la re-


duction objectiviste du sujet. II se base sur l’unité (non 1’Identité) des
opposés ou distincts, médiatisée par la pratique sociale. Sujet et objet sont
dans une relatlon de fonctionnalité reciproque; la matière, e’est-à-dire
1’ensemble des rapports de 1'homme social avec la nature, est une variable
indépendante pour la conscience humaine, mais 1'aetivité senslble et prati­
que (par définition consciente) des homxnes modifle les circonstances et
l’état donné des rapports entre 1’humanité et Ia nature. Le matérialisme de
M arxn ’a en somme rien à voir avec une quelconque primautê métaphysique
de Ia substance matière, il tient compte de 1’irréductibilité à la conscience de
la pratique humaine et de ses rapports au monde extérieur. Citons à l’appui
de cette conceptlon un texte de Marx parmi tant d'autres: ‘II n'est pas
néeessaire d'ajoUter que les hommes ne sont pas libres arbitres de leurs for­
ces productives - qui sont la base de toute leur histoire - car toute force
productive est une force acquise, le produit d’une activité antérieure. Ainsi
les forces productives sont le résultat de 1'énergie pratique des hommes,
mais cette énergie elle-même est circonscrite par les conditions dans
lesquelles les hommes se trouvent placés, par les forces productives déjà
acquises, par la forme sociale qui existe avant eux, qu*ils ne créent pas, qui
est le produit de la génération antérieure, qui servente a elle comme matière
première de nouvelle production, II se forme une connexité dans 1’histoire
des hommes, il se forme une histoire de rhumanité qui est d'autant plus
1’histoire de rhumanité que les forces productives des hommes et en con-
séquence leurs rapports sociaux ont grandi. Conséquence néeessaire:'
1’histoire sociale des hommes n’est jamais que 1'histoire de leur déve-
loppement individuel, solt qu’ils en aient la conscience, soit qu’ils ne l'alent
pas. Leurs rapports matériels forment le base de tous leurs rapportes. Ces
rapports matériels ne sont que les formes nécessaires dans lesquelles leur
activité matérielle et individuelle se réalise'. Le problème de la connaissance
devient dans cette perspective un problème éminemment concret, puisqu’il
est intimement lié aux rapports de production et aux forces productives,
c'est-à-dire aux échanges de 1'homme vivant en soeiété avec la nature. La
connaissance est connaissance de la pratique, des conditions d'objectivation
et d‘activité de 1’homme social: rien de ptas et rien de moins. Elle n’est. par
suite, pas assitnilable à la mise au point de concepts généraux et abstraits
comme le pensait la tradition idéaliste (ou matérialistevulgaire) les concepts
les plus généraux étant essentiellement négatifs (éléments communs à plu-
sieurs phénomenes). La véritable connaissance ou théorie au sens marxiste du
terme est recherche de 1‘universel co4 cret et du particulier, ou encqre de
1’abstrait déteirniné pour reprendre les tertnes de Galvano delia Volpe .ou de
Lucio Colletti. Elle est à Ia fois abstracüon, c'est-à-dire mise en relation des
phénomenes, et déterminaüon, c’est-à-dire reconnaissance de 1‘objet dans sa
singularité; elle comprend les opposés, tout en les sachant hétérògenes et
indissolubles, par un simple décret de la raison. L'objet dégagé par la pratique
échappe à rarbltraire de Fentendement, il se présente comme qualité et
rêsistance de la matière, et la totallté idéale ne s’integre à une totalité rêelle que
si elle se conçoit comme dépendante d'un réel extra-mental".
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 49

bens materiais, paralela à de modo de troca, modo de circulação,


modo de consumo. Todas essas noções referem-se não à globa-
lidade social, mas sim à estrutura econômica da sociedade.
Todo modo de produção está constituído por uma estrutura glo­
bal, integrada por três estruturas regionais: a estrutura econômica,
a estruturajurídico-política e a estrutura ideológica. Nesta estrutura
global uma das estruturas regionais domina as demais.
Assim, o que Marx: sustenta ê que no capitalismo domina a, es­
trutura econômica, assim como na Idade Média dominava o catoli­
cismo (uma estrutura ideológica) e em Atenas e Roma dominava a
política.3
Essas estruturas regionais (Instâncias), contudo, não se mani­
festam uniforme e invariavelmente em diferentes modos de produ­
ção; articulam-se de modo diverso, em distintos modos de produ­
ção. Em outros termos: cada modo de produção apresenta especí­
ficos regimes de articulação de instüncias (estruturas regionais),
de sorte que não se encontra, em cada uma delas, meramente dis­
tintas combinações de elementos homogêneos, porém combina­
ções nas quais tanto o encadeamento quanto as funções de cada
instância são alterados (Miaille 1982/83-84).
Em cada modo de produção, como vimos, uma das instâncias (es­
truturas regionais) domina as demais. É necessário indagar, no en­
tanto, como é determinada, na estrutura social, a instância domi­

3, Observa Marx em nota de rodapé ao 1“ volume d ’0 Capital (1968/46):


“Aproveitarei a ocasiào para responder brevemente a uma objeção que me foi
feita por um periódico alemão da América do Norte quando foi publicada, em
1859, minha obra Contribuição à crítica da economia política. Este periódico dizia
que minha tese segundo a qual o modo de produção vigente em determinada
época e as relações de produção próprias desse modo de produção, em suma, ‘a
estrutura econômica da sociedade é a base concreta sobre a qual se ergue uma
superestrutura política e jurídica e à qual se correspondem determinadas for­
mas de consciência social’ e de que ‘o modo de produção da vida material deter­
mina o processo social, político e intelectual da vida em geral’, era indubita­
velmente exata no inundo moderno, no qual predominavam os interesses ma­
teriais, mas não poderia ser aplicada ã Idade Média, na qual reinava o catolicis­
mo, nem a Atenas e Roma. onde imperava a política. Em primeiro lugar, é es­
tranho que ainda exista alguém que suponha o desconhecimento por outrem
desses lugares-comuns sobre a Idade Média e a Antiguidade. É fora de dúvida
que nem a Idade Média podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo da po­
lítica. Longe disso, o que explica porque em uma era fundamental a política e
em outra o catolicismo é a maneira como uma e outra ganhavam a vida. Além
disso, não é necessário ser muito versado na história da república romana para
saber que sua história secreta é a história da propriedade territorial. Já D.
Quixote pagou pelo erro de crer que a cavalaria andante era uma instituição
compatível com todas as formas econômicas da sociedade".
50 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

nante de dada época. O problema é introduzido por Balibar (1973/


105} nos seguintes termos: "comment est déterminée dans la
structure sociale 1’instance déterminante à une époque donnée,
c’est-à-dire: comment un mode spéciflque de combinaison des élé-
ments qui constituent la structure du mode de product determi­
n em dans Ia structure sociale la place de la détermination en
demière instance. cest-à-dire; comment un mode spéciflque de
production détermine-t-il les rapports qu’entretiennent entre elles
les diverses Instances de la structure, c’est-à-dire finalement Yarti-
culation de cette structure?” (grifos no original).
Há que distinguir, portanto, estrutura dominante e estrutura
determinante. A segunda determina qual delas ê a dominante em
dada época. Logo, o que se impõe é distinguirmos entre papel do­
minante e papel determinante das estruturas regionais.
A natureza opõe obstáculos ã ação do homem; há, além do ho­
mem, uma realidade que é Independentemente do seu ser. A veri­
ficação de que essa realidade existe não envolve nenhuma formu­
lação de juízo a respeito da primazia do espírito sobre a matéria,
mas tão-somente o reconhecimento (científico, materialista) de que
a existência dessa realidade limita a ação do homem.
A “maneira como se ganha a vida’* — uso uma expressão de
Marx (1968/46) — condicionada pela realidade material (as “condi­
ções econômicas”, pois), é que determina qual daquelas instâncias,
em cada época, desempenha o papel de estrutura dominante. Bali­
bar (1973/110) conclui: “Dans des structures différentes Véconomve
est déterminante en ce qu’elle determine celle des instances de la
structure sociale qui occupe la place déterminant (grifos no original).
Trata-se, aí, não de relação simples, mas de relação de relações;
não de causalidade transitiva, mas de causalidade estrutural.
Ora, como no modo de produção capitalista a economia é que
ocupa o papel dominante na estrutura global da sociedade e, con-
comítantemente, é ela que detemiina essa dominação, toma-se ra­
zoavelmente complexa a compreensão do pensamento marxista —
em especial porque, precisamente em razão dessa coincidência,
aparece de modo difuso, na exposição de Marx, a distinção entre
papel determinante e papel dominante.

3. É inteiramente equivocada, pois, a suposição de que


Marx e Enge:ls teriam concebido o direito como mero reflexo
da economia.
Engels o negou, reiteradas vezes. Em carta a J. Bloch, da­
tada de 21-22.9.1890, afirmou: “Segundo a concepção mate-
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 51

riallsta da história, o fator que, em última instância, determi­


na a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem
Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que
isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o
úrüco fato determinante, converte aquela tese numa frase va­
zia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os
diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela
— as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as
constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe
triunfante redige, etc., as formas jurídicas, e inclusive os refle­
xos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas parti­
cipam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias reli­
giosas e o desenvolvimento ulterior, que as leva a converter-se
num sistema de dogmas — também exercem sua influência
sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, deter­
minam sua forma, como fator predominante. Trata-se de um
jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no
qual, através de toda uma infinita multidão de acasos (isto é,
de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota
ou tão difícil de demonstrar que podemos considerã-la inexis­
tente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como ne­
cessidade, o movimento econômico. Se não fosse assim, a
aplicação da teoria a uma época histórica qualquer seria
mais fácil que resolver uma simples equação do primeiro
grau” (Marx/Engels sd/284-285). Em carta a Starkenburk,
datada de 25.1.1894 (Engels 1964/411), diz: “Le développe-
ment politique, juridique, philosophique, religieux, littéraire,
artistique, etc., repose sur le développement économique.
Mais ils réagissent tous également les uns et les autres, ainsi
que sur la base économique. II n’est pas vrai que la situaüon
économique soit la cause, qu’elle sott seule active et que tout le
reste ne soit qu’action passive. II y a, au contraire, action réci-
proque, sur la base de la nécessité économique qui 1'emporte
toujours en demière instance. (...) II n’y a donc pas, comme on
veut se ttmaginer, ça et la, par simple commodité, un effet
automatique de la situaüon économique; ce sont, au con­
traire, les hommes qui font leur histoire eux-mêmes, mais
dans un milieu donné qui les conditionne, sur la base de
raípports réels préexistants, parmi lesquels les conditions éco-
nomiques, si influencées qu’elles puissent être par les autres
52 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

conditions politiques et idéologiques, n’en sont pas molns, en


demière instance, les conditions determinantes, constituant
d’un bout à 1’autre le fil conducteur, qui, seul, vous met à
même de comprendre”. Ainda mais, em carta a Conrad
Schmidt, de 27.10.1890 (Engels 1964/369), observa: “Dans
un État moderne, il faut non seulement que le droit corres-
ponde à la situation économique générale et soit son expres-
sion, mais qu’il possede aussi sa cohérence interne et ne porte
pas en lui sa condamnation du fait de ses contradictions inter­
nes. Et le pnx de cette création, c’est que la fldélité du reflet
des rapports économiques s’évanouit de plus en plus. Et cela
d’autant plus qu’il arrive plus rarement qu’un code soit l'ex-
pression brutale, intransigeante, authentique, de la domi-
nation d’une classe: la chose elle-même n’irait-elle pas à
1’encontre de la ‘notion de droit'? La notion de droit pure, con-
séquente, de la bourgeoisie révolutionnaire de 1792 à 1796
est déjà faussée, comme nous le savons, en de nombreux en-
droits dans le code Napoléon, et, pour autant qu’elle s’y incar-
ne, elle est obligée de subir joumellement toutes sortes d’atté-
nuations, par suite de la pulssance croissante du prolétariat".
E em carta a Franz Mehring, datada de 14.7.1893 (Manc/En-
gclssd/292-293 e 294), anota: “Há, além disto, um ponto — o
único — em que, aliás, nem Marx nem eu insistimos bastante
em nossos trabalhos: e cuja culpa nos cabe, portanto, igual­
mente aos dois. Insistimos, acima de tudo — e não podíamos
deixar de fazê-lo — , em derivar dos fatos econômicos básicos
as idéias políticas, jurídicas, etc., e os atos a elas condiciona­
dos. E, ao proceder assim, a preocupação com o conteúdo fa­
zia-nos esquecer a forma, isto é, o processo de gênese dessas
Idéias, etc. Com isso, proporcionamos a nossos adversários
um bom pretexto para erros e deformações. (...) Este aspecto
do problema, que só posso levantar aqui de passagem, nós to­
dos temos subestimado, a méu ver, além da medida. É a histó­
ria de sempre: inicialmente, descuida-se da forma para cuidar
do conteúdo. Também eu fiz assim, como já o disse; e o erro só
me apareceu posteriormente. Eis por que está longe de mim a
intenção de fazer-lhe uma censura por isso: não tenho direito
algum a fazê-lo, por ser um culto mais antigo. Queria apenas
chamar sua atenção, quanto a esse ponto, para o futuro. Em
relação com isto está, igualmente, o tolo modo de ver dos
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 53

ideólogos: como negamos aos diferentes domínios ideológicos


que desempenham um papel na história um desenvolvimento
histórico independente, deduzem que lhes negamos também
qualquer eficácia histórica. É partir duma concepção vulgar,
não dialética, de causa e efeito,"como pólos que se opõem de
maneira rígida, sem levar em conta o jogo de ações recíprocas.
Esquecem que um elemento histórico, uma vez engendrado
por outros elementos, em última instância, econômicos, passa
por sua vez a ter ação sobre o meio que o rodeia e sobre suas
próprias causas”.
Afirmar que o modo de produção da vida material (social)
— que é diverso do modo de produção dos bens materiais —
determina o direito é algo inteiramente distinto da afirmação
de que a estrutura econômica (uma das estruturas regionais
integradas na estrutura global do modo de produção da vida
social) determina o direito.
O que se extrai da conhecida afirmação de Marx, inscrita
no “Prólogo” à Contribuição ã crítica, da economia política, é a
verificação de que a sociedade não pode ser compreendida,
em seu dinamismo, senão como também produzida pelas in­
terferências procedentes de todas as demais instâncias (jurí-
dico-política e ideológica) (Miaille 1982/89-94).
Tomo aqui, para demonstrá-lo, de um trecho de Balibar
(1973/155): “Assim como há um classicismo econômico (in­
glês), hã um classicismo histórico cujos representantes são
os historiadores franceses (Thierry, Guizot) e alemães (Nie-
buhr) de início do século XÍX. Eis portanto o ponto de partida
de Marx: o ponto de chegada deles. O conhecimento históri­
co, na forma mais acabada, mostra a sucessão das ‘civiliza­
ções’, ‘regimes políticos’, ‘acontecimentos*, ‘culturas’, orga­
nizado, racionalizado por uma série de lutas de classes, sua
forma geral cujas figuras se podem enunciar: escravos e ci­
dadãos livres, patrícios e plebeus, servos e proprietários feu­
dais, mestres e companheiros, latifundiários e burgueses,
burgueses e proletários, etc. A essa herança, a esse Jato,
proposto pela história, corresponde a famosa abertura do
Manifesto, mas que é já em si resultado de um trabalho de
conhecimento: ‘A história de toda sociedade até hoje tem
sido a história da luta de classes’” . Ocorre, no entanto, que
54 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

o próprio fenômeno da luta de classes só adquire o seu sen­


tido histórico nos term os do status que o direito atribui a ca­
da um dos oponentes: escravos e qidadãos livres, patrícios e
plebeus, etc. É também a partir do direito e no seu meio que
se trava a luta de classes; o Jato é completado pelo direito e
sob sua determinação, entre múltiplas determinações, é que
se realiza historicamente.
O direito, visto assim, não é uma representação da realidade
social, existente fora dela, porém um nível do todo social (Jeam­
maud 1986/48), no qual se expressam as relações sociais.
Aqui se justifica a abertura de um parêntese, referido ã
alusão, ao final do item anterior, â luta de classes. É que o seu
pressuposto é a propriedade. E o comprometimento do direito
com a proteção da propriedade é histórico. O espírito das leis,
observava Linguet — e isso é relembrado por Marx (1968/520,
nota 4) — , é a propriedade; também Hegel (1959/200, § 188) o
diz. Daí por que se pode afirmar que a luta de classes tem
como pressuposto formal o direito.
Observação de extrema relevância, no entanto, há de ser
aqui introduzida. É que se impõe questionar a concepção se­
gundo a qual a propriedade privada dos bens de produção
compõe a essência do capitalismo. Dir-se-ia, pelo contrário,
que o essencial, nele, está em que os trabalhadores somente
podem obter o seu sustento mediante o intercâmbio entre o
preço de sua força de trabalho e o conjunto dos bens social­
mente produzidos — isto é, trocando o preço de sua força de
trabalho pela parcela correspondente, em seu valor, de tais
bens. A propriedade privada dos bens de produção é, destarte,
conseqüência disso. Não fosse assim — e a essência do capita­
lismo estivesse, toda ela, contida na consagração da proprie­
dade privada dos bens de produção — bastaria a sua extinção
para que se instalasse o socialismo. Não é o que ocorre, toda­
via. Não é estranho ao chamado mundo socialista, bem o sa­
bemos, que o trabalhador permaneça, nele, sendo explorado
pelo Estado — ou seja, pela burocracia socialista.
O que determina a participação do trabalhador no produ­
to social, no socialismo, é o caráter coletivo da produção. Se
assim não foi, até então, assim deveria ter sido — e deverá
ser, no momento em que realizado o autêntico socialismo.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 55

Diz Marx (1987a/99-100): “En tal supuesto [o socialistai,


sin embargo, no seria el cambio el que le conferiria [ao traba­
lho do indivíduo] el caracter universal, sino que seria su
presupuesto carácter colectivo lo que determinaria su parti­
cipación en los productos. El carácter colectivo de la produc-
ción convertiría al producto desde un principio en un pro­
ducto colectivo, universal. El cambio que se realiza origina-
riamente en la producción — el cual no seria un cambio de
valores de cambio, sino de actividades determinadas por
necesidades colectivas, por fines colectivos — incluiria desde
el principio la participación dei individuo en el mundo co­
lectivo de los productos. Sobre la base de los valores de cam­
bio, el trabajo es puesto como trabajo general sólo mediante
el cambio. Sobré esta base el trabajo seria puesto como tal
anteriormente al cambio; o sea el cambio de los productos no
seria en general el medium que mediaria la participación dei
individuò en la producción general. Es claro que debe tener
lugar una mediación. En el primer caso, que deriva de la pro­
ducción autônoma de los individuos — aunque estas pro-
ducciones autônomas se determinen y se modifiquen post
festum a través de sus relaciones recíprocas — , la mediación
tiene lugar a través dei cambio de las mercancías, a través
dei válor de cambio, dei dinero, que son todas expresiones de
una única y misma relación. En el segundo caso cs mediado
el supuesto mismo; o sea está presupuesta una producción
colectiva, el carácter colectivo como base de la producción. El
trabajo dei individuo es puesto desde el inicio como trabajo
social. Cualquiera que sea la forma material dei producto que
él crea o ayuda a crear, lo que ha comprado con su trabajo no
es un producto particular y determinado, sino una determi­
nada porción de la producción colectiva. No tiene entonces
producto particular alguno para cambiar”.
A propriedade é um elemento posto pelo intercâmbio, re­
conhecida como propriedade jurídica porque essa é uma de­
corrência necessária do intercâmbio. Mas se, no socialismo,
o indivíduo tem acesso à produção já não mais mediante a
entrega do seu trabalho, em sua expressão monetária, atra­
vés do intercâmbio, porém em razão do caráter coletivo da
produção — e do trabalho — , o direito de propriedade deixa
de ser necessário. O socialismo, destarte, pressupõe não a
56 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

extinção do direito de propriedade dos bens de produção, mas


sim a reversão da situação de mercador na qual se encontra,
no capitalismo, o titular de trabalho. A propriedade jurídica é
reconhecida exclusivamente porque encarna uma necessi­
dade; se não há intercâmbio, o direito de propriedade é des­
necessário.
Dele necessitará a sociedade apenas e tão-somente en­
quanto dotada, a propriedade juridicamente protegida, de fun­
ção individual, isto é, como modo de proteger o indivíduo e sua
família contra as necessidades materiais. Mas não como crité­
rio ou forma de distribuição do produto social. Pois o direito de
propriedade dos bens de produção é uma forma específica de
distribuição do produto social através do intercâmbio; e, supe­
rado o intercâmbio, tomar-se-á desnecessário.

4. Faço uso, seguidamente, em minha exposição, dos vo­


cábulos instância e nível. A entonação que assumem, no con­
texto, ambos os vocábulos, é de origem “althusseriana”. Não
obstante isso — e ainda que o emprego de tais vocábulos ve­
nha a ser reiterado — , devo, neste passo, explicitar determi­
nado ponto.
‘ É que instância e nível configuram, no caso, nada mais se­
não metáforas. O mesmo significado que se expressa me­
diante o uso dessas metáforas poderá, contudo, ser explici­
tado, e de modo direto, se referirmos, em lugar delas, discur­
so ou linguagem.
Esse entendimento é extremamente virtuoso, sobretudo
quando se tenham sob consideração as instâncias ou níveis
ideológico e jurídico. E isso porque tanto ideologia quanto di­
reito consubstanciam discursos.
O direito não apenas possui uma linguagem, mas é uma lin­
guagem na medida em que instrumenta uma modalidade de
comunicação entre os homens, seja para ordenar situações de
conflito, seja para instrumentalizar políticas. Também a ideo­
logia, por outro lado, é uma linguagem ou discurso.
Ademais, no contexto da afirmação de que o direito não é
uma representação da realidade social, existente fora dela,
porém um nível do todo social, o vocábulo nível não conota ní­
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 57

vel institucional, porém nivel JuncionaL Note-se que a hierar­


quia entre infra-estrutura e supra-estrutura — metáforas
também — só pode ser interpretada como uma hierarquia de
funções, ou seja, tal qual afirma Maurice Godelier (1986/146),
hierarquia entre as relações sociais segundo às funções que as­
sumem no processo de produção e reprodução da vida social.
Desde essa explicitação, pois, é que os vocábulos em ques­
tão — instância e nível — , cujas conotações assim pretendo
fixar, permanecem sendo usados.

5. Enquanto nível do todo social, o direito é elemento cons­


titutivo do modo de produção, porém por ele informado e de­
terminado.
A compreensão dessa realidade nos permite verificar que
o direito é, sempre e também no modo de produção capitalis­
ta, um instrumento de mudança social, para ser dinamizado,
nessa função, ao sabor de interesses bem definidos.
É justamente essa virtude, de interagir em relação às de­
mais estruturas regionais da estrutura social global, que, em
especial no modo de produção capitalista, qualifica o direito
como mediação específica e necessária das relações de pro­
dução — e isso de modo tal que as relações de produção capi­
talista não se podem reproduzir sem a “forma” do direito.

6. A superação de leituras equivocadas deita por terra as


concepções de que o direito é exclusivamente um produto,
puro, das relações econômicas, relações, essas, às quais ele
(o direito) seria alheio; de que o direito é somente ideologia,
sob a qual as relações de produção dissimulam sua verdadei­
ra natureza, apresentando-se de maneira falsa e enganosa;
de que o direito é uma expressão da vontade de uma classe
dominante ou simples meio de dominação, que instrumenta
a repressão exercida por essa classe.
O direito é mais do que Isso. Há de ser visualizado, assim,
como instância de um todo complexo. Instância, porém, do­
tada de eficácia própria, que, no entanto, se manifesta no
bojo de uma relação de causalidade estrutural (v. trechos das
cartas de Engels, acima transcritos), resultante de interação
58 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

dela — Instância jurídica — cora as demais instâncias desse


todo complexo.
A respeito dessa “causalidade estrutural”, observa Michel
Miaille (1982/89-90): “La société entendue comme mode de
production, unlté complexe d’instances autonomes, ne peut
être comprise dans son fonctionnement et son évolution que
par référence aux déterminations émanant de tous les ni-
veaux, de toutes les instances. Cet ensemble de détermina­
tions constitue une structure qui peut être considérée comme
explicative du détermlnisme social. Ce n’est pas le niveux éeo~
nomique, politique ou idéologique qui explique tel ou tel geste
que j ’accomplis, c’est la structure complexe des causalités qui
appartiennent à ces différents niveaux qui est la ‘cause’ de ce
geste. On mesure combien devient complexe 1’explication so­
ciale par rapport à l’idée ou à l’image riaive que nous véhicu-
lons encore de la causallté et donc de 1’expllcation scientifi-
que. Ce qui est étonnant, c’est que les sclences exactes ont
depuis longtemps accepté cette conception structurale du dé-
terminisme en biologie comme en microphysique, ce qui nous
entraine fort loin du déterminisme ‘simple’ du type loi de la
chute des corps. Mais, dans les sciences dites sociales, nous
cherchons encore la cause unique, ã la manière des scolas-
tiques. Pourtant, si nous en restions à ce stade, nous ferions
de Marx un pur structuraliste, ce qu’il n*est pas! De plus,
infrastructure et superstructure se fondraient au sein de la
structure sociale en un ensemble indistinct ou, tout ctant
cause de tout, nous serions renvoyés à une ‘explication’ fort
peu satisfaisante. Marx démonte les mécanismes sociaux dans
une perspective structurale, mais en précisant qu’en demière
instance c’est le nlveau économique qui est explicatif. Cette
causallté ‘e n . demière instance’ mérite. quelques développe-
ments, car elle n’est pas le retour à une causalité économiste.
Le déterminisme en demière instance de la base économique
n’est pas le résultat d’une décision métaphysique attribuant à
1’économique je ne sais quel pouvoir particulier, celui d*une
Matière opposée et supérieure à 1’Esprit. Cella permettra de
dire au passage ce qu*est le materialisme de Marx”.
Se, por um lado, o direito interfere na constituição, no
funcionamento e na reprodução das relações de produção,
reproduzindo-as de maneira deformada, ideologicamente, é
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 59

certo também, de outra parte, que a sociedade capitalista é


essencialmente jurídica e nela o direito atua como mediação
específica e necessária das relações de produção que lhe são
próprias. Tais relações de produção não poderiam estabele-
■ cer-se, nem poderiam répròduzir-se, sem a forma do direito
(Poulantzas 1967/160 e cartà de Engels a Conrad Schmidt,
de 27.10.1889, trecho acima transcrito). Em outros termos: a
estrutura econômica do capitalismo não existiria se não exis­
tisse um direito que supusesse regras gerais e sujeitos abs­
tratos, livres e iguais (Jeammaud, 1986/51).
O que importa neste passo é a verificação de que o direito
é, sempre, um instrumento de mudança social. O direito é
produzido pela estrutura econômica mas, também, intera­
gindo em relação a ela, nela produz alterações. A economia
condiciona o direito, mas o direito condiciona a economia.

7. A exposição que venho desenvolvendo, exposição me-


canicista, pretende conferir explicação estrutural às relações
entre direito (superestrutura) e economia (base). Mas aqui
não se dá senão um passo na explicação pretendida.
Temos, de toda sorte, que as estruturas regionais são ní­
veis ou instâncias, no sentido funcional (= direito é lingua­
gem que instrumenta uma modalidade de comunicação en­
tre os homens), que se interpenetram.
Isso nos permite verificar que o direito não é uma mera
representação da realidade social, existente fora dela, porém
um nível do todo social.
Por certo que isso já é um pouco. Não o suficiente, contu­
do, para quem pretenda discernir o lugar do direito na estru­
tura social global. Falta algo mais.
Isso que falta encontraremos no alinhamento das noções
de direito pressuposto e de direito posto.

3. O direito p o sto e o direito pressuposto


8. O encaminhamento dessa que me parece ser uma des­
coberta significativa, a das noções de díreitò pressuposto e de
direito posto, pode partir do texto do "Prólogo”.
60 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Diz Marx: "Em um determinado estado do seu desenvolvi­


mento, as forças materiais produtivas da sociedade entram
em contradição com as relações de produção existentes ou —
o que não constitui senão uma expressão jurídica delas — com
as relações de propriedade no seio das quais vinham se mo­
vendo até então” (grifo meu).
Assim, teremos que a contradição entre as forças mate­
riais produtivas e as relações de produção eqüivale a uma
contradição entre aquelas — as forças materiais produtivas
— e as relações de propriedade.
Ora, se as relações de propriedade não são "senão uma
expressão jurídica” das relações de produção existentes, te­
mos aí a imanência da forma jurídica ou de certas formas ju ­
rídicas à base econômica.
Observa Pasukanis (1970/80): “Marx lui-même cepen-
dant souligne que les rapports de propriété, qui constituent
la couche fondamentale la plus profonde de la supere struc­
ture juiidique, se trouvent en contact si étroit avec la base
qu’ils apparaissent comme étant les ‘mêmes rapports de
production’, dont .ils sont Texpression juridique’”.
. Em outras passagens do texto, contudo, á forma jurídica
aparece nitidamente fora da base econômica: “A totalidade
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica
da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superes-
trutura jurídica e política e à qual correspondem formas de
consciência social determinadas”: “Ao considerar tais altera­
ções é necessário sempre distinguirmos entre a alteração das
condições econômicas de produção material — que se pode
constatar de maneira científica^ à maneira das ciências natu­
rais — e as formas jurídicas, 'políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em resumo ideológicas, através das quais os
homens tomam consciência desse conflito e o resolvem” .
Se no primeiro trecho transcrito as formas jurídicas são
imanentes à base . econômica, nestes dois últimos elas a
transcendem.
Instalado o problema, Ruy Fausto (1987/107) propõe co­
mo a melhor solução para ele a de “supor um jurídico pressu­
posto interior à sociedade civil e um jurídico posto pelo Esta­
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 61

do (direito positivo), solução que segue as indicações do capí­


tulo I da seção I de O capital e que não está longe da solução
que Pasukanis dá ao problema. Isto significa que também o
problema clássico da relação base/superestrutura só pode
tér uma solução teórica rigorosa na distinção entre pressu­
posição e posição (e não na simples distinção de níveis ou de
estratos, todos postos). A sociedade civil pressupõe certas
formas jurídicas que o Estado põe [setzen, pôr, Gesetz, lei; pro­
ximidade que, como se sabe, Hegel assinala). E quando há
oposição entre ambos, trata-se de um descompasso entre for­
mas jurídicas pressupostas e formas jurídicas postas”.

9. Temos, então, que a relação jurídica que reaparece na


superestrutura jurídica encontra-se originariamente no ní­
vel da relação econômica. A forma jurídica é imanente à
infra-estrutura, como pressuposto interior à sociedade civil,
mas a transcende enquanto posta pelo Estado, como direito
positivo.
A concepção de um direito pressuposto está bem presen­
te no trecho em que Marx (1968/48) trata da ida das merca­
dorias aos mercados: “As mercadorias não comparecem sozi­
nhas no mercado, nem se intercambiam por si sós. Devemos,
pois, voltar os olhos aos seus guardiães, os possuidores de
mercadorias (...). Para tratar as coisas como mercadorias é
necessário que os seus guardiães se relacionem entre si
como pessoas, cuja vontade se projeta em cada coisa, de tal
modo que cada possuidor de uma mercadoria somente possa
se apoderar da mercadoria de outro por vontade comum de
ambos. É necessário, portanto, que ambàs as pessoas se re­
conheçam como proprietários privados. Essa relaçãojurídica,
que tem por forma de expressão o contrato, é, esteja ou não
legalmente regulada, uma relação de vontade na qual está re­
fletida a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídi­
ca ou de vontade é determinado pela própria relação econô­
mica. Aqui, as pessoas só existem, umas para as outras,
como representantes de suas mercadorias, ou — o que é o
mesmo -— como possuidores de mercadorias” (grifo meu).
A relação jurídica — que tem por forma de expressão o
contrato — compõe o direito pressuposto e nela “está refletida
62 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

a relação econômica”; o seu conteúdo “é determinado pela


própria relação econômica”. A relação jurídica, pois, já está
na base econômica. Tanto é assim que é uma relação de von­
tade “esteja ou não legalmente regulada” — isto é, esteja ou
não colhida, ordenada, pelo direito posto (direitopositivo):
Recorro às observações de Ruy Fausto (1987/297-298):
“Da relação jurídica diretamente ligada à relação econô­
mica se passa a quê precisamente? Se passa ao Direito. A
passagem vai assim do direito ao Direito. Se vai do direito,
isto é, da relação jurídica enquanto relação interior ã socie­
dade civil e independente do Estado ao direito ‘legalizado’
pelo Estado. Como pensar o sentido dessa passagem? Ainda
uma vez, e aqui de maneira inteiramente rigorosa, a passa­
gem só pode ser pensada em termos de posição. O Estado
põe o direito — que até aí era uma relação jurídica interior à
sociedade civil — enquanto direito que emana do Estado. A
relação jurídica ligadà à relação econômica pressupõe a lei
mas não a põe. A lei enquanto lei é posta pelo Estado. O direi­
to se tom a direito positivo. Detenhamo-nos um momento
nesse movimento. A natureza da relação entre a chamada
‘infra-estrutura’ e a chamada ‘superestrutura’ foi sempre um
dos problemas insolúveis da teoria marxista. Nos termos
mesmos dessas expressões ela é representada na forma de
uma imagem especial em que se distingue o ‘alto’ e o ‘baixo’,
a parte superior e a parte inferior. A representação do ‘supe­
rior’ e do ‘inferior’ não deve ser necessariamente eliminada.
Mas só se pode conservá-la se não se conceber os vários ní­
veis (termos que por si só não é bom) como níveis justapos­
tos, e isto, mesmo se se supuser que há não só condiciona­
mento mas também causalidade recíproca, etc. Não basta
também dizer que eles se interpenetram, mesmo se dizendo
isto se dá um passo. A noção de interpretação é ainda uma
noção do entendimento, e não põe em xeque a lógica da iden­
tidade. Outra coisa ocorre com a noção de posição. Dizer que
a lei está pressuposta mas não posta na própria ‘infra-estru­
tura’ (este é o sentido da apresentação da relação jurídica
que ‘coincide’ com a relação econômica) é dizer que a lei é e
não é, e, portanto, que a superestrutura está e não está na
‘Infra-estrutura’. O nível superior está e não está na base.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 63

A ordenação dos ‘níveís’ não obedece ao princípio de identi­


dade (e por isso mesmo eles não são a rigor ‘níveis’). A base
não é, somente, a base, nem o nível superior somente o nível
superior. Razão pela qual toda representação positivista da
relação entre base e superestrutura (se se quiser guardar es­
ses termos) desde as formas mais grosseiras até as mais
complexas e aparentemente ‘dialetizadas’ (passando pela or­
denação de instâncias que os althusserianos tiraram de
Comte), toda representação positivista deve ser rejeitada.
Como diria Hegel, a relação entre os ‘estratos’ não é nem ana­
lítica nem sintética, nem contínua nem descontínua, a rela­
ção é a do implícito ao explícito, em cada um a forma superior
está. pressuposta. Concebida sob essa forma, que é a que se
encontra em O Capital, a distinção ganha rigor e interesse".
. “Daí por que o direito jã está no econômico — mas tam­
bém não está” (Ruy Fausto 1987/298-299, nota 29).

10. Da relação jurídica diretamente ligada à relação eco­


nômica passa-se, assim, ao direito, ou seja, ã relaçãojuríd ica
definida segundo o direito positivo. Vai-se do direito ao direito
(Fausto 1987/297-298).
O Estado põe o direito — direito que dele emana —, que até
então era uma relação jurídica interior ã sociedade, civil. Mas
essa relação jurídica que preexistia, como direito pressuposto,
quando o Estado põe a lei torna-se direito posto (direito positivo).
Assim, o direito e a lei estão mas não estão na “infra-es­
trutura”. O direito jã estã no econômico (como direito pressu­
posto), mas também não está.

11. Não se trata, aqui, de rejeitarmos em termos absolu­


tos a explicação centralizada na demonstração da causalida­
de recíproca, mas de propor o discernimento do problema do
direito segundo as noções de pressuposição e posição.
Quanto àquela, note-se que a distinção entre níveis e ins­
tâncias não importa separá-los. Cuida-se apenas de distin­
guir níveis funcionais de uma mesma totalidade.
. A compreensão de que o direito já está no econômico —
mas também não está — permite-nos compreender que nem
64 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

a economia determina diretamente o direito, nem o direito


pode determinar arbitrariamente a economia; permite-nos,
ainda, verificar que o direito pode funcionar como instru­
mento de mudança social.
Reporto-me, neste passo, a Jean-Marie Vincent (1973/
30-31) e a algumas considerações de Oscar Correas (1983/
189-190) parà observar que, como sujeito e objeto encon­
tram-se em uma relação de funcionalidade recíproca e a ma­
téria — isto é, o conjunto das relações do homem social com
a natureza — é uma variável independente da consciência
humana, as relações sociais são objetivas, estando fora do
sujeito que pode pensá-las; mas a atividade sensível e práti­
ca (consciente) dos homens modifica as circunstâncias e o
estado dado das relações entre a humanidade e a natureza. A
atividade humana, pois, modifica as relações sociais.
Assim, o direito pressuposto brota da (na) sociedade, à
margem da vontade individual dos homens, mas a prática
jurídica modifica as condições que o geram.
Em outros termos; o legislador não é livre para criar qual­
quer direito posto (direito positivo), mas este mesmo direito
transforma sua (dele) própria base. O direito pressuposto
condiciona a elaboração do direito posto, mas este modifica o
direito pressuposto.
O direito que o legislador não pode criar arbitrariamente
— insisto — é o direito positivo. O direito pressuposto condi­
ciona a produção do direito posto (positivo). Mas o direito pos­
to transforma sua (dele) própria base.
Isso significa — afirmo-o em outros termos — que o direito
pressuposto condiciona a elaboração do direito posto (direito
positivo), mas este modifica o direito pressuposto.

12. Nestè passo desejo retom ar ao quanto tenho afirma­


do no sentido de que não há que falarmos, concretamente, no
direito, senâo nós dp-eitos.
É que afirmar que o modo de produção da vida social de­
termina o direito é afirmar que o direito pressuposto é um pro­
duto cultural. Cada modo de produção produz a sua cultura e
o direito pressuposto nasce com o elemento dessa cultura.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 65

O modo de produção capitalista, modo de produção essen­


cialmente jurídico, reclama por um direito posto, construído
sobre o seu direito pressuposto, direito pressuposto, esse, que
é elemento constitutivo dele, modo de produção capitalista.
Daí por que — repito — não me parece possível cogitar­
mos do direito. A análise histórica conduz à verificação de
que a cada modo de produção pertence um direito próprio e
específico (Wfeacker 1983/76 e ss. e Barcellona 1977/3-32).
Cada direito, em cada modo de produção puro, é expressão
de um direito pressuposto e é um nível particular no tipo de
articulação e de relações entre as instâncias da estrutura so­
cial que caracterizam esse mesmo modo de produção, puro
(Poulantzas 1967/152). Por isso que a definição de certas es­
truturas e práticas como jurídicas depende do lugar e da fun­
ção que elas ocupam e cumprem em um todo complexo teori­
camente definido, que constitui um determinado modo de
produção (Poulantzas 1967/153).
O ius mercatorum — observa Francesco Galgano (1980/
39 e ss.) — , antes de referir uma parte do direito, é expressão
que significa um modo particular de usar o direito: chama-se
ius mercatorum porque é criado pela classe mercantil e não
porque regule a atividade dos mercadores. Essa criação res­
ponde à necessidade de substituir-se o direito romano, volta­
do à conservação, por um novo direito, que propiciasse a acu­
mulação de riqueza, ao mesmo tempo permitindo que a esta­
bilidade das relações jurídicas, que aquele preservava, fosse
transformada em mutabilidade. A busca da acumulação de ri­
queza, de outra parte, conduziu ao surgimento do princípio
da liberdade das formas jurídicas, em oposição ao rigorismo
formal do direito romano. Esse novo direito é, assim, expres­
são da prevalência das razões do comércio sobre as razões da
propriedade. A propósito da evolução do direito comercial,
vide Schmithoff 1981/1-15.
Em cada sociedade estatal, no entanto, coexistem vários
modos de produção social, ainda que um deles seja caracte­
rístico dela. Ora, ainda que domine, nela, o direito pressupos­
to do modo de produção dominante, o direito posto de cada
sociedade é resultante da coexistência histórica de todos es­
ses modos de produção (Poulantzas 1967/154-155).
66 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

À expressão sociedade estatal corresponderia, no texto, a ex­


pressão formação social concreta, a designar uma sociedade de­
terminada, na qual coexistem e se articulam vários modos de
produção. Como, no entanto, a expressão é utilizada com múlti­
plos sentidos, diversos entre si, por vezes até mesmo em um úni­
co contexto, e, ademais, é possível afirmar-se que aquela socieda­
de determinada pertence simultaneamente a várias formações so­
ciais, precisamente porque nela coexistem e se articulam vários
modos de produção (Godelier 1986/139), lanço mão, neste texto,
singelamente, da expressão sociedade estatal e do vocábulo socie­
dade para designã-la.
Essa circunstância é que explica a especificidade de cada
direito, em cada sociedade. Não se trata mais, neste passo,
de afirmar que cada modo de produção pressupõe a existên­
cia do seu direito, senão de afirmar que em cada sociedade
manifesta-se um determinado direito, produto da coexistên­
cia do direito pressuposto do modo de produção dominante
nessa sociedade com os direitos pressupostos de outros m o­
dos de produção que, nessa sociedade, coexistam com o
modo de produção dominante.
De resto — e retomo ainda uma vez, aqui, ao trecho de
Jean-Marie Vincet transcrito em nota de rodapé, acima — ,
como o conhecimento é um problema evidentemente concre­
to, a ele não se podendo assimilar a elaboração de conceitos
gerais e abstratos, não hã como indagar-se o que é ou como é
o direito em geral, em todos os lugares e em todos os tempos.
Apenas podemos indagar o que é e como é o direito em cada
sociedade.

13. Ainda que o conhecimento do direito que se pretenda


analisar deva ser empreendido no quadro da sociedade na
qual comparece, é necessário também observar que, embora
compondo a estrutura jurídica do modo de produção, o direi­
to não está situado apenas na estrutura jurídico-política, pe­
netrando a instância ideológica.
Instância, aqui, no sentido indicado no item 04, acima, isto é,
como dtscurüo, nível funcional. O discurso jurídico é prescritivo, tal
como o são os discursos éticos. Destes últimos se distingue o dis­
curso jurídico porque as normas jurídicas assumem esta qualifi­
cação na medida em que outra norma as qualifica como tais.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 67

Tomo como adequada e suficiente, neste passo, a exposição de


Kelsen. O discurso ideológico, parcialmente descritivo, parcialmen­
te prescrltivo, encontra sua característica na noção de falsidade: a
ideologia é uma crença falsa. Note-se que me refiro a ideologia,
aqui, em sentido forte; não, pois, em sentido fraco, ou seja, como
conceito neutro que designa o genus, ou a specíes diversamente
definida, dos sistemas de crenças políticas: um conjunto de Idéias
e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função
orientar os comportamentos políticos coletivos (Stoppino 1986/
585). A instância ideológica - de ideologia em sentido forte - com-
põe-se em discursos de falsas representações. Cuida-se de discur­
sos que instrumentam a prática de um certo exorcismo através
das palavras (AmaUd 1981/404). É necessário, contudo, a fim de
que o sentido dessa “falsidade” seja explicitado, dizer mais, òu
seja: os juízos de valor postulados pela ideologia encerram uma
falsa, motiuação, que cobre ou mascara os motivos reais do co­
mando ou da obediência (Stoppino 1986/595). E afirma Engels,
na carta a Mehring, de 14.7.1893 (Marx/Engels sd/ 293): “a Ideo­
logia é um processo que o chamado pensador realiza consciente­
mente, é verdade, mas levado por uma consciência falsa. As ver­
dadeiras forças propulsoras que o põem em movimento permane­
cem ocultas para ele; se não fosse assim, não se trataria de um
processo ideológico. Dessa maneira, ele é levado a imaginar forças
motrizes falsas ou aparentes”. Falso, pois “não é o juizo de valor
enquanto tal, mas a sua função de motivação e, por isso, a descri­
ção (implícita) que faz a força motivante exclusiva ou principal da
relação de poder” (Stoppino 1986/595-596). Considere-se, ainda,
exposição do mesmo Mario Stoppino (1986/595): “No seu dina­
mismo psicológico, a Ideologia como falsa motivação é análoga ao
conceito psicanalítico de ‘racionalização’, com o qual se designa,
precisamente, a elaboração de motivos fictícios para as próprias
ações ou para os próprios comportamentos, cujos moventes reais
permanecem inconscientes. Mas, diferentemente do conceito de
racionalização, o conceito de Ideologia tem natureza social, porque
diz respeito aos comportamentos coletivos e não aos individuais;
e, mais especificamente, os comportamentos coletivos que se ins­
tauram numa situação de poder. Segue-se que as crenças, às
quais se pode atribuir o caráter da Ideologia, são também crenças
coletivas, que encobrem ou mascaram os verdadeiros moventes
da conduta, a nível do grupo ou do agregado social, e não a nível
do indivíduo. Esta formulação da específica natureza social da
Ideologia é claramente uma generalização do ponto de vista de
Marx; porque é exatamente era Marx, mais do que em Pareto, e de
um modo mais concreto e determinado do que em Nietzsche, que
68 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

a Ideologia como falsa motivação se insere explicitamente nas re­


lações de dominação do homem sobre o homem”. Em suma, ideo­
lógico, em sentido forte, é o discurso que oculta o sentido das rela­
ções estruturais estabelecidas entre os sujeitos, com a finalidade
de reproduzir os mecanismos das hegemonias sociais (Cárcova
1988/145).
Neste ou naquele modo de produção e — mais ainda —
nesta ou naquela sociedade, essa penetração assumirá di­
versos matizes e profundidades.
O que pretendo afirmar, neste passo, é que, embora o di­
reito não possa ser visualizado exclusivamente como ideolo­
gia, é também, sempre, em qualquer sociedade historica­
mente existente — logo, em qualquer modo de produção com
existência histórica — , uma expressão ideológica,
É isso que explica — ao lado da verificação, anteriormente
apontada, de que em cada sociedade coexistem, com o modo
de produção dominante, outros modos de produção — a ilo-
gicidade de alguns pontos nodais do direito positivo.

Tome-se como exemplo a questão da função social da proprie­


dade; se o que justifica a propriedade, modernamente, é a sua
fünção social, a propriedade que não a esteja a cumprir deixa de
ser objeto de proteção jurídica; assim, no caso, verifica-se o pere-
cimento do direito de propriedade; não obstante, em casos como
tais, o direito positivo — é o caso da Constituição de 1988 - pres­
creve a desapropriação da propriedade! Vide meu A ordem econômi­
ca na Constituição de 1988 (2001/355-356).

Essa interpenetração de instâncias é que tom a improfí-


cua a análise do direito sem qtie se considere que, embora
não seja ele apenas ideologia,., em cada sociedade, de um
modo ou de outro, o direito nela existente é também ideolo­
gia. A sua análise hã de ser sempre empreendida desde uma
perspectiva globalizante; não sç o pode analisar em tiras, em
pedaços, visto que não poderá ser ele compreendido se o
visualizarmos dissociado da estrutura global na qual se com­
põe como instância.
É de resto evidente que, para que possa desempenhar a
sua função ideológica, recláma-se, nò direito, um mínimo de
coerência. A condição prévia essencial para a eficácia dessa
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 69

função ideológica é que — como observa E. P. Thompson


(1987/354) — o direito mostre uma independência frente a
manipulações flagrantes e pareça ser justo. De resto — a ob­
servação é ainda de Thompson — , “no caso de uma formação
histórica tão antiga como o direito, matéria cujo domínio exi­
ge anos de estudo exaustivo, sempre existirão alguns ho­
mens que acreditam ativamente em seus procedimentos pró­
prios e na lógica da justiça” .
André-Jean Amaud (1981/401-406), ao expor sua tese a res­
peito da ideologiajurídica — crença nas virtudes do direito (“si l’on
me fait du tort, je puis me pourvolr en justice, et demander répa-
ration: le droit me protege”) —, anota como sua função a de asse­
gurar a reprodução dos tipos de interação jurídica previstos por
quem diz o direito (p. 406).

14. Outro aspecto, ademais, deve ser desde logo ferido.


Refiro-me à necessidade de desde logo dar resposta a
uma eventual crítica a minha exposição, crítica que estaria
fundada na observação de que a noção de direito pressuposto
apenas abrange as relações de direito privado, não as de di­
reito público!
Desejo dizer, inicialmente, que é necessário revermos, em
toda a sua dimensão, a distinção entre direito público e direi­
to privado. Público, hoje, conota o espaço público, no qual
atua não exclusivamente o Estado. Apesar disso, o direito
público é visualizado ainda apenas como o direito do Estado,
em oposição ao direito privado, que seria o direito da socieda­
de, visão herdada de uma concepção, equivocada, que sepa­
ra Estado e sociedade.
Lembre-se, aqui, a observação de Marx (2001/121): “A li­
berdade consiste em transformar o Estado, de órgão acima
da sociedade, em órgão inteiramente subordinado a ela” .
O Estado, não obstante, está dentro da sociedade.
Além do mais, é certo que todos os movimentos de trans­
formação do direito decorrem de alterações gestadas no seio
da sociedade — isto é, no direito pressuposto. Nele, as aspira­
ções, da sociedade, de conformação inclusive do que denomi­
namos direito público.
70 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Isso podemos verificar relembrando os movimentos que


Habermas (1987/293 e ss.) refere como de “extensões do Di­
reito”: a constituição do Estado burguês, do Estado de direito
civil burguês, do Estado de Direito democrático e do Estado
de Direito democrático e social.
Note-se que na categoria modo de produção estão inseridas
todas as circunstâncias da vida material, geradoras não ape­
nas de suas próprias relações jurídicas, mas também de sua
forma de governo. O direito pressuposto contempla e nele se
opera a síntese dos padrões culturais da sociedade — e aqui
são refletidos, em processo de causalidade recíproca, valores
produzidos nas demais instâncias (política, religiosa, ideológi­
ca) da superestrutura.

De resto, permito-me transcrever aqui, sem maiores comentá­


rios, apenas para fomentar o debate, observações de Assis Brasil
(1896/23-24): “A Constituição que mais justamente tem conquista­
do admiração e applauso, a que mais se tem aperfeiçoado sem pre­
juízo da ordem publica, ê tambem a mais debil de todas, a que nun­
ca foi sequer escripta, a Constituição ingleza. O império britânico não
tem compendiado em um corpo systematico o que se chama Consti­
tuição politica. Entretanto, os mais profundos estudiosos do mundo
representativo, e até os proprios políticos e pensadores inglezes, in­
vocam continuamente a Constituição ingleza. É que ella realmente
existe. Existe, mas não estã no papel. Tal facto, que parece uma ex­
centricidade mais, dos curiosos habitantes da ilha nebulosa, é pre­
cisamente o que permitte e explica a vitalidade da sua lei funda­
mental. Desroupada.de duros textos, desembaraçada de trios dog­
mas pretensiosos e contentando-se com manter como simples orna­
mentação o que para outros povos é considerado essencial, a Cons­
tituição caminha e progride com' o corpo social que a veste, modi­
fica-se consoante às exigências d’elle, por um trabalho latente, ana-
logo ao mysterioso crescimento dos organismos vivos, de que falei.
A sua evolução é constante, como a do estado de saúde; não é inter-
mittente, como a dos enfermos”.

4. Direito pressu posto e prin cípios


15. Os princípios jurídicos, princípios de direito, não são
resgatados fora do ordenamento Jurídico, porém descobertos
no seu interior.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 71

Para que possamos conscientemente falar de um direito


— o direito aplicado em um determinado Estado — , previa­
mente haveremos de nos conscientizar do quanto observei li­
nhas acima: em cada sociedade manifesta-se um determina­
do direito.
Importa observarmos, pois, que os princípios que descobri­
mos no interior dó ordenamento jurídico são princípios deste
ordenamento jurídico, deste direito. Por isso não reconheço a
existência de princípios gerais do direito, senão apenas de
princípios gerais de direito.
Pois bem: os princípios gerais de um determinado direi­
to são encontrados no direito pressuposto que a ele corres­
ponda. Neste direito pressuposto os encontramos ou não os
encontramos; de lá os resgatamos, se nele preexistirem.
Por certo, há princípios de épocas históricas, princípios
que se reproduzem de modo razoavelmente uniforme em
múltiplos direitos pressupostos. Isso não invalida, contudo,
a verificação de que mesmo esses princípios históricos se ma­
nifestam — ou não se manifestam — nos direitos pressupos­
tos que a cada direito positivo correspondam.
Exemplifico com o princípio do Estado de Direito. A sua
construção certamente pode ser identificada como projeto
comum às sociedades que transitam do autoritarismo à de­
mocracia. Mas é certo, também, que, a menos que pensemos
a idéia de Estado de Direito como um desdobramento de um
hipotético direito natural racional, o que recuso, em cada di­
reito pressuposto se manifesta, como seu, o princípio do Es­
tado dé Direito.
O que ora importa enfatizarmos é que o direito pressuposto
é a sede dos princípios, definindo-se o sistema jurídico (cada
sistema jurídico), qual anteriormente observei, como uma or­
dem teleólôgica de princípios gerais de direito (Canarís 1989/77).

5. O direito pressuposto , ainda

16. Ainda que se possa encontrar uma descoberta jurídi­


ca significativa em minha exposição — a das noções de direi­
to pressuposto e de direito posto — , individualmente nada
72 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

criamos. Alguém disse que não há um pensar, só há um pen­


samos. O orgulho em si próprio é um sentimento nutrido
apenas pelos estúpidos.
Por certo não há, naquela descoberta, nada senão um novo
modo de apresentar a realidade. Insisto em que não descreve­
mos a realidade, mas sim o nosso modo de ver a realidade.
Algo paralelo ao direito pressuposto — mas bem distinto
dele — encontramos na exposição de Duguit, no Traité de
droit constttutionnel, tomo I (refiro-me à 3a edição, de 1927,
bastante enriquecida, em relação às anteriores, pelo autor), a
respeito da regra de direito.

17. Talvez se possa resumir a exposição de Duguit na trans­


crição do seguinte trecho: “Plus j'avance en ãge, plus j ’étudie
et approfondis le problème du droit, plus je suis convaincu
que le droit n’est pas une création de 1’État, qu’il existe en
dehors de 1'État, que la notion de droit est tout à fait indé-
pendante de la notion d ’État et que la règle de droit s’impose à
1’État comme elle s’impose aux individus. On verra par la suite
que tout cet ouvrage est dominé par cette idée que I’État est
limité dans son action par une règle de droit qu’il doit l’être,
qu’il ne peut pas ne pas 1’être, que la vie sociale serait im­
possible s’il ne 1’était pas. Or, on ne comprendrait pas qu’il le
füt si le droit était une création exclusive de 1’État, si la règle
de droit n’existait que lorsqu’une règle économique ou morale
est formulée ou acceptée par 1’État” (1927/104).

17.1 Toda norma social é, para Duguit, produto do fato


social. A norma social, no seu conjunto, compreende as nor­
mas econômicas, as normas morais e as normasjurídicas.
A intensidade da reação social que a violação da norma so­
cial produz varia. A violação da regra econômica produz uma
reação social que não afeta senão a riqueza, sua produção e
seu emprego. A violação da regra moral produz uma reação so­
cial espontânea, mais ou menos forte, porém certa.
Toda norma jurídica é moral ou econômica: mas toda nor­
ma moral ou econômica não é necessariamente jurídica
(1927/92). Assim, impõe-se determinarmos o momento em
que uma norma moral ou econômica tom a-se Jurídica.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 73

} 7.2 O que transforma uma norma social em normajurídi-


c a ê o fato de a massa das consciências Individuais chegar à
compreensão de que a sanção material desta norma pode ser
socialmente organizada — isto é, que a reação social contra
sua violação pode ser socialmente organizada pelo emprego dá
coerção (1927/81). Há regra de direito quando a massa dos in­
divíduos que compõem o grupo compreende e admite que uma
reação contra os violadores da regra pode ser socialmente or­
ganizada. Esta organização pode não existir; ela pode ser em­
brionária e esporádica; pouco importa. É no momento em que
a massa dos espíritos a concebe, a deseja, provoca sua consti­
tuição, que aparece a regra de direito (1927/94).
Diz Duguit: “Sentiment de la socialité et sentiment de la
justice, tels sont les deux éléments qui concourent à former
dans les esprits, à un moment donné, la conscience qu’une
certaine rêgle est une norme juridlque” (1927/116). E, mais:
“La règle économique ou morale devient règle de droit lors-
que la masse des hommes composant un groupe donné com-
prend que son respect est indispensable au maintien de la
solidarité sociale et qu’il est juste qu’elle soit sanctionnée”
(1927/127-128).
O fundamento da regra de direito é a idéia de soUdariedade.

17.3 Duguit refere como doutrinas estatistas as que ensi­


nam que uma regra econômica ou moral não se transforma em
regra de direito senão quando seja formulada e sancionada
pelo Estado ou ao menos aceita e sancionada direta ou indire­
tamente por ele. Para as doutrinas estatistas, a regra de direito
é o comando de uma vontade superior a uma vontade subordi­
nada; esta vontade superior é o Estado. Logo, a noção de regra
de direito implica a existência do Estado, porque somente o
Estado pode conferir-lhe o caráter imperativo, que é seu cará­
ter essencial, e só o Estado pode impor a coerção, que é a con­
dição indispensável da existência do direito (1927/100).
Para essa gente que se filia às doutrinas estatistas, pois, o
direito somente existiria apôs a invenção do Estado!
Mas diz Duguit: “Longtemps avant que la notion de loi
positive se soit formée dans les esprits et ait été réalisée par
1’établissement d’une législation écrite, il y avait des rêgles
74 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de droit. Longtemps avant qu’on ait demandé aux gouver-


nants de rédiger des lols, on leur a demandé d’assurer d’nne
manière regulière et permanente la sanction de telle ou telle
règle. La fonction juridictionelle a apparu dans les sociétés
bien longtemps avant la fonction législative” (1927/111-112).
Lembrando Gierke, Duguit observa que outros organis­
mos sociais, além do Estado, podem formular o direito; logo,
a vida jurídica e a vida estatal são duas faces autônomas da
vida social (1927/102).

17.4 A lei escrita é um modo de expressão da regra de di­


reito normativa; o legislador não a cria; ele a constata; e a lei
positiva não se impõe senão na medida em que se conforme
àquela regra (1927/171).
Diz Duguit: “Même dans les sociétés modemes, ce qui fait
la règle de droit, ce n’est pas la décision du législateur positif,
c’est la conscience que cette règle doit recevoir des gou-
vem ants une sanction positive et organisée” (1927/112).
E, mais: “Une règle de droit repose toujours sur un besoin
social et sur le sentiment de 1’équité tel qu’il existe à un
moment donné dans la conscience des hommes. Une rêgle
qui n’est pas conforme à 1’équité n’est jamais une règle de
droit. Une règle légale peut ne pas être conforme à l’équité:
mais alors elle n ’est pas une règle de droit” (1927/183).

17.5 Sem uma disciplina social, mesmo independente­


mente da existência do Estado, diz .Duguit, não haveria gru­
po social permanente.
Mas é possível que uma regra de direito exista anterior­
mente e apésar do Estado, pois retira sua força do fato social,
não da inteiyençãò do Estado, "criando-a”. O da sólidarieda-
cte é o princípio — não metafísico, não supranatural — no
qual se funda o direito (1927/99).
Lembre-se tér dito, ainda, Duguit que: “Sentiment de la
socialité et sentiment de la justice, tels sont les deux élé-
ments qui concourent ã former dans les esprits, ã un mo­
ment donné, la conscience qu’une certaine règle est une
norme jurídique" (1927/116).
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 75

Mas sentimento de justiça não metafísico, conforme afir­


ma, sucessivamente: “Loin de moi le pensée de prétendre
que çians tous les temps et tous les pays les mêmes actes
appairaissent comme contraires ou conformes à la justice. II
en serait ainsi si la justice reposait sur un príncipe rationneí,
universel, a p riort Le sentiment de justice, comme toutes les
choses humaines, a continuellement varié dans son applica-
tion et ses développements. Mais cependant, réduit a ses élé-
ments essentiels, il a un double objet, continuellement chan-
geant dans ses manlfestations, mais dans son fond toujours
identique à lui même, et qui fait apparaítre la double forme
en laquelle se traduit la pensée, plus ou moins claire, plus ou
moins obscUre, de tout individu relativement aux choses de
la vie sociale” (1927/121). “Ce sentiment de la justice est
vaiiable dans ses modalités et dans ses applications; mais il
est général et constant daris son fond qui est à la fois pro-
portion et égalité” (1927/124).
Importa enfatizarmos que Duguit não pretende determi­
nar o fundamento de uma regra de direito absoluta, porém o
fundamento positivo das regras de direito de uma determina­
da sociedade (1927/126).

17.6 Ademais, importa ainda considerarmos a distinção


que Duguit põe entre regras de direito normativas e regras de
direito construtivas ou técnicas.
A règra de direito normativa ou norma jurídica propria­
mente dita é a regra que impõe a todos os homens que vivem
em sociedade uma certa abstenção ou uma certa ação. Ela
comanda ou proíbe. Falando de comando, Duguit afirma não
se referir à ordem formulada por uma vontade superior ende­
reçada a uma vontade subordinada. Esta é uma noção positi­
vamente inadmissível, porque implica a existência reconhe­
cida de uma vontade que seria por natureza superior a ou­
tras vontades. A norma jurídica é imperativa exclusivamente
no sentido de que ela é o estatuto social que vincula necessa­
riamente todos os indivíduos membros do grupo. Ela é a pró­
pria condição de manutenção da vida social (1927/106-107).
Regras de direito construtivas ou técnicas são aquelas es­
tabelecidas para assegurar, na medida do possível, o respeito
e a aplicação das regras de direito normativas.
76 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Diz Duguit: “Elles organisent des mesures; elles pren-


nent des dispositions; elles fixent des compétences, et pour
tout dire d’un mot, elles créent des voies de droit devant
assurer la sanction de la norme juridique. Les allemands,
pour désigner 1’objet des règles cónstructives, ont un mot
commode, le mot Ãnspruch, d ont nous n’avons pas l’équiva-
lent français et qui peut se traduire, ce me semble, le plus
exactement par l’expression vote de droit. Toutes, sous une
forme ou sous une autre, les voies de droit tendent à falre
intervenir un détenteur de la force ã 1’effet d’imposer par la
contrainte la réalisation du droit. Elles sont plus ou moins
savamment organisées; mais leur but est toujours celui-là.
Les règles cónstructives fixent aussi les conditions sous
lesquelles le détenteur de la force peut intervenir; elles
déterminent ses pouvoirs, 1’effet et la portée de ses décisions"
(1927/107).
As regras de direito construtivas implicam a existência de
um Estado mais ou menos embrionária, mais ou menos de­
senvolvida. Mas não é necessário que elas sejam formuladas
em uma lei escrita. Muitas são simplesmente costumeiras e
não foram jamais formuladas ou aprovadas por uma lei posi­
tiva (1927/107-108).
Embora a regra de direito construtiva implique a existên­
cia de um Estado, ela não recebe dele séu caráter imperativo.
As regras construtivas são imperativas, diz Duguit, “quand et
dans la rnesure oú, elles se rattachent à une norme juridique
dont elles ont pour objet d’assurer la mise en oeuvre. Der-
rière toute règle constructive, poiir qu’elle soit obligatoire.
doit exister une norme juridique dont elle tend à garantir
1’application et le respect” (1927/108).
As regras construtivas são, de fato, uma criação da lei po­
sitiva. Elas contêm o enunciado de procedimentos técnicos
destinados a realizar a norma jurídica (1927/115).
E será relevante, ainda, a transcrição de mais dois tre­
chos de Duguit:
“La règle1de droit normative est une disposition prohibi-
tive ou impérative. La règle de droit constructive détermine le
procédé employé pour assurer la réalisation de la prohibition
ou du commandement, 1'accomplissement de Facte imposé,
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 77

la supression de 1’attitu.de prohibée, la punltlon de l’acte


défendu" (1927/154).
“Le système constructif peut être plus ou moins déve-
loppé. Dans les lois modemes, 11 a attelnt un haut degré de
développement et de complexité (...)” (1927/173).

18. A exposição de Duguit sobre as regras construtivas


ou técnicas é objeto de contestações (por todos, Reale, 1962/
286-289 e 381-396).
Por certo encontro, nessa exposição, algumas afirmações
às quais me oponho. Por outro lado, Duguit não opera a dis­
tinção que em meu discurso aparece na oposição entre direi­
to pressuposto e direito posto.
Ademais, o direito pressuposto não é, para mim, a regra
de direito normativa, nem o conjunto ou agregado das nor­
mas de direito normativas de Duguit. O direito pressuposto é
fundamentalmente princípios, nada obstando, de toda sorte,
a que nele vicejem regras, entendidas estas como normas ju ­
rídicas cujo grau de generalidade é mais estreito do que o
grau de generalidade dos princípios.
Assim, posso dizer que o direito pressuposto compreende
normas, regras e especialmente princípios.
Daí, no que pretendo valer-me da exposição de Duguit é
no quanto ela contribui a demonstrai* quando uma norma so­
cial se transforma em jurídica.
Isso ocorre quando a massa das consciências individuais,
em determinada sociedade, admite que a reação social con­
tra sua violação pode — e, portanto, deve — ser socialmente
organizada.
Neste momento surge a norma (isto é, o texto normativo)
de direito pressuposto.
Devo ainda retomar, todavia, à noção de direito posto.

6. A in d a o direito posto
19. Diz ainda Duguit que não importa não existir a orga­
nização que pode — deve — usar de coerção para garantir o
78 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

cumprimento da norma. O que conta é uma certa disposição


da massa das consciências individuais no sentido de que a
norma tenha seu cumprimento garaptido sob coerção.
Isso nos permite compreender que pode inclusive ocor­
rer, em uma sociedade primitiva, a existência do direito pres­
suposto sem que se manifeste um direito posto.
Por outro lado, possibilita-nos também haurir o conheci­
mento de que o Estado não é a única organização social ca­
pacitada a p ô r o direito, isto é, a produzir direito posto. Na es­
teira do pensamento de Duguit, rompemos definitivamente
com a concepção de acordo com a qual o direito é necessaria­
mente criatura do Estado.
Finalmente, desde a exposição de Duguit resulta bem ní­
tido que a norma jurídica não é um comando imposto por
uma vontade superior a uma vontade subordinada, mas um
produto cultural, disciplina que assegura a permanência do
grupo social. Mas essa norma jurídica, que nâo é um coman­
do imposto por uma vontade superior a uma vontade subor­
dinada — digo-o agora — , é a norma de direito pressuposto.
Duguit, insisto, não operou a distinção que ponho entre
direito pressuposto e direito posto.

7. A noção de “direito pressu posto ”


na literatura ju ríd ic a
20. Por fim, desejo salientar que a concepção de direito
pressuposto, embora como tal não nominado. encontra-se na
base de inúmeras reflexões produzidas pela teoria do direito.
Refiro-me, por exemplo, à visualização do negócio jurídi­
co não como conceito técnico, criado pela doutrina, porém
como conceito do mundo real, concreto, próprio do homem
vivendo em sociedade. Negóciò jurídico, assim — como asse­
vera Azevedo (1989/10) — , é um “conceito de sempre”: qual­
quer povo sempre tem uma idéia, embora por vezes confusa,
do negócio jurídico.
O negócio jurídico é um modo de comportamento huma­
no, uma forma (jurídica) de os homens se relacionarem; não
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 79

há sociedade sem negócio jurídico — o negócio jurídico é um


fato social, no sentido preciso de “criação coletiva” (Azevedo
1989/10). Por isso mesmo é que seu fundamento encontra-
se na autonomia da vontade concebida socialmente, e não na
autonomia da vontade individualista.
O que importa salientarmos é a existência de uma ju-
ridicidade ínsita no negócio jurídico, juridicidade que não é
dada pela lei, mas se manifesta anteriormente à incidência
da lei — isto é, digo-o, juridicidade que se manifesta no plano
do direito pressuposto, anteriormente à institucionalização
de um direito posto.

21. Emilio Betti (1969/89), referindo as permutas prati­


cadas pelas tribos selvagens, entre elas e com povos civiliza­
dos, observa que, não obstante a falta de um ordenamento
superior {direito posto), as negociações que antecedem a con­
clusão do contrato são conduzidas com escrupulosa correção
e que, obtido o acordo, ambas as partes mostram, ao concluí-
lo, plena consciência do seu valor vinculativo.
A propósito, lembra o relato de Herõdoto (IV, 196), repro­
duzido por Azevedo (1989/17): “Os cartagineses dizem que,
para lá das colunas de Hércules, há um país habitado onde
eles vão comerciar. Quando chegam, tiram as mercadorias dos
navios e as alinham ao longo da margem; retomam, em segui­
da, aos seus barcos, de onde fazem muita fumaça. Os naturais
da região, percebendo a fumaça, vêm à beira-mar e, depois de
deixar ouro, como preço pelas mercadorias, afastam-se. Os
cartagineses saem, então, dos navios, examinam a quantidade
.de ouro trazida e, se ela lhes parecer corresponder ao preço
das mercadorias, tomam-na e partem. Mas se o valor não é su­
ficiente, voltam aos barcos, de onde esperam tranqüilamente
novas ofertas. Os outros voltam em seguida e acrescentam al­
gum ouro mais, até que os cartagineses se dêem por satisfei­
tos. Eles não enganam nunca uns aos outros. Os cartagineses
não põem a mão no ouro, salvo se for como preço das merca­
dorias, e os naturais do país não levam nunca as mercadorias
antes que os cartagineses tenham levado o ouro”.
E prossegue Betti, reproduzindo o surpreendente relato
de um navegador veneziano do século XV, Alvise da Cá da
80 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Mosto, a propósito do comércio de sal que a tribo dos Tegazza


mantinha com outras tribos de negros: ‘Todos aqueles de
quem é o sal fazem com ele montes enfileirados, marcando
cada um o seu, e em seguida toda a caravana volta meio dia
para trás; vem, depois, uma outra geração de negros que não
querem ser vistos, nem falar com os outros e, ao verem o sal,
colocam um a quantidade de ouro junto de cada monte de sal,
e voltam para trás, deixando o ouro e o sal; e logo que eles
partem vêm os negros do sal: vêm ver se a quantidade de
ouro deixada pelos outros é, em sua opinião, suficiente para
comprar a quantidade de sal correspondente. E se a acham
suficiente, levam-na, deixando o sal; se não estão de acordo,
deixam o ouro e o sal, e retiram-se de novo, esperando que os
outros voltem e acrescentem a quantidade de ouro que ainda
falta. Depois do quê, obtido o acordo, levam o ouro e os ou­
tros vêm buscar o sal”.
A propósito, relembro trecho do texto de Marx, acima
transcrito: “Essa relação jurídica, que tem por forma de ex­
pressão o contrato, é, esteja ou não legalmente regulada (...)”.
A regulação legal é regulação pelo direito posto; a relação de
que.se trata, não obstante ainda não legalmente regulada,
não deixará de ser relação “jurídica”, porque abrangida pelo
direito pressuposto.

22. Uma concepção análoga à do direito pressuposto ire­


mos encontrar também em Gramsci (1986/242-244), que
menciona as correntes populares do “direito natural” — um di­
reito natural dotado de conteúdo real (reivindicações concretas
de caráter político-econôm ico-socialj; direito natural “contami­
nado” p or certos programas e proposições afirmadas pelo “his-
toricism o”.
Assim, Gramsci afirma a existência de uma massa de opi­
niões “jurídicas” populares, que assume a forma do “direito
natural” e são ojo lk lo re jurídico.
Como, no entanto, o direito pressuposto é produto cultural,
uma construção histórica da sociedade, a sua superposição
ao “direito natural”, singelamente e sem qualquer qualifica­
ção, é equivocada.
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 81

23. Também Sartre (1976/48 e ss.), respondendo ao ge­


neral De Gaulle e produzindo sua defesa no “qffaire” La cause
du peuple, discorre, embora sem que o identifique como tal,
sobre o direito pressuposto.
Sartre pedira á De Gaulle que permitisse a instalação do
“Tribunal Russel” na França. O general, respondendo-lhe em
carta que mandou publicar, concluiu: “Ce n’est pas à vous
que j ’apprendrai que toute justice, dans son principe comme
dans son exécution, n’appartient qu’à 1’État".
Sartre, porém, observa que a noção de justiça, em sua
origem, não se encontra no Estado, mas no povo. Para o po­
vo, isto é, para a maioria dos franceses — diz — , há, origina-
riamente, situações justas e situações Injustas. Não se trata,
aqui, de Ideologia, mas de um sentimento muito mais pro­
fundo, que exprime a realidade fundamental da consciência
popular. Nenhuma atividade social ou política poderia ser
popularmente exercida se não fosse concebida como justa.
De outra parte, a justiça de uma causa nutre o entusiasmo e
o desprendimento e conduz os grupos sociais a empreender
ações que os magistrados constituídos julgam puníveis em
função do código e dos princípios que lhes foram impostos.
Em outros termos, conclui Sartre, “le fondement de la ju s­
tice, c’est le peuple” .
O povo — digo — produz o direito pressuposto; o Estado
produz o direito posto, que conhecemos como direito moderno
ou direito form ak apenas o direito produzido pelo povo é com­
prom etido com ajustiça.

24. Uma outra concepção, ainda análoga à do direito pres­


suposto, encontramos em Markovic (1995/138 e ss.), embora
o jurista iugoslavo sustente uma dualidade no direito positivo.
Markovic (1995/139-141) afirma que existem duas fontes
fundamentais do direito positivo: a sociedade e o Estado; as
duas categorias fundamentais de normas que constituem o
direito positivo são as normas sociológicas e as normas esta­
tais (étatistes). Essas duas categorias existem e funcionam,
as duas, simultaneamente na ordem positiva, completando-
se, entrelaçando-se e mutuamente influenciando-se. Daí a
dualidade do direito positivo. As normas sociológicas são a ex­
82 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

pressão da justiça material existente na sociedade. Já, as


normas estatais resultam de posições ideológicas que o Esta­
do introduz na ordem jurídica positiva no exercício de seu
imperium soberano.
A norma sociológica, enquanto imperativo jurídico, cons­
titui a infra-estrutura, ao passo que a norma estatal enquanto
imperativo ideológico do Estado, representa a superestrutura.
Fica bem nítida, a esta altura, a proximidade dessa exposição
às noções de pressuposto e posto.

25. Desejo mencionar, ainda, Ost e van der Kerchove


(1992/180-181), que referem, nas franjas do direito positi­
vo, uma margem de infra droít, que tanto o reforça quanto,
concorrendo com ele, o fragiliza. O direito não se resume ao
direito objetivo codificado, na medida em que as regras escri­
tas e sancionadas consubstanciam apenas a face emergida
de um vasto conjunto de normas, “concebidas” e “vividas”
no seio do corpo social, às quais os juizes podem a todo ins­
tante conferir efeitos jurídicos. A í os princípios gerais do di­
reito, que van der Kerchove e Ost dizem constituir uma ma­
nifestação, entre outras, dos operadores semiclandestinos
da juridicidade.
Note-se, contudo, que, ao considerarem a heterogeneida-
de sobre a qual se assenta o direito, van der Kerchove e Ost
tomam a identidade nacional como fator mais diluído, na me­
dida em que pretendem na definição de “pluralismo jurídico”
abarcar não apenas as manifestações jurídicas infra e supra-
estatais e transnacionais, mas também a diversidade que
opera no próprio seio do sistema, a partir das regras implícitas
e finalidades que provêm dos outros sistemas sociais. Nesse
sentido, na sua idéia de participação do sujeito na constru­
ção do jogo que o direito é, estaçià contida também a ação do
sujeito individualmente considerado (conflits sous le droíf),
que age refletindo a heterogeneidade dos demais subsiste-
mas aos quais se prende, o que lhe confere dimensão mais
circunstancial do que a disposta pela tese do direito pressu­
posto (esta trabalhando com categorias que se definem histo­
ricamente de maneira mais coletiva e geral).
II — O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO 83

S. A pretexto de conclusão
26. O discernimento da existência material de um direito
pressuposto próprio a cada sociedade — direito pressuposto
que funciona como uma das linguagens sociais (direito pressu­
posto = relação jurídica involucrada nas relações sociais) —
abre vias à compreensão mais ampla do fenômeno jurídico.
O povo, isso me parece irrefutável, tem plena consciência
da dimensão ju ríd ica das relações sociais como uma de suas
dimensões.

Concedida licença para o uso de analogia extremamente lassa,


poderíamos traçar paralelo entre língua e direito, o direito posto
correspondendo à língua oficial, o(s) direito(s) pressuposto(s), aos
dialetos praticados pela sociedade.

Não será demasiado repetirmos — e isso justifica a minha


longa exposição — que é no direito pressuposto que se encon­
tra a sede dos princípios, princípios de cada direito, e não prin­
cípios gerais do direito. Relembro que o direito pressuposto é
fundamentalmente princípios, embora nada obste a que nele
vicejem regras (normas jurídicas cujo grau de generalidade é
mais estreito do que o grau de generalidade dos princípios).
Se tomarmos como ponderável a previsão da estruturação
de um novo direito, conseqüente à desestruturação do direito
moderno/formal — estruturação conformada pela considera­
ção dos princípios jurídicos resgatados do direito pressuposto
—, se tanto for entendido como ponderável, a reflexão que de­
senvolvi poderá apresentar alguma virtude,
A estruturação do “novo direito”, que há de suceder o
direito moderno/formal, há de ser substancialmente infor­
mada pelos novos discursos jurídicos (discursos que falam
do direito) que produzam os que não se contentam em ape­
nas descrever o direito, aspirando a transformá-lo. A con­
cepção do direito pressuposto enseja o robustecimento des­
ses discursos.
jzt
O TE M A D A LEGITIM ID ADE D O DIREITO

1. A imensa maioria dos estudiosos do direito foge à


questão da legitimidade do direito como se diz que do alho fo­
ge o vampiro, ou o diabo, da cruz. E um dos expedientes mais
aprestados a ensejar essa fuga encontra-se na afirmação de
que a legitimidade está subsumida na legalidade, o que não
se pode, contudo, logicamente sustentar.
. Deveras, quando cogitamos da legalidade, geralmente in­
dagamos se determinado comportamento verificado no mun­
do dó ser é legal, ou seja, conforme ou não contrário à lei —
isto é, se esse comportamento é dotado de legalidade. Quan­
do indagamos se uma norma infralegal (uma norma de decre­
to ou portaria, por exemplo) é dotada de legalidade, a ponde­
ramos em relação a uma entidade do mundo do dever-ser.
Já, ao cuidarmos da legitimidade do direito, o que indaga­
mos é se o direito, um conjunto de normas jurídicas ou uma
delas, elementos do mundo do dever-ser, são dotados de legi­
timidade.

Note-se bem que aqui não Falo da legitimidade do direito, po­


rém da legitimidade de cada direito.

A substituição da legitimidade pela legalidade, pois, de


modo a se tentar justificar a dispensa de qualquer tipo de co­
gitação quanto à primeira, é logicamente insustentável.
Esse, o primeiro ponto a salientar — o que faço sob a res­
salva, porém, de que um contestador arguto do que afirmo
III — O TEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO 85

poderá dizer que a legalidade do direito é também uma “lega­


lidade constitucional” (= constitucionalidade), de sorte que as
normas legais (no sentido de serem leis) serão dotadas de le­
galidade quando criadas conforme à Constituição, não tendo
sido posteriormente revogadas, de acordo com 0 procedimen­
to previsto pela Constituição. A retórica, de qualquer forma,
não Invalida meu raciocínio. O que pretendo deixar vincado é
o fato de a legalidade ser atributo de objetos tanto do mundo
do ser quanto do mundo do dever-ser.
O segundo é o relativo à circunstância de que são inteira­
mente distintas as cogitações a propósito da legitimidade do
título de poder e da legitimidade do exercício do poder. Aqui é
necessário rememorarmos a distinção, antiga, posta entre a
tyrannia absque titulo e a tyrannta quoad exercitium.
Falamos de coisas distintas ao nos referirmos a uma e a
outra, como de coisas distintas também cuidamos, por exem­
plo, quando falamos de forma legal e de forma legítima de go­
verno.

Lembre-se o confronto estabelecido na França monárquica, no


período da Restauração, entre a legitimidade de uma monarquia res­
taurada e a legalidade do Código de Napoleão: os liberais aspira­
vam à monarquia constitucional como forma legal de governo; os rea­
listas (monarquistas), enquanto forma legítima de governo. Note-se
que a democracia liberal importa, em sua origem, repúdio da legi­
timidade, até porque esta é tida como noção estritamente vincula­
da à idéia monárquica; por isso jamais se construiu uma noção de
legitimidade democrática, afastada pela concepção de legalidade de­
mocrática.
Aos estudiosos das demais ciências sociais é também, em re­
gra, estranha e despropositada a perquirição da legitimidade do
direito.

2. Escrevi, hã anos, um pequeno ensaio a respeito de le­


galidade e legitimidade, texto que publiquei em livro de 1985
e republiquei em 1988, noutro livro (1985/53 e ss. e 1988/
37 e ss.). Errei, onde errei, duas vezes.
Hoje, revendo esse texto, porque se alterou meu entendi­
mento a respeito do tema, gostaria não de não tê-lo escrito (até
porque hoje penso como penso precisamente porque ontem
86 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

pensei de modo diverso; apenas os estultos permanecem sem­


pre nutrindo os seus erros...), mas de corrigi-lo. Não obstante,
um tanto do que ali escrevi ainda me parece adequado.
Disse então — e isso sustento — que o direito é u m pro­
duto cultural, uma invenção do homem, sendo as realidades
sociais o elemento desde o qual se processa a sua invenção.
E prossegui afirmando que, assim como a sociedade in­
venta sua cultura, valora situações objetivas e, diante delas,
adota determinados princípios e idéias das quais defLuem
sentidos admitidos e consentidos como convenientes à con­
vivência social. A luta pela criação do direito positivo — pros­
segui, ainda — é processada sobre a consideração de tais
sentidos. Vale dizer: a sociedade inventa sua cultura e, a par­
tir dela, sob a pressão das forças sociais, o legislador cria o
direito positivo, que resultará legítimo ou ilegítimo.
Logo, concluí: podemos afirmar que a norma jurídica é le­
gítim a — dotada de legitimidade — quando existir correspon­
dência entre o comando nela consubstanciado e o sentido
admitido e consentido pelo todo social, a partir da realidade
coletada como justlficadora do preceito normatizado. A legiti­
midade é um conceito material, ao passo que a legalidade é
um conceito form al.

3. Quanto a isso, pouco tenho a alterar. Em verdade, o


que posso fazer é simplificar o quanto afirmei, dizendo agora,
de outra forma, que dotado de legitimidade é o direito posto
que corresponde ao direito pressuposto. Isso, porém, a par de
observar que meu texto afirmava apenas parcialmente os
princípios, pois é certo que “sentidos admitidos e consentidos
pelo todo social como convenientes à convivência social” são
princípios.
Restam integralmente dotadas de utilidade didática —
parece-me — extensas porções do texto, ãs quais não oponho
reparos. A alusão àó fato de que Weber, em verdade, não
superpunha ás idéias de legitimidade racional e de legalidade,
as críticas que formulei ao pensamento normativista, à pa­
ternidade, à eficácia e ao procedimento como critérios da le­
gitimidade, aí encontro exposições que o leitor que deseje
III — O TEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO 87

aprofundar o tema poderia examinar. Mas é necessário que o


faça considerando as noções de direito pressuposto e de direi­
to posto.

4. Contribui valiosamente à explicação da legitimidade a


exposição de Carl Friedrich (1965/220-226). Sobre ela apoia­
do, construí as seguintes observações, ora ligeiramente apri­
moradas.
A legitimidade do direito (= legitimidade do exercício do
poder) deflui da autoridade, entendida esta como produto do
racional relacionamento entre os comandos emitidos pelos
que detêm o poder e o consenso do grupo social.
A autoridade, porém, edifica-se sobre a base do poder do­
tado de legitimidade. Em outros termos: só se realiza quando
racionalmente sustentada sobre os princípios qué tenham
sido adotados pelo todo ou pelo grupo social destinatário do
direito positivado (direito posto) .
Daí por que o direito não fundamenta a autoridade, mas,
antes, pelo contrário, necessita da autoridade, visto que ape­
nas o poder reforçado pela autoridade é capaz de elaborar
normas jurídicas legítimas.
O direito legítimo, pois, é resultado da adição de autori­
dade ao poder do qual emane.
Note-se que a palavra auctoritas vem de augere, que signi­
fica aumentar. O imperium, exercido em Roma pelo Senatus
Consultam — conselho de anciãos, homens experientes — ,
era tido como resultante do acréscimo de autoridade ao poder
(potestas).
A distinção é nítida. A auctoritas, em verdade, dispensa a
potestas para que se realize. Mas a potestas sem auctoritas é
só e apenas força, e da ausência da auctoritas no exercício da
potestas só pode resultar a produção de um direito ilegítimo
— porque ilegítimo é o poder despido de autoridade.
Por isso que o fundamento da legitimidade encontra-se
na autoridade (vocábulo que conota o sentido acima indica­
do, e não outros que se incluam no seu arco de denotação).
Direito legítimo é o produzido com autoridade, de modo a ex­
pressar os padrões de cultura, ou seja, os sentidos (piincí-
88 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

pios, digo-o agora) foijados pela sociedade como expressões


das aspirações e rumos que ela, sociedade, pretende seguir.
É fundamental a observação, neste ponto, de que o direito
posto não legitima o interesse e as aspirações sociais; as as­
pirações sociais e o interesse social é que legitimam o direito
(= direito posto). Isso importa lembrarmos von Ihering (1884/
424): “O direito existe em função da sociedade; não a socie­
dade em função do direito” .
Esses sentidos .— admitidos e consentidos como convenientes à
convivência social — são foijados, na sociedade e pela sociedade, a
partir de certos princípios e idéias resultantes da valoração de situa­
ções objetivas. Note-se bem que não me refiro a um direito natural,
produto de determinado voluntarismo. Esses sentidos não expri­
mem voluntarismo algum. Observe-se, neste ponto, parentetica-
mente, que um dos grandes equívocos do positivismo jurídico está.
posto na visão voluntarista, que preserva, do direito. Estrutural­
mente, não há evolução alguma na passagem do pensamento jus-
naturalista ao pensamento positivista, mas apenas uma substitui­
ção de deuses ou naturezas. O positivista repudia o caráter acien-
tífico e nãoracional da postura dos que creditam o direito a uma
expressão da vontade divina ou da natureza. Ao fazê-lo, contudo,
substitui uma e outra vontade por vontades diversas: da sociedade,
do piovo, ou do legislador, do Estado, sem perceber, entre tantas
outras coisas, que legislador e Estado são criaturas do direito ...

5. A legitbnidade de que ora cuido, pois — legitimidade que


não se identifica com a legalidade; legitimidade do direito posto
— , é produto da autoridade, entendida esta como decorrente
da captação de padrões histórico-culturais, e não da captação
de qualquer vontade ou conjunto de vontades, razão pela qual
dispenso, em minha concepção, o recurso à idéia de “consen­
so social”. A construção histórica desses padrões passa à mar­
gem de um contrato social e da regra da maioria.
Daí o lugar conquistado para a asserção de que uma nor­
ma jurídica (um texto normativo, em verdade) pode ser (a) legi­
tima e legal, (b) legitima e ilegal, (c) ilegítim a e legal ou (d) ilegí­
tima e ilegal
Impõe-se superarmos, no entanto, qualquer idealismo
que se pretenda sustentar desde minha afirmação inicial,
neste capítulo. .
III — O TEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO 89

É que a necessidade de revelação (captação) dos padrões


histórico-culturais da sociedade induz que dotado de autori­
dade é o legislador capaz de reconhecer as aspirações sociais
e o interesse social, onde esboçada a idéia de uma sociedade
Ideal.
O que importa é podermos definir quando e como o legis­
lador exercita autoridade.
A questão resolve-se no plano da realidade histórico-cul-
tural e do estado de atuação das forças materiais produtivas,
consideradas, ainda, as noções de direito pressuposto e de
direito posto.
Dotado de legitimidade, sim, é o direito posto que corres­
ponde ao direito pressuposto. Mas o fenômeno do dinamismo
da vida social, do qual decorre fatal ilegitimidade supervenien­
te das normas jurídicas (melhor dizendo: textos normativos)
— aspecto que abordarei a seguir — , tom a evidente que a
existência de um direito legítimo, em sua globalidade, é ape­
nas virtual; o que se pode detectar, em determinado momen­
to histórico, espacial e temporal, é apenas uma tendência do
direito (= um direito posto) à legitimidade, no que se divisaria
um direito legítimo.
Resta, contudo, o desafio de os identificarmos, um direito
posto legítim o e um direito posto ilegítimo.

6. Diremos, então, que um direito posto é legítimo quando


permite o pleno desenvolvimento das forças materiais produ­
tivas, em determinada sociedade; ilegítimo, quando constitui
entrave ao pleno desenvolvimento dessas forças, ocasião em
que se instala uma época de revolução sociaL
O leitor atento naturalmente retomará, neste ponto, à lei­
tura de trecho do ‘Prólogo” à Contribuição à crítica da economia
política, trecho que transcrevi no capítulo dedicado ao direito
posto e direito pressuposto.

Encontramos, mesmo em autores que admitem que a idéia de


justiça é sempre a mesma e a indicam como finalidade do direito
(“Le droit est une sorte de conduite qui vise à réaliser ã Ia fois de
l’ordre social et de la justice”) — é o caso de Maurice Hauriou
(1933/45 e 66) —, afirmações como a seguinte: “Nous prenons
90 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

1’ordre social et la justice en leur qualités d'idées objectives, ré-


pondant à une réalité perçue par 1'esprit humain et, par consé-
quent, pratiquement, nous les traltons comme des faits. Bien
qu’intimemen.t liés, l’ordre social et ía justice ne sont pas une
seule e même chose. Bien souvent un ordre social determiné, ou
bien quelque institution de cet ordre social, sont jugés injustes; à
1’inverse, il arrive que des arrangements sociaux pénétrés de jus­
tice ne puissent subsister, parce qu’ils ne sont pas adaptés aux
exlgences élémentaires de 1’ordre social. La justice provoque des
révolutions sociales oü sombre l’ordre établi; en revanche, 1’ordre
social établi étouffe des Salentes et des Icaires” (1933/44),

Minha postulação, que afasta qualquer idealismo, permi-


te-nos verificar que, inúmeras vezes, um direito posto legítimo
é precisamente o que instrumenta dominação de classe e
justifica a titularidade do poder por essa mesma classe.
Assim, as sociedades feudais veiculavam direitos legíti­
mos enquanto esses direitos, ainda que instrumentando do­
minação de classe e justificação do poder, permitiram o ple­
no desenvolvimento das forças materiais produtivas feudais.
E assim por diante: a ilegitimidade de um direito se manifes­
ta quando se instalam, em todas as suas possíveis nuanças,
movimentos e épocas de revolução social.
Com isso, creio, desmistificamos a legitimidade. Os pa­
drões culturais e as aspirações de cada sociedade estão in­
formados por condições históricas. Assim, houve uma legiti­
midade feudal, como há uma legitimidade capitalista e se po­
derá falar (airida) de uma legitimidade socialista.
Legítimo, assim — direi de outro modó — , é o direito posto
que permite o pleno desenvolvimento das forças materiais
produtivas. Os padrões culturais e as aspirações que estão
em jogo, caracterizantes ou não caracterlzantes da legitimi­
dade de um direito, são os que afirmam ou negam o estado de
coexistência dos vários modos de produção que coexistem na
sociedade ao qual é aplicado.

7. Observei, inicialmente, que a imensa maioria dos es­


tudiosos do direito foge à questão da legitimidade do direito,
ocultando-a sob a afirmação de que a legitim idade está sub-
sumida na legalidade.
III — O TEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO 91

A questão poderia ser tratada de modo inteligente, embo­


ra isso seja, em relação a tantos, pedir demasiado.
O fato é que se pode afirmar a impossibilidade de apre­
ciarmos a legitimidade de ura direito posto desde um ângulo
interno seu. O mesmo raciocínio apllcar-se-ia ao problema
da fundamentação do direito.
Ou esse fundamento será externo ao direito, ou será per-
quirido nele próprio (a norma fundamental kelseniana, dizem
van der Kerchove e Ost 1992/186, constitui a ilustração
mais acabada, se não a mais convincente, dessa tentativa).
Nenhuma dessas alternativas é, contudo, satisfatória. A in­
vocação de um fundamento externo implica o regressum ad
irifiniturn (qual é o fundamento desse fundamento, a órigem
dessa origem?); a alusão à autofundação do direito o expõe a
todas as aporias da causa sui, concluem van der Kerchove e
Ost (1992/186).
Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1994/349-350), compa­
rando o direito, tendo em vista a questão da legitimidade, a
uma espécie de “jogo sem fim” , sustenta que ela apenas po­
deria sêr avaliada se admitíssemos, para tanto, um padrão
externo. E aí sugere a possibilidade de conceptualizarmos o
tempo, “isto é, conceber a História como um processo dentro
do qual os sistemas jurídicos aparecem, superam-se, desa­
parecem: um direito superado historicamente não tem mais
razão de ser e se tom a ilegítimo” .
É isso, precisamente, mas em outros termos, o que pro­
ponho (um direito posto é ilegítimo quando constitui entrave
ao pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas,
em determinada sociedade, ocasião em que se instala uma
época de revolução social).
Mas a ponderação desse critério — afirma o próprio Tércio
Sampaio Ferraz Júnior (1994/350) — supõe algo impossível:
"alguém que, vivendo temporalmente dentro do sistema e de
sua contigência fática, se coloque de fora, como um observa­
dor neutro, capaz de uma visão histórica universal’*.

8. Sem pretender nem fugir, nem enfrentar o debate, per­


mito-me apenas dedicar breve momento de atenção ao que
tenho referido como ilegitimidade superveniente, para o quê
92 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

retom o parcialmente a meu texto publicado em 1985 e em


1988. Faço-o na medida em que creio na sua consideração
encontrar um artifício metodológico — tome-se-o assim, que
isso me basta —- virtuoso para a análise jurídica.
Direito posto legítimo, com óvim ós, é aquele resultante da
adição de autoridade ao poder do qual emerge. Esse é direito
posto que permite o pleno desenvolvimento das forças mate­
riais produtivas em determinada sociedade.
Teremos, destarte, que a norma jurídica (= texto norma­
tivo) será ilegítima se (a) ilegítimo o poder de onde emerge (a
ilegitimidade do título de poder contamina de ilegitimidade o
exercício do poder, ao raenos no nível teórico) ou (b) se caren­
te de autoridade. Na segunda hipótese há legitimidade no tí­
tulo de poder, mas não coerência entre o comando emitido
por quem detém o poder de pôr o direito e os padrões históri-
co-culturais dos destinatários do comando, a ponto de provo­
car a instalação de uma época de revolução social — o que,
em regra, supõe a ilegitimidade de inúmeras normas jurídi­
cas (= textos normativos).
Mas ainda na segunda hipótese cumpre distinguirmos
duas situações, que refiro como de ilegitimidade originária e
de ilegitimidade superveniente da norma jurídica (repito: do
texto normativo).
A ilegitimidade originária é conseqüente ao equivocado e
impreciso exercício da atividade de elaboração da norma ju rí­
dica: há carência de autoridade na sua formulação; os dados
sociais não são devidamente recolhidos ou aplicados àquela
formulação; a norma posta é adversa ao direito pressuposto.
A ilegitimidade superveniente caracteriza-se quando o tex­
to normativo, originariamente legítimo, em função do dualis­
mo imobilidade relativa das normas de direito posto x progres­
são contínua das realidades sociais, a partir de determinado
momento passa a conflgurar-se'ilegítimo — isto é, toma-se
advèrso ao direito pressuposto.
O manejo destas noções — estou convencido disso — há
de ser útil a quantos não se conformem em ser exclusiva­
mente expositores do direito. Porque é a eles que me dirijo,
sempre, enfatizo, apenas, a circunstância de ilegitimidade
III — O TEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO 93

originária e ilegitimidade superveniente serem atributos de


normas de cada direito posto. E desejo deixar bem vincado
também o fato de que, como observei anteriormente, a exis­
tência de um direito legítimo, em sua globalidade — e assim
ocorre com um direito ilegítimo, em sua globalidade — , é ape­
nas virtual.
IV
O S M ODELOS D E D IREIT O FORM AL
E D E DIREITO M ODERNO
E A D U PLA DESESTRUTÜRAÇÃO D O DIREITO

1. O “direitoformal". 2. Pequena nota a respeito do direito e da moral.


3. O “direito modenio". 4. O direitoformal/direito moderno e a conser­
vação dos meios. 5. A justiça. 6. A dupla desestruturação do direito. 7.
Contraponto: pequena nota a respeito da ética. 8. Princípios e valores.
9. Conclusão prospectiva.

1. Em cada sociedade manifesta-se um determinado direi­


to [direito posto = direito positivo), diverso e distinto de outros
direitos (direitos postos = direitos positivos) que se manifestam
em outras sociedades.
Por isso, como vimos, não hã que falarmos, concretamen­
te, no “direito”, senão nos “direitos”. O direito, produto de uma
determinada cultura, não pode ser concebido como universal
e atemporal. A cada sociedade corresponde um direito, integra­
do por determinadas regras e determinados princípios.
Não obstahte podemos, no: plano do abstrato, falar em
certos modelos de direito.
Assim, de uma parte dizemos que o modelo de direito co­
nhecido e praticado no tempo em que vivemos é o direito fo r ­
mal (modelo de direito form al) . Desde outra perspectiva, dire­
mos que esse modelo, conhecido e praticado em nosso tem­
po, é o direito moderno.
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 95

1. O “direito fo r m a l”
2. Cada juiz, ao tomar decisões sobre conflitos (= litígios,
em verdade), interpreta e aplica um determinado direito positi­
vo — o direito positivo brasileiro, v.g.
Por isso devo explicitar o que, ao aludir a um "direito for­
mal”, neste contexto tomo por “formal". A que atribuo a quali­
ficação de “formal”? Ao direito positivo brasileiro, no caso, ou
ao modo de interpretação/aplicação do (desse) direito (Isto é,
às normas criadas pelo juiz)?
É necessário que se esclareça, a esta altura, que tomo a in­
terpretação como atividade que se presta a transformar dis­
posições (textos, enunciados) em normas; a interpretação é
meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições,
meio através do qual o juiz desvenda as normas contidas nas
disposições (Zagrebelsky 1990/68 e ss. e Grau 1995/5-7,
1997a/55 e ss. e 1998/65 e ss.). Por isso, as normas resultam
da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposi­
ções, não dizem nada — elas dizem o que os intérpretes dizem
que elas dizem. O Intérprete dotado de poder suficiente para
criar as normas, a partir delas construindo, em cada caso, a
norma de decisão, é o “intérprete autêntico”, no sentido confe­
rido a essa expressão por Kelsen (1979/469 e ss.) — isto é,
fundamentalmente o juiz.

3. O direito positivo brasileiro não é, em si, definitiva­


mente “direito formal”. Como, no entanto, as normas são
“criadas” pelo “intérprete autêntico”, estes tomam o direito
positivo brasileiro (sistema de disposições, de enunciados;
de “textos") e, a partir dele, produzem “direito formal”.
Assim o fazem porque esta é a sua função, enquanto agen­
tes estatais. É preciso não esquecermos que os juizes são fun­
cionários públicos a serviço, em última instância, não da justi­
ça, mas do Estado, seu empregador — e, ademais, não são
agentes políticos do Estado (não obstante, é óbvio, façam políti­
ca, no mínimo no sentido originário do vocábulo).
É função dos juizes a de produzir “direito formal”, ainda
que possam, na medida em que “criam” normas, produzir “di­
reito não-formal”. Na medida em que o façam, porém, estarão
96 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

a produzir um discurso alternativo do direito, que poderá ou


não ser subversivo. O uso alternativo do direito ( “direito alter­
nativo”, como tem sido inadequadamente referido), no entan­
to, inúmeras vezes não é subversivo, na medida em que ins-
trumenta o exercício, pelo Estado, de sua função de legitima­
ção capitalista.

4. Formal, portanto, no sentido sob o qual o vocábulo in­


tegra a expressão “direito formal”, é um modo de aplicação do
direito. “Formal” refere, aqui, uma teoria form al da interpreta­
çãojurídica.
Os seguintes traços caracterizam, para Max Weber (1969/511-
512), a “atitude formalista”: a) toda decisão jurídica concreta repre­
senta a “aplicação” de um preceito abstrato a um “fato” concreto; b)
é necessário que se possa encontrar, em relação a cada caso con­
creto, graças ao emprego da lógica jurídica, uma solução que se
apóie nos preceitos abstratos em vigor; c) o direito objetivo vigente é
um sistema “sem lacunas” de preceitos jurídicos ou encerra tal sis­
tema em estado latente ou, ao menos, tem de ser tratado como tal
para o fim de sua aplicação a casos singulares; d) tudo que não se
possa “construir" de modo racional carece de relevância para o di­
reito; e) a conduta dos homens que formam uma comunidade deve
ser necessariamente concebida como “aplicação” ou “execução” ou,
pelo contrário, como “infração” de preceitos jurídicos. Weber salien­
ta (1969/510) a importância da sistematização jurídica, que “con­
siste em relacionar de tal sorte os preceitos obtidos mediante a aná­
lise que formem um conjunto de regras claro, coerente e, sobretu­
do, desprovido, por princípio, de lacunas, exigência que necessaria­
mente implica a de que tódos os fatos possíveis possam ser subsu-
midos sob alguma das normas do ,sistema, pois do contrário este
careceria de sua garantia essencial”. E, adiante (1969/511), tratan­
do da racionalidade formal e da racionalidade material da criação e
aplicação do direito, observa que na decisão de problemas jurídicos
segundo a racionalidade material devem influir certas normas cuja
dignidade qualitativa é diversa da que corresponde às generalizações
lógicas fundadas em uma interpretação abstrata: imperativos éti­
cos, regras utilitárias ou de convivência ou postulados políticos que
rompem tanto com o formalismo das características externas como
com o formalismo da abstração lógica.
Bobbio (apud Carrlõ 1986/81) reconhece quatro significações
na expressão “formalismo jurídico”: a) uma concepção formal da
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 97

justiça (“ato justo é aquele conforme às leis e injusto é aquele que


está em desacordo com elas"); b) uma concepção formal do direito
(que o “apresenta (...) como uma forma, geralmente constante,
cujo conteúdo é geralmente variável’’); c) uma concepção da ciên­
cia do direito como ciência formal (isto é, como um “saber que não
tem por objeto fatos (...) porém qualificações normativas de fatos e
cuja tarefa não é a explicação, própria das ciências naturais, po­
rém a construção e, em geral, o sistema”); d) uma teoria formal da
interpretação jurídica (caracterizada pela preferência dada à inter­
pretação lógica e sistemática em relação à histórica e teleológica).

Há evidente relação, é óbvio, entre “formalismo” — no sen­


tido indicado — e “positivismo jurídico” .
O direito form al, assim, funciona como uma linguagem
operacional voltada à solução de conflitos (= litígios), aparta­
da, inteiramente apartada, da m orat

2 . Pequena nota a respeito do direito e da moral


5. Terá sido Grotius o primeiro a estabelecer distinção
bem definida entre direito e m orat a fundamentação última
do direito encontra-se na natureza e em um direito natural
que prescinde de Deus.
Tomasius, após, em seu Fundamenta iuris naturae e tg e n -
tium, de 1705, estabelece verdadeira antítese entre direito e
moral: a moral respeita exclusivamente à consciência do su­
jeito, ao forum intemum, e tende à busca da paz interna; o d i­
reito regula exclusivamente as ações exteriores e tende à
busca da paz externa, da coexistência e da convivência exte­
rior, fundada no princípio neminem laedere, Assim se opera,
definidamente, a cisão da unidade da consciência (foro interno
e foro externo).
Em Kant opera-se a sistematização da independência do
direito em relação à moral: a moralidade encontra seu funda­
mento na liberdade intem a da vontade, que porta em si a re­
gra moral e é autônoma, independendo de qualquer lei (a m o­
ral concerne ao móbil — Triebfeder — princípio subjetivo do
d eseja r— do indivíduo); o direito, ao contrário, respeita à li­
berdade externa da vontade, submetida ao império da lei, à
coação exterior (o elemento essencial do direito, para Kant, é o
98 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

poder coercitivo) (a legalidade é ação conforme as normas


estabelecidas pela lei) — as leis não impõem nenhuma obri­
gação moral, pois o direito não é dotado de conteúdo moral;
para o direito basta a legalidade (o acordo do ato externo com
a lei), sem nenhum atendimento a motivos éticos; ao direito é
inerente a coatividade, como condição da coexistência das li­
berdades de todos (Kant define o direito como “o conjunto de
condições sob as quais a vontade arbitrária — arbitrária no
sentido de livre arbítrto = liberdade exterior de cada u m — po­
de se combinar com a de um outro sob a égide de uma lei ge­
ral da liberdade”, ou como “possibilidade da cóação geral e
recíproca, que se pode compor com a liberdade dos outros
segundo leis gerais”); assim, o homem, ser racional, pode
realizar a harmonia mútua de todos os seres e todas as coi­
sas segundo um princípio de razão.
O form alism o de Kant (1974/228) (os princípios práticos são
form ais quandofazem abstração de todos os fin s subjetivos; mas
são materiais quando se baseiam nestes fin s subjetivos e, por­
tanto, em certos mobiles) influencia o pensamento voltado à
teorização do contrato sociah o direito nasce de um pacto volta­
do à limitação e regulação da liberdade de cada um em benefí­
cio da liberdade dos demais; daí o positivismo (legalismo) e a
visualização do Estado como a única fon te (tomado, aqui, o vo­
cábulo em sentido específico) do direito.
Daí, segundo a variante predominante do positivismo
(Kelsen/Luhmann), o direito positivo deve manter sua auto­
nomia a partir de si mesmo e através de seus próprios meios,
ou seja, através dos sucessos dogmáticos de uma jurispru­
dência fiel ã lei, mas que se tom a independente da política e
da moral (Habermas 1991/61-62).
A separação entre direito e moral aí se instala em termos
constitucionais. Diz, sucessivamente, Kelsen (1979/104 e
106): “(...) a validade de uma ordem jurídica positiva é inde­
pendente de sua concordância ou discordância com qual­
quer sistema de moral”; “(...} a exigência de separar o direito
da moral (...) significa que a validade das normas jurídicas
positivas não depende do fato de corresponderem à ordem
moral, que, do ponto de vista de um conhecimento dirigido
ao direito positivo, uma norma jurídica pode ser considerada
como válida ainda que contrarie a ordem moral”.
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 99

Habermas [1987/190 e ss.), ao apresentar os estádios de de­


senvolvimento da consciência moral (Kohlberg), distingue-os em
pré-convencional, convencional e pós-convencional A noção de base
sócio-cognitiva da consciência moral pré-convencional é a expecta­
tiva de comportamentos particulares; sua ética, uma ética mágica
— a ela corresponde um dtreiio revelado. A noção de base sócio-
cognitiva da consciência convencional é a norma; sua ética, a ética
da lei — a ela corresponde um direito tradicional A noção de base
sócio-cognitiva da consciência pós-eonvencional são princípios; sua
ética, a ética da convicção e da responsabilidade — a ela correspon­
de um direito JbrmaL No estádio pré-convencional, moral e direito
não estão separados de todo; no convencional moral e direito apre-
sentam-se rompidos; no pós-convencional verifica-se a separação
entre moralidade e legalidade. No nível da consciência moral regida
por princípios — diz Habermas — a moral é totalmente desinstitu-
cionalizada; ela (a moral) está ancorada, como controle intemo de
comportamentos, exclusivamente na consciência moral. Ao contrá­
rio, o direito evolui até um estádio de poder externo, imposto desde
o exterior; e isso de tal forma que o direito moderno de coerção,
sancionado pelo Estado, é uma instituição que desconsidera as mo­
tivações éticas dos sujeitos de direito, motivações que não depen­
dem senão de uma obediência jurídica abstrata.

6. Note-se bem que, neste contexto, aludimos sempre, e


necessariamente, a um determinado conceito de direito: direito
como um sistem a de normas prim árias e secundárias que re­
gulam o uso da Jorça com pretensão de monopólio, objetivando
excluir o uso privado da força nas relações sociais. E, mais,
note-se, ainda, que assim o chamado pensamento moderno
conceitua o direito, desde Weber até Kelsen. O que parece ób­
vio, então — assim concebido o direito — , é, de fato, não guar­
dar ele nenhuma relação com a moral, posto que nem tal
regulação nem tal exclusão são por necessidade valiosas ou
não valiosas. À racionalização da vida social não corresponde
necessariamente a sua moralização (Laporta 1993/95).

3. O “direito m oderno"
7. Quando faço alusão ao “direito moderno” estou a refe­
rir um modelo de direito positivo, direito posto pelo Estado.
ÍOO O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

O vocábulo “moderno” é ambíguo, resultando Inúmeras


vezes pernicioso o seu manejo, sobretudo na medida em que
dá lugar ao uso, pelos intelectuais, de expressão dele deriva­
da — “põs-modemo” — que, a um só tempo, tudo e nada
pode significar.

A certos intelectuais encanta o hermetismo, que lhes confere a


aparência de sábios. O emprego de vocábulos e expressões herméti­
cas, cujo significado não é jamais comunicado explicitadamente aos
destinatários dos discursos onde elas comparecem, confere enorme
poder aos que as pronunciam. A generalidade das pessoas imedia­
tamente passa a dedicar profunda deferência e respeito aos que
pronunciam palavras e expressões incompreensíveis. E assim pros­
seguem seu desfile, garbosamente, os “intelectuais”... Evidentemen­
te, não estou a desprezar o emprego do vocábulo pós-modemo, in
generer, nem a prática de seu uso nos discursos dos intelectuais.
Mas por certo provoca irritação (ao menos em mim] aquele desfile
de falsos profetas, urdidos em pura aparência de saber.

Enquanto não convencionado o significado conceituai de


“põs-modemo”, em cada discurso, todos os discursos serão
vazios de significação. Não basta, ao ouvi-los, considerarmos
esta oú aquela manifestação (concepção) de “pós-modemo”.
Necessitamos do conceito, não de uma concepção de “põs-mo-
derno”.1

Não pretendo nesta ocasião tratar do tema, ainda que possa


mencionar traços que parecem determinar o desenho do concei­
to, quando referido ao universo do direito: i) expressão de uma
substituição de paradigmas (= “matriz disciplinar” — Kühn, onde
uma tendência à adoção de um modelo de raciocínio, que trans­
cende limitações disciplinares, tendente ã universalização); ii)
substituição do uso abusivo do racional-Jbrmal por uma — não
arracional — consideração consciente ao irracional (Kaufmann 1992/
125); iii) privilégio da hermenêutica, sobre a analítica-, iv) supera­
ção do monismo pelo reconhecimento do pluralismo jurídico, o que
conduz à recuperação do direito como uma prática (linguagem,
instância da realidade social). Não obstante, mais adiante a ele
retomarei.

1. Para a distinção entre concepção e conceito, v. Ronald Dworkln


1987/134-136.
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 101

Parece-me Indispensável, aqui também, precisarmos o


que, no contexto das observações que venho produzindo, se
há de entender por “direito moderno”.

8. D ireito moderno, aqui, conota o direito (posííiuo) produ­


zido pelo chamado Estado moderno, datado da Revolução
Francesa.
Objeto a partir e em tom o do qual os juristas desenvol­
vem uma atividade técnica— e não política (Tarello 1991/15-
18) — , esse modelo de direito é o modelo de direito do modo
de produção capitalista.
Seu requisito único de validade repousa na representação
popular (expressão da volonté générale) associada à maioria
legislativa. Os pressupostos que fundamentam a sua legiti­
midade encontram-se na separação dos poderes e na vincula-
ção d o ju iz à. lei (Wieacker 1980/646-647).
Modelo de direito do modo de produção capitalista, sua pri­
meira peculiaridade é a universalidade abstrata. Os seres
concretos que dão sustentação a suas funções estão distri­
buídos em duas categorias uniformes: as pessoas e as coisas.
Se, de uma parte, no capitalismo tardio já se desuniformizam
as coisas (bens de produção, bens de consumo), a uniformi­
dade (universalidade abstrata) das pessoas — sujeitos de di­
reito — é mantida, na instância do direito, como pressuposto
necessário do modo de produção capitalista. A igualdade [pe­
rante a lei) e a universalidade das form as jurídicas, arremata­
das na sujeição de todos ao domínio da lei [legalidade}, é fun­
damental à estruturação desse modo de produção.
A universalidade do direito, assim, reflete, ainda que de mo­
do distorcido, a universalidade da troca mercantil, caracterís­
tica desse mesmo modo de produção. A igualdade de todos
[perante a lei), de outra parte, oculta a superposição, na base
econômica, das relações entre pessoas e das relações entre
pessoa e coisa.
A legalidade, por outro lado, enquanto garantldora das li­
berdades do indivíduo — liberdades form a is — , prospera não
apenas no sentido de prover a sua defesa contra o arbítrio do
Estàdo, mas instrumenta também a defesa de cada indivíduo
titular de propriedade contra a ação dos não-proprietários.
102 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Sobre tais pressupostos é erigida a noção de Estado de D i­


reito, ao qual incumbe tutelar ás instituições básicas do que
von Ihering chama de com ércio jurídico, especialmente o con­
trato e a propriedade.
A segunda peculiaridade do direito moderno estã em que
expressa uma form a de domínio racional que — provendo pos­
sibilidade de previsão e calculabüidade — corresponde à racio­
nalidade do mercado. O desenvolvimento capitalista as recla­
ma (Weber 1969/650-651 e 1985/10-11; Reich 1985/32-34).
A par de tudo, o direito, quando dele, ou a propósito dele,
falam os juristas, é associado exclusivamente à noção de nor­
ma jurídica. O direito, assim, é concebido estritamente como
conjunto de normas sancionadas, e cada norma que o integra
retira a sua “essência” da circunstância de ser sancionada.
Do direito em sua globalidade não cogitam os juristas: seu
objeto de indagação é a norma jurídica, que se caracteriza
como ju ríd ica porque juridicamente sancionada. A norma ju ­
rídica, assim, na instância jurídica, transforma-se em fetiche,
tal qual a mercadoria é fetichizada na instância econômica.
Os juristas — esses técnicos — buscam a sua compreen­
são mediante a prática de uma teoria form al da interpretação
jurídica. São intérpretes da vontade do legislador. Daí poder­
mos descrevê-lo como um sistem a de normas primárias e se­
cundárias que regula o uso da força com pretensão de monopó­
lio, objetivando excluir o seu uso privado (da força) nas rela­
ções sociais.

9. Nesse quadro, a enunciação, de Habermas (1976/264-


265), dos traços que caracterizam o direito moderno: convert-
cionalidade [o direito moderno é direito legislado, positivo), le-
gaLisrno (supõe obediência generalizada à norma, ignorando
qualquer motivação ética nos sujeitos jurídicos), form alism o
(define as esferas de arbítrio legítimo das pessoas, esferas eti­
camente neutras, vinculadas a conseqüências jurídicas) e ge­
neralidade (deve compor-se de normas gerais que, no essencial,
não permitam qualquer exceção ou privilégio).2

2. Para uma crítica dessa exposição de Habermas, v. o capítulo 5, O di­


reito do modo de produção capitalista e a teoria da regulação. Item 5.
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 103

Marcado por esses traços, que, de modo diverso, refiro ex­


clusivamente como os da universalidade e da publicidade, o
direito moderno é afetado pela racionalidade, que lhe permite
o desempenho da função de ordenar a circulação econômica
regulada pelo mercado.

A publicidade do direito — repito —, por um lado, é necessária


e indispensável à operacionalidade da circulação mercantil, porque
confere substância à reserva de segurança e certeza das relações
jurídicas e possibilita o cálculo e a previsibilidade reclamados na
dinâmica dessas mesmas relações. O direito organiza os processos
que fluem segundo as regras da economia de mercado, colocando ã
sua disposição normas e instituições (em especial o contrato, a pro­
priedade privada, o direito de propriedade industrial etc.) (Norbert
Reich. 1985/60-61). Essas normas e instituições devem ser conhe­
cidas para que cumpram sua função. Por outro lado, a publicidade
do direito permite a consagração de princípio — ignarantia legis ne-
minem excusat — que funciona como chave de abóbada da lógica
do sistema jurídico. Da publicidade do direito decorre a ficção de
que todos o conhecem e são por ele vinculados.

Para tanto, de toda sorte — e aqui retomo ao aspecto an­


teriormente, neste texto, considerado — , é fundamental a se­
paração, por ele instalada, entre moralidade e legalidade — o
que traz à tona o problema de a esfera da legalidade, em seu
conjunto, necessitar de uma justificação prática.
A sua legitimação se dá pelo procedim ento, formalmente,
sem que, quando se trate do tema da sua legitimidade, qual­
quer consideração substantiva seja objeto de ponderação. O
direito moderno recusa a antiga distinção entre a tyrannia.
absque titulo e a tyrannia quoad exercitium. O vocábulo legiti­
midade é associado a uma qualidade do título de poder, e o
vocábulo legalidade, a uma qualidade do exercício do poder.
O exercício do poder é questionado exclusivamente desde a
perspectiva da legaLidade; a legalidade está fundada na legiti­
midade e, daí, esta última resulta inteiramente inócua. E tal
a força ideológica dessa redução que para a generalidade dos
cientistas sociais é inteiramente estranho e sem sentido o
questionamento da legitimidade do exercício do poder, ques­
tionamento que se deve empreender paralelamente àquele
104 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

atinente à legalidade desse mesmo exercício. Não se trata, aí,


de uma opção da teoria jurídica, senão da única opção efetiva
— a da legitimação pelo procedimento — que resta, no quadro
do assim chamado direito moderno, à teoria jurídica.
O modeío de direito moderno, estruturado sobre os requi­
sitos da universalidade e da publicidade, inteiramente sepa­
rado da m oral evidentemente recusa o pluralism o jurídico.

4. O direito form a l/d ireito moderno


e a conservação dos m eios

IO . Uma outra marca que afeta a reprodução do direito a


que estou a me referir — direito positivo, posto pelo Estadó — ,
seja enquanto visualizado como direito form al, seja quando
tomado como direito moderno, está em que o seu fim é a con­
servação dos meios, ainda que tantas vezes isso se tenha pre­
tendido ocultar sob a afirmação de que ele estaria voltado a
assegurar a ordem e a paz.
Nesse sentido, o Estado põe um direito definidor das re­
gras de um jogo cujo fim ou cujos fins são externos a ele, por­
que definidos pelo indivíduo, que se vale de suas form as para
realizar os seus fin s. O espaço reservado a esse direito não
compreende senão a predisposição dos instrumentos neces­
sários a que cada um possa atingir os fins a que se propõe
(Irti 1979/4).
Inexiste, nos quadros do modelo de direito formal/direito
moderno, qualquer outro fim senão o de conservar os meios. A
velha reprimenda, nutrida em moralidade de sacristia sacríle­
ga, de acordo com a qual “os fins não justificam os meios" não
se presta apenas a condenar o emprego de meios despropor­
cionais, o que seria louvável,-mas, sobretudo, e .em especial, a
paralisar o homem, a vida, a História, no quanto ele e elas po­
tencialmente concorram à desagregação do status quo.
Não é senão por isso que a modernidade do direito supõe
o necessário aniquilamento de qualquer tentativa de cons­
trução de uma razão de conteúdo. Essa modernidade foi con­
quistada à custa da imolação dos fins, pelo sagrado culto aos
meios.
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 105

Essa verificação bate de frente com a postura à qual adere


grande parte da nossa doutrina, inebriada ainda — deve-se dizer
— na monopolizadora análise estrutural kelseniana. A função do
direito, para Kelsen, é a de permitir a realização de fins sociais,
que não podem ser atingidos senão através dessa forma de con­
trole social — o direito não c um Jim; é um meio; quais sejam es­
ses fins, isso varia de sociedade para sociedade: esse é um proble­
ma histórico, não um problema que possa interessar à teoria do
direito (Bobbio 2001/190 e 64 e ss.}.
Mas essa mesma verificação não compromete a exposição que
desenvolvi, em Nota introdutória sobre o direito, acima, a respeito
deles e das políticos públicas, bem assim outras, a respeito da nor-
ma-objetivo (Grau 1988/130 e ss. e 2001/190 e ss.).

Assim, é lógico, cristalino, nítido como a luz solar passan­


do através de um cristal (bem polido!), que o direito form a1/di­
reito moderno recusa qualquer possibilidade de ju stiça mate­
rial que ameace o primado da ju stiça form al. Evidente, tam­
bém, que esse mesmo direito havia de temperar, bem tempe­
rada, no seu bojo, uma combinação bem pesada de, na dic­
ção de Guastini (1994/168), “ueri" dtrittie diritti “di carta", en­
tendidos, estes últimos, como aqueles que ou não são susce­
tíveis de tutela jurisdicional, ou não podem ser exercitados
ou reivindicados diante de um sujeito determinado, ou seu
conteúdo não compreende um dever de conduta' determina­
do, da parte desse sujeito (v. Grau 1988/16-20).

5. A ju s tiç a
11. Nessa moldura — e sendo tão sucinto quanto basta
— , louvo-me em Epicuro para, seguindo as indicações de
Paul Nizan (1991/151), afirmar ser incabível discutirmos a
"justiça” ou “injustiça” da norma produzida ou da decisão to­
mada pelo juiz, visto que nem uma, nem outra (“justiça” ou
“injustiça”), existem em sU os sentidos, de uma e outra, são
assumidos exclusivamente quando se as relacione à seguran­
ça (segurança social), tal como concebida, em determinado
momento histórico vivido por determinada sociedade.
Por isso mesmo é que, em rigor, a teoria do direito não é uma
teoria da justiça, porém, na dicção de Habermas (1992/241), uma
teoria da prestaçãojurisdicional e do discursojurídico.
106 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

6. A d u p la desestruturação do direito

12. Sucede que desde a metade do século o direito, en­


quanto direito formcd e enquanto direito moderno, passa por
um processo que se pode referir como de desestruturação.
Aqui, note-se bem, estamos diante de uma dupla desestrutu­
ração do direito — isto é, do direitoform al e do direito moderno.
Pelo lado do direito form al, a produção de ju s tiça form al,
dissociada da moral, resulta socialmente insatisfatória. A le­
gitimidade do exercício da função jurisdicional é questiona­
da, se bem que timidamente. Mas é inquestionável que a so­
ciedade clama por ética,
Como a questão da legitimidade do direito repousaria so­
bre um mínimo de ética, havia de ser ignorada. O final do sé­
culo, contudo, expõe a aspiração social por um critério subs­
tancial de legitimação do direito — já não basta a legitimidade
procedimental. A sua descrição como uma disposição genera­
lizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido,
dentro de certos limites de tolerância (Luhmann 1980/30),
não distingue situações de obediência consensual e de obe­
diência sob dominação, instrumentada pelo medo e pelo ter­
ror. O fato de a decisão jurídica ser obedecida não significa
que ela seja legítima (Larenz 1983/82).
Entre nós, paralelamente à preocupação com um “direito
alternativo”, assistimos a reiteradas reafirmações dos direitos
humanos, reafirmações que postulam a realização da digni­
dade do homem. Porque somos homens e nada do que é hu­
mano nos é alheio (Terêncio), não bastam os direitos de teor
apenas individualista, de homens entrando em relação com
outros homens no plano meramente contratual; não bastam
os direitos do cidadão, apenas.
Pelo lado do direito modemç, sua universalidade e sua p u ­
blicidade são diluídas.
Quem, salvo os positivistas radicais, que cultuam o direi­
to apenas como form a — e nada mais — , dissociando-o da
realidade social e humana, pode desconhecer a realidade de
um riquíssimo pluralism o ju ríd ico envolvido na dinâmica so­
cial?
rv — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 107

Os positivistas normativistas são, todos, olimpicamente, “cien­


tistas”; e, enquanto tal, ignoram a realidade e o sòcial; podem, até
mesmo (!), ser dotados de sentimento de sociabilidade, mas, en­
quanto “cientistas”, estão envolvidos com coisa distinta do direito,
as normasju ríd ica s como tal, põem-se a serviço da justificação de
qualquer ordem, desde que válida; não importa que essa ordem
seja iníqua, oprima o homem e a dignidade do homem; eles são
“cientistas”, técnicos, e se recusam a, enquanto “juristas”, fazer
política — estão tranqüilos, tantas vezes em que funcionam como
justiíicadores da iniqüidade, porque são “cientistas”. Seja por igno­
rância, seja por conveniência, sustentam a neutralidade da ciên­
cia... Supõem que o cientista é destituído de consciência — os
“cientistas" são dotados de licença para matar...

O fenômeno da auto-regulação (em certos e específicos se­


tores da vida econômica) — aí o encaminhamento de uma teo­
ria da regulação como nova teoria do direito —, o emergir de
uma nova lex mercatoria, ampliada no seu círculo de aplica­
ção, e cada vez mais, pelas inovações no setor das comunica­
ções, isso apenas, sem que se considerem outras ordenações
que a língua ferina dos que as desejam ignorar inclui na
“marginalidade”, isso, apenas isso, evidencia que a universa­
lidade do direito pereceu (se é que em algum momento foi
efetiva...).
Quem, em sã consciência, pode efetivamente divisar al­
guma consistência na afirmação de que a ignorância da lei
não escusa.? A concepção lógica de um direito estruturado so­
bre a publicidade se desfaz. Os milhares de preceitos norma­
tivos produzidos, no dia-a-dia, pelo Legislativo e pelo Execu­
tivo, este empreendendo fw ição normativa regulamentar, trans­
formam mesmo aquele que desempenha ofício jurídico, e, por
isso, teria o dever de conhecê-lo — e o que dizer do “homem
da rua, homem comum”, de Santi Romano? —, em um ignaro
do direito. É fora de dúvida que essa concepção lógica está
erodida. O direito moderno, fundado na publicidade, deses-
trutura-se.
O tempo que vivemos denuncia uma tendência bem mar­
cada à desestruturação do direito. O direito, em suas duas fa­
ces — enquanto direito Jbrmal e enquanto direito moderno — ,
se desmancha no ar.
108 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

13, As razões dessa dupla deses truturação encontram-se


na profunda transformação pela qual está atualmente a pas­
sar o Estado moderno, entendido como tal o Estado datado da
Revolução Francesa.
O que se encontra enterrado sob os escombros do muro
de Berlim — digo-o simbolicamente (mas o tempo o confirma­
rá) — são as ruínas desse modelo de Estado.
A crise de nosso tempo não é a crise do “socialismo real”,
que contraditoriamente se sustentava sobre o Estado, pro­
duto do capitalismo, e, por isso mesmo, haveria de ser cha­
mado insustentável. Não é, também, a crise do capitalismo,
porém, marcadamente, crise do Estado.

À terceira revolução industrial há de se seguir uma transfor­


mação radical no modo capitalista de produção. Ao mesmo tempo,
as transformações do Leste europeu apontam para o futuro; não
consubstanciam (apesar do quanto de consternação provoca a ob­
servação, por exemplo, da mescla de anomia e autoritarismo pri­
vado na qual imergiu a sociedade russa) uma volta ao passado,
certamente. Apenas quem não tenha consciência histórica — ou
imagine que a História acabou — pode se iludir. A vida social dei­
xa de ser dinamismo, em busca de aperfeiçoamento, apenas para
os que, porque não crêem em si próprios, desacreditam da espécie
humana.

Os sintomas dessa crise manifestam-se da mais variada


ordem. No ressurgimento dos nacionalismos, até o paroxis­
mo do renascimento do nazismo alemão; no ensaio europeu
de adoção de modelo Institucional da Idade Média, que não é
senão isso, fundamentalmente, a experiência da Comunida­
de Econômica Européia, já agora União Européia; no pereci-
mento da soberania dos Estados; no movimento deliberado,
ideologicamente conduzido, de fragilização estatal visada
pelo neoliberalismo; na corrupção; na anomia social.

A observação do que entre nós se passa, especialmente no Rio


de Janeiro, oride a polícia não ousa subir os morros, dominados
pelos grupos de narcotráfico, dá bem a prova de que o “público”
não está mais retido no Estado. Ali o público transbordou do Esta­
do, evidenciando que o espaço público é maior do que o espaço do
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 109

Estado. A policia não ousa subir o morro porque o espaço físico da


favela (do moiTo) não é coberto pela ação do Estado, do qual a po­
lícia é um braço. Ali, no morro, as funções básicas do Estado do
bem-estar são providas pelos líderes que comandam a rede do
narcotráfico; saúde, garantia da propriedade, emprego e, em cer­
tos pontos, até mesmo educação. Essa, pois. a explicação para a
completa e absoluta ineficácia da atuação repressora da polícia.
Sob o tecido social produzido pelo Estado, esgarçado, um outro te­
cido social, rijo mas flexível, se Institucionaliza. O traficante, que
para nós é bandido, no morro é admirado como autêntico herói.

Assim, penso devamos afirmar que a deterioração do Es­


tado, produtor do direito moderno e seu aplicador como direi­
to form al, é a causa primordial da dupla desestruturação do
direito.
Paralelamente à demanda da sociedade por um direito
que recupere padrões éticos, a emergência de direitos alterna­
tivos (isto é, outros direitos, além do direito, positivo, posto
pelo Estado — direitos não estatais; direitos produzidos por
comunidades locais e a nível internacional) é incontestável e
inescondível.
Refiro, aqui, parenteticamente, o direito da Comunidade
Econômica Européia, que é uma ordem ju ríd ica (comunitária)
com preferência sobre os direitos internos dos Estados-mem-
bros; há uma superioridade hierárquica dessa ordem em rela­
ção às ordens jurídicas nacionais; o direito da Comunidade
prevalece mesmo sobre o direito constitucional dos Estados-
membros.

14. A idéia de direito, porém, como observou von Iherlng


(1900/9), expressa um processo de contínua evolução.
De seu renovar-se vamos tomando consciência, paulati­
namente. A teoria jurídica volta-se aos princípios jurídicos,
salientando a sua Importância, seja porque o modo formal de
aplicação do direito (direito form al) não satisfaz socialmente,
seja porque o direito moderno (direito posto pelo Estado) não
viabiliza, por si sõ, a fluência das relações sociais e o dina­
mismo da circulação mercantil, carente de formas renovadas
de legitimação. E a verificação de que os princípios são norma
110 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

jurídica, ao lado das regras — o que converte norma ju ríd ica


em gênero, do qual são espécies os princípios e as regras ju rí­
dicas — , abre novas vias de indagação, riquíssimas, para os
que se dedicam à teoria do direito.
Olhos postos no porvir, não é despropositada a suposição
de que a informatização da sociedade venha a permitir a
desburocratização do direito, o que poderá — quem saberia
dizê-lo, hoje? — decorrer da enfatização dos princípios ju ríd i­
cos de cada direito.

O direito moderno, nas mais recentes versões põs-kelsenianas


(Luhmann/Teubner), é essencialmente burocratizado.

À desestruturação do direito form al/moderno sucederá —


isso já ocorre, em verdade — a estruturação de um novo direi­
to. Dessa nova estruturação — conformada pela consideração
dos princípios jurídicos resgatados do direito pressuposto —
poderão, inclusive resultar formas (de direito) inteiramente
inusitadas, sobretudo para quantos, hoje, se limitam a exer­
cer o ofício de expositores do direito form al/ moderno.

Francesco Galgano (1991/3) questiona a identidade entre o


íus ou a iurísprudentia dos romanos e o nosso direito; apenas por
suposição afirmamos que o direito tomou o lugar do ius e quer di­
zer a mesma coisa; mas, "chi ci dice che con la parola non sia
estinta anche la cosa che la parola indicava? Chi ci assicura che
la nuova parola non sia nata per indicare tutfaltra cosa?”.

7. Contraponto: peq u en a nota a respeito d a ética


15. Salientei, no correr da exposição até este ponto pro­
duzida, a circunstância de o direito form al funcionar como
uma linguagem operacional voltada à solução de conflitos (=
litígios), apartada, inteiramente apartada, da moral; de ã le­
gitim ação do direito dar-se pelo. procedimento; de um dos tra­
ços do direito moderno ser o legalisrno — que supõe obediên­
cia generalizada à norma, ignorando qualquer motivação éti­
ca nos sujeitos jurídicos; de, pelo lado do direito fo rm a l (i) a
produção de ju stiça fo rm a l dissociada da moral, resultar so­
cialmente insatisfatória, (ii) a legitimidade do exercício da
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 11 i

função jurisdicional ser questionada, se bem que timida­


mente, e (iii) a sociedade clamar por ética. Mencionei a de­
manda da sociedade por um direito que recupere padrões éti­
cos. Apontei a circunstância de o tempo que vivemos denun­
ciar uma tendência bem marcada ã deses tniti. tração do direi­
to: o direito, disse, em suas duas faces ■— enquanto direito fo r­
mal e enquanto direito moderno — , se desmancha no ar. Sus­
tentei ser a deterioração do Estado, produtor do direito mo­
derno e seu aplicador como direito form al, a causa primordial
da dupla desestruturação do direito.
Pretendo, não obstante, deixar um determinado ponto,
fundamental, perfeitamente esclarecido.

16. A insistente alusão â necessidade de um “retomo à


moralidade”, de uma “eticização do direito”, sem que se as
qualifique, pode nos conduzir a um mundo amargo e cruel.
A questão é que não existe uma ética universal. As éticas
são inúmeras.
Assim, esse “retom o à moralidade” através da ética nos
coloca ao sabor dos particularismos, especialmente porque a
modernidade opera uma cisão entre a felicidade (objetivo da
ética) e o bem. As tiranias, os autoritarismos, se instalam sob
o pretexto desses particularismos, acima da lei, quando um
homem ou um grupo de homens invoca a própria santidade,
honestidade ou boa consciência para desprezar a legalidade,
os procedim entos legais e a universalidade da lei.
Não pretendo, no apelo à ética que do meu texto se de­
preende, substituir esses valores formais por uma ética que
projete, e represente, as particularidades de determinados
agrupamentos de indivíduos. E, como inexiste uma ética uni­
versal, estou convencido de que a universalidade da lei e os
procedim entos legais — embora sempre relativizados em sua
aplicação, como eu mesmo anteriormente observei — são
conquistas da humanidade das quais não se pode impune­
mente abrir mão (v. capítulo sobre A critica do direito e o “di­
reito alternativo”).
' Por isso mesmo, a eticização do direito pela qual se clama
apenas poderá ser realizada, no presente, mediante a adição
112 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de conteúdos às formas jurídicas, o que importa desenvol­


vam os juristas não uma atividade exclusivamente técnica e
significa atuem segundo uma ética na let,(não acima da leQ.

17. Essa ética é a ética dos princípios jurídicos. -


Nos princípios, o conteúdo das formas jurídicas. O desafio
com o qual o nosso tempo afronta o jurista é, precisamente, o
da composição de equilíbrio entre conteúdo e form a. E o com­
pleto discernimento da complexidade desse desafio supõe o
conhecimento não apenas do direito posto, mas dos direitos
pressupostos.

8. Prin cípios e valores


18. Desejo insistir afirmando a importância dos princípios: as
possibilidades de realização de justiça material hão de residir — ou
não residir — no próprio direito, em seus princípios; não se as pode
buscar além dele, em valorações abstratas, subjetivas.
Assim, entre as alternativas que temos diante de nós — juris­
prudência de valores ou jurisprudência de princípios —, não me
parece restar opção senão pela segunda.
Sigo, para tratar da questão da distinção entre princípios e valo­
res, as indicações de Habermas, no Faktizitãt und Geltung (1992).
Os princípios são dotados de sentido deontolôgico; já, os valo­
res são dotados de significado teleológico.
Por isso, os princípios obrigam seus destinatários igualmente,
sem exceção, a cumprir as expectativas generalizadas de compor-
tamento. Os valores, por outro lado, devem ser entendidos como
preferências intersubjetívamente compartilhadas; expressam a “pre-
ferenciabilldade” (Vorzugswilrdigkeit) — o caráter preferencial —
de bens pelos quais se considera, èm coletividades específicas,
que vale a pena lutar e que são adquiridos ou realizados mediante
ações dirigidas a objetivos ou finalidades. Daí dizermos que valo­
res são bens atrativos — não são riormas (1992/311-312).
A prestação jurisdicional orientada por princípios (= normas) —
anota Habermas (1992/316) — deve decidir qual pretensão e qual
conduta são corretas em um dado conflito, e não como equilibrar
bens ou relacionar valores. A validade jurídica do juízo tem o senti­
do deontolôgico de um comando, e não o sentido teleológico do que
podemos alcançar sob dadas circunstâncias no horizonte de nossos
desejos; o que é melhor para nós em um determinado ponto não
coincide eo ipso com o que é igualmente bom para todos.
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 113

Isso não significa, evidentemente, adesão à tese da irrelevân­


cia dos fins, ã exclusão da teleologia no direito.
Diz o próprio Habermas (1992/312) que o conteúdo teleolágico
também encontra um meio de ingressar no direito; mas o direito
definido por um sistema de normas —- prossegue — domestica as
finalidades ou metas (Zielselszungen) e os juízos de valor do legis­
lador através da estrita prioridade do ponto de uisía normativo.
Dizendo-o de outro modo, sustento que o conteúdo teleológico
Já se encontra no interior do direito, incorporado aos princípios.
Assim, da mesma forma se encontram nele, nos seus princípios
deontologicamente afirmados, as possibilidades de produção de
normas jurídicas adequadas à realidade social e à realização de
justiça não apenas, e exclusivamente, formal.
Aqui se toma indispensável a consciência, também, de que o
direito porta em si a ambigüidade, a ambivalência do pharmakon
(Resta 1992/29 e ss.). A partir do rompimento daquele equilíbrio,
o remédio se transforma em veneno...

9. Conclusão prospectiva

19. O capitalismo da prim eira Revolução Industrial recla­


mou a institucionalização de um direito posto pelo Estado, o
direito moderno/direito form al.
A modernidade reclamava um direito moderno na razão fo r­
mal e pré-m odem o na razão de conteúdo (Souto 1995/28 e ss.).
Essa modernidade, assim, consistiu na construção de
uma racionalidade form al, cujos produtos mais recentes es­
tão em Luhmann e Teubner, entre outros, com sacrifício da
racionalidade de conteúdo.
Ocorre vivermos, nas duas últimas décadas do século XX,
uma nova revolução industrial, a revolução da informática, da
microeletrônica e das telecomunicações. A realidade social
do nosso cotidiano é moldada pelas transformações acarreta­
das por essa nova revolução.
Uma nova realidade reclama um novo direiío. Mais do que
isso: o direito de nosso tempo jã é outro, apesar da doutrina
jurídica, apesar dos juristas, apesar do ensino ministrado
nas faculdades de direito. Recorrendo aos versos da canção,
o fu tu ro já. começou.
114 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

É preciso, contudo, não confundirmos os sintomas das


transformações com as transformações produzidas pela ter­
ceira revolução industrial.
No que mais de perto afeta ou pode afetar não apenas o
Senso comum dos juristas, mas a própria estrutura do direito
posto, alguns sintomas podem ser apontados.
A banalização da vida e de seus episódios coloca as tragé­
dias ao imediato alcance de todos — a mídia do final do sécu­
lo não releva a segundo plano apenas o boulevard (“Le jour
oü le télégraphe électrique entra en usage à la fin du second
Empire, le boulevard avait perdu son monopole. Les nou-
velles des accidents et des crimes pouvait désormais venir
du monde entier” — Benjamin 1979/45); e nem há mais, no
mundo, lugar para o flan eur...
. A abstração (despersonalízação) do poder político — tal
como jã ocorre com o poder econômico (o poder está não
mais nos Estados nacionais, mas nas “redes”) — tom a inade­
quadas nossas categorias epistemológicas e insuficientes os
grandes modelos desde os quais nos reconhecíamos e identi­
ficávamos os companheiros e os inimigos, como observa Ali­
cia Ruiz (1995/3).
A experiência da Comunidade Econômica Européia colo­
ca sob o fio da guilhotina as noções de Estado nacional e de
soberania, reclamando a construção não apenas do direito
comunitário, mas também de uma nova teoria do Estado. E
essa experiência, a expor a complexidade do final do século,
tom a mais aguda ainda a contradição entre globalização
"versus" diversidades nacionais — que, de outra parte, con­
duzirá, eventualmente, ao ocaso das soberanias.
Um novo imperialismo cultural, voltado à conquista de
mercados para os seus produtos culturais e ao estabeleci­
mento da hegemonia, moldando a consciência popular, pro­
move a confusão ideológica e a desorientação política (Petras
1995/115). Repito: já não identificamos nossos companhei­
ros e nossos inimigos.
A informação assume a feição de mercadoria econômica
— e política — de modo bem peculiar. O fato de as informa­
ções estarem acessíveis, ao imediato alcance de todos, não
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇAO DO DIREITO 115

significa tenham elas deixado de consubstanciar um instru­


mento de poder. Mais grave do que o açambarcamento ou a
“inflação" de informações é o monopólio ou oligopólio da vei-
culação da informação. E aqui se põe uma trágica oposição,
entre um necessário controle da divulgação da informação -—
seja pela imprensa aparelhada pela grande empresa, seja pe­
las “redes” — e nossas mais autênticas reações contra qual­
quer modalidade de censura.
Retomo a WaLter Benjamtn (1979/44): “La ‘réclame* se trouve
au début d*une évolution au terme de laquelle apparatt l’lnfor-
mation boursière publiée dans les joumaux et payée par les inté-
ressés. II est dífficile d'écrire Vhtstoire de Vinformatton en la sépa-
rant de celle de la corruption de la presse" (grifei).

As tecnologias da terceira revolução industrial, por outro


lado, podem conduzir a um “aperfeiçoamento” democrático
que nos institucionalize, também no quadro da política, co­
mo “relés de resposta"; e viveremos — em uma ágora in­
formatizada — sob uma democracia plebiscitaria sujeita a
distorções, sob domínio de determinados centros.

20. O modo de produção social globalizado dominante


que resulta desta nova revolução industrial, além de conduzir
não apenas à perda de importância dos conceitos de “país” e
“nação”, mas também ao comprometimento da noção de Es­
tado, nos coloca diante do desafio, enunciado por Dahren-
dorf (1995/20-21), da quadratura do círculo entre cresci­
mento econômico (criação de riqueza), sociedade civil (coesão
social) e liberdade política: como harmonizar esses valores
no clima do mercado global?
Além disso, a globalização ameaça a sociedade civil, na
medida em que (Dahrendorf 1995/31 e ss.) (i) está associada
a novos tipos de exclusão social, gerando um subproletaria-
do (underclass), em parte constituído por marginalizados em
função da raça, nacionalidade, religião ou outro sinal distin­
tivo; (ii) instala uma contínua e crescente competição entre
os indivíduos; (iii) conduz à destruição do serviço público (=
destruição do espaço público e declínio dos valores do servi­
ço, por ele veiculados). Enfim, a globalização, na fusão de
116 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

competição global e de desintegração social, compromete a


liberdade (Dahrendorf 1995/45).
Esse modo de produção social globalizado dominante, re­
sultante daquela nova revolução industrial, reclama(rá) um
outro direito.
Já agora caminhamos, em um quadro de complexidade
{“direito alternativo”; pluralismo jurídico; um a nova herme­
nêutica; a referência a código de valores dominantes — Aar-
nio 1992/278 etc.) no sentido de busca de um a razão de con­
teúdo no direito, o que nos conduzirá à pós-modemidade.
Nesse contexto, contudo, estamos a correr o risco de
substituir a racionalidade form al do direito — com sacrifício
da legalidade e do procedim ento legal — por uma racionali­
dade de conteúdo construída a partir da ética (qual ética ?!), ã
margem do direito. Por uma racionalidade de conteúdo que
nos conduzirá a uma “irracionalidade de conteúdo” (segundo
os padrões de racionalidade instrumental?), no bojo da qual
a díade violência/direito será resolvida mediante o primado
do primeiro termo.
Virão novas contradições; outras manifestar-sc-ão com
mais vigor.
O direito moderno/direito form a l será substituído por um
direito de princípios (com redução do número de regras), des­
burocratizado?
Experimentaremos, no plano internacional, um não im­
provável confronto entre cultura ocidental e cultura oriental
(materialismo versus religiosidade = ressacralização do real, o
que é anticapitalista)? Que surpresas nos reserva a História?
Uma repetição da Idade Média, efetivamente, agora sob o im­
pério do fanatismo? Quem, entre a hierarquia dos anjos, en­
tão denunciará o capitalismo comò um materialismo, no qual
o dinheiro é reconhecido coriio o verdadeiro apóstolo da
igualdade?

von Ihering (1884/228-230). em trecho no qual o quanto põe


de ironia pode ser agora devassado — trecho que transcrevo em
tradução (1956/192-193) —, tratando da igualdade das pessoas
no comércio jurídico, averba: “O comércio jurídico abstrai das pes­
soas; não se preocupa com o ricaço, nem com o proletário; com o
IV — A DUPLA DESESTRUTURAÇÃO DO DIREITO 117

homem célebre, nem com o obscuro ignorante; com o nacional ou


com o estrangeiro. Só conhece o dinheiro. Esta indiferença pela
personalidade — conseqüência evidente do egoísmo, que apenas
vê o ganho — é, no que toca à sociedade, de um valor realmente
incalculável, porquanto garante a todo homem, quem quer que ele
seja, contanto que saiba pagar, a certeza de poder satisfazer as
necessidades da sua existência e a possibilidade de colocar esta
ao nível da civilização da sua época. Esta situação social do ho­
mem é inexpugnável. O Estado pode tirar-lhe a honra, privá-lo da
liberdade; a Igreja, as associações, podem expulsá-lo; o comércio
jurídico nunca o repele. Aquele que é impróprio para tudo, e de
cujo contato todos fogem, sempre merece que se façam com ele
negócios. O dinheiro é uma recomendação que a sociedade nunca
deixa de considerar. A indiferença do comércio Jurídico pelo que
toca à personalidade eqüivale à igualdade absoluta de todos no
comércio jurídico. Em parte alguma o princípio da igualdade se
acha mais completamente realizado na prática. O dinheiro é o ver­
dadeiro apóstolo da igualdade. Os preconceitos sociais, todas as
antíteses sociais, políticas, religiosas, nacionais, são impotentes
contra ele. É um bem? É um mal? Tudo depende do ponto de vista
em que nos colocarmos. Se considerarmos o porquê do fato, não
poderemos aplaudUo: dita-o o egoísmo, e o sentimento de huma­
nidade é-lhe estranho. Se porém atendermos aos seus efeitos, eu
não posso deixar de repetir que o egoísmo, servindo-se a si pró­
prio, favorece a família humana; preocupado somente consigo
próprio e com o seu interesse, realiza no seu domínio, sem o saber
e sem o querer, um princípio a que ele resiste em qualquer outra
parte — o da igualdade das pessoas”.

Virá, após a desestruturação que testemunhamos, a re­


construção de qual Estado? Um Estado autoritário ou demo­
crático? Um novo Estado social, redistributivista? Uma socie­
dade de homens de boa vontade? Ou, desgraçadamente, será
necessária uma nova guerra para que o mundo possa ser
reerguido?
V
O DIR E IT O D O M O D O D E PR ODU ÇÃO CAPITALISTA
E A TEO RIA D A R EG U LAÇÃ O

1. O direito do modo de produção capitalista. 2. A teoria da


regulação. 3. Apêndice sobre a “desregulação" da economia.

1. Ao tom ar como tema de cogitação o direito do modo


de produção capitalista refiro-me, evidentemente, a modelos
ideais de direito e de capitalismo.
Lembro que em cada sociedade manifesta-se um determ i­
nado direito (direito posto = direito positivo), diverso e distinto
de outros direitos [direitos postos = direitos positivos) que se
manifestam em outras sociedades. Por isso não há que falar­
mos, concretamente, no “direito”, senão nos “direitos”.
Daí também pòr que cumpre falarmos dos capitalismos, e
não do capitalismo. Repito o que anteriormente observei, ao
tratar do direito e dos direitos: em cada sociedade estatal coe­
xistem vários modos de produção social, ainda que um deles
seja característico déla; isso porque toda formação social au­
toriza diversos modos de produção — e relações entre modos
de produção; logo, em cada sociedade capitalista se manifes­
ta um capitalismo, resultante da coexistência histórica de to­
dos esses modos de\produção.

2. O direito do m odo de produção capitalista


2. O direito próprio ao modo de produção capitalista apre­
senta como peculiaridade, de uma parte, sua universalidade
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 1 19

abstrata. Os seres concretos que dão sustentação a suas fun­


ções estão distribuídos em duas categorias uniformes: as
pessoas e as coisas. Se, de uma parte, no capitalismo tardio
jã se desuniformizam as coisas (bens de produção, bens de
consumo), a uniformidade (universalidade abstrata) das pés-
soas — sujeitos de direito — é mantida, na instância do direi­
to, como pressuposto necessário do modo de produção capi­
talista.
A igualdade (perante a lei) e a universalidade das form as
jurídicas, arrematadas na sujeição de todos ao domínio da lei
(legalidade), é fundamental à estruturação desse modo de
produção. Quanto à igualdade entre os homens — e a sua li­
berdade — , é uma conseqüência da necessidade de os traba­
lhadores obterem seu sustento mediante o intercâmbio entre
o preço de sua força de trabalho e o conjunto dos bens social­
mente produzidos; a igualdade, assim, presta-se a permitir o
acesso dos trabalhadores ao fundo social de bens produzidos
“livremente”, em “condições de igualdade”, através do inter­
câmbio de sua força de trabalho.
A universalidade do direito, assim, reflete, ainda que de
modo distorcido, a universalidade da troca mercantil, caracte­
rística desse mesmo modo de produção. A igualdade de todos
(perante a lei), de outra parte, oculta a superposição, na base
econômica, das relações entre pessoas e das relações entre
pessoa e coisa.
A legalidade, ainda, por outro lado, enquanto garantidora
das liberdades do indivíduo {liberdades form ais), prospera não
apenas no sentido de prover a sua defesa contra o arbítrio do
Estado, mas instrumenta também a defesa de cada indivíduo
titular de propriedade contra a ação dos não-proprietários.
Sobre tais pressupostos é erigido o Estado burguês de Direi­
to, ao qual incumbe tutelar as instituições básicas do comércio
jurídico burguês, especialmente o contrato e a propriedade.
A própria noção de Estado, neste contexto, é historici-
zada, tomando-se como dogma a afirmação de que, embora
convertido em Estado social, o Estado é permanente, Imutá­
vel, perpétuo (Miallle 1985/222 e ss.).1

I . V. capítulos sobre a igualdade e sobre a legalidade.


120 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

3. A conformação desse direito às demandas da socieda­


de capitalista é afirmada mesmo por juristas que, no entendi­
mento de seus seguidores, recusam a sua análise funcional.
Relembro aqui a afirmação de Kelsen (1979/382): “aquilo
que se chama direito privado, o complexo de normas em cujo
centro se encontra a instituição da chamada propriedade pri­
vada, é, visto sob o aspecto da função que esta parte da or­
dem jurídica tem no contexto do todo jurídico, uma forma de
produção de normas jurídicas individuais adequada ao siste­
ma econômico capitalista”.
Kelsen (1979/382) observa, ainda, que, "por meio da distinção
de princípio entre a esfera pública, ou seja, política, e uma esfera
privada, quer dizer, apolitica, pretende-se evitar o reconhecimento
de que o direito ‘privado*, criado pela via jurídica negociai do con­
trato, não é menos palco de atuação da dominação política do que o
direito público, criado pela legislação e pela administração". Kelsen
não recusa, em verdade, a análise funcional do direito. Como pode­
ria fazê-lo, se o define como uma técnica de controle social, ou seja,
como técnica cuja Junção é a de controlar a conduta dos homens?
Outra peculiaridade, ainda, promove essa adequação: o
desenvolvimento capitalista reclama previsão e calculabili-
dade e à racionalidade do mercado corresponde esse direito,
como forma de domínio racional viabilizador da circulação
mercantil. A circunstância de o direito, nas sociedades ca­
pitalistas, apresentar qualidades formais típicas, que asse­
guram a calculabilidade reclamada pelo capitalismo, já a
apontou Max Weber, de modo percuciente (1969/650-651 e
1985/10-11).
Ao par de tudo, o direito, quaüdo dele ou a propósito dele
falam os juristas, é associado exclusivamente à noção de
norma jurídica. O direito, assim, é concebido estritamente
como conjunto de normas sancionadas, e cada norma que o
integra retira a sua “essência” da circunstância de ser san­
cionada. Do direito não cogitam os juristas, na medida em
que seu objeto de indagação é exclusivamente a norma jurí­
dica. Esta se caracteriza como ju ríd ica porque juridicam ente
sancionada. A norma jurídica, assim, na instância jurídica,
transforma-se em fetiche, tal qual a mercadoria é fetichizada
na instância econômica.
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 121

4. Nesse quadro, a enunciação, de Habermas (1976/264-


265), dos traços que caracterizam o direito moderno: con-
vencionalidade (o direito moderno é direito legislado, positi­
vo), legalismo (que supõe obediência generalizada à norma,
ignorando qualquer motivação ética nos sujeitos jurídicos),
form alism o (que define as esferas de arbítrio legitimo das pes­
soas, esferas eticamente neutras, vinculadas a conseqüên­
cias jurídicas) e generalidade (deve compor-se de normas ge­
rais que, no essencial, não permitam qualquer exceção ou
privilégio).
Marcado por esses traços, que, de modo diverso, refiro ex­
clusivamente como os da universalidade e da publicidade, o
direito é afetado pela racionalidade, que lhe permite o desem­
penho da função de ordenar a circulação econômica regulada
pelo mercado. Para tanto, de toda sorte, é fundamental a se­
paração, por ele instalada, entre moralidade e legalidade, o
que traz à tona o problema de a esfera da legalidade, em seu
conjunto, necessitar de uma justificação prática.

5. A esta altura, no entanto, desejo contestar a afirmação,


inúmeras vezes repetida, de que o direito do modo de produ­
ção capitalista distinguir-se-ia de outros direitos na medida
em que nestes últimos não comparece o requisito da genera­
lidade. O exemplo do qual sistematicamente se lança mão,
para demonstrá-lo, é o Código de Hamurábi.
Sucede, entretanto, que todo direito, sempre, esteve com­
posto por normas gerais. É falso, pois, que somente o capita­
lismo tenha produzido normas cujo âmbito de validade seja
genérico, segundo o modelo “todos os que produzam a con­
duta x suportarão a sanção y” . Por outro lado, cumpre salien­
tar a circunstância de que, instrumento de implementação
de políticas públicas, deixa o direito de regular exclusiva­
mente situações estruturais, passando a ordenar situações
conjunturais. Daí por que, neste momento, perece a con-
creção da lei como norma abstrata e geral.
De toda sorte, não seria a generalidade, mas sim a univer­
salidade, que disíinguiria o direito do modo de produção ca­
pitalista de outros direitos, anteriores a ele. Universalidade,
aqui, não significa universalidade dos sujeitos vinculados
por uma norma (isto é, de uma classe de sujeitos), traço ca-
122 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

racterístico da generalidade de uma norma (Bobbio 1958/


228-229), porém indicação de que o direito — um só direito —
vincula e se aplica a todos os sujeitos, isto é, ao todo social.
Daí a afirmação da sua universalidade abstrata (igualdade +
universalidade das formas jurídicas). - -
No que respeita à afirmação, de Habermas, de que o direi­
to moderno não permite qualquer exceção ou privilégio, cum­
pre notar que todas as normas jurídicas possuem um âmbito
certo de validade; determinado esse âmbito, nenhuma nor­
ma, isto é, regra, de nenhum direito, jamais terá admitido,
quando dotado de efetividade, exceções.
Quanto à convencionalidade, é também certo que jamais
terá existido algum direito (direito posto) — salvo o direito na­
tural, evidentemente, que, ademais, recuso — que não fosse
convencional, ou seja, Imposto por quem detenha poder sufi­
ciente para se fazer obedecer.
No que tange à afirmação de que o direito moderno ignora
qualquer motivação ética, não a tomasse eu como relevante,
poderia radicalizar, sustentando a inexistência de exemplo
histórico de qualquer sociedade que tenha feito valer suas
normas de direito posto exclusivamente em relação aos su­
jeitos que estivessem eticamente de acordo com elas.
Todo direito, além disso — e não apenas o direito moder­
no — , define o arbítrio legítimo das pessoas. A referência de
Habermas, por outro lado, a “esferas eticámente neutras,
vinculadas a conseqüências jurídicas”, merece também um
reparo; terá acaso, em algum momento, existido alguma nor­
ma jurídica que jurídica fosse sem vincular determinada con­
duta a uma conseqüência? . >
Por certo não. pretendo, ao enunciar todas essas observa­
ções críticas, invalidar a exposição de Habermas; apenas de­
sejo apontar a inconsistência relativa de cada qual dos traços
indicados. '

Em direção análoga á da exposição de Habermas, em determi­


nado momento, a que, em outro contexto, Flavio Lopez de Onate
(1968/39) divisou vaticlnada no Fausto de Goethe, versos 1962 a
1970 (observo que, no livro de Lopez de Onate, o primeiro verso
está equivocadamente referido, como 1972).
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 123

Traço que, de fato, é característico do direito moderno — e


que Habermas não menciona — é o da publicidade. Colho o
seguinte trecho em carta a mim enviada por Oscar Correas:
“Lo que, sí, me parece distintivo dei capitalismo es la pu-
blicidad dcl derecho. Porque de lo contrario no habría circu-
lación mercantil. Recordar que la primera revolución de la
que tenemos noticias en el mundo Occidental fué la de Solón,
uno de cuyos puntos fué la rebelión dei mundo comercial en
lucha contra el antiguo orden pastoril de auto-subsistencia.
Siempre los comerciantes han luchado por la publlcidad de
la ley. Que es hoy una de las banderas democráticas, tal
como en tiempos de Solón".

6. Retomando, porém, o fio de minha exposição, observo,


quanto ao tema da procura de uma justificação para a racio­
nalidade que permite ao direito o desempenho da função de
ordenar a circulação econômica regulada pelo mercado, que
ela desemboca, sistematicamente, em explicações formais: o
sistema jurídico se justifica, em seu conjunto, como expres­
são de interesses generalizados; ou pelo elenco de direitos
fundamentais inscritos nas Constituições modernas; ou pela
concepção que vincula a competência legislativa à “compre­
ensão” dos mecanismos de formulação da vontade democrá­
tica (Habermas 1976/239). Ou se justificaria o sisteina por si
próprio?

7. De toda sorte, identificada a publicidade como nota


bem peculiar do direito do modo de produção capitalista (evi­
dentemente, ao lado da sua universalidade abstrata e da le­
galidade), algo mais deve ser dito a seu respeito.
Desejo reenfatizar a circunstância de o direito, por um
lado, no modo de produção capitalista, instrumentar o de­
senvolvimento das relações de mercado. A í a validez univer­
sal dos princípios da subjetividade jurídica e da liberdade de
contratar.
“As mercadorias — observa Marx (1968/48) — não com­
parecem sozinhas no mercado, nem se intercambiam por si
sós. Devemos, pois, voltar os olhos aos seus guardiães, os
possuidores de mercadorias Para tratar as coisas como
124 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

mercadorias é necessário que os seus guardiães se relacio­


nem entre si como pessoas, cuja vontade se projeta em cada
coisa, de tal modo que cada possuidor de uma mercadoria
somente possa se apoderar da mercadoria de outro por von­
tade comum a ambos. É necessário, portanto, que ambas as
pessoas se reconheçam como proprietários privados. Essa re­
lação jurídica, que tem por forma de expressão o contrato, é,
esteja ou não legalmente regulada, uma relação de vontade
na qual está refletida a relação econômica. O conteúdo desta
relação jurídica ou de vontade é determinado pela própria re­
lação econômica. Aqui, as pessoas só existem, umas para as
outras, como representantes de suas mercadorias, ou — o
que é o mesmo — como possuidores de mercadorias" (grifei).
O direito do modo de produção capitalista é um universo
no qual se movimentam sujeitos jurídicos dotados de igual­
dade (perante a lei), na prática da liberdade de contratar. A
norma jurídica que compõe esse direito, por isso mesmo, é
abstrata e geral. Esse mesmo direito, assim, em um primeiro
momento, viabiliza a fluência das relações de mercado.
Em um segundo momento, contudo, marcado pelo ad­
vento do fenômeno das crises nos processos de mercado, o
Estado, assumindo a função de administrá-las, lança mão do
direito como instrumento voltado à sua preservação. A atua­
ção do Estado, neste sentido, é empreendida sob múltiplas
modalidades e facetas. Neste momento é que se presta, preci­
samente, a implementar políticas públicas.

8. Habermas, em especial no Legitimationsprobleme im


Spâtkapitalismus, observa que, diante das crises — transtor­
nos que se produzem na integração do sistema, colocando
em risco a sua contínua existência, isto é, a integração social
— , o Estado passa a perseguir'o fim declarado de conduzi-lo
(isto é, ao sistema), para evitá-las. Assim, o Estado tem de
cumprir funções que não se pode explicar mediante a invoca­
ção das premissas dà existência contínua do modo de produ­
ção, nem deduzir-se do movimento imanente do capital
(1973/77).
Daí a identificação de quatro categorias de atividade es­
tatal.
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 125

A fim de constituir e preservar o modo de produção, certas


premissas de existência contínua hão de ser realizadas (o Es­
tado garante o sistema de direito civil, com as instituições
básicas da propriedade e da liberdade de contratar; protege o
sistema de mercado contra efeitos secundários autõdestru-
tíveis — jornada especial de trabalho, legislação antitruste,
estabilização do sistema monetário etc.; assegura as premis­
sas da produção dentro da economia global — tais como edu­
cação, transportes e comunicações; promove a capacidade
da economia nacional para competir internacionalmente —
política comercial e aduaneira, v.g. — e se reproduz mediante
a conservação da integridade nacional, no exterior com meios
militares, e no interior mediante a eliminação paramilitar dos
inimigos do sistema).
Para complementar o mercado, o sistema jurídico é ade­
quado a novas formas de organização empresarial, de con­
corrência e de financiamento (por exemplo, através da cria­
ção de novas instituições no direito bancário e empresarial e
da manipulação do sistema fiscal), sem, porém, conturbar a
dinâmica do processo de acumulação.
Tendo em vista a substituição do mercado, em reação fren­
te à debilidade das forças motrizes econômicas, reativa a
fluência do processo de acumulação, que já não resta, então,
abandonado à sua própria dinâmica, criando novas situa­
ções econômicas (seja proporcionando ou melhorando possi­
bilidades de inversão — demanda estatal de bens de uso im­
produtivo — , seja através da criação de novas formas de pro­
duzir mais-valia — organização estatal do progresso técnico-
científico, qualificação profissional dos trabalhadores etc.); aí
a afetação do princípio de organização da sociedade, como o
demonstra o surgimento de um setor público estranho ao
sistema.
Finalmente, compensa disfunções do processo de acumu­
lação, que se manifestam no seio de certas parcelas do capi­
tal, da classe operária ou de outros grupos organizados, pro­
dutoras de reações que se procuram impor pelas vias políti­
cas, (aí, o Estado, por um lado, assume efeitos externos da
economia privada — v.g,, danos ecológicos; assegura, através
de políticas estruturais, a capacidade de sobrevivência de se­
126 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tores ameaçados -— v.g., mineração e economia agrícola; de


outro lado, implementa regulações e intervenções reclama­
das pelos sindicatos e pelos partidos reformistas, tendo em
vista a melhoria da situação social dos trabalhadores — os
“gastos sociais” e o “consumo social”).
Estas duas últimas modalidades de atuação — substitu­
tiva e compensatória — são típicas do capitalismo organizado
(1973/77-79). A tudo é conseqüente a sujeição dos sistemas
político e econômico a um processo de juridificação e re­
gulação administrativa.

9. Nesse quadro, o direito perde o caráter de direito bur­


guês puramente formal, convertendo-se em uma moral políti­
ca universcd (Habermas 1973/121 -123).
Então — na expressão de Norbert Reich (1985/56-57) — ,
em seu seio adota regulações próprias de um Estado social,
com um conteúdo específico, e tenta introduzi-las nos pro­
cessos de mercado, que, não obstante, mantêm caráter capi­
talista.

Em linha análoga à adotada por Habermas, a análise materia­


lista de Claus Offe, a partir da afirmação da impossibilidade de,
através do mercado, obter-se a distribuição dos valores econômi­
cos e a coincidência entre valor de uso e valor de troca (Reich
1985/56).

Já não apenas instrumenta, então, enquanto elemento do


modo de produção capitalista, a atuação dos agentes econô­
micos no mercado, mas agora passa a instrumentar, também,
a atuação do Estado, seja para o exercício de sua influência,
sob pretexto de superação das crises, nos processos de merca­
do, seja tendo era vista a realização de certos objetivos de polí­
tica social. Aí a tése do duplo caráter do direito ou de sua dupla
instrumentalidade, proposta por.Reich (1985/60-61).
Reich introduz a teoria do duplo caráter do direito, ou de
sua dupla instrumentalidade, como derivada das exposições
de Habermas e de Offe.
O direito, por um lado, organiza os processos que fluem
segundo as regras da economia de mercado, colocando à sua
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇAO 127

disposição normas e instituições (em especial o contrato, a


propriedade privada, o direito de propriedade industrial etc.),
e, por outro, converte-se em instrumento de que lança mão o
Estado para influir em tais processos e, a um tempo só, obter
a consecução de determinados objetivos de política social —
instrumento destinado ao desenvolvimento de políticas pú­
blicas, como se vê. Daí por que, prossegue Reich, o direito re­
sulta duplamente instrumentalizado: por parte do Estado (so­
cial) e por parte dos agentes que atuam no mercado. Nisso é
que se deve buscar a razão da contradição fundamental que
existe no moderno direito econômico.
A Ideologia de um direito unitário, assim, hoje, apresenta
fissuras consideráveis; os conflitos entre economia e política
se reproduzèm agora no seu plano (dele, direito). A concep­
ção da sua neutralidade desnuda-se, destarte, como insus­
tentável, apenas podendo prosperar no plano do discurso
ideológico.
O móvel dessa dupla instrumentalidade será sempre, po­
rém, no Estado social ou Estado do bem-estar, a preservação
dos processos capitalistas de mercado.
A análise assim empreendida é, porém, afetada pelo sur­
gimento do discurso neoliberal.

2. A teoria, d a regulação
10 . O discurso neoliberal postula o rompimento da con­
cepção de Estado do bem-estar.
Esse discurso é projetado desde um quadro de transfor­
mação que se opera na base econômica —- a revolução da
informática, da microeletrônica, das telecomunicações. Um
passo histórico foi consumado, e esse é um dado da realida­
de. O capitalismo transforma-se ao tempo em que fracassam
as experiências do chamado “socialismo real” — e isso o “re­
força”. Reestrutura-se a nível planetário, no advento de uma
poliarquia global,2 internacionalizada, globalizada.

2. Expressão de que lança mão Juan Ramón Capella em texto Inédito —


Democracia más allá de la soberania — discutido no Centro de
Investígaciones Jurídicas da UNAM, México, em seminário realizado em
abril de 1993.
128 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Essa transformação histórica reclama análises empreen­


didas a partir de novas categorias epistemológicas, necessá­
rias não apenas à explicação, mas, sobretudo, à crítica do dis­
curso.
O discurso neoliberal, contudo, nãò se o pode referir co­
mo um discurso, senão como um conjunto de discursos distin­
tos e diversos entre si.
Dele há várias versões, algumas que poderíamos qualifi­
car de prudentes, outras nitidamente imprudentes, qual a
que visualiza no Estado de Direito social e democrático o ini­
migo número um do processo de acumulação capitalista e re­
duz a humanidade exclusivamente àqueles que sejam ativos
nos mercados. Nessa versão, à moda de Hayek, as funções do
Estado devem ser reduzidas às de polícia e de caridade, o Wel-
fa re State é identificado com o Estado despótico e — gravís­
simo — nela o discurso atropela e violenta o Estado democrá­
tico [Tosei 1992/116-117).
Nessa versão, aliás, o discurso neoliberal se afasta intei­
ramente, e mesmo o confronta, do discurso liberal, que via­
bilizou o acesso da generalidade dos homens não apenas a
direitos e garantias sociais, mas também aos direitos e ga­
rantias individuais. É contra as liberdades formais, no extre­
mo, que, em tal versão, o discurso neoliberal investe.
Em outra versão, que não reproduz o individualismo pos­
sessivo em sua pureza, o discurso reclama reflexão, prática
aparentemente em desuso.

11. Penso, não obstante, estarem a olvidar os entusiastas


radicais do neoliberalismo que o Estado do bem-estar ainda é
uma máquina essencialmente capitalista.
É que, em verdade, o mercado não é um objeto do mundo
da natureza. O homem, como observa Pierre Manent (1992/
14), “est corps physique menacé dans sa sécuiité; il est pro-
priétaire menacé dans sa propriété; il est agent moral me­
nacé dans sa liberte; il est agent économique confronté â Ia
rareté”.
O mercado, destarte, é institucionalizado, determinado
pelo Estado. A composição de conflitos no quadro das rela­
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 129

ções de intercâmbio reclama um grau mínimo de regu,lamen­


tação estatal, tema ao qual adiante retomarei.
Ademais, a reafirmação da excelência do mercado livre
deve ser objeto de detida reflexão. E, de outra parte, embora
não sêja este o momento adequado para uma análise das vir­
tudes e das desvantagens do cumprimento, pelo Estado, de
suas Junções de integração e de modernização capitalista, o fa­
to é que o intervencionismo estatal e as políticas de subsí­
dios praticadas no Terceiro Mundo, à custa de um violento
endividamento social, fracassaram: o Terceiro Mundo não se
modernizou. Mas, se isso ocorreu no Terceiro Mundo, o in­
verso se manifestou acima do Equador; pois é justamente o
perfeito desempenho, lá, dessas funções que viabiliza seja o
discurso neoliberal, lá, fluentemente pronunciado.
Logo, se esse é o discurso da modernidade (ou da pós-mo-
demidade?), como se propala, cumpre indagarmos o que sig­
nifica, atualmente, nos quadros da natureza singular do pre­
sente, ser moderno.

Os neoliberais, sobretudo, fazem uso da dicotomia arcaico/mo­


derno, preferindo-a, em relação à dicotomia esquerda/direita, para
evidenciar diferenças entre idéias e homens; nesse quadro, imedia­
tamente associam a atuação estatal na e sobre a economia ao ar­
caico, indicando como expressão do moderno os ideais da livre em­
presa e da livre concorrência,

12. Esta a questão a ser respondida: o que significa, atual­


mente, nos quadros da natureza singular do presente, ser
moderno?
Modernos são a economia japonesa e os regimes de prote­
cionismo econômico interno norte-americano e europeu, que
nãoJazem nenhum exemplo de mercado livre.
De modo que ser moderno, hoje, é no mínimo já ter cons­
ciência de que o mercado é impossível sem uma legislação
que o proteja e uma vigorosamente racional intervenção,
destinada a assegurar sua existência e preservação; de que
os postulados da racionalidade dos comportamentos indivi­
duais, do ajuste espontâneo das preferências e da harmonia
natural dos interesses particulares e do interesse geral são
130 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

insuficientes; de que os fenômenos de dominação desnatu-


ram o mercado.
Assim, a opção por um mercado livre, hoje, apenas não
corresponde a uma aspiração de volta ao passado porque, em
verdade, os mercados jamais funcionaram livremente. A no­
ção de mercado livre tem sentido única e exclusivamente en­
quanto expressiva de um tipo ideal. O entrelaçamento que
une mercado capitalista e Estado é vigoroso, pois o Estado
moderno, em última instância, é produzido pelo capitalismo.
Daí também por que o capitalismo é essencialmente ju rí­
dico, na medida em que não prescinde de uma ordem jurídi­
ca estatal, voltada, como vimos, à superação das crises e ã
preservação dos mercados.

13. É necessário, pois, precisarmos o significado veicula­


do pela expressão “mercado livre”.
“Mercado livre” pode, por um lado, expressar estereótipo
que se coloca em oposição ao modelo de Estado modemo. A
crise do nosso tempo é, em sua origem, não crise da interven­
ção estatal na e sobre a economia, porém crise do Estado.
O que se encontra enterrado sob o muro de Berlim — te­
nho reiteradamente repetido — é esse modelo de Estado. Da
crise do Estado decorre não apenas a crise do socialismo,
mas uma outra crise, mais ampla, que abrange os sistemas
econômicos apoiados sobre aquele modelo de Estado, o direi­
to fo rm a l e os próprios mercados.
“Mercado livre”, expressão tomada sob essa conotação,
hã de ser, então, concebida como idéia de correção menos da
intervenção estatal do que da própria noção de Estado, do
que há de sobrevir não a destruição, mas a constituição de
um novo modelo de Estado. Neste sentido, ao que tudo indi­
ca, caminhamos.
Se, no entanto, a- expressão “mercado livre” for usada sob
conotação indicativa dè um retom o ao passado, neste caso
nem será necessário que a afastemos, pois a realidade histó­
rica — e basta lembrar as experiências, recentíssimas, ingle­
sa e norte-americana — recusa as postulações ideológicas
por ela veiculadas.
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 131

14. As observações até este ponto enunciadas me permi­


tem tomar como objeto de perquirição um dos aspectos que,
no quanto mais diretamente importa ao jurista, tenho como
relevantes. Refiro-me à afirmação de “mais sociedade, menos
Estado” .
A busca de “mais sociedade, menos Estado” supõe a subs­
tituição da regulação estatal (= regulamentação) por regulações
sociais.
A í a deregulation dos norte-americanos, que designamos
mediante o uso do vocábulo “regulação” .

Como os norte-americanos usam o vocábulo regulation para


significar o que designamos “regulamentação", deregulation, para
eles, assume o mesmo significado que indicamos ao usar o vocá­
bulo “regulação”; vale dizer: a deregulation dos norte-americanos
está para a regulation assim como, para nós, a “regulação” está
para a “regulamentação".

E, nisso, a estruturação de uma nova teoria do direito.


Uma teoria sistêmica, que pressupõe a harmonia dos interes­
ses e a possibilidade da construção (através de “mão invisí­
vel”?) do coletivo a partir do individual.

Note-se que a regulação pode ser tomada tanto como objeto (a


prática da regulação) quanto como teoria do sociaL

Essa teoria — a teoria da regulação — , ao supor seja a socie­


dade auto-sustentável, propõe a regulação a partir “de dentro”
(substitui a exo-regulação pela endo-regulação ou auto-regula-
ção) e, ao dispensar a participação do Estado (também) como
agente de produção do direito moderno, deita por terra a con­
cepção da volontê gênérale, ignora a correlação entre direito e
violência (v., por todos. Resta 1992/18 e ss.) e a noção de inte­
resse público recuperada como interesse social e predica serem
todos os homens dotados da sabedoria da prudência.

15, São inúmeros, aqui, os pontos que reclamam refle­


xão, mas que, no espaço desta exposição, apenas brevemen­
te cabe mencionar, um ou outro.
132 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

De uma parte, indagaria eu se, de fato, o apelo à regulação


está fundado na suposição de que o capitalismo pode prescin­
dir do direito moderno. Isso não me parece crível, visto que o di­
reito moderno funciona como verdadeira política pública, da
qual lança mão o Estado para preseruãr os mercados; e isso
mesmo depois que “os bárbaros se foram...” (Bobbio 1992/2).
O direito moderno é instrumento de que se vale o Estado
para defender o capitalismo dos capitalistas... Dizendo-o de
outro modo: a destruição do Estado, hoje, no momento histó­
rico presente, pelo capitalismo, consubstanciaria uma estra­
tégia suicida, na medida em que deixa abandonados os mer­
cados, à mercê dos capitalistas...
Por isso mesmo, e porque estou convencido de que a pro­
posta da regulação é ambígua — o movimento (da regulação)
não postula a anomia nos mercados, porém novas modalida­
des de regulação, mais eficientes — , a teoria (jurídica) da regu­
lação não é consistente. Consistente, no sentido de que não
propõe a exclusão do terceiro-ordenador (o Estado, que é tam­
bém terceiro ãrbiird). Ou o propõe? Se é isso o que propõe — e
isso é mais grave do que tudo — , nisso e com isso estará a esca­
motear a imagem de um terceiro-ordenador (o “grande irmão”,
comandante- em- chefe da poliarquia — Capella), o qual, é óbvio,
pretende escamotear o conflito, ainda que já o faça o direito,
como observei ao tratar do tema “Direito e conflito” (n. 1.4).

Note-se bem que, se essa teoria propuser a exclusão do tercei­


ro, será uma teoria suicida. Recorro a um trecho de Bobbio (1995/
66), se bem que a propósito de outra situação: “Na guerra, interna
ou externa, não há lugar para o terceiro. Este apenas aparece
como mediador,'para fazê-la cessar* ou como árbitro, para estabe­
lecer a paz. A guerra, como o duelo, só conhece dois parceiros
(não importa se .cada um deles tem aliados), dos quais um está
destinado a vencer e o outro a pender. Uma guerra em que, ao fi­
nal, não há vencidos e vencedores é uma guerra que não alcança
seu objetivo. Os terceiros, que não participam do jogo, são os cha­
mados neutros, no sentido de que não estão nem de uma parte
nem de outra, e como tal não são beligerantes. No momento em
que se deixam envolver no conflito tomam-se aliados ou de uma
parte ou de outra. As partes em jogo. por mais numerosos que se­
jam seus aliados, são sempre apenas duas”. A teoria será suicida
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 133

ainda que — e não sejamos ingênuos supondo que isso não viesse
a ocorrer — os que a produzem tomem o Estado como seu aliado.
Apenas a exo-regulação estatal permitirá, em uma sociedade fun­
dada em relações de intercâmbio, a transformação da guerra (lu­
ta) em jogo (v. minha exposição sobre a luta, o jogo e o debate no
c a p itu lo sobre A crítica do direito).

De outra parte, da trilha que aparentemente estamos a


palmilhar, na construção de uma grande Idade Média, vêem-
se bem as pedras quando visualizamos, n a regulação aplica­
da à organização da atividade econômica (aqui, como auto-
regulação), a institucionalização de autênticas corporações de
oficio. A contradição neste passo aparece inteiramente des­
nudada: quem poderia supor que uma das manifestações do
discurso neoliberal, a da auto regulação, conduzisse justamen­
te a um retorno às corporações de oficio?

16. Que não fique, de modo nenhum, a impressão de que


desenvolvo discurso, irreversível, de radical oposição a essa
teoria.
A História ensina que nada é irreversível. O cotidiano nos
dá provas de que apenas os que já não pensam são proprietá­
rios de certezas. Cumpre nos mantenhamos na expectativa
dos efeitos que a prática da teoria produzirá.
De toda sorte, embora seja capaz de admitir possa a teo­
ria ser aplicada de modo socialmente adequado às relações
de comunhão de escopo travadas entre os homens, penso ser
ela de todo inadequada àquelas que denominamos relações
de intercâmbio. Nas primeiras, as vontades dos que entrara
em relação caminham paralelas; nas segundas, essas vonta­
des se encontram em oposição.

Refiro-me à distinção que opõe os contratos de intercâmbio e os


contratos de comunhão de escopo, equacionada por von Ihering em
seu monumental Der Zweck im Recht (1884/212-213). Nos contratos
de intercâmbio os interesses das partes estão em contraposição, po­
larizados. Cada parte persegue os seus próprios interesses; quanto
mais desvantajosa for a compra para o comprador, mais vantajosa
Será para o vendedor, e vice-versa. A política de cada parte pode
ser sumariada na seguinte frase: o prejuízo dele é o meu lucro (seín
134 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Schaden mein Gewínn). Nos contratos de comunhão de escopo —


von Ihering refere-se aos contratos de sociedade — os interesses
dos contratantes são paralelos. Se um dos contratantes sofre
prejuízo, os outros também o suportam. Do espírito de solidarie­
dade de interesses que os caracteriza, o lema: a vantagem dele é
a minha vantagem, minha vantagem é a sua vantagem (seín Vor­
teil mein Vorteil, mein Vorteil setn Vorteil). A distinção, em verda­
de, fora jã discernida por Grotlus, no século XVII, como observa
Ascarelli (1969/255): os contratos de intercâmbio dirimunt par­
tes, os de comunhão de escopo communionem adferunt. Se nos
contratos de intercâmbio o elemento fundamental é o sinalagma
— vínculo de recíproca dependência entre as obrigações do con­
trato bilateral —, na associação, como na sociedade e no consór­
cio, o elemento fundamental é o escopo [objetivo] comtun. Daí a ob­
servação, ainda de von Ihering (1884/208): o contrato de inter­
câmbio tem por pressuposto a diversidade, enquanto que o con­
trato de sociedade — contrato de comunhão de escopo —, a iden­
tidade de objetivo.

Isso me permite afirmar que, embora o recrudescimento


da Ideologia do mercado livre possa, de fato, induzir a redu­
ção de inúmeras das funções do Estado — inclusive a de pro­
dução do direito moderno — em determinados setores, a sua
função de exo-regulação do mercado há de subsistir, em be­
neficio do mercado. Refiro-me especialmente à quarta cate­
goria de atividade estatal enunciada por Habermas, a de com­
pensação de disfunções no processo de acumulação.
À atuação do Estado para o fim de compensar essas dis­
funções é ainda indispensável a produção do que temos de­
signado direito moderno. E — tudo me faz crer assim — o Es­
tado não se afastará (não será afastado), para os não regula­
mentar, senão de setores que possam persistir desregula-
mentados sem comprometimento do dinamismo dos merca­
dos. Ademais, insisto, penso ser a regulação inteiramente
inadequada à ordenação das redações sociais que designa­
mos como relações de intercâmbio.

17. A quantos estejam envolvidos com o direito, preten­


dendo dele cogitar não apenas como técnica, incumbe refletir
a respeito da racionalidade do discurso neoliberal e desse
seu desdobramento, a noção de regulação.
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 135

Poderemos eventualmente encontrar aí uma via à estru­


turação de um novo direito. Ou, talvez, apurar que precisa-
mente esta, a da regulação, é, para tanto, a via a não ser per­
corrida...

3. Apêndice sobre a “ desregulação ” da econom ia

18. Como argumento a negar a exposição que venho de­


senvolvendo será por certo referido o movimento de desregu-
lamentação ou desregulação da economia.
Imprecisão e ambigüidade das noções básicas afirmadas
por este movimento (da desregulamentação ou desregulação
da economia) — menos efetivo na praxis da ação estatal do
que nas construções doutrinárias, expressão de verdadeira
síndrome — são evidentes.
Literalmente, desregular significa, no caso, não dar orde­
nação à atividade econômica, ao passo que desregulamentar,
no caso, deixar de fazê-lo através de preceitos de autoridade,
ou seja, jurídicos (Gonzãlez Arzac 1988/196). Resta desde
logo impreciso, assim, o objetivo do movimento: trata-se de
minimizar a ordenação da atividade econômica — ou de ex­
cluí-la, como estariam (estariam, de fato?) a propor os neo-
liberais — , ou, por outro lado, propõe-se a coibição da hiper­
trofia das regulamentações, isto é, da inflação normativa, e a
redução da presença do Estado, como agente, no campo da
atividade econômica?

Observa Antoine Jeammaud (1986/67): “resulta asombroso el


carácter apresurado de las teorizaciones ambiciosas a que han
dado lugar la embarazosa imprecisiõn de los conceptos empleados
(‘deslegalización’, ‘desjuridización’ o ‘normalización’), que suelen ir
aparejados a una pasmosa ausência de análisis de las innova-
ciones jurídicas concretas que se pretende explicar”.

Quanto à primeira alternativa, as indagações que pronta­


mente se introduzem, postuladas por Gonzãlez Arzac (1988/
199), são as seguintes: a) Conforma-se ao bem comum e ao
princípio da justiça a regulação da atividade econômica atra­
vés dos mecanismos de mercado? b) É possível o mercado,
136 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

mesmo sem um a legislação que o proteja e uma vigorosa in­


tervenção, destinada a assegurar sua existência e preserva­
ção?
A resposta a ser conferida à primeira questão tem caráter
ideológico. Os cultores de fé na economia de mercado a ela
responderão afirmativamente. Jã quem não seja fiel desse
credo, com apoio em algumas verificações empíricas, respon­
derá de modo negativo. Eventualmente, até, rememorando a
observação de Galbraith (1968/57: “apenas os defensores
profissionais do sistema da livre iniciativa, membros de um
ofício humilde e mal pago, ainda defendem o domínio da com­
petição, sendo este o teste pelo qual melhor se pode calcular
que seus clientes fracassarão”); ou refletindo, criticamente, a
propósito do comentário de Jean Rivero (1988/383: “Je pen­
se. que la jungle de la loi n*est pas plus souhaitable que la loi
de la jungle”) .
No que respeita à segunda questão, não se pode perder de
vista a circunstância de que a atribuição, ao Estado, da mis­
são de conduzir o desenrolar do processo econômico, orde-
nando-o, é toda ela desenvolvida sob o compromisso, precisa­
mente, de preservação dos mercados. O capitalismo — repita-
se — reclama não o afastamento do Estado dos mercados, mas
sim a atuação estatal, reguladora, a serviço dos interesses do
mercado. Essa é, sem dúvida, uma afirmação historicamente
comprovada. Além disso, dúvida também não resta em relação
à circunstância de que os processos econômicos capitalistas
demandam regulação. O mercado não seria possível sem uma
legislação que o protegesse e uma racional intervenção, que
assegurasse a sua existência e preservação.
Por isso que,, em rigor, os que pretendem desregular a eco­
nomia nada mais desejam, no fundo, senão uma mudança
nas técnicas de regulação, de modo a elevar a eficácia regula­
dora da atuação estatal sobre o domínio econômico — e isso,
em especial, através, de procedimentos desregulamentacLores
(González Arzac 1988/199).
A desregulação de que se cogita, destarte, em realidade de­
verá expressar uma nova estratégia, instrumentada sob no­
vas formas, de regulação. Desde essa perspectiva, pretender-
se-Ia desregulam entar para melhor regular.
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 137

No que tange à segunda alternativa, quanto à proposição


da coibição da hipertrofia das regulamentações, isto é, da in­
flação normativa, não é nova. À crítica do fenômeno dedicaram
atenção não apenas Ripert e Savatier, porém, mais recente­
mente, Jean Pierre Henry e Paul Amselek, como anoto no ca­
pítulo em que trato da legalidade. Além disso, cumpre obser­
var que a proposta de desregulamentação, enquanto atinente ã
substituição de regras rígidas, dotadas de sanção jurídica, por
regras flexíveis, meramente indutoras de comportamentos,
poderá eventualmente não produzir a eficácia que a demanda,
do próprio capitalismo, da regulação dos mercados requer. Is­
so, por outro lado, provavelmente conduza à ampliação do
conteúdo dos regulamentos (atos do Poder Executivo em ge­
ral), instalando uma nova contradição: o exercício, pelo Esta­
do, de poder regulamentar tem sido vigorosamente repudiado,
na medida em que, segundo se argumenta, conflita com os
princípios da separação dos poderes e da legalidade.
Quanto à proposição de redução da presença do Estado,
como agente, no campo da atividade econômica — o que con­
duz à privatização de empresas estatais — , é de todo coeren­
te com a visão, acima exposta, da desregulamentação como
nova estratégia de regulação. Considere-se, aqui, a circuns­
tância de que a estabilidade do capitalismo reclama, em es­
pecial sob a égide do Estado social, o amplo fornecimento de
prestações do tipo serviço público à sociedade.
Objetivo da desregulamentação, neste nível, é o de que o
Estado desenvolva tão-somente, como agente, as atividades
que o setor privado não esteja devidamente aprestado a exe­
cutar, seja porque não tem condições de exercer ou não de­
seja exercê-las, seja porque as exercerá de modo contrário ao
interesse geral. No primeiro caso, atividades econômicas que
exijam vultosos aportes de capital e de tecnologia; no segun­
do, atividades que não sejam suficientemente rentáveis; no
terceiro, atividades definidas tipicamente como serviço pú­
blico. Que se atribuam ao setor privado, pois, as atividades
que a este interesse explorar, rentavelmente; as demais, que
delas se incumba o Estado. ^
Nada diverso, para logo se vê, do que conceituava Bilac
Pinto (1954/54) como serviço público.
138 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

19. Os efeitos negativos da desregulação ou desregula­


mentação são inúmeros.
A visão idílica da regulação pelo mercado, que propõem
os neoliberais, não resiste a um exame mais detido, como
anota Jacques Chevalier (1987/313). A desregulamentação
— ou “desregulação” — , por outro lado, importa benefícios
para uns e perdas para outros, sendo certo que, no caso, os
prejudicados são os mais protegidos pelas regulamentações
que preexistiam, ou seja, os trabalhadores, as pequenas e
médias empresas, as minorias, as mulheres, os menores e os
idosos etc.
Repousa essa visão em um conjunto de postulados, tais
como a racionalidade dos comportamentos individuais, o ajuste
espontâneo de preferências, a harmonia natural dos interes­
ses particulares e do interesse geral; tende a ocultar os con­
flitos de interesses, as relações de força, os fenômenos de do­
minação que desnaturam o funcionamento do mercado. Os
próximos anos nos dirão em que medida a prática de políti­
cas de desregulação que passam pela sensível redução das
políticas sociais do Estado pode colocar sob risco o apazigua­
mento dos antagonismos de classe e a possibilidade de con­
ciliar democracia e capitalismo (Habermas 1987/107).
Apesar disso, é certo que esta verdadeira síndrome da des­
regulação ou desregulamentação não consubstancia um mo­
dismo, que logo passará: a generalização do debate a seu pro­
pósito, no mundo todo, garante sua autenticidade (Rivero
1988/381).
É que nos encontramos, nitidamente, em um momento
de transformação do modo de prqdução capitalista, transfor­
mação que decorre, fundamentalmente, da revolução da in­
formática, das telecomunicações e da microeletrônica. Ora,
como cada modo de produção reclama por um direito, qué é
seu, enquanto elemento constitutivo desse mesmo modo de
produção, o que ocorre é estarmos a assistir ao princípio de
uma transformação no direito do modo de produção capita­
lista. Transformação da qual, inclusive — diga-se-o — , es­
tamos a participar, na medida em que a seu respeito produzi­
mos doutrina jurídica.
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 139

20. No mais, relembro a circunstância de em cada socie­


dade coexistirem vários modos de produção social, de sorte
que, embora um deles seja característico dela, o direito de
cada sociedade, como tenho insistido, é resultante da coexis­
tência histórica de todos esses modos de produção.
Assim, a desregulação da economia não pode ser debatida
de modo amplo e genérico.
Tal como postulada nas propostas a seu propósito defini­
das no mundo desenvolvido, a desregulação consistiria em
uma correção dos rumos do Estado social. Há sociedades, no
entanto —- e muitas delas, como o Brasil, na América Latina
— , nas quais as condições efetivas do Estado social não fo­
ram ainda realizadas, de sorte que configura algo no mínimo
estranho, porque dissociado destas realidades sociais, a im­
portação, sem ressalvas, para que nelas sejam aplicadas, das
soluções européias e norte-americanas, cujos resultados já
estão a se manifestar.
A esse respeito, seria oportuno e adequado indagar se em
tais sociedades, que sobrevivem às custas da privatização do
Estado, estariam os empresários dispostos a renunciar aos
subsídios, para retecer a trama do mercado Üvre e da livre
iniciativa, entendido “livre”, aí, como isento de qualquer im­
pulso, tanto negativo como positivo.

A propósito, embora longa, a transcrição de observações de


Galgano (1983/76): “Un elemento común a los eslabones interme-
dios dei capitalismo radica en lo que los economistas deploran
como las ‘perversiones' dei sistema econômico, la progresiva re­
nuncia a los mecanismos de mercado, la degeneración de la eco­
nomia capitalista en un capitalismo ‘asistido’, en una economia
que sólo sobrevive mereed a la incontenible expansión de la ‘mano
pública*, gracias a los rescates de empresas, al sostén público de
la producciõn, a las contribuiciones estatales, a los préstamos a
interés reducido; en una palabra, sólo gracias a la creciente trans­
ferencia de los costos de Ias empresas al conjunto de la colectivi-
dad o, mejor dicho, a las clases trabajadoras (pues es de común
conocimiento que el ingreso fiscal proviene prevalecientemente dei
producto dei trabajo), y a través de la inversión bancaria masiva
en títulos dei crédito público (puesto que nadie ignora, tampoco,
que otra fuente financlera que el Estado empieza a explotar, la o
140 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

me atrevo a eulparlo de ello, porque entre el suefio y la realidad se


interpone, para su desgracla, algo que está más allá de su vo-
luntad y de sus propósitos. Y este algo es la bãja tendencial de la
tasa de ganancia, seguida, principalmente en el caso de Ias gran­
des empresas, por la reducciõn dei área cubierta por el capital de
riesgo, por la necesldad de recurrir cada vez más al financiamien-
to público. En ésto reside la causa profunda de lo que suele defi-
nirse como capitalismo asistido; es conforme a esta dura ley que
el empresário debe hacer sus cuentas, desde hace mucho tiempo:
si quiere mantener márgenes de ganancia, debe ‘socializar*, y so­
cializar, cada vez más, los costos de su empresa. No me canso de
repetir que las utilidades que se desprenden de los balances de
las empresas privadas — evidentemente, si es que hay utilidades
— no son tales sino en virtud de una convención de contabilidad:
porque en el pasivo de los balances sólo se mencionan los costos
directamente sufragados por la empresa, mientras se pasan por
alto todos aquellos gastos a los que también hubo que hacer fren­
te para la realización de las utilidades y que, sin embargo, figuran
en otros balances: en el balance dei Estado, en los de las regiones
o de las entidades locales, en los balances deficitários de las em­
presas públicas. Son estas convenciones de contabilidad las que
les permiten a algunos negar la validez de la ley de la baja de la
tasa de ganancia: se se realizara un balance real, incluyendo to­
dos los gastos de producción, se desvaneceria por completo toda
huella de utilidades en muchas de nuestras empresas privadas, y
en oÉras, el déficit alcanzaría proporciones desmedidas. La baja de
la tasa de ganancia encontraria entonces su demonstraciõn
palmaria. En los eslabones más fuertes dei capitalismo, los limites
de la acumulación spn superados gracias a mecanismos que per-
petúan la ilusión — pero tan sólo la ilusión — de cierto librecam-
bismo: si en estos países no existe el capitalismo asistido, o existe
sólo parcialmente, ello se debe simplemente a que todavia no se
ha vuelto necesario, o que sólo es parcialmente necesario hasta la
fecha (pienso en las subvenciones estatales a la agricultura y en
las ayudas públicas a la industria bélica o a la industria espacial
en los Estados Unidos). Los costos de las empresas pueden ser ex­
portados, transferidos hacia los eslabones más débiles dei capita­
lismo: la colectividad nacional no los sufraga, es verdad, sino en
una proporclón mínima; pero no es menos verdad que los costean
otras colectividades, que los costea el resto dei mundo capitalista.
En estos eslabones fuertes, es el imperialismo el que puede toda­
via conferir una aparência de realidad al suefio librecambista de
la burguesia (y el imperialismo tiene también sus costos, que son
transferidos a escala mundial)".
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 141

De outra parte, como a revolução da infomática, das tele­


comunicações e da microeletrônica introduz transformações
no modo de produção da vida social, esta mesma revolução,
em algumas sociedades de economia dependente, impõe, em
determinados setores, ampliação — e não afrouxamento —
das regulamentações jurídicas.

21. Tal o caso, exemplar, da sociedade brasileira, ainda


que o negue o rumo tomado pelo processo de reforma consti­
tucional em curso. Assim, v.g., o Executivo não se limitou a
patrocinar o afastamento de restrições à atividade de empre­
sas estrangeiras, travestidas de nacionais, em certas áreas;
como se isso não bastasse, induziu o Congresso Nacional a
extirpar da Constituição a previsão da concessão, às empre­
sas genuinamente nacionais (empresas brasileiras de capital
nacional), de proteção e benefícios especiais temporários pa­
ra o desenvolvimento de atividades consideradas estratégi­
cas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvi­
mento do País, em especial tecnológico (art. 171 e parágrafos
da Constituição).

Evito, nesta oportunidade, qualquer comentário a respeito da


revogação pura e simples do art. 171 e parágrafos, ainda que, co­
mo cidadão, tenha convicções e sentimentos bem marcados em
relação ao comportamento do Executivo nesse episódio.

Em relação à sociedade brasileira, aliás, algumas indica­


ções podem ser Introduzidas. Em primeiro lugar, tem-se co­
mo evidente que, no nosso caso, qualquer reformulação da
participação do Estado na economia pressupõe, necessaria­
mente, a sua desprivatização (dele, Estado).
Observam Luciano Oliveira e Aífonso Cézar Pereira (1988/
148=T49): “Isto é; as escolhas políticas que informam o de-
semperiho intervencionista do Estado não são — ou rara­
mente o são — escolhas motivadas por um querer genético
de toda a sociedade. Antes, elas refletem os interesses dos
grupos eventualmente no poder. Esse diagnóstico, que já se
verifica a nível teórico mais geral, é sobretudo evidente quan­
do nos debruçamos sobre o caso do Brasil. Historicamente,
sabemos todos, o Estado brasileiro não se constitui como um
142 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

espaço público livremente pactuado ao qual todos os segmen­


tos sociais tenham iguais possibilidades de acesso, desde que
participem de um jogo político cujas regras são fixadas em
normas gerais, objetivas e estáveis, como quer o modelo libe­
ral clássico, e é o que define a democracia. Ao contrário, histo­
ricamente, o Estado brasileiro se caracteriza, antes, como um
locus tradicionalmente apropriado por elites econômicas que
instrumentalizam o poder para servir aos seus próprios negó­
cios, quase como se tivéssemos uma espécie de apropriação
privada dos espaços públicos. E essa visão pouco lisonjeira do
Estado brasileiro chega até os nossos dias”.
E me permito, ademais, reproduzir o seguinte trecho
(Grau e Belluzzo 1995/13-18):
“É nesse quadro que se insere a questão da estatização. O
Estado brasileiro, como produto histórico, cumpriu sua tare­
fa com grande brilhantismo, dentro dos limites impostos pe­
las formas de estratificação e de dominação social que o en­
gendraram. Em seu trabalho de impulsionar o capitalismo e
a industrialização, o Estado brasileiro assumiu uma postura
escancaradamente oligárquico-privatista. Esmerou-se na
concessão de favores, incentivos, estímulos, sem exigir con­
trapartida. A seleção dos beneficiários dependeu sempre de
critérios pessoais, estranhos às regras da competição e da
igualdade de oportunidades. ‘Para os amigòs, tudo, para os
inimigos, a lei’ — é uma frase de conteúdo profundamente
antiliberal e também, de passagem, antidemocrático,
“A intervenção do Estado na economia foi a marca comum
da industrialização dos países retardatários europeus e asiá­
ticos e desta sina não escapou nenhum dos retardatários de
segunda geração, como Brasil, México, Coréia, Taiwan. Cada
Estado, à sua moda.
“Coréia e Taiwan contaram com regimes autoritários,
sustentados pela força dos militares, mas moldaram os seus
processos de desenvolvimento no ethos cooperativo e ‘comu­
nitário’ de suas formações sociais, exigindo comportamentos
adequados dos empresários enquanto agentes da moderni­
zação da economia e ‘criando’ as condições de competição
sem permitir que os mecanismos predatórios da concorrên­
cia colocassem em risco o equilíbrio da sociedade. Peter Dru-
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇAO 143

cker, em seu último livro, advertiu os americanos para uma


singularidade do processo de desenvolvimento dos países
asiáticos e do Japão. Não se trata, diz ele, de um projeto de
economia no estilo ocidental, mas antes de mais nada de um
projeto de sociedade.
“A modernidade é invocada no Brasil de hoje para os mais
diferentes propósitos e, não raro, para justificar a consolida­
ção do passado — isto é, para justificar a frivolidade e o tédio
do existente, e para evitar o vago pressentimento do desco­
nhecido, a radical incerteza imposta pela construção do futu­
ro. Assim os nossos modernos julgam, por exemplo, as ques­
tões da articulação da economia brasileira com o ambiente
internacional, os problemas relativos âs conexões entre Es­
tado e mercado, entre Estado e sociedade, entre a democra­
cia e o capitalismo.
“A frivolidade do passado reside em pretender anular as di­
ferenças vincadas no rosto do presente, as marcas da trajetó­
ria irrevogável do tempo histórico, e em julgar que podemos
sempre começar do ponto em que outras experiências con­
temporâneas terminaram. Seria fácil reescrever a história se o
tempo fosse revogãvel e se as experiências históricas pudes­
sem ser tomadas de empréstimo e copiadas como um dever de
casa. Assim, seria trivial reivindicar a modernidade e teríamos
certamente um amplo menu à disposição. Receitas asiãtico-
cooperativas, liberal-americanas ou social-européias.
“Por uma estranha coincidência, todos estes ‘modelos’
surgiram num só movimento, o mesmo que nos trouxe, como
brasileiros, ao atual estado de perplexidade e desencanto. O
Brasil chegou à exaustão de um paradigma de crescimento
cujas características maiores foram: a internacionalização
produtiva da economia; a intervenção de um Estado compe­
tente na distribuição de incentivos à acumulação privada e
na arbitragem entre os blocos de capital domésticos e forâ-
neos; a incorporação restrita das massas às normas ‘moder­
nas’ de produção e de consumo; e a completa exclusão políti­
ca dos mais fracos e menos favorecidos. Este é o capitalismo
realmente existente.
' “Os críticos modernos, à direita e à esquerda, fazem tá-
bula rasa desta estruturação complexa que entrou em crise
144 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de alto e baixo, na sua totalidade. A sua natureza absurda


apodreceu e começa a se decompor por inteiro, não apenas
uma de sua partes, o Estado, como pretende uma curiosa va­
riante do funcionalismo sistêmico pós-modemo. É completa­
mente insensato afirmar que o Estado vai mal, está quebra­
do, mas o setor privado vai bem. A saúde das empresas e das
famílias enriquecidas foi construída com as peças da degra­
dação fiscal e financeira do ente público. A brutalidade deste
processo está descrita em qualquer relatório internacional
decente e honesto, independentemente de orientação ideoló­
gica ou doutrinária.
“A segmentação do Estado brasileiro é um dos aspectos
de sua tão decantada 'privatização’, isto é, da sua incapaci­
dade de discriminar os interesses particularistas e de fixar
políticas em nome do interesse geral. O peso político das clas­
ses proprietárias na representação parlamentar, e, sobretu­
do, na máquina burocrática do Executivo, promove sistema­
ticamente a generalização dos favores. Sempre cabe mais
um. Sendo assim, as agências públicas e as formas de inter­
venção tendem a se tomar, exclusivamente, mecanismo de
proteção de uns contra os outros e de todos contra a concor­
rência e a busca da eficiência. A cobrança de resultados ou
de desempenho não é a regra e acaba se transformando nu­
ma formalidade ridícula.
“As relações, viciadas entre Estado e setor privado fomen­
tam a ‘estatização’ na medida em que estas agências e em­
presas apresentam impulso descontrolado à multiplicação
para ‘atender’ aos velhos interesses e aos novos setores que
buscam o amparo das políticas ‘públicas’. Resta descobrir a
quem tal incompetência tem favorecido.
“Outros fossem os tempos, o affaire Collor teria suscitado
na inteligência nativa mais do que queixas sobre desvio de
verbas ou achaques moralistas.
“O episódio oferece uma ótima oportunidade para um tra­
balho sério sobre o establishment brasileiro ou, como preferia
o sociólogo americano Charles Wright Mills, sobre a elite do
poder. Ainda hoje é pertinente a opinião de Tom Bottomore,
emitida no limiar dos anos 60, de que o trabalho de Wright
Mills sobre a elite do poder nos Estados Unidos foi a maior e
V — MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REGULAÇÃO 145

mais bem-sucedida tentativa de demonstrar que em qual­


quer sociedade as elites podem se associar com regularidade
e estabelecer acordos provisórios sobre objetivos políticos.
“W right Mills criticava e rechaçava a concepção marxista
de uma classe dirigente fundada exclusivamente no Interes­
se econômico. A unidade da elite do poder, diz Bottomore,
devia responder a numerosos requisitos, mas era definida
claramente como a ‘coincidência instável do poder econômi­
co, político e militar’. Wright Mills se dispôs a investigar dois
pontos fundamentais: a) as mudanças na organização econô­
mica capitalista e nas instituições sociais que produziram
uma concentração de poder sem precedentes e aumentaram
a distância entre a elite e as massas; e b) a circunstância de
não bastar, para determinarmos as características de uma
.elite, o estudo das origens sociais de seus membros, impon-
do-se o examine da perspectiva mental e ideológica criada
por um sistema de educação, informação e, hoje diríamos, de
comunicação.
“Os 40 mil cheques emitidos pelas empresas do tesourei­
ro do ex-presidente e as notas de serviço emitidas pelas gran­
des empresas financiadoras da campanha de Collor são um
excelente material para um primeiro desenho das conexões
entre o poder econômico, o político e os meios de comunica­
ção. Esses documentos não contarão toda a história, apenas
parte dela, e talvez nem mesmo a mais importante. Mas é
uma primeira aproximação que permitiria entrever as rela­
ções entre as diversas elites: líderes políticos, administrado­
res públicos, dirigentes empresariais, formadores de opinião,
líderes de massas. É claro que, no Brasil, òs nexos mais im­
portantes e decisivos dessa textura política foram sendo tra­
mados durante o longo período autoritário. A exclusão ou a
inclusão de participantes e o surgimento de novas estrelas
na constelação do poder e da riqueza ou o declínio de outras
são menos importantes do que a observação de que o último
período de autoritarismo político ensejou a modernização das
relações entre o big business, a grande política, a burocracia
pública e as corporações do mass-media.
‘‘Há um trânsito contínuo de pessoas e de dinheiro entre
essas esferas do poder e, muito mais que isso, há a formação
146 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de uma cultura comum. Nesse sentido ocorreu na verdade


uma americanização das conexões constituídas da elite do
poder no Brasil. Os valores individualistas e a valorização do
ganho monetário tornaram-se claramente dominantes em to­
das as esferas. O espírito público da velha burocracia do Es­
tado, que em alguns momentos da vida nacional foi capaz de
dirigir as energias privadas para os projetos coletivos, foi so­
terrado pela praticidade e objetividade dos novos burocratas,
encharcados do ethos do sucesso individual e da vantagem
privada.
“Quando falamos em privatização do Estado estamos, na
verdade, restringindo a abrangência do fenômeno de privati­
zação do espaço público, muito mais profundo do que a sim­
ples invasão de interesses nas esferas de decisão estatal. As
outras dimensões do público estão também carcomidas pela
ética privatista. Quando se chega a este ponto de géneraliza-
ção do individualismo e de convencimento em relação ã pre­
dominância do motivo monetário é muito difícil, para não di­
zer bastante improvável, que as investigações de corrupção
resultem numa regeneração dos costumes /políticos ou coisa
que o valha. y
“Os que ainda alimentam ilusões a respeito do futuro
deste País deveriam lutar, acima de suas divergências políti­
cas, para que essas investigações não fossem encerradas
com a punição dos culpados mais óbvios. É preciso investi­
gar, isto, sim, as condições que permitem a reprodução da
corrupção, as estruturas de poder que definem a sorte das
eleições, a conspiração permanente do mass-medta que não
permite a educação das massas, mas a quer como úm objeto
permanente de manipulação, controle e submissão.
“Um experiente político espanhol, deputado socialista, di­
vagando sobre a ‘transição democrática’ ocorrida em seu
país, concluiu que por detrás dos homens que teceram o Pac­
to de Moncloa estavam os mortps da Guerra Civil. Moncloa
não foi apenas uma, forma de reparar o futuro, senão de de­
sarmar o passado.
“A explicação é muito sintética para ser verdadeira, mas
bastante plausível para ser levada em consideração. No nos­
so Brasil as transições sempre acontecem para impedir que o
passado fique no passado. A memória, enquanto reflexão so­
V — M O D O D E P R O D U Ç Ã O C A P IT A L IS T A E R E G U L A Ç Ã O 147

bre o que passou, vai-se apagando depressa, na mesma velo­


cidade com que se rearmam as forças e os Interesses que co­
mandaram os grandes desastres e desatinos. A memória na­
cional é fraca porque o passado não passa e a história parece
um processo descontínuo e recorrente que o historiador bra­
sileiro Sérgio Buarque chamou de ‘procissão de milagres’ .
“O sistema de forças que se abrigava sob a pele do regime
militar sobreviveu incólume à transição democrática. Pior
que isso, durante estes anos de observância das regras de­
mocráticas cresceu sem parar o poder de veto e de bloqueio
destas forças sobre qualquer iniciativa política ou econômica
capaz de alterar o status quo."
Em suma, ainda no que respeita ao nosso caso, cujo capi­
talismo não prescinde de regulação, qualquer política de des-
regulamentação haveria de estar calcada sobre a construção
de um novo mádelo de regulação. Não se perca de vista o fato
de que o movimento em prol da desregulação, tal como pos­
tulado entre nós — “menos governo, menos miséria” — , con­
duz ao enfraquecimento do Estado; mas o Estado, apesar de
todos os pesares, é ainda, entre nós, o único defensor do in­
teresse público, não sendo inviável a visualização de mo­
mentos de legitimidade, nele, em que venha (o Interesse pú­
blico) a se confundir com o interesse social. A destruição e
mesmo o mero enfraquecimento do Estado conduzem, inevi­
tavelmente, à ausência de quem possa prover adequadamen­
te o interesse público e, no quanto isso possa se verificar, o
próprio interesse social.
VI
A CRÍTICA DO DIREITO E O "DIREITO ALTERNATIVO ”

1. Pretende-se encontrar a vertente da crítica do direito na


Escola de Frankfurt. A teoria ou escola da crítica do direito de­
correria da reinterpretação do materialismo histórico. Suas
raízes estarlam fincadas na vínculação da razão ao processo
histõrico-social e à superação da realidade em constante
transformação; seu objetivo, o de definir um projeto que per­
mita a mudança da sociedade, provendo a emancipação do
homem de sua condição de alienado.
Isso, porém, é apenas parcialmente verdadeiro.

2. É que inexlste uma teoria crítica do direito. O que há são


movimentos ou correntes de crítica do direito. Inúmeros (v.
Wolkmer 1991/35-96).
Uma boa parte desses movimentos partiu, de uma forma
ou de outra, da releitura marxista, produzindo diferentes re­
sultados. E mesmo anteriormente à falência das experiências
de socialismo possível no século X X (= socialismo estatal) —
e bem anteriormente ao neotiberalismo em voga, observe-se
— a crítica jurídica instalada rià França orientou-se, em al­
guns desdobramentos, à análise^ da tecnologia e prática da
regulação jurídica (Jeammaud 1986/64 e ss.).
O que se pode afirmar, em termos amplos, é que quase to­
dos os que adotaram a postura de censor diante do fenômeno
jurídico estavam — e aíguns permanecem assim — convenci­
dos de que não basta descrever o direito; cumpre-nos trans­
formá-lo.
V I — A C R ÍT IC A D O D IR E IT O E O “D IR E IT O A L T E R N A T IV O ” 149

Inúmeras vezes, no entanto, o que se tem praticado como


se fora crítica do direito não ultrapassa os limites da crítica dó
discurso jurídico. A crítica do direito, então, é substituída por
uma crítica da doutrina jurídica, que prospera no sentido de
desviar o debate a respeito do dirèitó para 6 âmbito do discur­
so sobre o direito. Assim, v.g., certos adeptos da criticai con-
tract law, norte-americana, incorporam uma visão ingênua
da realidade, limitando-se, em verdade, a produzir crítica da
doutrina ju ríd ica e a cogitar de princípios da doutrina — e não
do direito.
Não se confunda, portanto, crítica do direito com marxis­
mo, ainda que os marxistas pensem criticamente.
Para que se tenha idéia da diversidade ideológica encontradiça
entre os que aderem ã crítica do direito, observo que Wolkmer
(1991/96) refere como críticos do direito, na Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, Fábio Konder Comparato, Eros Ro­
berto Grau, Kazuo Watanabe, Dalmo de Abreu Dallari, Ada Pelle-
grini, Alaõr Caffé Alves, José Eduardo Faria, Celso Campilongo,
José Reinaldo Lima Lopes, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, esque­
cendo, indevidamente, Aloysio Ferraz Pereira...
3. O movimento da crítica jurídica na França surgiu na
segunda metade dos anos 70, na publicação do Pour une criti­
que du d ro it coletânea de ensaios que se abre com um mani­
festo. Antes disso, em 1976, publicara-se o Une introduction
critique au droit, de Michel Miaille.
Já em 1975, contudo, na Universidade de Belgrano, em
Buenos Aires, em Congresso Internacional de Filosofia Jurí­
dica, a tendência crítica se manifestava em trabalhos de En­
rique Marí, Alicia Ruiz, Carlos Cárcova e Ricardo Entelman.
O movimento argentino nasceu a partir da idéia de que, para
conhecermos a especificidade do direito, impõe-se compre­
endermos a totalidade estruturada que o contém, ou seja, a
totalidade social; para tanto, é necessária a constituição de
um saber multi e transdisciplinar, lugar de intersecção de
múltiplos conhecimentos: históricos, antropológicos, econô­
micos, psicanalíticos, lingüísticos etc. (Cárcova 1991/15).
Produzida pela crítica do direito argentina, veja-se o Materiales
para una teoria crítica dei derecho, de Enrique Marí e outros, e os
150 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

trabalhos de Alicia Ruiz e de Carlos Cárcova. Entre as figuras que


se destacam, na América Latina, impulsionadoras de movimento
crítico, Oscar Correas, editor da revista Crítica jurídica. No Brasil,
para não correr o risco de esquecer algum nome, nenhum men­
cionarei — salvo o de Roberto Lyra Filho, que deixou discípulos —,
até porque, ademais, o que hã são posições isoladas. Inúmeras ve­
zes contraditórias, na imensa maioria dos casos assumidas em
caráter individual, como se passa comigo.

4. Inexistente uma teoria da crítica do direito, toma-se


dificultosa a enunciação de pressupostos dessa crítica.
Para dela dizer algo, contudo, direi que crítica é a exposi­
ção — mas não de expositor, de censor — que neste livro de­
senvolvo. Isso é tão evidente que nem mereceria ser dito.
A reflexão crítica indica que o direito não se reduz a um
mero conjunto de normas — nem pode ser referido como pro­
duto de uma vontade, seja do legislador, seja do Estado ou de
qualquer razão metafísica. E que o direito constitui um nível,
um plano, uma linguagem do sistema social, por este, pois,
condicionado. O direito, porque nasce n á sociedade, do con­
flito social, deve ser concebido como uma prática social. Co­
mo tal, expressa relações de poder e ideológicas, bem assim o
produto dos conflitos sociais emergentes, isto é, de transfor­
mações sociais.
É necessário dizer, também, que tais conflitos e contradi­
ções são expressos pelo direito através de uma linguagem, a
linguagem jurídica. E a linguagem jurídica porta em si, mais
do que outras linguagens, postadas em distintos níveis do
social, marcas e traços dessas demais linguagens, dos de­
mais discursos do social — mesmo porque o social desenvol­
ve diversos discursos.
Essa verificação nos permite compreender que o direito,
ainda quando não seja intencional e deliberadamente trans­
formador, finda por resultar efetiyamente transformador, ao
ensejar interpretações que conduzem à emancipação social,
à maior igualdade social etc. É justamente a presença de
marcas e traços de tais discursos, nele, que mantém o dis­
curso jurídico integrado socialmente, de modo a assegurar
sua adequação à realidade, tanto quanto isso seja possível,
em um contexto histórico continuamente cambiante.
V I — A CRÍTICA DO DIREITO E O “DIREITO ALTERNATIVO” 151

O direito não é só violência monopolizada, mas também


um discurso normalizador e disciplinador, no sentido fou-
caulüano; é prática social específica que expressa historica­
mente os conflitos e tensões dos grupos sociais e indivíduos
que atuam era uma formação social determinada (Cárcova
1988/144). Daí ser necessário pensarmos a natureza e o pa­
pel do Estado e do direito sob suas formas atuais; questio­
narmos o discurso dominante, que apresenta o Estado como
a encarnação do interesse geral ou como o instrumento de
realização do bem comum — o que faz do direito a diretriz de
ideais universais e ahistõricos de justiça (Jeammaud 1986/
46 e 47).
O pensamento crítico ensina devermos superar a confu­
são entre direito, ordem positiva normativa, sua prática e seu
conhecimento. Não será demasiado repetirmos: ensina a to­
marmos o direito como um nível do todo social, e não como
uma representação da realidade social, existente fora dela —
o direito é um nível, um plano, uma linguagem desta realida­
de, mas é também instrumento de mudança social. Desde as
suas lentes podemos divisar ò direito como mediação especí­
fica e necessária das relações de produção capitalista e com­
preender por que essas relações não se poderiam reproduzir
sem á form a do direito burguês, isto é, do que denomino di­
reito form al/ moderno.
Dizer que os críticos do direito não são dogmáticos, isso
nada diz — e não é verdadeiro, porque fazemos Dogmática
também. Apenas nos recusamos à clausura da erudição es­
pecializada, nutrida em idealismo, clausura que deforma o
homem, tal qual o trabalho do operário especializado, que
trabalha exclusivamente em operações mecânicas, ou do
técnico que trabalha mecanicamente, o tom a incompleto.
O ju rista não deve ser apenas um burocrata ou tecno-
crata, o que basta a tantos, sem aspiração aos horizontes.
Quanto a mim, sou um crítico do direito porque vejo a socie­
dade criticamente e o homem como sujeito e objeto que
constrói a realidade e, ao mesmo tempo, a ela se submete
— a leitura de minha exposição sobre direito posto e direito
pressuposto o evidencia. Nãò me restava, portanto, outra es­
colha.
152 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

5. Desejo, a esta altura, dedicar alguma atenção ao movi­


mento do “direito alternativo”, tal como se vem manifestando
entre nós.
A expressão denota inúmeros significados — (a) “direitos
alternativos" conota manifestações de pluralismo jurídico
(outros direitos, além do direito positivo; direitos não estatais,
produzidos por comunidades locais e no plano internacional
— a nova lex mercatoria, os direitos produzidos pelo FMI e pe­
las minorias); (b) “justiça alternativa”, os temas do acesso à
justiça (access tojustice), das small claims, juizados de peque­
nas causas e da arbitragem privada; (c) “uso alternativo do
direito”, manifestações de defesa de grupos oprimidos ou, ain­
da, a utilização da estrutura e dos mecanismos do direito por
governos autenticamente democráticos, não como instru­
mento de dominação social; e (d) “direito alternativo” conota
ainda movimento que, nascido na década dos 60, entre ma­
gistrados italianos integrantes da Magistratura Democrático,
vem assumindo importância entre alguns membros do Poder
Judiciário do Rio Grande do Sul, nutre certas correntes teó­
ricas e conduz a rompimento com o direito positivo.
A proposta do direito alternativo, neste último sentido, su­
põe, como sintetiza Wilson Ramos Filho (1991/156), “uma in­
terpretação alternativa do direito burguês, na defesa dos inte­
resses das classes populares” (grifei).
Ainda que isso não seja definidamente ,assumido por to­
dos quantos integrados nesse movimento, sua proposta fun­
damental é de adoção de uma norma sobre a interpretação dos
textos normativos: os textos normativos devem ser interpreta­
dos em favor dos pobres e dos oprimidos — “o direito não é só
repressão; é igualmente o signo da libertação dos oprimidos”
(Clèmerson Merlin Cléve 1991/117).
E a norma assim expressada — norma sobre a interpretação
dos textos normativos —, no limite, acabaria por conduzir à ne­
gação do princípio da legalidade, justificando, para a realização
da “justiça concretas a tomada de decisões contra legerrt

6. Ninguém.bem-intencionado há de negar a relevância


desse movimento, que, no quanto tem produzido de constru­
ção teórica entre nós, embora incipientemente, ainda, revol­
ve, criticamente, o direito.
VI — A CRÍTICA DO DIREITO E O “DIREITO ALTERNATIVO” 15 3

Por certo, o direito é uma arena em que se joga a luta so­


cial. Por certo, a legalidade deve ser criticada, como demons­
trarei a seguir. Da crítica, contudo, lançam-se os integrantes
do movimento a um tipo de prcvds que pode conduzir a resul­
tados apenas não inusitados para quem conhece os abusos e
atrocidades da “livre interpretação” que o fascismo e o nazis­
mo predicaram.
A teoria do “direito alternativo” desemboca no subjetivis-
mo do juiz, nada impedindo, absolutamente nada, que a nor­
ma sobre a interpretação de normas (Isto é, interpretação de
textos normativos) hoje consagrada — que socialmente me sa­
tisfaz — seja amanhã substituída por outra, opressiva, sa-
criílcante de direitos fundamentais. A teoria, então, justificará
a negação do próprio direito e, no limite, conduzirá à anomia.
Os juizes alternativos são, como todos os juizes, dotados do
poder de adotar regras sobre interpretação {meta-regras), re­
gras que, não obstante, em regra não são postas em nenhum
texto normativo. Assim, ao pretenderem produzir ju stiça m ate­
rial, “ressemantizam" o discurso do direito.

Operada a distinção entre o sentido deôntico (as normas ex­


traídas dos enunciados) e o sentido ideológico (as demais mensa­
gens que circulam quando o discurso jurídico é utilizado) do di­
reito, cumpre distinguirmos o discurso do direito e o discurso ju rí­
dico (sigo as indicações de Oscar Correas 1993/112 e ss.). Dis­
curso do direito é o discurso prescritivo produzido pelos juizes e
tribunais autorizados a dizê-lo. Discurso jurídico ê o conjunto dos
discursos que usam ou falam do discurso do direito. O discurso
do direito é, na verdade, um conjunto de discursos que provêm
de distintos emissores ou órgãos, Mas também o discurso jurídico
é um conjunto de discursos: o dos advogados: o dos professores
de direito; o dos cidadãos (e também os juizes o usam, quando
fundamentam e explicam o direito — isto é, o discurso do direito).
As distinções acima expostas encaminham outra, que opõe a ideo­
logia do direito e a ideologia jurídica. Ideologia do direito é aquela
portada pelos textos, pelos enunciados dos quais se extrai o sen­
tido deôntico do direito. Ideologia jurídica é aquela produzida por
quem usa ou fala do direito. A ideologia produzida peios discur­
sos que falam do direito (discursos jurídicos} inúmeras vezes sub­
verte a ideologia do direito (isto é, dos enunciados interpretados).
Além disso, afirma-se, equivocadamente, que a interpretação
154 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

produzida pelos juizes (autêntica — Kelsen 1979/469 e ss.) tam­


bém inúmeras vezes subverte a ideologia do direito. Mas isso não
ocoire: se os enunciados, os textos, nada dizem (dizem o que os
intérpretes dizem que eles dizem, ao produzir as normas), a ideo­
logia do direito é tambémproduzida pelo intérprete autêntico.

Essa “ressemantização” se dá em um tempo em que to­


mamos consciência da “desestruturação” do direito form al e
ganham novos sentidos os processos sociais de produção de
significados em busca da ética (v. Ruiz e Cárcova 1991/319-
320). Note-se que o discurso ju ríd ico (= discurso que usa ou
fala do discurso do direito) fornece argumentos que possibili­
tam a produção de um discurso do direito ( - discurso prescri-
tivo produzido pelos juizes) distinto daquele que distinto dis­
curso jurídico ensejaria.

A esse respeito, a importância do discurso jurídico produzido


pela crítica do direito. /

Assim, podemos, à primeira vista, admitir não exista alter-


natmdade (uso alternativo do direito) nessa tentativa de pro­
dução de ju stiça material, visto que os juízes criam normas ju ­
rídicas e, portanto, estariam autorizados a criar normas (re­
gras) sobre a interpretação dos textos normativos. Sucede que
esse proceder não é desejado pelos grupos que representam a
ordem hegemônica, inclusive na universidade. As críticas aos
chamados “juízes alternativos” colocam-se em dois planos: i) a
crítica ideológica, produzida pelos que atuam como represen­
tantes da ordem hegemônica; li) a crítica metodológica, produ­
zida pelos que temem a perversão ideológica do movimento —
porque o movimento carece de base teórica e há, no horizonte
da desestruturação do direito, tendências que podem instru-
mentar a busca da produção de justiça material (a “jurispru­
dência dos princípios”).
Inexiste altemativídade técniep/científica na atuação des­
ses juízes (eles podem p ôr regras sobre a interpretação dos
textos normativos). Qüánto à altematívidade ideológica, a pro­
dução de um discurso altem atioo do direito poderá ou não ser
subversiva; o “direito alternativo” de que ora cogitamos inú­
meras vezes finda por instrumentar o exercício, pelo Estado,
de sua função de legitimação capitalista.
V I — A CRÍTICA DO DIREITO E O “DIREITO ALTERNATIVO" 15 5

7. A crítica metodológica é mais grave.


Ainda que não se possa negar a importância do chamado di­
reito alternativo como sintoma da desestruturação do direito for­
mal, são grandes os riscos de que esse verdadeiro uso alternativo
do direito positivo (= direito moderno/direito formal) conduza ao sa­
crifício do direito, e não apenas à superação do discurso forma-
lístico do direito (v. Weber 1969/648 e ss.). O juiz alternativo pode
se transformar em um produtor de “justiça de Cadi”...

Se os adeptos desse direito alternativo aplicassem um pou­


co de seu tempo à reflexão a respeito da teoria geral do di­
reito, descobririam que, quando o direito já não corresponde
à natureza singular do presente (operando-se a frustração
material da finalidade dos seus textos que estejam em confli­
to com a realidade), a interpretação desses textos normativos
— e não das normas, visto que essas são não o que se inter­
preta, mas o resultado da interpretação — , à luz dos princí­
pios, permite a sua reatualização. E que assim sempre têm
procedido os juizes mais prudentes, sem alarde.
A ausência de pensamento crítico produz ansiedades in­
dividualistas à margem do dinamismo, do tempo e dos com­
passos da História. Insisto em que se deva criticar a legalida­
de. Mas é necessário não esquecermos que ela tem sido um
bem humano incondicional (Thompson 1987/357). A.legalida­
de é também a possibilidade — pelo menos a possibilidade — ,
diz Oliveira (1992/198), “da efetivação dos direitos e garan­
tias individuais: não ser arbitrariamente preso nem conde­
nado, não ser torturado, não ter a casa invadida a qualquer
hora da noite etc.”.

Daí a observação, de Antoine Jeammaud (1984/90), de que “a


dominação através do direito apresenta uma especificidade que,
pensando bem, faz dela um modo de dominação preferível a qual­
quer outro” — que eu complementaria afirmando que o nosso dra­
ma está em que a legalidade e o procedimento legal resultam, inú­
meras vezes, perversos e violentos, funcionando como as nossas
derradeiras defesas, contudo, contra a perversidade e a violência.
E prossegue Oliveira (1992/198-199): “Os teóricos do ‘direito
alternativo', enquanto intelectuais que são, não podem se colocar
simplesmente a reboque do ‘movimento social’, demitindo-se da
156 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

faculdade crítica que lhes é própria. É preciso desconfiar da evi­


dência de um ‘direito vivo’ mais autêntico e justo do que o direito
estatal. A antropóloga americana Laura Nader, criticando a visão
muitas vezes ingênua que opõe um direito oficial opressivo contra
um direito local libertador, adverte: ‘Isso não quer dizer que todos
os nativos acreditem que ò direito local é justo e que o direito na­
cional é opressivo e inescrupuloso; provavelmente os negros do
sul dos Estados Unidos não pensariam assim’ (Nader 1975/154).
Muito provavelmente, a mulher da comunidade favelada que o ma­
rido pode ‘entupir de porrada’ também não pensaria assim...” (Oli­
veira refere-se ao depoimento de um trabalhador favelado, depoi­
mento recolhido por Miguel Pressburger, que diz das leis da sua
favela, onde “o marido que pega a mulher com outro pode entupir
ela de porrada e ninguém se mete...”).
A propósito dos desvarios a que pode nos levar a procura de
uma ética, qualquer ética — e pensando no Brasil —, escrevi, em
conjunto com Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo (Grau e Belluzzo
1995/18-20):
“O tmpeachment do presidente Fernando Collor, por exemplo,
esgotou-se num espetáculo medíãtíco. O entulho do dia seguinte
são provas obtidas ilegalmente e, portanto, inutilizãveis em qual­
quer país onde as regras do procedimento legal estejam de acordo
com o atual estádio de civilização. No auge do entusiasmo os pro­
tagonistas performátlcos do impedimento aceitaram o vale-tudo le­
gal que, lamentavelmente, terminará num vale-nada. É a velha re­
gra, que recomenda tudo para os amigos, mas para os inimigos,
nem mesmo os rigores da lei: a lei da vingançá privada.
“Há quem não perceba que cultivamos estes primitivismos e
esteja disposto a jurar que por aqui ainda predomina o homem
cordial, afetuoso e disposto ao perdão e à amizade. Neste caso, a
ignorância nativa está se valendo da falsificação de um conceito
elaborado por Sérgio Buarque — o homem cordial — para designar
um comportamento típico: avesso às normas gerais, impessoais e
igualitárias, e inclinado às relações de compadrio, ao favoreci-
mento, ao particiilarismo, à reafirmação das desigualdades. Para
os amigos tudo, para os inimigos..,
“Somos, na verdade, muito mais iguais ao que fomos no passa­
do. Somos, afinal, nossos próprios fantasmas. Nossos mortos so­
mos nós e assim não tèmos as lições do passado, mas a eternidade
da recorrência e da mesmice. Somos inimitáveis e originais, por
certo, nas celebrações e nos escândalos. Aí, sim, escancaramos a
alma e produzimos espetáculos deslumbrantes, feéricos. O mundo
se curva entre estarrecido e deslumbrado diante da torpeza inocen­
te, translúcida, da baixaria sem preconceitos, franca e risonha.
VI — A CRÍTICA DO DIREITO E O “DIREITO ALTERNATIVO” 157

“Faltam-nos os momentos de seriedade trágica, aquele instan­


te fundador em que o declínio do velho é substituído apenas por
sinais, indícios, débeis movimentos do novo, que obrigam o ho­
mem a se decidir ainda suspenso entre dois mundos. Nossa histó­
ria é na verdade uma.procissão de milagres. ............
'As contradições do modo de produção social brasileiro trans­
piram por todos os poros do corpo social. Na democracia brasilei­
ra, as massas não exercem participação permanente no Estado;
são apenas eleitoras. Em determinados momentos, contudo, elas
despontam, na busca, atônita, de uma ética — qualquer ética —,
o que irremediavelmente nos conduz ao 'olho por olho, dente por
dente'.
“Aqui as virtudes republicanas encontram seus limites no pri­
vado, o que nos coloca diante da absoluta imprecisão dos limites
da legalidade. As garantias da legalidade e do procedimento legal,
conquistas da modernidade das quais não se pode abrir mão, são
afastadas, inconsciente, a sociedade, de que assim tece a corda
que a enforcará. A mídia ‘analfabetiza’ o povo, incapaz de cons­
truir os espaços públicos indispensáveis ao exercício da praxis de­
mocrática.
“Esta, a tragédia nacional: as virtudes republicanas são ima-
nentes à ordem social, mas não podem realizar-se entre nós, por­
que essa ordem, aqui, é privatista. As formas republicanas não po­
dem efetivar-se nessa ordem. Essa, a tragédia nacional, que exibe
uma marcada fratura entre o funcionamento das instituições e a
realidade social.
“A consciência jurídica nacional nesse clima sucumbe ao des-
vario da ordãlia e um processo de causação circular acumulativa
se instala, conduzindo, mercê do linchamento de poucos, bem
poucos, à impunidade de muitos, muitos...”

O direito alternativo, carente de referenciais teóricos sufi­


cientes, aparentemente ingenuamente bem-intencionado,
pode vir a consubstanciar nada mais do que uma nova versão
da velha regra que recomenda tudo para os amigos, mas,
para os inimigos, nem mesmo os rigores da lei: a lei da vin­
gança privada. Valham-nos, contra isso, o procedimento legal
e a legalidade.

8. O movimento francês da crítica do direito tem a virtude


de superar a visão, estreita, do direito como mero reflexo da
economia, recuperando o entendimento, de Marx, segundo o
158 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

qual as normas jurídicas (e as formas políticas) não podem


ser ientendidas por si mesmas: estão enraizadas nas condi­
ções de vida material e — observado que o direito intervém
na constituição, no funcionamento e na reprodução das rela­
ções de produção —■as representam de maneira deformada,
isto é, através da dimensão ideológica (Antoine Jeammaud
1986/50 e 51; v. Dujardin e Michel 1978/11 e ss.).
Força é ver, contudo, que, assim como o direito posto é
sempre expressão de uma ideologia, toda interpretação ou
análise do direito posto envolve, em quem a pratica, expan­
sões ideológicas (suas). Assim, os pensamentos não são com­
pletamente livres, na medida em que nem as ciências, nem a
prudência, são neutras.
Embora seja assim, cumpre aos críticos do direito procu­
rar analisar os direitos postos senx-prcconceiLos ideológicos,
procurando não ignorar as mensagens ideológicas cristaliza­
das no nível normativo (porque o nível normativo é, sempre,
veiculador de mensagens ideológicas).

Uma das perspectivas, crítica, desde a qual posso descrever o


direito é a que parte dos critérios da luta, do jogo e do debate. Va-
lho-me, para tanto, de algumas colocações de Anatol Rapoport e
de Arthur Orlando.
Em seu Lutas, jogos e debates, Rapoport procura identificar as
diferenças essenciais entre esses três tipos de conflitos. Passo a
transcrever trechos de seu texto: “Comecemos por examinar o
sentido da palavra ‘adversário* em cada um dos três conflitos.
Aparentemente, numa luta o adversário é principalmente um es­
torvo. Não deveria existir, mas por alguma razão está ali. Precisa
ser eliminado, desaparecer, ou perder seu tamanho ou importân­
cia. O objetivo de uma luta é fazer mal, destruir, subjugar ou fazer
desaparecer o adversário. Já no jogo não é assim. No jogo, o ad­
versário é essencial. Com efeito, para quem participa do jogo com
seriedade e dedicação, o adversário forte é mais valioso do que um
oponente fraco. De certa forma, portanto, os adversários de um jo­
go cooperam. Em primeiro lugar, ■cooperam no sentido de seguir
absolutamente e sem reservas as regras do jogo. Segundo, coope­
ram ‘dando o melhor de si’; isto é, apresentando ao outro o maior
desafio possível”. “Em suma, portanto, a diferença essencial entre
uma luta e um jogo, de nosso ponto de vista, é a de que, enquanto
numa luta o objetivo (se houver) é fazer mal ao adversário, num
VI — A CRÍTICA DO DIREITO E O “DIREITO ALTERNATIVO” 159

jogo o objetivo é ser mais esperto que o adversário.” "Para resu­


mir, a diferença essencial, em nossa opinião, é a de que uma luta
pode ser idealizada como despida da racionalidade dos adversá­
rios, enquanto que um jogo, ao contrário, é idealizado como uma
luta na qual se pressupõe a completa ‘racionalidade’ dos adversá­
rios." Tomemos ò debate tal como é: os adversários dirigem seus
argumentos um para o outro. É claro que aqui não se trata de fa­
zer mal ao adversário nem de ‘ser mais esperto’ do que ele, pois
isso não aproveita ao objetivo. O objetivo é convencer o adversário,
fazê-lo ver as coisas como nós a vemos” (Rapoport 1980/14 e 15).
Observa, por outro lado, em seu Propedêutica político jurídica,
Arthur Orlando (1904/32): “Em primeiro logar a lucta econômica
pela vida differe essencialmente da lucta animal pela existencla. A
lucta economica é a lucta do homem contra o homem, ao passo
que a lucta animal se trava entre espécies differentes. Uma outra
distinção é que na lucta animal os vencidos são eliminados, ao
passo que na lucta social os vencidos não são eliminados senão
no caso de absoluta impossibilidade de serem conservados como
instrumentos de exploração. A relação de parasltismo entre vence­
dores e vencidos constitue uma das faces mais curiosas e caracte­
rísticas da história da humanidade, Como conseqüência do para-
sitismo resulta o phenomeno especial do processus social, isto é,
ser o elemento vencedor o principal interessado em conservar o
elemento vencido, porque a destruição da presa arrastaria o atro*
phiamento. senão a morte do parasita”.
Retiro à consideração das exposições de ambos os autores as
seguintes premissas: i) a luta é um tipo de conflito que conduz à ex-
terminação do adversário; ii) o jogo é um tipo de conflito que se de­
senvolve rigorosamente segundo determinadas regras, das quais
a primordial consiste em preservar o adversário, eis que, extermi­
nado esse, desaparece a possibilidade de jogar.
Não adoto, integralmente, a exposição de Rapoport, que supõe
no jogo a racionalidade de ambos os adversários. Sustento possa­
mos conceber um conflito que, para um dos adversários, é desen­
volvido segundo a racionalidade de um jogo, ao qual adere, ingê­
nua ou irracionalmente, o outro.
De outra parte, tenho para mim que o conflito que Arthur
Orlando refere como “luta econômica” consubstancia um verda­
deiro jogo. Nela — luta social — , “os vencidos não são eliminados
senão no caso de absoluta impossibilidade de serem conservados
como instrumento (objeto, direi eu) de exploração”.
' Ademais, permito-me, neste passo, retomar à exposição de
Rapoport, que, após sustentar que no jogo há uma “comunidade”
160 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

entre os adversários, afirma: “Essa suposição (a de que o adversá­


rio é a nossa imagem refletida no espelho) revela o outro sentido
no qual os adversários de um jogo ‘cooperam’, mesmo que seus
Interesses sejam opostos. Às vezes, num jogo, chega-se a uma si­
tuação em que o resultado é perfeitamente claro. Por exemplo, po­
de acontecer qüe num jogo de xadrez fique evidente que as bran­
cas poderão chegar ao xeque-mate em cinco lances, como na par­
tida que descrevemos. Nesse ponto, acaba o jogo. Ambos os joga­
dores reconhecem a situação, e não há razão para continuar a lu­
ta. Num jogo muito simples, como o ‘jogo da velha’, qualquer pes­
soa que jogue apenas algumas vezes percebe que todas as parti­
das terminarão efetivamente num empate, porque para cada lance
destinado a vencer hã uma jogada contrária, que efetivamente evi­
ta o lance inicial. Portanto, não há razão para que se jogue o ‘jogo
da velha’ e as pessoas que conhecem betruajogo não o jogam. Em
certo sentido, a concordância em não participar de uma luta (sic)
cujo resultadojá é conhecido antecipadamente é uma forma de coo­
peração" (Rapoport 1980/15).
O que pretendo ora introduzir é a assertiva de que se poderia
perfeitamente conceber um “jogo da velha” desenvolvido sobre re­
gras tais — excepcionais em relação às que determinam o seu
normal processamento — que conduzisse sempre à vitória daque­
le que dá partida ao jogo. Bastaria, para tanto, que uma das “re­
gras” vedasse ao adversário a prática da jogada contrária adequa­
da, a ser contraposta ao lance destinado a vencer.
Aí teríamos, sempre, assegurada ao jogador mais forte — o
que pratica o primeiro lance, no “jogo da velha” — a vitória.
Estou convencido de que o conflito que Arthur Orlando refere
como “luta econômica” ou “luta social” só aparenta ter as caracte­
rísticas de luta para um dos jogadores. Para o outro, tal a ingenui­
dade ou Irracionalidade do primeiro, o conflito se desenvolve como
um mero jogo, tal como o “jogo da velha” sujeito a regras bastante
peculiares, que conduzem à necessária vitória do mais forte.
O mais forte,' neste jogo, é o detentor do capital. Divísa-o o
conjunto de trabalhadores como uma luta.
Como o conflito é organizada pelo capital, contudo, desenvolve-
se como luta apenas na concepção idealística de um dos adversá­
rios. O que um grupo de adversários visualiza como luta de classes
realiza-se, na praxis, como jogo de classes, jogo que conduz inevita-,
velmente à vitória, do outro grupo, que ocupa função de parasita na
relação (de parasitismo) a que se referia Arthur Orlando.
O que aquele primeiro grupo visualiza como luta não passa de
um jogo, desenvolvido segundo regras muito especiais, que neces­
VI — A CRÍTICA DO DIREITO E O “DIREITO ALTERNATIVO” 161

sariamente conduz: i) à vitória do detentor do capital; il) à preser­


vação dos vencidos, preservação indispensável na medida em que
possibilita a continuidade do jogo e o renovar-se da relação de pa-
rasitismo: os vencidos hão de ser conservados como objeto de ex­
ploração; iii) ao renovar-se contínuo do conflito, organizado como
jogo, indispensável à preservação da relação de parasitismo.
Importante notar é que, neste conflito, um dos adversários en­
frenta o outro para perder, supondo (quando seja capaz de supor
— isto é, seja livre para avaliar o seu papel —, o que, contudo, é
excepcional) participar de um conflito do tipo luta. As regras muito
peculiares de organização e preservação do conflito, no entanto —
repita-se —, o institucionalizam como jogo.
E assim tem de ser, inevitavelmente, visto que a ruptura das
regras desse jogo, com exterminaçâo dos destinados a perder, leva­
ria à impossibilidade de jogar. Tal ocorrendo, o vencedor perderia
sua razão de existir como tal, pois não há opressor sem oprimidos.
Aí, portanto, uma das peculiaridades marcadas desse jogo: ne­
le, um Jinal de jogo é inconcebível. As regras que o ordenam, muito
peculiarmente, organizam-no como um conflito interminável, visto
que na sua continuidade é que se garante, a cada etapa do jogo, a
ocupação, pelos vencedores, da posição de parasitários a cada ato
dos vencidos.
São extremamente peculiares, como observei, as regras que
organizam esse jogo.
Tais regras consubstanciam o que na sociedade capitalista de­
nominamos de direito.
A descrição do direito assim desenrolada, que certamente hoje
causa mais escândalo ainda do que teria causado quando, há qua­
se 10 anos, a empreendi pela primeira vez, talvez agora, no quadro
do neoliberalismo e da empreitada global da destruição do Estado,
seja mais expressiva ainda da realidade social.
vn
NOTA SOBRE A IGUALDADE

' '
O direito moderno /direito form a l apresenta como uma de
suas peculiaridades a universalidade abstrata. Os seres con­
cretos que dão sustentação a suas funções estão distribuí­
dos em duas categorias uniformes: as pessoas e as coisas. Se,
de uma parte, no capitalismo tardio já se desuniformizam as
coisas (bens de produção, bens de consumo), a uniformidade
(universalidade abstrata) das pessoas — sujeitos de direito —
é mantida, na instância do direito, como pressuposto neces­
sário do modo de produção capitalista.
A igualdade (perante a lei) e a universalidade das form as
jurídicas, arrematadas na sujeição de todos ao domínio da lei
(legalidade), é fundamental ã estruturação desse modo de
produção. Quanto à igualdade entre os homens — e ã sua li­
berdade — , é uma conseqüência da necessidade de os traba­
lhadores obterem seu sustento mediante o intercâmbio entre
o preço de sua força de trabalho e ò conjunto dos bens social­
mente produzidos; a igualdade, assim, presta-se a permitir o
acesso dos trabalhadores ao fundo social de bens produzidos
“livremente”, em-“condições de igualdade”, através do inter­
câmbio de sua força de trabalho.
A igualdade, desde a sua entronização no momento libe­
ral, alcançava çoncreção exclusivamente no nível formal.
Cuidava-se de uma igualdade ã moda do porco de Orwell
(1951/114), no bojo da qual havia — como há — os “iguais” e
os “mais iguais" (“Ali animais are equal/But some animais
VII — NOTA SOBRE A IGUALDADE 163

are more/Equal than others"). Permanece plena de validade


a alusão de Aristóteles [1982/231} às palavras que Antíste-
nes atribui aos leões, quando as lebres se dirigiram à assem­
bléia dos animais, reclamando a igualdade para todos: “Onde
estão suas garras e seus dentes?”. O próprio enunciado do
princípio — “todos são iguais perante a lei — nos dá conta de
sua inconsistência, visto que a lei é uma abstração, ao passo
que as relações sociais são reais. Daí a tão brusca quanto
verdadeira assertiva de Adam Smith (1952/311): do “gover­
no”, o verdadeiro fim é defender os ricos contra os pobres.
São extremamente significativas as observações já cita­
das de von Ihering (1884/228-230), em trecho no qual, tratan­
do da igualdade das pessoas no comércio jurídico, o quanto
põe de ironia pode ser devassado —- trecho que transcrevo
em tradução (1956/193-193): “O comércio jurídico abstrai
das pessoas: não se preocupa com o ricaço, nem com o prole­
tário; com o homem célebre, nem com o obscuro ignorante:
com o nacional ou com o estrangeiro. Só conhece o dinheiro.
Esta indiferença pela personalidade — conseqüência eviden­
te do egoísmo, que apenas vê o ganho — é, no que toca à so­
ciedade, de um valor realmente incalculável, porquanto ga­
rante a todo o homem, quem quer que ele seja, contanto que
saiba pagar, a certeza de poder satisfazer as necessidades da
sua existência e a possibilidade de colocar esta ao nível da ci­
vilização da sua época. Esta situação social do homem é
inexpugnável. O Estado pode tirar-lhe a honra, privá-lo da li­
berdade; a Igreja, as associacões, podem expulsá-lo: o co­
mércio jurídico nunca o repele. Aquele que é impróprio para
tudo, e de cujo contacto todos fogem, sempre merece que se
façam com ele negócios. O dinheiro é uma recomendação que
a sociedade nunca deixa de considerar. A indiferença do co­
mércio jurídico pelo que toca à personalidade, eqüivale à
igualdade absoluta de todos no comércio jurídico. Em parte
alguma o princípio da igualdade se acha mais completamen­
te realizado na prática. O dinheiro é o verdadeiro apóstolo da
igualdade. Os preconceitos sociais, todas as antíteses so­
ciais, políticas, religiosas, nacionais, são impotentes contra
ele. É um bem? É um mal? Tudo depende do ponto de vista
eín que nos colocarmos. Se considerarmos o porquê do fato,
não poderemos aplaudi-lo: dita-o o egoísmo, e o sentimento
164 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de humanidade é-lhe estranho. Se porém atendermos aos


seus efeitos, eu não posso deixar de repetir que o egoísmo,
servindo-se a si próprio, favorece a família humana; preocu­
pado somente consigo próprio e com o seu interesse, realiza
no seu domínio, sem o saber e sem o querer, um princípio a
que ele resiste em qualquer outra parte — o da igualdade das
pessoas”.

A respeito da igualdade jã no antigo processo civil romano,


ouça-se mais uma vez von Iherlng (1933/190-192): “En lugar de
hablar yo, dejo que tómeià. palabra un antlguo romano, dei siglo
IV de la ciudad, un hombrt pobre y de la plebe. Sólo me cuesta
unas cuantas chupadas a ml cigarro: ya está. La escena se de-
sarrolla en el Forum, ante el Pretor. Ante él comparece nuestro
hombre como demandante, y le acompana un rico patrício, a
quien ha citado in ius. Mientras el demandante se encontraba en
operaciones, como soldado, murió su padre, y el vecino, actual
demandado, aprovechó la ocasión para posesionarse de todo lo
que encontro. Como se nlega a la devolución vienen al pleito. El
demandante ha presentado su caso al Pretor y entre ellos se
desarrolla el siguiente diálogo, dei que acotaremos entre comillas
la parte dei Pretor, concediendo este honor a su categoria: — ‘A
cuanto se eleva el valor de tus prédios, a mil ases o a menos?' —
Lo menos, a mil quinientos. — ‘Pues necesitas antes de que po-
dramos formalizar ei pleito depositar en manòs de los Pontífices
quinientos ases. Vete, pues, entrega es a cantidad, recoge el recibo y
cuando me lo presentes admttiré Ia demanda.’ — Me es imposible
proporcionarme esa cantidad. De dónde he de sacar yo quinientos
ases, cuando soy un pobre hombre, a quien el demandado despojo
de toda su hacienda? — ‘Eso es asunto de tu incumbência; sln pre­
via prestación dei sacramentum, yo nò puedo admitir la demanda.’
— Pero si mi asunto es lo más claro dei mundo! Los testigos que
he traído conmigo están dispuestos a confirmar, con juramento,
cada palabra que yo pronuncié; no soy yo sino el demandado
quien perderá el pleito y éste en definitiva será el que haya de pa­
gar el sacramentum. — ‘Eso dice todo el mundo. Por mi parte no
puedo ayudarte: tengó atadas las manos; dlrigete a los Padres y
acaso te dispensen el depósito.’ Con esto concluye la primeira
escena. La segunda tiene lugar en el Pons sublicius, ante el
miembro dei Colégio Pontiflcial, que en aquel ano está encargado
de los asuntos jurídicos; su asunto es la prestación dei sacra­
mentam. El demandante suplica que se le dispense dei depósito.
VII — NOTA SOBRE A IGUALDADE 165

porque no está en situación de procurarse ese dlnero al contado.


— ‘El que tú seas pobre o rico, no constituye motivo para esta-
blecer diferencias; ante nosotros no hay acepción de personas: la
ley os iguala a todos.* — Hermosa igualdad! Lo que para un rico
constituye una pequenez, para un pobre forma un obstáculo insu-
perable; es Ia igualdad que equipa a un nino débil y a un hombre
robusto para los efectos de transportar igual peso. Eso dei
sacramentum de los quinientos ases lo han inventado los ricos
para que a nosotros, pobres diablos, nos resulte inaccesible un
pleito. — 'Guárdate de censurar las leyes de Roma, porque te
podría ir peor. Yo sólo estoy autorizado para aplicar las leyes, no
para hacerlas.’ — Concédeme ese crédito de quinientos ases; tú
lo puedes hacer sin peligro, porque mi pleito no puede perderse.
— ‘Los dioses no abren créditos; solo tratan com pagos al conta­
do, y yo no puedo estropear sus derechos, porque los libros sagra­
dos me lo prohiben. Pero solicita el préstamo de otio.’ — Y quién
me prestará? Si yo tuviese mi herencia, la cosa resultaria fácil,
pero precisamente eso es lo que me han quitado. — 'Es cierto,
pero como no puedo ayudarte, vate.’ Con tales palabras, nuestro
hombre se marcha; el humanitario Pontífice se dirige, sln embar­
go, por la tarde a casa dei demandado, que es su primo y le cuenta
lo ocurrido: — “Tu adversario no ha conseguido reunir el sacra­
mentum-, te felicito, porque su finca es tan buena como la tuya.
Ahora que esto lo debes exclusivamente a nosotros y a nuestra
sabia instrucciõn dei sacramentum. Ya puedes dedicar, por tan­
to, a la Iglesia uno de tus bueyes más lúcidos.’ — Y no me deten-
dré en eso, sino que probaré mi agradecimiento más amplia-
mente; cuenta entre otras cosas con el buey. Con esto termina la
pieza. El pobre no consigue reunir el dinero y el rico se queda en
el campo. Es la fábula de Natán, dei hombre rico y de Ia ovejilla
dei pobre y habrá sucedido no una, sino mil veces en Roma". E
adiante (1933/200-201): “Como el vindex,' caso de vencimiento
en juicio, se comprometia personalmente, se hacía garantizar,
como es natural, por sus clientes. Tratándose de un rico, basta-
ba la simple promesa; entre los patricios pobres, proporcionaban
el vindex los parientes o en último caso la gens. Pero qué hacía
el pobre plebeyo? Llamaba a ésta y a la otra puerta, se enco-
mendaba a gentes peritas en derecho, pero en todas partes oía la
misma respuesta: ‘Sin un deposito previo, no puedo encargarme
de tu pleito, pues sl salgo derrotado seré yo mismo el que haya
de pagar el importe de la deuda, puesto qúe hé impugnado la de­
manda dei acreedor: proporciónate ese dinero.’ — Pero mi asunto
es claro y sin ninguna sombra de duda tú no corres el más pe­
queno riesgo. — ‘Eso lo dice cualquiera. Es posible que en efecto
166 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tu asunto sea un buen asunto pero quién puede predecir el re­


sultado final? Ante los jueces nada hay imposible: tenemos
ejemplos.’ — Te daré fladores. — ‘Con eso nada más, no puedo en­
trar en el asunto. Es que, además dei servicio que te presto, voy
a tener que preocuparme luego en reclamar el dinero mio que
pago por tl? Comprenderãs que esto no es para animarse. Pero si
tú tlenes amigos que son capaces de salir fladores por tl. por qué
no aprontan desde luego el dinero?’ — Es que ellos mismos no lo
tienen. — ‘Precisarnente por eso es por lo que no los puedo re-
cibir como fiadores.’ E1 resultado es así exactamente el mismo
que antes indicábamos en el proceso sacramental, cuanto los po­
bres no podían llegar a reunir los quinientos ases: sin dinero
contante no había pleito. El fundamento capital dei proceso en
las acciones de la ley: nu.Ua. actio sinè lege, encuentra su anejo
en este otro adagio: nulla actio síne aere". Por fim (1933/233): “Si
hé logrado lo que deseaba, deberá acompanar a ustedes en el ca-
mino hacia su casa el cuadro dei hornbre pobre, que tlene que
luchar por su derecho contra el rico, con armas desiguales”.

Argumentar-se-á, de toda sorte, diante do enunciado do


art. 5a da Constituição de 1988 (“Art. 5a. Todos são iguais pe­
rante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a in­
violabilidade do direito à vida, à liberdade, à. igualdade, à segu­
rança e à propriedade, nos seguintes termos” — grifos meus),
com a observação de que, neste enunciado, bem distinto dos
que nas nossas Constituições antecedentes o instituciona­
lizaram, hã consagração do princípio da igualdade não apenas
em termos formais, mas também em termos materiais. Vale di­
zer: o que a nova Constituição postula, expressamente, é o en­
tendimento segundo o qual a tão-só igualdade perante a lei
poueo ou nada significaria (Kelsen 1963/66 e ss.).

A propósito, a observação de José Souto Maior Borges (In pa­


recer inédito sobre a isenção do IOF nas operações de importa­
ção): “Estranha vocação constitucional, a da igualdade. Sobre ser
uma norma definidora de um direito (norma que tem aplicabili­
dade imediata) e um princípio (mais eminente até que os outros
princípios do art. 5a), é ela ainda um instrumento constitucional
de preservação de sl própria. É dizer: constitucionalmente a igual­
dade garante a igualdade material e a igualdade material garante
a igualdade formal. Se todos são iguais na aplicação da lei, no
VII — NOTA SOBRE A IGUALDADE 167

sentido de que a lei indiscriminadamente a todos se aplica, mas o


seu conteúdo não abriga a isonomia, há violação da igualdade ma­
terial. Se reversamente lei isonômlca a todos não se aplica, nem
todos são iguais perante a lei: iguais serão apenas os beneficiários
pela aplicação, ficando de fora da isonomia os que não o forem.
Nessa última hipótese, há violação da igualdade formal. Por isso
diz-se que a igualdade garante a Igualdade. Essas normas somen­
te podem ser interpretadas uma em conexão com a outra. Se essa
conexidade for desconsiderada, abre-se oportunidade à aplicação
da igualdade apenas formal (igualdade perante a lei), com prejuízo
da igualdade material (igualdade na lei). Toma-se manifesto por
essa via que a CF, no seu art. 5Q, estrutura a isonomia de modo
refinadamente complexo. Primeiro como um direito à reta aplicação
da lei (princípio formal). Segundo, como um princípio cujo conteúdo
(não a mera forma de sua aplicação portanto) é inegavelmente am­
plo e até inexceptuável, pela vedação de distinções de qualquer
natureza (princípio material e pessoal). Terceiro, porque ela regula
também os meios assecuratórios desse direito (a lei e outros atos
normativos, como as sentenças judiciais)".

No mais, devo ainda observar que a universalidade do di­


reito reflete, embora de modo distorcido, a universalidade da
troca m ercantil característica do modo de produção capitalis­
ta. A igualdade de todos (perante a lei), de outra parte, oculta
a superposição, na base econômica, das relações entre pes­
soas e das relações entre pessoa e coisa. A relação entre o
proprietário dos meios de produção e o trabalhador assala­
riado é, juridicamente, um contrato. Nesse contrato — con­
trato de trabalho — , porém, temos não mais do que a ins­
trumentalização de uma troca, no bojo da qual a força de tra­
balho é “coisiíicada”, como mercadoria. Por certo que não
pode haver relações entre pessoas e coisas, mas apenas en­
tre pessoas. É sob o sentido acima apontado, pois, que faço
alusão a “relação entre pessoa e coisa", o que, de resto, não
repugna ao pensamento romano, para o qual o mundo seria
uno e não haveria diferença de natureza entre os entes.
vm
CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE

1. Ainda que a legalidade, na dinâmica do Estado de Di­


reito, preencha, enquanto noção formal, todos os espaços no
âmbito dos quais estaria em pauta o debate a respeito da legi­
timidade do direito (noção material) — problema que, nestas
condições, é ignorado ou equivocadamente atrelado à ques­
tão do direito natural, ou meramente considerado desde pers­
pectiva formal — , embora o direito cumpra também, no modo
de produção capitalista, a função de legitimação da classe do­
minante, ainda assim é marcante, sobretudo nessas socieda­
des, a importância do domínio da le t
A imposição de restrições efetivas ao poder, que o princí­
pio da legalidade enseja, permitindo ao indivíduo defender-
se do arbítrio do Estado — embora essa mesma legalidade,
meramente formal, preste-se a circundar a propriedade por
um cinturão de ferro, preservando-a da ação dos não-pro -
prietãrios — , é um bem humano incondicional (a expressão é
de E. P. Thompson 1987/357). Embora o direito opere a me­
diação das relações de classe, tal qual são travadas no bojo
de cada sociedade, é certo e fora de dúvida que prospera no
sentido de prover os destituídos .de poderes de defesas que
inexistiriam em um quadro no qual o poder fosse exercitado
sem as peias da lei.

Repito o quanto enfatizei ao tratar do direito alternativo: a lega­


lidade é também a possibilidade — pelo menos a possibilidade —,
diz Oliveira (1992/198), “da efetivação dos direitos e garantias in­
VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE

dividuais: não ser arbitrariamente preso nem condenado, não ser


torturado, não ter a casa invadida a qualquer hora da noite etc.”;
daí a observação, de Antoine Jeammaud (1984/90), de que “a do­
minação através do direito apresenta uma especificidade que, pen­
sando bem, faz dela um modo de dominação preferível a qualquer
outro” — que eu complementaria afirmando que o nosso drama es­
tá em que a legalidade e o procedimento legal resultam. Inúmeras
vezes, perversos e violentos, funcionando como as nossas derra­
deiras defesas, contudo, contra a perversidade e a violência.

As alternativas diante das quais nos colocamos não per­


mitem senão uma opção: a que privilegia o Estado de Direito,
em oposição ao privilégio do Estado autoritário.
Observe-se que a aceitação, pelos juristas alinhados no
movimento da crítica jurídica francesa, das “relativas vanta­
gens” do Estado de Direito é devida, como observa ainda A n ­
toine Jeammaud (1986/68), em grande parte aos contatos
estabelecidos com juristas de países por muito tempo sub­
metidos a sistemas autoritários; hoje, anota esse autor, nin­
guém duvida de que é necessário tomar partido, apesar de
todos os seus limites e da dominação que autoriza ou legiti­
ma, a favor do Estado de Direito contra o Estado autoritário.
O Estado autoritário, no entanto, inúmeras vezes se ma­
nifesta travestido de “Estado de Direito”. Sob a aparência de
sujeição ao “domínio da lei” atua um Estado que lança mão
da legalidade como instrumento de opressão e opróbio. Essa
opção, no entanto, não há de ser consumada de sorte a ocul­
tar a crítica da legalidade e do domínio da lei.

2. Em primeiro lugar, é necessário considerar que a aspi­


ração pelo Estado de Direito é nutrida pelas elites. A lei, para
a grande maioria da população, nas sociedades latino-ameri­
canas, é um dado de pura abstração, inteiramente disso­
ciado da realidade na qual imersa essa maioria. Em nada, ab­
solutamente em nada, contribui a legalidade, enquanto ape­
nas expressão formal do Estado de Direito, para alterar as
condições sociais de existência dos economicamente despri-
vilegiados, no modo de produção capitalista.
Por outro lado, a dogmática do direito público, que o cin­
de em direito constitucional e direito administrativo, constrói
170 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

uma noção, para este último, em tom o da legalidade, que é,


no mínimo, paradoxal. O direito administrativo, ao mesmo
tempo em que é concebido como provedor da defesa do indi­
víduo contra o Estado, apresenta como princípio fundamen­
tal o da supremacia do interesse público; e isso ocorre sem
que, em regra, seja questionada a dissociação entre interesse
público — interesse cujo titular é o Estado — e interesse social
— cujo titular é a sociedade.
Está por ser feita entre nós, aliás, a crítica do direito ad­
ministrativo, que, não obstante a sua razão de ser — a defesa
do indivíduo contra o Estado — , fermentada no seio do pen­
samento liberal, contraditoriamente veicula um droit de privi-
lège (Chevalier 1988/57-70). Tanto mais complexas as con­
tradições desse direito administrativo, ademais, quando se
observa que, a serviço do interesse público, instrumenta a
atuação de um Estado que, no campo da economia, privatiza
tudo quanto toca (Galgano 1979/43).
São inúmeras as vertentes desde as quais se há de pro­
duzir aquela crítica. Aí, apenas para exemplificar, a necessi­
dade de reelaboração das categorias e técnicas do direito
administrativo, já não mais estruturado exclusivamente so­
bre a tensão autoridade/liberdade, mas também sobre aquela
que se põe entre proteção/organização. O. direito administra­
tivo/liberdade é substituído pelo direito administrativo/orga­
nização; as alterações funcionais pelas quais passa o Esta­
do capitalista reclamam alterações estruturais no seu direi­
to. Na medida em que a Administração passa a ter atribui­
ções próprias, visando à realização dos fins do Estado — e
isso tende a se tornar ainda mais necessário diante da ten­
dência à instituição de um E stqdo mínimo — , autonomiza-
se, tocada pelo princípio da sua autoconservação (Parejo Al-
fonso 1983/106-107).
De outra parte, o capitalismo neoliberal está por cons­
truir o seu direito ádministrativo. Em verdade, a privatização
dos serviços públicosInstala um autêntico caos em suas teo-
rizações, abalando a própria noção de serviço público, que lhe
tem servido de sustentáculo. Observe-se, a propósito, o com­
portamento que adotará diante disso o Conseil d ’État fran­
cês...
VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 171

3. A questão do interesse público, contudo» permanece,


sem dúvida, sendo a grande questão do direito administrati­
vo, ainda que os administrativistas, em regra, não a discu­
tam. O Estado é descrito como deue-ser, e jamais como é.
Issò, entre inúmeras outras distorções, conduz à rádica-
lização do princípio da presunçã.o da legitimidade dos atos ad­
ministrativos, em razão do qual se presume, salvo prova em
contrário, que a Administração atua sempre em nome do in­
teresse coletivo. “E essa prova em contrário, frise-se — ob­
servam Luciano Oliveira e Affonso Cézar Pereira (1988/144)
— , refere-se apenas aos casos em que pode haver desvio de
finalidade no sentido já caracterizado, ou seja: o ato sendo
apenas uma farsa a esconder o escuso interesse particular
travestido em interesse público. Quando não há isso, não há
desvio. Na prática, isso eqüivale a dizer que, salvo as hipóte­
ses em que o administrador é imoral ou corrupto, o Estado
age sempre no sentido do interesse público”. Os mesmos au­
tores, mais adiante (1988/146-147), averbam: “(...) é impos­
sível fazer uma ciência positiva do direito administrativo sem
que se discuta, por exemplo, os conceitos de interesse públi­
co, bem comum, interesse coletivo etc. Ou sem que se ques­
tione o desempenho do Estado na utilização desses concei­
tos. Mas é esse questionamento que os administrativistas se
desobrigam de fazer. Ao contrário, de ura modo geral a dou­
trina avaliza a versão de que o Estado age sempre no sentido
do interesse público. Mas isso é aceitar — talvez com dema­
siada boa-fé — aquilo que o próprio Estado diz sobre si mes­
mo. É, numa palavra, transformar a doutrina jurídica numa
‘ventriloquia de todo poder estabelecido”'.

4. A distinção entre interesse público e interesse social se


impõe. O modo de produção capitalista supõe a separação
do Estado e da sociedade, no que é reforçada a dicotomia d i­
reito público/direito privado. Daí por que se afirma que toda
atuação estatal é expressiva de um ato de intervenção na
ordem social. Também aí a separação entre Estado e econo­
mia, o que confere sentido às afirmações de que ele “inter­
vém” e cumpre papel de “regulação” da economia (Poulan-
tzas 1977/33).
172 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Uma sociedade, qual a sociedade burguesa, fundada na


autonomia da pessoa havia de ser hostil aos privilégios e se
caracterizar pela igualdade de todos perante a lei (cf. Lorenz
von Stein, apud Forsthoff 1973a/45). A autonomia da pes­
soa, que caracteriza a sociedade capitalista, importa a sepa­
ração entre os homens. A concepção antropológica liberal,
que dá origem à afirmação dos direitos individuais, só vê o ho­
mem na sua individualidade e personalidade. O indivíduo,
assim, é concebido como apartado da sociedade e dos outros
indivíduos. É ao homem inimigo do homem, o homem que
está a competir com o outro, que se dirige o art. 4Üda Decla­
ração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “A liber­
dade consiste em fazer tudo aquilò que não prejudique ou­
trem (...)”. E a segurança do homem, afirmava a Constituição
francesa de 1793, no seu art. 8Q, “consiste na proteção conce­
dida pela sociedade a cada um dos seus membros para a con­
servação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua proprieda­
de" (grifei). Cuida-se de homens que se movem pelo egoísmo,
independentes, apolíticos. A idéia de associação entre eles,
como ponto de irradiação dos seus direitos, é estranha a essa
concepção.

5. O princípio da legalidade consubstancia, em sua ori­


gem, um dado fundamental para a construção da noção de
Estado de Direito (= noção meramente formal).
O conceito de Estado de Direito exprime, em relação ao bur­
guês singular, aquela mesma exigência — de um limite à ação pú­
blica, para salvaguarda à iniciativa privada — que o conceito de
Estado liberal exprime em relação ã burguesia no seu todo (Gal-
gano 1979/39).
Opera-se, então, um processo de causação circular entre am­
bos (Estado de Direito e legalidade), de modo que a legalidade, na
acepção liberal, pássa a cumprir a função de garantia dos parti­
culares contra a atuação estatal (= defesa dos indivíduos contra o
Poder Público).

A legalidade consubstancia extensão da teoria da sobera­


nia popular e da representação parlamentar. A Constituição
contém a ação do Estado e a burguesia encontra, no quadro
da separação dos poderes, condições adequadas à defesa de
VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 173

seus interesses econômicos; qualquer “atentado” ã liberdade


econômica e à propriedade somente poderia ser consumado
com o consenso dos representantes da burguesia, isto é,
através de uma lei. A legalidade assume desde logo sua dupla
face, com o suprem aciac reservada, lei.
O princípio da legalidade é desde então visualizado em
termos estritamente formais, como corolário da separação
dos poderes, importando exclusivamente a oposição de um
limite à atuação do Estado. Daí por que ainda hoje, na fa­
laciosa crença de que a teoria da separação dos poderes de­
veu-se, no seu lento processar, exclusivamente à necessida­
de de preservar as liberdades, à legalidade atribui-se o desem­
penho de duplo papel; o de instrumento ancilar dessa preser­
vação e o de substituto da legitimidade.

Desnuda-se, destarte, o sentido eminentemente liberal do prin­


cípio, até nossos dias preservado, na medida em que a doutrina
reitera ser ele dotado do sentido de impedir que o Executivo possa
estabelecer, por ato seu, restrições à liberdade e à propriedade dos
indivíduos e que a razão mesma do Estado de Direito é a defesa do in­
divíduo contra o Poder Público; e que a fórmula, por excelência, as-
seguradora desse desiderato descansa na tripartição do exercício do
poder. Ignora-se inteiramente que o Estado modemo não é apenas
titular de jus imperii, mas também agente do fornecimento de pres­
tações aos particulares.

Disso resultam algumas conseqüências que me parece


estejam a reclamar análise bem detida.
A primeira, a institucionalização — com a consagração do
princípio da legalidade — da cisão entre o Estado modemo e
a sociedade civil, que a noção de liberdade pública, tida só
como noção formal, evidencia.
A segunda, o necessário — para que a consistência do
princípio possa ser mantida — escamoteamento da evidência
de que as liberdades modernas são liberdades jurídicas, ou
seja, definidas pelo direito, laicizadas.
Daí uma conclusão que me parece bem nítida; a da insu­
ficiência da concepção da legalidade em termos estritamente
formais para prover a garantia das liberdades.
174 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

6 . Concebida a legalidade como a imposição de um limite


à atuação estatal, originariamente implicava que todo ele­
mento de um ato da Administração deveria estar expressa­
mente previsto como elemento de alguma hipótese norma­
tivas devendo a norma fixar poderes, direitos, deveres etc.,
modos e seqüência dos procedimentos, atos e efeitos em ca­
da um dos seus componentes e requisitos de cada ato — do
que resultava a concepção do Poder Executivo como adminis­
tração e da Administração como execução (adoto, aqui e a se­
guir, a exposição de Giaimini 1970/81-83).
Na experiência contemporânea, todavia, o princípio assu­
me significado diverso, na expressão de Giannini “mais limi-
tado num certo aspecto, porém mais afinado em outro: atém-
se à atividade administrativa enquanto esta se exprime em
atos que possuem conteúdo autoritário".
Daí por que mudou o valor do princípio, que deixa de ser
— se é que não foi apenas teoricamente — regra de conteúdo
da atividade administrativa para sobreviver como regra do
seu limite, inserida na dialética da autoridade e da liberdade.
Por isso o princípio respeita aos procedimentos adminis­
trativos não já em si, mas tão-somente enquanto a eles seja
correlata uma situação subjetiva do particular, sobre a qual
tenha incidência um efeito de extinção ou limitação. Por isso,
ainda, é que, nos casos em que a atividade administrativa
não expressa aquela dialética, o princípio não é aplicado —
tal como no caso da atividade de programação do Estado e de
outros entes públicos, que não se exprimem em atos autori­
tários (Ferraz Júnior 1982/27).
Conseqüência disso é a de que 1— repita-se — o princípio,
atualmente, é concebido apenas cpmo regra de limite para a
ação da Administração, não operando, como observa Galga-
no (1979/39), qualquer garantia d e jin s públicos, já que visa
tão-somente à proteção do interesse privado.

Inescondíveis nesta concepção, repito, as marcas profundas


do pensamento liberal, que Ideologicamente a estruturam.

Na consagração da legalidade como critério meramente


formal, pois, a ereção de pilastra hábil a dar justificativa ao
VIU — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 175

direito posto, independentemente de qualquer valoração a


propósito do seu conteúdo. Já não compete ao estudioso do
direito, desde então, a avaliação da justiça do poder — tal
como exercido sob o manto da legalidade — ou da. norma. In­
cumbe-lhe, pelo contrário, colocar seu sabèr a serviço do ob­
jetivo de reduzir a quanto mais se possa a ação estatal e, na
impossibilidade disso, ao sabor de valores bem definidos.
A política da legalidade, desta sorte, conduz à neutralida­
de axiológica do direito e à anulação do direito de resistência
contra o direito ilegítimo. O que importa, desde a perspectiva
instalada na consagração do princípio, tal como ainda atual­
mente concebido, é que as normas jurídicas sejam rigorosa­
mente cumpridas. Importam os meios, à custa dos fins. Por
conseqüência, a legalidade assume o caráter de dogma.
Em um passo seguinte, a legalidade — tal como a noção
de Estado de Direito — passa a funcionar como estereótipo e,
de imediato, como mito do liberalismo burguês.

7. Alcançado este momento de minha exposição, posso —


e devo — nela prosseguir por uma senda específica, na consi­
deração da legalidade como mito, forma específica de manifes­
tação do ideológico no plano do discurso (Warat 1979/127).
Podemos aludir à ideologia como estrutura que se refere
ao modo pelo qual os homens vivem o todo de suas relações
com o mundo.1 Para que essas relações se traduzam em
ações — no sentido, aí, da palavra grega dianóia — , devem ser
mediatizadas pela linguagem.
A ideologia, mediatizada pela linguagem, é uma fonte de
produção de sentido. Não, porém, na acepção comum de sen­
tido, mas como valor de referência.
A ideologia não produz significados que valham por si mes­
mos, mas valores-verdades que se auto-referenciam, ou seja,
valores referenciais que são verdadeiros ou falsos conforme

1. Foram de extrema valia para a exposição que se segue a freqüente tro­


ca de idéias e o debate informal que tive a oportunidade de manter com Paulo
Amélio do Nascimento Silva, que foi professor de Lingüística na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, bem assim a leitura de sua tese de llvre-docência.
Referência e significação, ed. mimeografada. Rio, 2976. Devo ao bom amigo as
primeiras lições — e as mais profundas — de sua disciplina.
176 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

sua relação com as pautas ideológicas que compõem a sua


instância de enunciação, seja como conformidade, seja como
contraste. O valor do verdadeiro ou falso, assim, no âmbito da
ideologia, é arbitrário, formal — não ontolõgico, conteudís-
üco. Por issó mesmo" a ideologia é referencial ou monossig
nificativa, desconhecendo no real, por não reconhecer, tudo
quanto seja com ela incompatível.

8. A legalidade é uma das ideologias da modernidade,


consubstanciando um fim em si mesma, o da preservação do
status quo (o capitalismo necessita de um mínimo de pre­
visibilidade para que possa prosperar). Além disso, fundando
a idéia de coerência da ordem jurídica, é inerente à lógica in­
terna do sistema jurídico.
A concreção do princípio se dá na produção de leis em
sentido form a l (não, necessariamente, em sentido material).
Importa apenas a manifestação do Poder Legislativo, qual­
quer que seja ela, desde que adequada à Constituição, tam­
bém manifestação do Poder Legislativo (se bem que qualifica­
do por um outro nome, “Poder Constituinte”). Não importa o
conteúdo das leis, se adequado à Constituição; se assim for,
qualquer conteúdo cabe nelas. E nem mesmo a matéria das
leis é predeterminada: o Poder Legislativo pode atribuir a
elas a matéria que bem entender, inclusive editando leis que
não são leis em sentido material (as leis-medida) .
Por isso sustentamos que o princípio da legalidade se re­
produz apenas como form a, em procedimentos.

9. O discurso ideológico e o discurso mítico se aproxi­


mam na medida em que ambos instauram um horizonte ob­
jetivo para os comportamentos e atitudes do homem, embora
o primeiro se insira e viva da História e o segundo se desen­
volva em uma realidade não-histprica, atemporal e sem espa­
ço. O mito aparenta ser uma revelação do que foi e permane­
ce sendo.
Não obstante, o mito funciona como recurso lingüístico
no discurso ideológico de quem tem condições de, através
dele, exercer dominação.
VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 177

10. Os mitos são descritos como formas de fé popular que


não nasceram da reflexão racional do povo, mas de senti­
mentos pré-racionais, emotivos.
Desvendados, porém, desnuda-se a racionalidade deles
em quem os inventa, o que evidencia não serem senão uma
manifestação cultural. O mito, em verdade, não passa de
uma invenção, consciente ou inconsciente, do homem ou de
um grupo de homens, cuja finalidade é a de instauração de
uma (nova) ordem. O vocábulo “mito” significa, ettmologica-
mente, “palavra”; palavra cuja finalidade é a instauração de
uma nova ordem.
Penso possamos sustentar, assim, que o momento da “des-
mitiflcação da cultura”, no iluminismo racionalista sustenta­
do sobre a afirmação da obscuridade dos mitos, característi­
ca — conforme se alegou — das Idades. Antiga e Média, não
consubstanciou senão um momento de substituição de mitos.
Mitos irracionais ou inconscientes são, então, substituídos
por outros, mitos também, porém definidamente conscientes
e racionais nos que os inventam.
Invenção do homem (ou de um grupo de homens), os mitos
modernos — não o mito para o homem, como o mito drum-
mondiano de “fulana” (“fulana sequer me vê”), mas o mito para
o povo ou para a sociedade civü — são como expressões exo-
téricas, a serem “consumidas” pela sociedade. São impostos
à sociedade, assim, funcionando como instrumentos lingüís­
ticos de dominação que tanto mais prosperam quanto mais
são acreditados (v. Warat 1979/127). Os mitos modernos são
idéias dominantes porque inventados pela classe dominante,
que os põe como leis eternas (Marx 1986/72).

11. Tanto quanto o discurso ideológico, o discurso mítico


é exclusivamente referencial.
A proposição “Pégaso é um cavalo alado”, em si mesma,
não é logicamente falsa nem verdadeira. Vale dizer: não tem
significado, mas valor de referência verdadeiro quando na
instância de enunciação da mitologia, fa ls o quando em qual­
quer outra instância de enunciação.
Assim, assumindo, a legalidade, o caráter de mito, a pro­
posição “a democracia só conhece a legalidade, não a legiti­
178 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

midade” (D’Ors 1981/43), na instância de enunciação jurídi­


ca, não é, em si mesma, verdadeira nem falsa. Não tem signi­
ficado, mas tão-só valor de referência: é tomada como verda­
deira naquela instância.
Eis, então, a legalidade erigida em mito do liberalismo bur­
guês, sob o qual repousa a afirmação, extraída à falaciosa lei­
tura de Max Weber (1969),2 de que ela (legalidade), enquanto
legitimidade racional, foi e permanece sendo. A legalidade,
destarte, enquanto m ção que substituiu — execrando-a — a
de legitimidade, opera a exclusão do âmbito dos debates jurídi­
cos de qualquer consideração a respeito desta última.
A legalidade é mito — cujo rito é o procedimento legal — e,
assim, retém o estudioso do direito em um universo de dever-
ser axiologicamente neutralizado. No discurso jurídico, esva­
zia o real e pacifica a consciência dos juristas, inclusive dos
juizes, fazendo com que todos se conformem com a situação
que lhes foi imposta por quem detém o poder de pôr o direito
(Warat 1979/129). Ao final, a legalidade presLa-se a explicar
direito, cumprindo um dos papéis do mito, o de explicar o
que não se pode (ou não se quer) compreender — o que me
leva a crer que a maioria dos que se julgam juristas não com­
preende o direito...

12. A desmitificação da legalidade envolve, também, a


desmitiflcação da noção de Estado de Direito.
Este não pode ser visto como um sistema fechado e fixo,
com valor em si próprio, mas como conceito temporalmente
condicionado, aberto (Canotilho 1981/14). Hã que substituir

2. Weber (1969), em realidade, embora superponha as idéias de legiti­


midade racional e de legitimidade [p. 30), em trecho posterior de sua obra
(p. 640) afirma: “Direito natural é o conjunto de normas vigentes preemi-
nentemente frente ao direito positivo e independentemente dele que não de­
vem sua dignidade a um estabelecimento arbitrário, mas, pelo contrário, le­
gitimam a força obrigatória deste. Isto é, o conjunto de normas que valem
não em virtude de provir de um legislador legítimo, mas em virtude de qua­
lidades puramente imanentes: forma específica e única conseqüente da
legitimidade que fica quando decaem a revelação religiosa e a santidade he­
reditária da tradição. O direito natural é, por isso, a forma específica da le­
gitimidade do ordenamento jurídico revóluckmariamente criado" (grifo no ori­
ginal). Nisso, evidentemente, a alusão de Weber a uma legitimidade que não
se identifica, estando acima dela, com a legalidade.
1

VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 179

a noçãó de Estado de Direito formal pela de Estado de Direito


material, sustentada sobre a concreção do princípio demo­
crático e de uma ordem jurídica legítima. Por isso, a noção de
Estado de Direito não deve consubstanciar um fim em si
mesmo, mas o melo virtual para a realização da democracia e
a construção de uma ordem jurídica legítima.

Sthal (apucL Canotilho 1981/21-22} afirmava que o direito não


significava o fim ou o conteúdo do Estado, mas apenas a espécie e
a caracterização do mesmo; logo, apenas a forma do exercício do
poder deve ser determinada pelo direito (não o fim ou o conteúdo}.

Neste contexto, do Estado de Direito material, é que se


pode — e deve — operar a desmitificação do princípio da le­
galidade.
Sua relevância é, por certo, inquestionável, mesmo en­
quanto garantidor da form a jurídica, inimiga declarada da ar­
bitrariedade e irmã gêmea da liberdade, na inesquecível dic­
ção de von Ihering (1943/115). É imperioso, contudo, que não
se faça uso da legalidade como mecanismo de escamotea-
mento do conteúdo da noção de Estado de Direito material. Por
isso, este deve ser compreendido em termos relativos.

13. A desmitificação da legalidade supõe a compreensão


de que não há necessária vinculação dela à chamada “sepa­
ração” dos poderes. Vale dizer: a legalidade será observada
ainda quando a função normativa seja desenvolvida não ape­
nas pelo Poder Legislativo.
Dessa questão trato, detidamente, em meu texto sobre a
separação dos poderes, compreendido no derradeiro capítulo
deste livro.
Além disso, tom a evidente a necessidade de a reinstau-
rarmos não como mera pauta de limite da atuação estatal, mas
como regra de predeterminação do conteúdo dessa atuação.
Na tarefa a ser desenvolvida tendo em vista a sua reins-
tauração, muito do que temos a fazer não apresenta sabor de
inovação — antes, pelo contrário, consubstancia recupera­
ção de noções já consagradas no nível teórico, mas que, es­
180 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tranhamente, jamais foram levadas plenamente à concreção.


Assim, v.g., com a recusa de acatamento à oinculação negati­
va da Administração pela lei. Esta — a doutrina do negative
Bindung — é pacificamente substituída, no pensamento ju rí­
dico modemo, pela de positive Bindtmg, nos termos da qual a
lei é pressuposto do atuar da Administração (Garcia de En-
terría 1983/413 e ss.). Nele visualizada a predeterminação
do conteúdo da Administração, o princípio há de ser referido
não a um tipo de norma específica e determinada, mas ao
ordenamento todo, ao que Hauriou chamou “bloco da legali­
dade” (leis, regulamentos, princípios gerais, costumes).
O sentido geral do princípio da legalidade é assim enun­
ciado por Garcia de Enterría (1983/364): “A Administração é
uma criação absoluta do direito e não uma emanação pessoal
de um soberano e atua submetida necessariamente à legali­
dade, a qual, por sua vez, é uma legalidade objetiva que se
contrapõe à Administração e não um mero instrumento oca­
sional e relativo da mesma. Por isso a legalidade pode ser
invocada pelos particulares mediante um sistema de ações,
expressão do princípio de liberdade que a Revolução instau­
ra e que revela como dita legalidade vem a decompor-se em
verdadeiros direitos subjetivos” .
O mesmo autor (1983/365) sustenta que o princípio da
legalidade não pode estar referido apenas ã lei em sentido fo r ­
mal; ele está referido ao ordenamento jurídico, integrado por
inúmeras fontes peculiares (entre as quais os regulamentos)
— referido, repito, ao “bloco da legalidade”.
Nesse quadro, o direito administrativo deixa de ser enten­
dido como garantia dos particulares — que evoluem, de súdi­
tos a sujeitos de direito — e passa a ser a substância de toda
atividade administrativa (Vinício Ribeiro 1981/60).

14. Um novo sentido é atribuído ao princípio com a ad­


missão de que a Administraçãò, tanto quanto os particula­
res, está limitada pelas normas jurídicas que produzir (legem
patere quam fecistíi.
Assim, ela está sujeita não à lei (expressão de ato legisla­
tivo), mas à norma quefez, no exercício de Junção normativa.
VIU — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 181

Daí a vinculação da Administração não ã lei, mas às nor­


masjurídicas, Inclusive às que ela mesma tiver editado, em de­
corrência de lei. Este aspecto é explorado de modo mais detido
em minha exposição a respeito da separação dos poderes.

15. O declínio da legalidade em sua versão original, cuja


substância é a lei em sentido formal — o que lhe confere ca­
ráter meramente procedimental — , já no instante da sua ins­
tituição se instala, quando a burguesia se dá conta de que a
Administração não poderia funcionar tolhida por ela; quando
a burguesia se dá conta sobretudo de que não poderia profi­
cientemente colocá-la a seu serviço (dela, burguesia) tangida
pela legalidade, do que resulta a institucionalização de duas
válvulas de escape, a discricionariedade e as ordens de ne­
cessidade [regulamentos) (Ferraz Júnior 1981/27).
A inadequada compreensão de uma ordem de conceitos
tidos como indeterminados justifica uma discricionariedade
predatória da legalidade, que, incompreensivelmente, preci­
samente os que se pretendem seus defensores maiores (dela,
legalidade) acalentam.

O momento que vivemos, no instante em que escrevo este tex­


to, introduz complexidades inusitadas em qualquer tentativa de
avaliação daquele declínio. A vocação da legalidade à limitação da
atuação estatal quando se ampliam as funções de um Estado for­
necedor de prestações à sociedade é paradoxal; a legalidade/fim
em si, voltada à preservação do status quo, compromete o empre­
endimento de políticas públicas. A onda neoliberal, no entanto,
aparentemente encontraria um adequado instrumento de minimi-
zação do Estado no que poderíamos designar de versão xiita da le­
galidade do século XIX. A falácia da representação parlamentar,
na qual a lei exprime uma “vontade geral e indivisível”, será assim
reafirmada, não importando os fatos de os Interesses estarem pul­
verizados no seio dos Parlamentos — a opinião pública desertou
os parlamentos — e, em especial entre nós, os partidos políticos
serem pragmáticos, essencial e terrivelmente pragmáticos, em na­
da, absolutamente em nada, reconhecíveis como programátlcos.
Será interessante, a respeito da atuação parlamentar, a com­
paração entre os dois textos que seguem, de Dalmo de Abreu
Dallari e de Francisco Campos: “A participação — do Executivo —
na criação dos próprios instrumentos legais de atuação tem seu
182 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ponto alto na prática, bastante generalizada, da delegação do po­


der legislativo. Essa prática representa importante passo na supe­
ração do dogma da separação dos poderes e permite a elaboração
de leis mais perfeitas em tempo mais curto, eliminando a possibi­
lidade e a necessidade de transacionar, que prejudica irremedia­
velmente o trabalho dos Parlamentos. Ilá uma opinião generaliza­
da no sentido de se reconhecer que os Parlamentos, por uma série
de razões, são os órgãos do Estado que se mostram mais desapa­
relhados para cumprimento das novas tarefas. Entre as causas
desse desajuste têm-se evidenciado, sobretudo, a lentidão de seu
funcionamento, a imperfeição das leis elaboradas com a participa­
ção e interferência de pessoas despreparadas para esse trabalho e
o caráter conservador dos Parlamentos, que resulta da participa­
ção, neles, de muitas correntes políticas de tendências contraditó­
rias, que reciprocamente se neutralizam e se anulam quanto às
Iniciativas mais arrojadas e de alcance mais profundo. A lentidão
do funcionamento é difícil de ser superada, por vários motivos. Em
primeiro lugar, por se tratar de uma reunião de não-especialistas,
toma-se imprescindível ouvir a opinião das chamadas ‘comissões
técnicas’, que agrupam os membros mais ou menos conhecedores
dos aspectos particulares de cada problema. Além disso, os Parla­
mentos perderiam sua razão de ser caso não lhes fosse concedida
a possibilidade de emendar projetos, pois o mero pronunciamento
a favor ou contra uma iniciativa legal, em seu todo, poderia ser
feito diretamente ao povo, pois seria relativamente simples e co­
lheria opinião direta dos Interessados. Por outro lado, todavia,
esse poder de emenda tem sido altamente prejudicial, pois, ou por
desconhecimento dos assuntos ou por razões demagógicas, é co­
mum que os parlamentares introduzam modificações que anulam
a eficácia das medidas previstas no projeto de lei ou que, mais
grave talvez do que isso, desvirtuam suas finalidades. De qual­
quer forma, as emendas podem ser apresentadas e devem ser de­
batidas, exigindo maior número de discussões e novos pronuncia­
mentos de comissões técnicas. Acrescente-se a isso tudo o tempo
que se gasta com os debates, bem oü mal-intenclonados, levianos
ou verdadeiramente esclarecedores. Muitas vezes se tem visto mes­
mo o prolongamento dos debates como simples artificio político,
para obrigar o Executivo a transacionar com parlamentares. A es­
sa lentidão, fácil de ser aquilatada pelos percalços aqui referidos,
acrescenta-se a interferência de parlamentares despreparados, in­
telectual ou moralmente, para a importante tarefa de legislar. Esta
dificuldade se acentua quando aumenta o número de componen­
tes de um Parlamento, o que se tem verificado continuamente, em
face do aumento demográfico generalizado. Tal interferência ocor­
VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 183

re, sobretudo, quando se trata de projetos mais importantes, de


grande repercussão popular. Nestes casos, buscando a populari­
dade e aproveitar a oportunidade para ligar seu nome à iniciativa
ou, pelo menos, ao volumoso noticiário gerado por ela, muitos
parlamentares interferem sem nada ter a acrescentar ou procu­
rando aditar pormenores de reduzida importância, que, com mui­
ta freqüência, quebram a unidade do projeto" (Dallari 1976/160-
162). “A Constituição de 1934 vedava, em termos absolutos, a de­
legação de poderes. Foram os tribunais que, na expressão do pro­
fessor Goodnow, ‘tomaram da sciencia política uma nebulosa theo-
ria e a transformação (transformaram) em uma regra inefficaz e
inapplicavel’. A Constituição de 10 de novembro permitte expres­
samente a delegação do poder legislativo. Nisto, ainda, a Consti­
tuição de 10 de novembro attendeu à realidade. Não há hoje ne­
nhuma controvérsia relativamente à incapacidade do corpo legis­
lativo para a legislação directa. É a sobrevivência de um órgão às
condições que o geraram. No século passado, o papel do Estado
era, antes de tudo, negativo: intervir o menos possível. O Parla­
mento era um órgão eminentemente político, cuja funcção não era
uma funcção technica, mas política: controlar o governo e servir
de órgão autorizado de expressão da opinião pública. A legislação
limitava-se a regular questões geraes e simples. Ora, a acüvldade
parlamentar soffreu duas modificações radicaes. A primeira dellas
no seu caracter representativo, ou como órgão de expressão da opi­
nião pública. Com o vertiginoso progresso das technicas de expres­
são e de communicação do pensamento, o Parlamento perdeu a sua
importância como forum da opinião pública, que hoje se manifes­
ta por outros meios mais rápidos, mais volumosos e mais effica-
zes. A opinião pública desertou os Parlamentos, encontrando no­
vos modos de expressão. EUa não só deixou de exprimir-se pelos
parlamentos, como os collocou sob o controle dos meios de forma­
ção e de expressão da opinião pública. As salas das assembléias
legislativas não comportam a opinião pública de hoje, cujo volume
exige espaços mais amplos. Por sua vez, mudaram as funções do
governo: de negativas passaram a positivas. A legislação é hoje uma
immensa technica de controle da vida nacional, em todas as suas
manifestações. A legislação perdeu o seu caracter exclusivamen­
te político, quando se cingia apenas às questões geraes ou de
princípios, para assumir um caracter eminentemente technico. Os
processos parlamentares continuaram os mesmos, a funcção dos
Parlamentos passou a ser infinitamente mais complexa e difíicil.
Ora, um corpo constituído de accordo com os critérios que presi­
dem à constituição do Parlamento é inapto às novas funcções que
pretende exercer. Capacidade política nâo importa capacidade
184 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

technica, e a legislação é hoje uma technica que exige o concurso


de varios conhecimentos e de varias technicas. Da incapacidade
do Parlamento para a funcção legislativa resulta a falta de rendi­
mento do seu trabalho. Não só o Parlamento funcciona a maior
parte do tempo no vazio, fugindo, assim, à execução de uma tare­
fa acima das suas forças e que não pode ser realizada mediante os
defeituosos processos parlamentares, como, quando aborda a ta­
refa, o faz, a maior parte das vezes, de pontos de vista estranhos
aos verdadeiros interesses em jogo, considerando as questões mais
no plano do interesse político ou das exigências eleitoraes, do que
no seu plano próprio e adequado. Um corpo numeroso constituído
de várias tendências, de grupos e até de matizes individuais não
reúne, evidentemente, os requisitos próprios a uma obra legis­
lativa homogenea e consistente. E é ò qUe se observa nos mais im­
portantes documentos legislativos, bastando citar, como exemplo
expressivo, a própria Constituição de 34, trabalhada, de modo apa­
rente e manifesto, por varias e opostas correntes, que quebraram,
assim, o principal caracter de uma lei desse vulto — a sua unida­
de ideológica e technica, Dahi o movimento geral em todo o mun­
do para retirar do Parlamento a iniciativa da legislação e extender
cada vez mais o campo da delegação de poderes. Não ha hoje obra
legislativa importante que não tenha sido iniciativa do governo ou
não seja o resultado de uma delegação do poder legislativo. Quasi
toda a legislação recente na Inglaterra é feita por Orders in Councü
e Departmental Regulations, isto é, legislação pelo Executivo, me­
diante delegação de poderes. Nos Estados Unidos, paiz em que
sempre existiu a prevenção dos tribunaes contra a delegação, a le­
gislação pelo Executivo, ou delegada, constitue hoje a massa mais
importante da producção legislativa. Não só em outros paizes a le­
gislação directa pelo Parlamento se mostrou impraticavel. Entre
nós, os seus defeitos estão patentes a todas as vistas. O processo
de crivar de emendas, muitas vezes de caracter pessoal, um projecto
de lei é um processo corrente na forma parlamentar de legislação.
Os grandes projectos, em qüe a unidade de princípio e de technica
é qualidade capital, não podiam sahir desse processo senão defor­
mados, mutilados e imprestáveis. A extensão e a prolixidade dos
debates tomavam, ainda, quasi todo o tempo útil das assembléias,
de sorte que a obra legislativa não correspondia, pelo minguado
volume, ao tempo e áo. esforço que nella se gastavam. O Presidente
observou, com a maior justeza, que a qúasi totalidade dos projec­
tos de iniciativa do governo ficaram durante annos parados nas
comissões ou no plenário, a machina parlamentar confessando-se
impotente para dar conta da parte capital da sua tarefa. Soman­
do-se a esses inconvenientes e agravando-lhes os resultados, ha
V III — CRITICA E DEFESA DA LEGALIDADE 185

que accrescentar a futil liberdade concedida a qualquer membro


do Parlamento para tomar o tempo e a attenção dos seus pares
com iniciativas de caracter puramente individual. A vontade de
não se mostrar inactivo, ou antes, de manifestar aos eleitores o
seu interesse pelo mandato, levava quasi todos os membros do
Parlamento a tomar iniciativas de legislação, que não contavam
com nenhuma probabilidade de se transformarem em leis, sobre­
carregando, apenas, inutilmente, o trabalho das comissões e as
ordens do dia de plenário. A Constituição de 10 de novembro, re­
conhecendo o mal, deu-lhe remédio. A iniciativa da legislação ca­
be, em principio, ao governo. A nenhum membro do Parlamento é
lícito tomar iniciativa individual de legislação. A delegação de po­
deres não foi só permitida, como se tomou a regra pois a Consti­
tuição prescreve que os projetos de iniciativa do Parlamento devem
cingir-se a regular a matéria de modo geral, ou nos seus princípios,
deixando ao governo a tarefa de desenvolver esses princípios, e re­
gular os detalhes” (Campos 1941/50-53).

16. A dupla instrumentalidade do direito engendra uma


falsa imagem de crise. Instrumento de implementação de po­
líticas públicas, o direito jã não regula exclusivamente situa­
ções estruturais, passando a ordenar situações conjuntu­
rais. Neste momento perece a concepção da lei como norma
abstrata e geral, que garante e assegura a calculabilidade e a
previsibilidade.
O direito toma-se contingente e variável. A ‘le i”, texto nor­
mativo produzido pelo Legislativo, não pode mais ser tomada
como categoria absoluta: é necessário, mais do que nunca,
distinguir entre íeí em sentido form al e lei em sentido material.
Interpenetram-se os campos de atuação do Executivo e do
Legislativo: aquele, a exercitar, amplamente, função norma­
tiva; este, a produzir leis-medida. A leitura tradicionalmente
desenvolvida da “separação dos poderes” perde todo o seu
sentido.
A definição dos fins das políticas públicas implementadas
é enunciada em normas jurídicas — normas-obfetiuo — que
passam a determinar os processos de interpretação do direito.
A inflação normativa, hipertrofia da regulação normativa,
coloca sob comprometimento não apenas a segurança das re-
láções jurídicas, mas a própria consistência do princípio se­
gundo o qual ignorantia. legis neminen excusat. E, na medida
186 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

em que o direito do modo de produção capitalista apresenta co­


mo uma de suas notas características a publicidade, o prin­
cípio funciona como autêntica chave de abóbada do sistema.
No momento em que desnudarmos a realidade, parando de
fingir que a lei (= o direito) é conhecida-de todos, nesse mo­
mento o sistema ruirã... Vivemos, como se vê, uma farsa...

D a “inflação legislativa” — e não normativa, como dela faço uso


— diz Carnelutti (1963/180): "I/analogia, sotto questo aspetto, tra
rinflazione legislativa e 1’inílazione monetaria, d a me u sa ta piü vol­
te, è decisiva. L a funzione legislativa staripa ormai dalPalveo, nel
quale dovrebbe contem esi secondo i principi costituzionali”. Como
observa Jean C arbonier (1971/115), “la m asse d u droit applicable
augm ente sa n s cesser (quatre kilos annuels d an s la bibliothèque
de 1’avocat minimun)”.3

17. A segurança de que aqui se cuida — segurança das


relações jurídicas — é concebida (tal como de fato deve ser —
Comparato 1981/198), como valor-condição, e não como va-
lor-escopo. Trata-se, no entanto, de condição necessária à
fluência dos processos de economia de mercado, indispensá­
vel à sua adequada organização.
Valor-condição, assim, que se expressa não como seguran­
ça jurídica, mas como segurança patrim onial e contratual: pro­
teção concedida pela sociedade a cada um dos seus membros
para a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua
propriedade (art. 8a da Constituição francesa de 1793), Nesse
sentido, seu conteúdo não é expressão senão de adequação e
concordância entre os interesses hegemônicos e o discurso
normativo, de onde a sua conotação formal {forma irmã gê­
mea da liberdade).
A exigência de certeza da. norma — vale dizer, da lei e,
conseqüentemente, do direito — ê tida como indispensável à
convivência social ordenada (Lopez de Onate 1968/47); no
mare magnum das leis — complementa Lopez de Onate (1968/
72) — é fácil encontrar uma onda complacente, que conduza

3. A propósito do tema, v. Ripert (1949/155 e ss.), Savatier (1977/43 e


ss.), Jean-Pierre Henry (1977/1.207 e ss.), Paul Amselek (1982/275 e ss.),
Nicolas Nitsch (1982/161 e ss.) e Celine Wiener (1988/47 e ss.).
VIII — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 187

à praia o réu náufrago, ou, pior ainda, que faça naufragar o


inocente. Não obstante, é a exigência de certeza do direito
que impõe a sua positivação, em múltiplas leis. Como obser­
va Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1981/51), citando Radbruch,
“se não se pode fixar o que é justo, ao menos que se deter­
mine o que ê jurídico”!
A “inflação normativa”, contudo, coloca os ideais de segu­
rança e certeza jurídica sob comprometimento.

A n ota Carnelutti (1963/180): “L a moltiplicazione delle leggi


giuridiche, che somiglia alia moltiplicazione delle leggi naturali, fa
si che il cittadino, il quale per osservale le dovrebbe conoscere,
non è piü in grado di conoscerle. L a pubblicazione di esse, come
condizione delia loro imperaüvità, h a m u tato carattere, da pre-
sunzione diventando funzione, L ’uom o delia strada, tra la farragi-
ne delle leggi, è sempre piú disorientato, al pari dei conduttore
d’u n veicolo, quando troppi fari slncrociano Iungo la strada”. Pe­
rece assim , em termos materiais, o princípio segundo o qual igno-
rantia legis neminen excusat.

Há um evidente desprezo pela realidade, como observa


Jean Carbonier (1971/115-116), em pretender que um ho­
mem saiba, por ciência infusa, o que nem sempre se aprende
em um curso jurídico e em vários anos de prática. A máxima
somente se justificava ao tempo da codificação napoleônica,
quando a lei, em regra, era não mais do que uma formulação
de costumes ancestrais; a flexibilidade das leis do nosso
tempo, por outro lado, é tal que elas não chegam, antes de
sofrer alterações, a incorporar-se ao patrimônio psicológico
dos indivíduos (Carbonier 1971/116).
A propósito do aforismo, as considerações de François
Terré (1966/91-123): o princípio decorre da aplicação de ou­
tro princípio, o da igualdade de todos perante a lei (mas cabe
indagar se estão, para o efeito de que se cuida, em situação
de igualdade os juizes, os advogados e os homens comuns);
trata-se de uma presunção simples ou de uma presunção não
sujeita a prova em contrário? (e a admissão do erro de direito,
assimilado ao erro de fato, conjugada, ademais, com o princí­
pio da boa-fé?); o que se pode presumir é o conhecimento de
um direito acessível e simples; o direito é comunicação, mas
188 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

comunicação não suficientemente clara (qual a diferença en­


tre ignorar o direito e interpretá-lo de modo equivocado, so­
bretudo quando se equipare a ignorância ao erro de direito?);
a lei não retira sua força obrigatória da circunstância de ser
conhecida; precisamente em decorrência disso a necessida­
de lógica da presunção de que seja conhecida; assim, o afo­
rismo, que expressa uma ficção — de que todos conhecem a
lei — , impõe-se como imperativo do qual depende a consis­
tência (a lógica interna) do sistema jurídico. Sem a presun­
ção de que a lei (o direito) seja conhecida e sabida o direito
não é operacionalizável. Cuidando-se de um princípio, contu­
do, há de ser aplicado de modo diverso daquele que conforma
a aplicação das regras jurídicas. Não obstante, é certo que
apenas os desafortunados são colhidos pelo aforismo; os eco­
nomicamente poderosos têm sempre à sua disposição bri­
lhantes assessores, que não apenas lhes indicam as leis que
devem cumprir, mas também, algumas vezes, apontam-lhes
caminhos que podem contorná-las.
Essas observações nos permitem, afinal, perceber o real
significado da segurançajurídica, ainda como vdlor-condição:
o direito positivo é posição de sentidos imanentes às relações
sociais que, por serem indispensáveis ã reprodução do siste­
ma social existente, são positivados, a fim de assegurar o de­
senvolvimento das atividades sociais; o modo sob o qual essa
positivação se dá decorre, evidentemente, da ação das forças
sociais hegemônicas. Note-se que a complexidade da realida­
de, que propicia maior velocidade na atuação de suas forças
produtivas, reclama a flexibilização das normas jurídicas (e
dos textos normativos), de molde a assegurar (e estimular)
aquela atuação. É fundamental, de toda sorte, não confun­
dirmos segurança com imobilidade; ela deve ser concebida
como resultante da ordenação do movimento.

18. Ao lado de tudo isso, paradoxalmente, o Estado, de um


lado, dejuridtpca determinadas situações (macrossituações)
econômicas e, por oiltro, jttrid ifica a economia (Reich 1985/
30-31). Os processos globais da economia, como observei an­
teriormente, são manipulados através de políticas desenvol­
vidas à margem do direito [v.g., a manipulação do volume
global de moeda em circulação; a manipulação da oferta .de
V III — CRÍTICA E DEFESA DA LEGALIDADE 189

emprego, mediante alteração nos volumes de compras e


aquisições de serviços pela Administração, direta e indireta).
Mas, adversamente a isso, em outros campos, o Estado, inci­
sivamente, lança mão do direito como efetivo instrumento de
política econômica. Nesse contexto, o direito deixa de asse­
gurar aos agentes econômicos a calculabilidade e previsibi­
lidade que decorrem de sua racionalidade. A circunstância
de passar a instrumentalizar situações conjunturais — e não
apenas situações estruturais — faz com que ele se tome va ­
riável, contingente.
De outra parte, vimos também mas não será demasia­
do repeti-lo — , o princípio da legalidade não respeita aos pro­
cedimentos administrativos em si, mas tão-somente enquan­
to a eles seja correlata uma situação subjetiva do particular,
sobre a qual tenha incidência um efeito de extinção ou limi­
tação. Por isso é que, nos casos em que a atividade adminis­
trativa não expressa aquela dialética — tal como no caso da
atividade de programação do Estado e de outros entes jurídi­
cos, que não se exprimem em atos autoritários — , não é ele
aplicado.

A essa feição, assim assumida pela legalidade, e ã dejuridifi-


cação de determinadas atuações estatais é paralela a emergência
de uma nova modalidade de discricionariedade administrativa, vol­
tada à “otimização flexível das funções do Estado” (Bullinguer 1987/
21-22 e de Sousa 1987/280-283).

19. Nisso tudo o efeito perverso de comprometimento das


garantias do domínio da lei no quanto ela (a legalidade) não
respeite às liberdades individuais próprias e particulares da
elite. À margem dela resta toda uma série de problemas que é
objeto da ação do Poder Público e que, na medida em que,
exemplifleativamente, atuam sobre os níveis de inflação e de
endividamento externo, comprometem a possibilidade de
efetiva fruição, pelo todo social, das liberdades sociais.
Por certo que o direito não pode, neste contexto, ser con­
cebido como um produto da razão pura ou como encarnação
de um ideal abstrato de justiça (Bourjol, Jeammaud e Jean-
tin 1978/61). Poderá, no máximo, ser tido como um ideal de
Justiça (capitalista) encarnado.
190 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

A imagem de crise do direito, de toda sorte, é uma falsa


imagem: não é o direito, senão o direito burguês, do século
passado (= direito moderno/direito fonnal) que se vem trans­
formando, para adequar-se à evolução do capitalismo, apto
a bem servi-lo. Por certo não é o direito, como anotava Jean
Boulanger (1950/73), que está em declínio: “ce sont les prín­
cipes animateurs de la codification napoléonienne qui sont
en déclin”.
IX
CRÍTICA DA DISCRICÍONARIEDADE
E RESTAURAÇÃO DA LEGALIDADE

1. Posição da questão. 2. A doutrina brasileira. 3. Os conceitos Jurídi­


cos (conceito e noção). 4. Ainda a. posição da. doutrina brasileira. 5. A
interpretação do direito. 6. Discricíonariedade “versus” interpretação.
7. A chamada “discricionaridade técnica". 8. Exame e corvtrole, pelo Po­
der JudictOrio, dos atos discricionários. 9. Observações conclusiuas.

1. Posição da questão

1. Entre as lições que nos deixou Seabra Fagundes, tan­


tas — lições de jurista e lições de dignidade, exemplares;
Inesquecíveis —, colho a seguinte:
“Para a prática de alguns atos, a competência da Admi­
nistração é estritamente determinada na lei, quanto aos mo­
tivos e modo de agir. A lei lhe determina que, existentes de­
terminadas circunstâncias, proceda dentro de certo prazo e
de certo modo. A competência diz-se então vinculada. A Ad­
ministração Pública não é livre em resolver sobre a conve­
niência do ato, nem sobre o seu conteúdo. Só lhe cabe cons­
tatar a ocorrência dos motivos, e, com base neles, praticar o
ato. Escusando-se a praticá-lo, no tempo e com o objetivo de­
terminado, viola a lei.
“Noutros casos, a lei deixa a autoridade administrativa li­
vre na apreciação do motivo ou do objeto do ato, ou de ambos
ao mesmo tempo. No que respeita ao motivo, essa discrição
se refere à ocasião de praticá-lo (oportunidade) e à sua utili-
192 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

dade (conveniência). No que respeita ao conteúdo, a discri­


ção está em poder praticar o ato com objetivo variável, ao seu
entender. Nestes casos a competência é livre ou discricioná­
ria. A propósito de tais atos, não é possível cogitar de nulida-
de relacionada com o motivo, com o objeto, ou com ambos,
conforme a respeito de qualquer um desses requisitos, oü
dos dois, possa deliberar livremente a Administração. No mais,
entretanto, ou seja, quanto à manifestação da vontade (falta
de competência pessoal para agir e defeito pessoal na vonta­
de do agente), finalidade e forma, o ato discricionário incide
nos mesmos casos de invalidez dos atos vinculados” (1979/
74-76; grifos no original).
É a lei, diz o Ministro Seabra — como o chamávamos — ,
que “deixa a autoridade administrativa livre na apreciação do
motivo ou do objeto do ato, ou de ambos ao mesmo tempo”.
Esse o primeiro ponto a enfatizar.
E a discrição que a lei deixa à autoridade administrativa
se refere, quanto ao motivo, à ocasião de praticá-lo (oportuni-
dade) e à, sua utilidade (conveniência); quanto ao objeto (con­
teúdo) , a discrição está em a autoridade administrativa poder
praticar o ato com objetivo variável, ao seu entenderr
Daí posso extrair duas verificações:
i) a discricionariedade é atribuída, pela lei, ã autoridade
administrativa; não decorre da lei, utilizando-se o verbo de­
correr, aqui, para referir a circunstância de o emprego, pelo
texto legal, de “conceitos indeterminados” conduzir à discri­
cionariedade-, vale dizer: a discricionariedade resulta de uma
expressa atribuição legal à autoridade administrativa, e não
da circunstância de os termos da lei serem ambíguos, equí­
vocos ou suscetíveis de receber^ especificações diversas;
ii) no exercício da discricionariedade, a autoridade admi­
nistrativa formula ju ízos de oportunidade, que, na dicção do
Ministro Seabra, respeitam ou à ocasião em que o ato deve
ser praticado, ou a s u a utilidade, ou ao conteúdo do ato.

02. A lição de Seabra Fagundes não tem sido apreendida


adequadamente pela maioria da nossa doutrina, que não
apenas chega ao extremo de afirmar que pode haver discricio-
IX — D IS C R IC IO N A R IE D A D E E L E G A L ID A D E 193

nariedade inclusive quanto &finalidade da norma jurídica —


e isso foi retrucado pelo próprio Ministro Seabra (1979/76-
78, nota 8) — , mas também se enreda na confusão entre ato
discricionário e ju íz o discricionário, este último incompatível
com a legalidade.
Porque não me parece existir, assim para o direito público
como para o direito no seu todo, qualquer perspectiva fora da
legalidade, passarei, adiante, a criticar a posição adotada pe­
la parte maior de nossa doutrina, acima referida, a respeito
da discricionariedade, nisso e com isso contribuindo, espero,
ã restauração da dignidade da concepção de legalidade.

O tratamento precário conferido pela doutrina ao tema da dis­


cricionariedade decorre, em grande parcela, da circunstância de nem
ao menos saberem, os que dela tratam, do que estão a tratar. Ronald
Dworkin (1987/31), cogitando da ambigüidade da expressão poder
discricionário, observa que o seu sentido exato depende do contexto
no qual usada. Assim, em sentido fraco, a expressão é freqüente­
mente usada para referir que uma determinada razão impede que
alguém aplique determinados standards de modo mecânico, exigin­
do que esse alguém formule algum tipo de julgamento — dizendo-o
ao meu modo: o poder discricionário, neste sentido, fraco, diz ape­
nas com o fato de que a aplicação de qualquer ordem, indicação, con­
ceito etc. reclama alguma interpretação; ou seja, reclama um agente
capaz de raciocinar, portanto não imbecil ou idiota. Neste sentido,
discricionariedade = capacidade de raciocínio. Em um segundo sen­
tido fraco, a expressão é usada para referir que determinada pes­
soa é titular da derradeira capacidade de tomar uma decisão, que
não pode ser controlada ou anulada por outra pessoa. Neste senti­
do, v.g., o Supremo Tribunal Federal seria dotado de poder discricio­
nário para decidir a respeito da constitucionalidade de certo ato. Em
sentido forte, poder discricionário refere que o seu titular não está
vinculado, ao tomar decisões, a qualquer standard estabelecido por
outra autoridade. A não percepção das distinções entre esses três
significados é perniciosa — dizendo-o, lanço uma provocação, e um
desafio, ao leitor.

2. A doutrina brasileira

- 3. O fundamento da atividade discricionária da Adminis­


tração encontra-o Francisco Campos (1958/7 e ss.) na estru­
194 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tura lógica do ju íz o que constitui o seu ponto de partida (1958/


17 e 32-33). Diz ele: “O "fundamento do poder discricionário
da Administração não reside, portanto, em qualquer atributo
que seja peculiar ao juízo administrativo, mas na estrutura
lógica de uma certa categoria de Juízos, que só podem ser for­
mulados com referência a conceitos mais ou menos ambí­
guos ou equívocos, ou suscetíveis, pela amplitude e indeter-
minação do seu conteúdo, de receberem especificações diver­
sas, nenhuma das quais se possa ter como a única possível,
exata ou procedente, uma vez que a medida do acerto do
juízo consiste, única e precisamente, no próprio conceito que
lhe serviu de referência, o qual, por definição, comporta vá­
rios conteúdos, igualmente adequados ou do mesmo valor
significativo” (1958/17).
Daí por que, segundo ainda o mesmo Francisco Campos,
cabe “à autoridade administrativa (no caso) escolher para o
ato, dentre os vários conteúdos igualmente possíveis, o que lhe
pareça mais adequado ao amplo critério legal que, devido à
sua natureza, não é suscetível de uma determinação objeti­
va” (1958/23; grifei).
Esse entendimento, que põe, entre nós, as âncoras que
justificam o exercício da atividade discricionária no uso, pela
norma jurídica, de conceitos ju ríd icos indeterminados, impre­
cisos, vagos, elásticos, fluidos, prospera ainda no seio da dou­
trina brasileira do direito administrativo.

Francisco Campos afirma, expressamente: “A indeterminação


do conceito legal constitui, evidentemente, o fundamento lógico e
jurídico do juízo discricionário" (1958/22).

4. Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, concei­


tua discricionariedade como “a margem de liberdade que re­
manesça ao administrador para eleger, segundo critérios con­
sistentes de razoabilidade, um ,dentre pelo menos dois com­
portamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de
cumprir o dever de ádòtar a solução mais adequada à satisfa­
ção da finalidade legal, quando, por força da fluidez das ex­
pressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento,
dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca
para a situação vertente” (1992/48 e 1993/420).
IX — D IS C R IC IO N A R IE D A D E E L E G A L ID A D E 195

Ainda que mais elaborada a exposição de Celso Antônio,


a posição que adota diante da discricionariedade é a mesma
de Francisco Campos.
Ambos porém, como os que os seguem, incidem no erro
de admitir a existência de “conceitos indeterminados”, con­
fundindo conceito e termo {expressão do conceito) e ignorando
a distinção entre conceito e noção.
Mais: não absorvendo a distinção que aparta ju ízos de le­
galidade e ju ízos de oportunidade, identificam, sem dar-se
conta disso, a atividade discricionária da Administração com a
atividade de interpretação do direito. E isso, note-se, porque re­
cusam, esses autores e os seus seguidores, a postura crítica,
incômoda porque converte o estudioso, de expositor, em cen­
sor do direito.

5. Ferindo desde logo este último ponto, relembro a ob­


servação de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1982/27), ao ano­
tar que, como a Administração não teria podido funcionar
tolhida pela concepção rígida da legalidade, encontraram-
se duas válvulas para contornar essa rigidez: a discricionarie­
dade e as ordens de necessidade. A discricionariedade, na sua
origem — e assim prossegue — , presta-se a instrumentar a
atuação estatal a serviço da assim chamada, naquele mo­
mento histórico, burguesia.
Por isso — tenho insistido nesse ponto — , a doutrina do di­
reito administrativo liberal constrói uma fa lsa legalidade, na
medida em que a íragiliza mediante a introdução, nela, deste
autêntico cavalo de Tróia, a discricionariedade. Ademais, enre­
da-se em equívocos que prontamente resultam exorcizados no
âmbito da teoria geral do direito. A confusão entre ju ízo de
oportunidade e ju ízo de legalidade — também nisso insisto —
é, nesse bojo, fatal.

3. Os conceitos ju ríd icos (conceito e noção)

6. Nas primeiras edições deste livro tratei do tema dos con­


ceitosjurídicos observando, fundamentalmente, o seguinte:
. (i) a cada conceito corresponde um termo; este — o termo
- é o signo lingüístico do conceito; assim, o conceito, expres­
196 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

sado no seu termo, é coisa (signo) que representa outra coisa


(seu objeto); o conceito, na concepção aristotélica, está referi­
do, pela mediação do termo (signo do conceito), a um objeto;
(ii) os conceitos jurídicos não são referidos a objetos, mas
sim a significações; não são conceitos essencíaKstas;
(iii) o conceito — essencialista ou não — é produto da re­
flexão, expressando uma suma de idéias;
(iv) o conceito essencialista, expressado, é o signo de uma
coisa; seu objeto é a coisa; está no lugar da coisa; é o prim eiro
signo do objeto;
(v) o conceito jurídico, expressado, é o segundo signo de
um prim eiro signo: a significação da coisa (coisa, estado ou si-
tuação); está no lugar não da coisa (coisa, estado ou situa­
ção), mas da significação atribuível — ou não atribuível — à
coisa (coisa, estado ou situação);
(vi) assim, os conceitos jurídicos são s^nos, ou seja, sig­
nos de significações atribuíveis — ou não atribuíveis — a coi­
sas, estados ou situações.

7. A exposição assim desenvolvida voltava-se ao desnu­


damento da falácia dos conceitos juríd icos indeterminados.
É que a indeterminação a que nos referimos, na hipótese,
não é dos c o n c e ito s ju ríd ic o s (idéias universais), mas de suas
expressões (termos); logo, mais adequado será referirmo-nos
a termos indeterminados de conceitos, e não a conceitos (jurídi­
cos ou não) indeterminados.
Insisti então, e reafirmo-o vigorosamente: não existem
“conceitos indeterminados” .
Se é indeterminado o conceito, não é conceito.
O mínimo que se exige de uma suma de idéias, abstrata,
para que seja um conceito, é qüe seja determinada.
Repito: todo conceito é uma suma de idéias que, para ser
conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que
se exige de um conceito é que seja determinado.
Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de
idéias, não chega a ser conceito.
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 197

Assim, a reiteradamente referida indeterminação dos con­


ceitos não é deles, mas sim dos termos que os expressam.
Ainda que o termo de um conceito seja indeterminado, o con­
ceito é signo de uma significação determinada. E de urna ape­
nas significação.
Essa minha posição recebeu algumas críticas, entre as quais
a de Celso Antônio Bandeira de Mello, que, em seu Discri-
cionariedade e controlejurisdicioncd (2001/20-21), averba:
“Anote-se, de passagem, que a imprecisão, fluidez, inde-
terminação, a que se tem aludido residem no próprio conceito
e não na palavra que os rotula. Há quem haja, surpreendente­
mente, afirmado que a imprecisão é da palavra e não do con­
ceito, pretendendo que este é sempre certo, determinado.
Pelo contrário, as palavras que os recobrem designam com
absoluta precisão algo que é, em si mesmo, um objeto men-
tado cujos confins são imprecisos.
“Se a palavra fosse imprecisa — não o conceito — bastaria
substituí-la por outra ou cunhar uma nova para que desapa­
recesse a fluidez do que se quis comunicar. Não há palavra al­
guma (existente ou inventável) que possa conferir precisão
às mesmas noções que estão abrigadas sob as vozes ‘urgen­
te’, ‘interesse público’, ‘pobreza’, Velhice’, ‘relevante’, ‘gravi­
dade’, ‘calvície’ e quaisquer outras do gênero. A precisão aca­
so aportãvel implicaria alteração do próprio conceito original­
mente veiculado. O que poderia ser feito, evidentemente, se­
ria a substituição de um conceito impreciso por um outro
conceito — já agora preciso, portanto um novo conceito — , o
qual, como é claro, se expressaria através da palavra ou das
palavras que lhe servem de signo” (grifos no original).
A isso respondi com as seguintes observações. Evidente­
mente sou eu quem, embora ele não o declare, surpreende
Celso Antônio, afirmando que a imprecisão é da palavra e não
do conceito, pretendendo seja este sempre certo, determina­
do. De fato, é assim. Para que isso possa ser discernido, con­
tudo, é necessário que se compreenda, inteiramente, a dis­
tinção entre conceito e termo (do conceito), bem assim o con­
ceito de conceito, suma de idéias— produto da reflexão — ,
apprehensio essentíae re l É, mais, a fiinção dos conceitos ju ­
rídicos, da qual acima cogitei. De outra parte, Celso Antônio
198 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

aparentemente adota a concepção de que nomina surti conse-


quentía rerum, quando, na verdade — diz Umberto Eco, pela
voz de Guilherme de Baskerville (1983/403) — , “de fato, é
agora sabido que diferentes são os nomes que os homens im­
põem para designar conceitos, e iguais para todos são ape­
nas os conceitos, signos das coisas. Assim que certamente
vem a palavra norríen de nomos, ou seja, lei, visto que justa-
mente os nomina são dados pelos homens adplaciturn, isto é,
por livre e coletiva convenção”. A mudança da palavra ou das
palavras que compõem o seu termo evidentemente não altera
ou modifica o conceito. E, mais, nada impede que alguém se
dedique ao projeto, por exemplo, de reescrever os termos dos
conceitos de “urgência”, “interesse público”, “pobreza”, “velhi­
ce”, “relevância”, “gravidade”, “calvície”, nâo fora, para tal la­
bor, necessário escrever-se vários volumes e tão curta a idade.
Definitivamente, “conceito indeterminado" não é conceito.

8. A ponderada reflexão sobre o tema conduz, todavia, à


introdução, neste passo, de uma outra precisão, indispensá­
vel à plena compreensão do conceito de conceito jurídico.
É que se impõe distinguirmos, entre os conceitos jurídi­
cos, (i) os meramente formais, (ii) as regüLae ju ris e (iii) os
tipológicos {fattíspecie), que cumprem diferentes funções na
linguagem jurídica (Ascarelli 1952/XIII-XVII).
Os conceitos ju ríd icos meramente Jorm ais {v.g., ônus, su­
jeito jurídico, direito, obrigação), abstraídos de uma realida­
de histórica própria, consubstanciam elementos que indicam
uma série de posições lógicas indispensáveis ã estruturação
de uma teoria geral do direito. A. elaboração dessas posições
— prossegue Ascarelli (1952/XV) — , o seu enriquecimento e
o seu desenvolvimento revelam-se indispensáveis à expres­
são das valorações normativas, que, na ausência de esque­
mas formais adequados, pode se tom ar impossível.
A s regulae juris. consubstanciam expressões que sinteti­
zam o conteúdo de üm conjunto de normas jurídicas, sem
que lhes corresponda um significado próprio. Limitam-se a
exprimir, condensadamente, um sistema normativo, a modo
— diz Fábio Konder Comparato (1983/269) — de autêntica
estenografia legal. Tome-se como exemplo dessa espécie de
IX — DISCRICÍONARIEDADE E LEGALIDADE 199

conceito o de propriedade, que apenas assume alguma signi­


ficação na medida em que tenhamos sob consideração a fun­
ção, por ele cumprida no discurso do direito, de resumir toda
disciplina normativa atinente ao modo de aquisição e aos po­
deres, faculdades e deveres decorrentes da aquisição de uma
posição jurídica subjetiva em relação a um bem (Meroni
1989/285). A utilidade do conceito de propriedade — e isso a
tom a na prática insubstituível — está na enorme economia
de tempo e de energia que o seu uso permite a quem preten­
da expor o conteúdo do subsistema normativo aplicável ã p ro­
priedade (Meroni 1989/285).
Por fim, os conceitos jurídicos tipológicos (fattispecie) , uni­
versalmente, são expressões da história e indicam os ideais
dos indivíduos e grupos, povos e países; ligam-se a esque­
mas e elaborações de caráter lógico — independentemente
das quais é eventualmente impossível a disciplina e que po­
derão ser diferentes, mesmo obedecendo, cada uma, a uma
coerência própria — bem como a preocupações e hábitos eco­
nômicos e a fés religiosas; à história do Estado e à estrutura
econômica; a orientações filosóficas e a concepções do mundo
(Ascarelli 1952/XTV). Referem-se a fatos típicos da realidade
(Comparato 1983/269). Aí encontramos conceitos cujos ter­
mos são, v.g., “boa-fé”, “bom pai de família”, "coisa”, “bem”,
“causa”, “dolo”, “culpa”, “erro”. Atribuir significado a esses
termos eqüivale à identificação das espécies de fato alcan­
çadas por um texto normativo (Meroni 1989/283).
Os conceitos jurídicos tipológicos (fattispecie) em verdade
não são conceitos, mas noções, como veremos adiante.
Observa ainda Fábio Konder Comparato (1983/269) que
conceitos tipológicos (fattispecie) “não deixam de ser jurídi­
cos, pois eles compõem a previsão normativa; mas o seu con­
teúdo é, sem dúvida, extrajurídico, porque se referem a uma
classificação tipológica da realidade social. Por isso mesmo,
em relação a eles, não se põe nenhum problema de definição
jurídica: o seu sentido é o da linguagem comum. Assim, por
exemplo, quando o Código Civil Brasileiro declara que ‘todo
homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil’ (art.
2Ü), está empregando a palavra ‘homem’ no seu sentido co­
mum, que dispensa qualquer definição propriamente jurídi­
200 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ca. Ao contrário, quando edita a regra de que ‘é nulo o ato ju ­


rídico quando praticado por pessoa absolutamente incapaz’
(art. 145, n. I), os m esmo Código se utiliza de vários termos
ou expressões que não encontram correspondência na lin­
guagem comum, porque, justamente, não se referem a uma
classificação tipológica da realidade social e sim àquilo que
Jhering denominou ‘construções jurídicas1, isto é, conjuntos
sistemáticos de normas, como ‘nulo’, ‘ato jurídico’ e -pessoa
absolutamente incapaz’. -Estes últimos conceitos, correspon­
dentes às regulae da sentença de Paulo, são ‘mudos’ em ma­
téria interpretativa, no sentido de que não podem constituir
uma premissa para a solução do caso em espécie. O intérpre­
te não pode partir de tais conceitos para extrair conseqüên­
cias jurídicas mas deve, antes de tudo, perquirir qual o com­
plexo de normas a que eles se referem e iniciar, então, a sua
argumentação jurídica, unicamente a partir desse conjunto
normativo, condensadamente expresso pela regulae" (v. As-
carelli 1959a/169).

9. Os conceitos jurídicos que se aponta como “indeter­


minados” são os tipológicos {fattispecie). Quanto aos meramen­
te formais e às regulae ju ris, os primeiros porque abstratos e
dissociados da realidade histórica, as segundas porque sin­
tetizam o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, não
padecem de qualquer “indeterminação”.
Os conceitos jurídicos meramente formais e as regulae
ju rís não devem constituir problema maior para o intérprete
do direito, o reverso ocorrendo, contudo, em relação aos con­
ceitos jurídicos tipológicos [fattispecie), em tom o deles gra­
vitando, mercê dessa “indeterminação” de que equivocada-
mente falam os nossos publicistàs, parte relevante dos desa­
fios da interpretação.

20. São tidos como “indeterminados” os “conceitos" cujos


termos são ambíguos ou imprecisos — especialmente impre­
cisos — , razão pela qual necessitam ser completados por
quem os aplique. Neste sentido, são eles referidos como
“conceitos” carentes de preenchimento com dados extraídos
da realidade. Os parâmetros para tal preenchimento — quan­
do se trate de conceito aberto por imprecisão — devem, ser
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 201

buscados na realidade, inclusive na consideração das con­


cepções políticas predominantes, concepções essas que va­
riam conforme a atuação das forças sociais (Forsthoff 1973/
17-18). Quando se trate de conceito aberto por ambigüidade
- o seu preenchimento é procedido também mediante a consi­
deração do contexto em que inserido - o que, de qualquer for­
ma, não deve ohscurecer a verificação de que, sempre, é da par­
ticipação no jo g o de linguagem no qual inserido o termo (este,
sim, indeterminado — como sempre sustentei — , seja por
ambigüidade, seja por imprecisão) do conceito que decorre a
possibilidade de o compreendermos, procedendo ao seu pre­
enchimento.
Note-se bem que a afirmação da existência desses “con­
ceitos indeterminados” é indispensável, por necessidade ló­
gica, à construção da tese da discricionariedade da Adminis­
tração, que, por sua vez, outra irá fundamentar, a da configu­
ração dos regulamentos como meros atos administrativos, vol­
tados única e exclusivamente ã orientação das autoridades
administrativas inferiores.

11. Creio, contudo, ter, na evolução do meu pensamento,


encontrado outra explicação para o fenômeno dos “conceitos
jurídicos indeterminados” .
É que temos indevidamente chamado de conceito as no­
ções às quais correspondem as fattíspecie ou conceitos tipo­
lógicos. Disso agora me dou conta, ao ler as seguintes obser­
vações de Sartre (1968/134): “Althusser sustenta que o ho­
mem faz a história sem o saber. Não é a história que o recla­
ma, mas o conjunto estrutural em que está situado que o con­
diciona. Mas Althusser não vê que há uma contradição per­
manente entre a estrutura prático-inerte e o homem que des­
cobre estar condicionado por ela. Cada geração toma, em re­
lação a essas estruturas, uma outra posição, e é esta posição
que permite as mudanças nas próprias estruturas. Althus­
ser, como Foucault, atém-se à análise das estruturas. Do
ponto de vista eplstemológico, isso resulta em tomar partido
pelo conceito contra a noção, O conceito é atemporal. Pode es­
tudar-se como os conceitos se engendram uns aos outros no
interior de categorias determinadas. Mas nem o tempo, nem,
por conseqüência, a história podem ser objecto de um con-
202 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ceito. Aí ha uma contradição nos termos. Desde que se intro­


duz a temporalidade, deve considerar-se que no interior do
desenvolvimento temporal o conceito se modifica. A noção,
pelo contrário, pode definir-se como o esforço sintético para
produzir uma idéia qué se desenvolve a si mesma por contra­
dições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao
desenvolvimento das coisas. É o que Foucault chama de ‘do-
xologia’, e que ele recusa” .
Deveras, a questão da indeterminação dos conceitos se re­
solve na historicidade das noções — lá onde a doutrina brasi­
leira erroneamente pensa que há conceito indeterminado, há,
na verdade , noção. E a noção jurídica deve ser definida como
idéia que se desenvolve a s i mesma p or contradições e supera­
ções sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento
das coisas {Sartre).

12. O que sobretudo a nossa doutrina insiste em chamar


de “conceito indeterminado", em uma constante repetição de
um bolero de Ravel insosso e sem nenhuma atualização bi­
bliográfica, é noção, vale dizer, idéia temporal e histórica, ho­
mogênea ao desenvolvimento das coisas; logo, passível de in­
terpretação.
Ainda que seja assim, podem e devem ser mantidas algu­
mas críticas por mim anteriormente feitas ao manejo equivo­
cado das idéias de “conceito jurídico indeterminado” e discri-
cionariedade.

13. Quando temos sob exame um conceito cujo termo, in­


determinado, o legislador não definiu estipulativamente, o
aplicador do direito deverá superar essa indeterminação.
Deixando à parte as relações e situações que reclamam a
aplicação do direito por agentes privados e centralizando nos­
sa atenção naquelas em que atua o Estado, poderemos men­
cionar como aplicadores — sem considerações outras — a
Administração e,o Poder Judiciário.
Cuidemos, assim, primordialmente, da situação da Admi­
nistração como sujeito de determinação (preenchimento) do
conceito.
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 203

Dir-se-ia, neste passo, que o exercício dessa tarefa, pela


Administração, supõe exercício de poder político, expresso
em termos de discricionariedade. Dir-se-ia, mais, que a discri­
cionariedade é inafastável, visto que, se as leis devem ser
abstratas e gerais, necessariamente hão de ser expressas em
linguagem de textura aberta — ainda que isso, como salienta
Antonio Anselmo Martino (1973/66), seja antifuncional e in-
troduza a incerteza entre os destinatários da norma, além de
permitir ao mandamás de turno que preencha o conceito com
a carga emotiva, para a comunidade, de que tal preenchi­
mento, é “legal” . A discricionariedade. qual anteriormente ob­
servei, presta-se a subverter a legalidade.

14. É certo, contudo, não se operar no campo da discri­


cionariedade da Administração o preenchimento dos “con­
ceitos jurídicos indeterminados" (vale dizer, das noções). São
distintas as técnicas da discricionariedade e da inserção, nos
textos das normas, de “conceitos indeterminados”. A exposi­
ção de Eduardo Garcia de Enterría (1983/433 e ss.) a respei­
to deles é primorosa e dela me valerei, na sintética reprodu­
ção de seus argumentos.
Os conceitos indeterminados — que compreendem concei­
tos de experiência ou de valor — não conduzem a uma situa­
ção de indeterminação na sua aplicação. A aplicação deles,
segundo Garcia de Enterría, só permite uma “unidade de so­
lução" em cada caso (1983/434). Assim, quando se fala, em
boa-Jé, v.g., o conceito se dá ou não se dá. Em outros termos,
em presença de um caso determinado há ou não há boa-fé:
tertium non datur.
Em razão disso, a aplicação dos conceitos indeterminados
só permite uma única solução justa. Contrariamente, o exer­
cício da potestade discricionária permite uma pluralidade de
soluções justas ou, em outros termos, a opção entre alterna­
tivas que são igualmente justas desde a perspectiva do direi­
to (1983/434). A discricionariedade é essencialmente uma li­
berdade de eleição entre alternativas igualmente justas ou
entre indiferentes jurídicos — porque a decisão se funda­
menta em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econô­
micos etc.), não incluídos na lei e remetidos ao juízo subjeti­
204 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

vo da Administração — , ao passo que a aplicação de concei­


tos indeterminados é um caso de aplicação da lei.
A conseqüência mais relevante que se extrai dessa distin­
ção respeita precisamente ao papel a ser desempenhado pelo
Poder Judiciário diante de ambas as hipóteses. Se não lhe cabe,
por um lado, a apreciação da decisão discricionária, por outro
lhe cumpre, inquestionavelmente, manifestar-se sobre a apli­
cação, pela Administração, dos conceitos indeterminados.
A distinção entre as duas técnicas — da discricionarie­
dade e dos conceitos indeterminados — permite-nos, assim,
a depuração, no campo da primeira delas, de uma série de
expressões (da Administração] que notoriamente, em termos
de fidelidade aos valores do chamado Estado de Direito, nele
não poderiam caber, ainda que lá se as tivesse como incluí­
das. Daí por que Garcia de Enterría (1983/435) — referindo
que conceitos como urgência, ordem pública, ju s to preço, cala­
midade publica, medidas adequadas ou proporcionais, inclu­
sive necessidade pública, utiUdade pública e até interesse pú ­
blico, não permitem, em sua aplicação, uma pluralidade de
soluções justas, mas apenas uma solução em cada caso —
anota a virtual conversão, para a doutrina germânica, da ge­
neralidade das potestades discricionárias em regradas, posto
que, explícita ou implicitamente, todas as potestades discri­
cionárias se outorgam para alcançar um interesse público,
conceito indeterminado cuja aplicação só permitiria, em cada
caso, uma solução justa.

15. Embora convicto da correção das conclusões a que


encaminha a tese postulada, uma ressalva devo opor a um
dos seus fundamentos, precisamente o que faz repousar na
“unidade de solução justa” a distinção entre as duas técnicas
consideradas. A este ponto logo adiante retomarei. De qual­
quer modo, cumpre prontamente observarmos que inexis-
tem, no âmbito do direito, soluções exatas — uma para cada
caso — , porém, sempre, pará cada caso, um elenco de solu­
ções corretas.
Penso, assim, podermos apartar as duas técnicas na con­
sideração dos juízos aos quais correspondem. No exercício
da discricionariedade o sujeito cuida da emissão de juízos de
oportunidade, na eleição entre indiferentes jurídicos: na apli­
IX — DISCRICÍONARIEDADE E LEGALIDADE 205

cação de conceitos indeterminados (vale dizer, das noções) o


sujeito cuida da emissão de juízos de legalidade. Por isso é
que — e não porque o número de soluções ju sta s varia de
uma outra hipótese — são distintas as duas técnicas,

4. A in d a a posição da doutrina brasileira

16. Penso ter bem demonstrado dois equívocos, determi­


nantes de uma série de outros, que deles se desdobram, na
posição adotada por grande parte da nossa doutrina em rela­
ção à dtscricionariedade: em primeiro lugar, a admissão da
existência de "conceitos indeterminados”, no que se faz con­
fusão entre conceito e term o (expressão do conceitoí 1 e a dis­
tinção entre noção e conceito é ignorada; em segundo, a indis­
tinção entre juízos de legalidade e ju ízos de oportunidade.
Não se dão conta, quantos incidem nesses erros, de que
estão a superpor e identificar a atividade discricionária da Ad­
ministração com a atividade de interpretação do direito.

17. Ainda que Francisco Campos tenha sustentado que o


jundam ento do poder discricionário da Administração não resi­
de em qualquer atributo que seja peculiar ao ju ízo administrati­
vo, a doutrina, no tratamento tradicionalmente' conferido à
discricíonariedade, insiste, em última instância, na voz de
Celso Antônio (1992/26, nota 12), em afirmar que o mesmo
juízo lógico, exatamente o mesmo juízo lógico, quando prati­
cado pela Administração é discricionário (= ju ízo de oportuni­
dade); quando praticado pelo Judiciário é dicção do direito (=
interpretação, ju ízo de legalidade).
Nada mais errado.

18. Deveras, tanto a superposição da atividade discricio­


nária da Administração à atividade de interpretação do direito
quanto a alusão ao sujeito que a pratica como critério de dis­
tinção entre ju ízo de oportunidade (discricíonariedade) e ju ízo
de legalidade (interpretação do direito) são insustentáveis.

1. Ou se admite que o pensamento {a palavra) determina a realidade..


206 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Diz Francisco Campos que, na discricionariedade, o con­


teúdo do ato a ser praticado (pela Administração) “não é sus­
cetível de uma determinação objetiva” (1958/23).
Isso, precisamente isso, o que sustenta Celso Antônio
Bandeira de Mello, ao afirmar que, na discricionariedade, nãõ
se pode da lei “extrair objetivamente uma solução unívoca
para a situação vertente” (1992/48 e 1993/420). E tal por­
que, na dicção de Celso Antônio, essa solução unívoca (“pro­
vidência ideal"), em muitas situações, “é objetivamente incog-
noscível” — é “in Goncreto incognoscível a solução perfeita
para o atendimento da finalidade, isto é, do interesse consa­
grado pela norma” (1992/43 e 48).,
A estrutura de pensamento de ambos em relação à maté­
ria, e dos que os seguem, é, como se vê, uma só.
Celso Antônio (1993/419), contudo, vai além e, citando
André Gonçalves Pereira, diz: “A discricionariedade começa
onde acaba a interpretação... Reduzir a discricionariedade à
simples formulação de um juízo é afinal negar o próprio po­
der discricionário, reduzir todo o poder ã vinculação e pôr-se
em contradição manifesta com o direito positivo”.
Daí por que importa (i) inicialmente perquirirmos se o di­
reito brasileiro consagra hipóteses de discricionariedade; (ii)
após, se as atividades que a doutrina tradicional aponta co­
mo de discricionariedade da Administração, efetivamente, in­
cluindo-se entre aquelas, distinguem-se da atividade de in­
terpretação do direito.

19. A discricionariedade, vimos, expressa-se na formula­


ção de juízos de oportunidade, importando eleição entre indi-
ferentesJurídicos, à margem, pois, da legalidade.
Logo, no Estado de Direito, qualquer agente público so­
mente deterá competência para a prática de atos discricioná­
rios — isto é, exercitando as margens de liberdade de atuação
fora dos quadrantès da legalidade — quando norma jurídica
válida a ele atribuir a formulação de Juízos de oportunidade.
Fora dessa hipótese, qualquer agente público estará jungido,
subordinado, à legalidade. Inclusive quando lhe incumba o
dever-poder de interpretar/aplicar texto ou textos normativos
que veiculem “conceitos jurídicos indeterminados".
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 207

Exemplo clássico de ato discricionário, cuja competência


é atribuída ao Presidente da República, encontramos na es­
colha e nomeação, após aprovado o nome pelo Senado Fede­
ral, de ministro do Supremo Tribunal Federal (arts. 84, XIV, e
101 e-parágrafo único da Constituição de 1988): entre quais­
quer pessoas que tenham mais de 35 e menos de 65 anos de
idade, notável saber jurídico e reputação ilibada, guardados
esses requisitos, o Presidente da República poderá escolher
o jurista que entender; a escolha de qualquer deles, no qua­
dro daqueles requisitos, será juridicamente indiferente.
Temos que sim, pois: o direito brasileiro consagra hipóte­
ses de: discricionariedade.
Importa, a seguir, portanto, identificarmos o conteúdo da
atividade de interpretação do direito.

5 . A interpretação do direito 2

20. Interpretar não é apenas compreender. A interpreta­


ção consiste em mostrar algo: ela vai “do abstrato ao concre­
to, da fórmula à respectiva aplicação, á sua ‘ilustração’ ou à
sua inserção na vida” (Ortigues 1987/220; na interpretação
de fatos, ao contrário, vai-se do concreto ao abstrato, da ex­
periência à linguagem). A interpretação, pois, consubstancia
uma operação de mediação que consiste em transformar uma
expressão em uma outra, visando a tornar mais compreensí­
vel o objeto ao qual a linguagem se aplica.

21. Da interpretação do texto surge a norma, manifestan­


do-se, nisso, uma expressão de poder, ainda que o intérprete
compreenda o sentido originário do texto e o mantenha (deva
manter} como referência de sua interpretação (Gadamer 1991/
381). Daí por que Kelsen (1979/469 e ss.) qualifica os intér­
pretes possíveis, chamando de intérprete autêntico aquele do­
tado desse poder.
Lembre-se: o intérprete dotado de poder suficiente para
criar normas, a partir delas construindo, em cada caso, a nor­

2. V, meu Ensaio e discurso sobre a interpretação do direito, Malhelros


Editores, no prelo.
208 O D IRErrO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ma de decisão, é o intérprete autêntico— isto é, fundamental­


mente, o juiz; não obstante, também os que naó preenchem
os requisitos do intérprete autêntico (os.que não são juízes) In­
terpretamos/aplicamos o direito, até o momento anterior à
norma de decisão.
Porque a interpretação do direito consiste em concretar a
lei em cada caso, isto é, na sua aplicação (Gadamer 1991/
401), o intérprete, ao interpretar a lei, desde um caso concre­
to, a aplica. Interpretação e aplicação não se realizam autono-
mamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e
em virtude de um determinado caso dado (Gadamer 1991/
397). Assim, existe uma equação entre interpretação e apli­
cação: não estamos, aqui, diante de dois momentos distin­
tos, porém frente a uma só operação (Marí 1991/236). Inter­
pretação e aplicação se superpõem.

22. Kelsen (1979/469 e ss.), como observei, distingue a


“interpretação autêntica”, feita pelo órgão estatal aplicador
do direito, de qualquer outra interpretação, especialmente a
levada a cabo pela ciência jurídica.
A interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de
conhecimento) do direito a aplicar combina-se com um ato
de vontade em que o órgão aplicador do direito efetua uma
escolha entre as possibilidades reveladas através daquela
mesma interpretação cognoscitiva. É este ato de vontade (a
escolha) que peculiariza a interpretação autêntica. Ela “cria di­
reito”, tanto quando assuma a forma de uma lei ou decreto,
dotada de caráter geral, como quando, feita por um órgão apli­
cador do direito, crie direito para Um caso concreto ou execu­
te uma sanção.
As demais interpretações rido criam direito, visto que ces­
sam no momento da transformação do texto em norma, ape­
nas o intérprete autêntico sendo'revestido do poder de criar di­
reito, no momento èm que define normas de decisão.

23. Devo, a esta altura, relembrar, aludindo à exposição


que desenvolvi anteriormente (capítulo 1, n. 1.7, itens 24-25,
acima), que a interpretação (que já é aplicação do direito) é
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 209

uma prudência e esta não é nem ciência, nem arte. A pru­


dência é razão intuitiva, que não discerne o exato, porém o
correto — não é saber puro, separado do ser.
Por isso também insisto na inexistência de uma única
resposta correta [verdadeira, portanto) para todos os casos, ju ­
rídicos — ainda que, repita-se, o intérprete autêntico esteja,
através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico.

24. Em conseqüência, porque nesta direção flui o discur­


so, devo ferir a questão da discricionariedadejudicial.
De minha exposição resulta nitidamente evidenciado que
nego a possibilidade de o intérprete autêntico produzir nor­
mas livremente, no exercício de discricionariedade.
Todo intérprete estará sempre vinculado pelos textos de
direito, em especial pelos que veiculam princípios, que in­
terprete.
A “abertura” dos textos de direito, embora suficiente para
permitir permaneça o direito a serviço da realidade — e, aí, a
necessidade do uso, profuso, neles, de “conceitos indetermi­
nados, imprecisos, vagos, elásticos, fluidos" (vale dizer, de
noções) — , não é absoluta. Qualquer intérprete estará, sem-
pre, permanentemente por eles atado, retido. Do rompimen­
to dessa retenção pelo intérprete resultará a subversão do
texto.
Além disso, outra razão, maior, nos impele a repudiar o
entendimento de que o juiz atua no campo de uma certa “dis­
cricionariedade". Essa razão repousa sobre a circunstância
de a ele não estar atribuída a formulação de juízos de opor-
tunidade, porém, exclusivamente, de juízos de legalidade.
Ainda que não seja o juiz, meramente, a “boca que pronuncia
as palavras da lei”, sua ju n çã o — dever-poder — está contida
nos lindes da legalidade (e da constltucionalidade). Interpre­
tar o direito é formular ju ízos de legalidade. A discriciona­
riedade — não será demasiada esta repetição — é exercitada
em campo onde se formulam ju ízos de oportunidade, exclusi­
vamente, porém, quando uma norma jurídica tenha atribuí­
do à autoridade pública a sua formulação.
O que se tem erroneamente denominado de discriciona­
riedade ju d icia l é poder de definição de normas de decisão.
210 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

posterior ã produção de normas jurídicas, que o juiz exercita


formulando ju íz o s de legalidade (não de oportunidade). A dis­
tinção entre ambos esses juízos — repito-o, ainda — encon­
tra-se em que o ju íz o de oportunidade comporta uma opção en­
tre indiferentes jurídicos, procedida sulyetiüamente pelo agen­
te; o ju ízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no
campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve
atado, retido, pelo texto.
Por isso mesmo é que, não atuando no mesmo plano lógi­
co, de modo que se possa opor a legalidade à discrictonarie-
dade — e esta decorrendo, necessariamente e sempre, de
uma atribuição normativa a quem a pratica — , a discriciona-
riedade se converte em uma técnica da legalidade.
Ainda quando o juiz cogite dos princípios, ao atribuir peso
maior a um deles — e não a outro — , ainda então não exerci­
ta discricionariedade. O momento dessa atribuição é extre­
mamente rico porque nele, quando se esteja a perseguir a de­
finição de uma das soluções corretas, no elenco das possí­
veis soluções corretas a que a interpretação do direito pode
conduzir, pondera-se o direito, todo ele (e a Constituição in­
teira), como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato — as cir­
cunstâncias peculiares do caso — e jurídicas — lingüísticas,
sistêmicas e funcionais — , são descortinadas. E, paradoxal­
mente, é precisamente o fato de o intérprete autêntico estar
vinculado, retido, pelos princípios que tom a mais criativa a
prudência que pratica.

25. Por derradeiro, ã questão de se saber quando o intér­


prete autêntico (= o juiz) subverte o texto, cumpre observar­
mos que, sendo a interpretação uma prudência (ela não é sa­
ber puro, separado do ser), essa subversão verificar-se-á quan­
do estiver ele a produzir interpretante (norm a) não correto. A
apuração dessa subversão também é (deve ser) objeto de uma
prudência.

6 . D iscricionariedade " versus” interpretação


26. A discricionariedade, como vimos, consiste — na con­
cepção da doutrina tradicional, dicção de Celso Antônio —: na
IX — DISCRICÍONARIEDADE E LEGALIDADE 211

“margem de liberdade que remanesça ao administrador para


eleger, segundo critérios consistentes de razoabüidade, um,
dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante
cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a so­
lução mais adequada à satisfação dà finalidade legal, quan­
do, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade
conferida no mandamento, dela não se possa extrair objeti­
vamente uma solução unívoca para a situação vertente”.
Dela excluída a expressão “ou da liberdade conferida no
mandamento” — porque aí, sim, a norma pode atribuir ao admi­
nistrador a formulação de juízo de oportunidade — , ao enun­
ciado dessa definição extraímos os seguintes elementos:
i) margem de liberdade (do administrador)
ü) para eleger (segundo critérios consistentes de razoabüi­
dade)
iii) um,
iv) entre pelo menos dois comportamentos cabíveis (perante
cada caso concreto)
v) a jim de cum prir o dever de adotar a solução mais ade­
quada à satisfação da finalidade legal
—-quando —
vi) (por força da flu id ez das expressões da leQ dela não se
possa extrair objetivam ente uma solução unívoca para a situa­
ção vertente.
Diz Francisco Campos que o conteúdo do ato a ser prati­
cado pela Administração não é suscetível de uma determina­
ção objetiva. Celso Antônio, que não se pode da lei extrair ob­
jetivam ente uma solução unívoca para a situação vertente, por­
que essa solução unívoca (providência ideal), em muitas situa­
ções, ê ob jetiva m en te in cog n os cív el — é “in c o n c re to "
in cog n os cív el a solução perfeita para o atendimento da fin a li­
dade, isto ê, do interesse consagrado pela norma.
Dizem, ambos, precisamente o mesmo.

27. A interpretação (interpretação/aplicação), consubstan­


ciando prudência, que não conhece o exato, porém apenas o
2to, supõe a faculdade, do intérprete, de escolher uma,
212 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

entre várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo


que essa escolha seja apresentada como adequada — sem­
pre, em cada caso, inexiste uma interpretação verdadeira (úni­
ca correta).
A esse enunciado extraímos os seguintes elementos:
a) faculdade [úo intérprete)
b) de escolha
c) de uma,
d) entre várias interpretações possíveis, em cada caso
e) de modo que essa escolha seja apresentada como ade­
quada
— sempre —
f) inexiste, em cada caso, uma interpretação verdadeira [úni­
ca correta).

28. Confrontados os enunciados alinhados nos itens 26 e


27, acima, temos:
— i) margem de liberdade (do administrador) versus a) fa ­
culdade (do intérprete)
— ii) para eleger (segundo critérios consistentes de razoa-
bilidade) versus b) de escolha
— iii) um versus c) de uma
■— iv) entre pelo menos dois comportamentos cabíveis [pe­
rante cada caso concreto) versus d) entre várias interpretações
possíveis, em cada caso
— v) a fim de cum prir o dever de adotar a solução mais
adequada à satisfação da finalidade legal versus e) de modo
que essa escolha seja apresentada como adequada
— quando — versus — sempre —
— vi) (p or fo rça da fluidez das expressões da lef) dela não
se possa extrair objetivamente urna solução unívoca para a
situação vertente versus f) inexiste, em cada caso, uma inter­
pretação verdadeira (única correta).
Vale dizer, com todas as letras: o que a doutrina tradicional
concebe como sendo a discricionariedade é a interpretação...
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 213

29. Dir-se-ia, eventualmente, que o derradeiro elemento


na definição de discricionariedade — p or fo rça da fluid ez das
expressões da lei, dela não se pode extrair, objetivam ente, uma
solução unívocapara a situação vertente — a distingue.
Mas isso, além de falso, é ingênuo. Pois a interpretação,
vimos, supõe a faculdade, do intérprete, de escolher uma, en­
tre várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo que
essa escolha seja apresentada como adequada, precisamente
porque, p or força dafluidez das expressões da lei, dela não se
pode extrair, objetivam ente, uma solução unívoca para cada
situação.
Sempre, em cada caso, na interpretação, sobretudo de tex­
tos normativos que veiculem “conceitos indeterminados”,
inexiste uma interpretação verdadeira (única correta); a única
interpretação correta — que haveria, então, de ser exata — é
objetivamente mcognoscível, “ín concreto” in cog n os d v el, co­
mo haveria de dizer Celso Antônio Bandeira de Mello.
Kelsen, aliás, seja ao tratar da interpretação, na Teoria
Pura (1979/463 e ss.) — indiretamente — , seja na Teoria Ge­
ral do Estado (1934/317-319) — expressamente — , deixa
bem clara a impossibilidade lógica de se encontrar distinções
qualitativas entre a atividade do juiz (ao interpretar) e a ativi­
dade do administrador, na prática da fa lsa discricionarieda­
de. É Kelsen, ademais, quem afirma que a divisão dos atos
jurídicos em livres (discrtcio/idrios) e vinculados carece de
sentido, mesmo porque a distinção entre ambos não significa
senão o propósito, em quem a afirme, de despojar certos atos
de seu caráter jurídico, declarando-os essencialmente livres
(1934/319).

A Kelsen, como se vê, rigoroso critico do direito, não escapa o


sentido perverso da discricionariedade. Anoto parenteticamente,
neste passo, que Francisco Campos (1958/19-20) não tem o me­
nor pudor em citá-lo de modo a subverter — ou, no mínimo, a
expõ-lo de modo incompleto — seu pensamento.

30. Então é certo, nítido como a luz solar passando através


de um cristal (bem poüdo): a superação da indeterminação (o
preenchimento) dos “conceitos indeterminados” (vale dizer.
214 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

das noções) opera-se no campo da interpretação, não no cam­


po da discricionariecLade; importa a formulação de juízo de le­
galidade, não de ju ízo de oportunidade.

7. A cham ada “discricíonariedade técnica ”


31. No mais, desejo ainda referir, para negá-la, a tese da
existência de uma certa discricíonariedade técnica, assim es­
truturada: há decisões administrativas que supõem tal grau
de especialização técnica que somente aquele que as toma, a
partir da consideração de elementos altamente técnicos, as
pode valorar; assim, o Poder Judiciário deve acatá-las, exer­
cendo controle unicamente em relação aos erros manifestos
que nelas se exteriorizem; daí por que a Administração, nes­
ses casos, goza de liberdade (técnica) de decisão, liberdade
que, no entanto, não é absoluta, visto que coartada quando o
seu exercício resultar viciado por erro manifesto.
A argumentação em favor dessa discricionariedade técnica
é oblíqua: de início se afirma a discricionariedade em seu se­
gundo sentido fraco (Dworkin), porque quem toma a decisão
deve ser titular da derradeira capacidade para tanto; apenas
após isso intervém o argumento segundo o qual quem toma a
decisão não está vinculado a nenhum standard. Dá-se, con­
tudo, exatamente o contrário: se a decisão é técnica, eviden­
temente há standards, e muito precisos, a serem estrita e ri­
gorosamente atendidos por quem toma a decisão!
Além disso, podemos ainda adotar, em relação à discricio-
nariedade técnica, a exposição crítica de Antônio Francisco
de Sousa (1987/308-309): i) a definição do que seja “decisão
altamente técnica” é subjétiva, visto que não se pode respon­
der em termos satisfatórios' onde começa e onde acaba o ca­
ráter "altamente técnico"; ii) quando se trata de decisões re­
feridas a matérias que o ju iz não conheça — até porque não
tem o dever de conhecer todas as matérias — , pode e deve
ouvir peritos, a fim de qué sejam plenamente esclarecidos os
fatos a respeito dos quais decidirá; üi) da inegável dificuldade
de controle de tais decisões não se pode extrair, a benefício
da certeza e da segurança do direito, uma liberdade (autori­
zação) para que a Administração decida ao seu talante; essa
liberdade apenas pode ser a ela atribuída diretamente, pela
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 215

lei; iv) ao limitar-se o controle jurisdicional ao “erro manifes­


to”, coloca-se à margem desse controle o "erro não manifesto”;
é certo, porém, que tanto o “erro manifesto” quanto o “erro
não manifesto” são ilegais e devem ser controlados e corri­
gidos, jurisdicionalmente;. a tolerância do erro, m anifesto ou
não manifesto, se não concedida pela lei, não pode ser conce­
dida pelo juiz; ademais, também não se pode responder de
modo satisfatório onde começa e onde acaba o caráter mani­
festo do erro,
A tese da discricionariedade técnica é, como se vê, insus­
tentável.

Adem ais, passo à margem, aqui, do que se tem designado n o­


va m odalidade de discricionariedade administrativa, voltada à “oti­
mização flexível das funções do Estado” (Bullinguer 1987/21-22 e
Sousa 1987/280-283), decorrente d a dejuridiflcação de determina­
das atuações estatais, quando a atividade administrativa não ex­
pressa a tensão dialética própria do liberalismo, autoridade versus
liberdade de um indivíduo. Relem bre-se que o princípio da legali­
dade não respeita aos procedimentos administrativos em si, mas
tão-somente enquanto a eles seja correlata um a situação subjetiva
do particular, sobre a qual tenha incidência um efeito de extinção
ou limitação. Por isso ê que, u.g., no caso d a atividade de progra­
mação do Estado e de outros entes jurídicos, que não se exprime
em atos autoritários, n ão é ele aplicado.

8. Exam e e controle , p elo P od er Judiciário,


dos atos discricionários 3
32. Atingido este ponto de minha exposição, entendo oportu­
no dedicar alguma atenção ao tema do exame e controle dos
atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário.
Exemplarmente — para que o equívoco proposital no enun­
ciado da indagação imunize contra a perseverança no equi­
voco — , proponho a seguinte pergunta: incumbem ao Poder
Judiciário o exame e controle de atos administrativos dis­
cricionários motivados por razões de interesse público?

3. V., na jurisprudência do STF, o acórdão no RMS 24699.


216 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

A questão, como para logo se vê (ou se deveria ter visto),


está equivocadamente formulada, dado que atos motivados
por razões de in teresse p ú b lic o não são atos discricionários.
“Interesse público” é termo de “conceito indeterminado”
(vale dizer, de ürná noção). Logo, interesse público deve, em ca­
da caso, ser interpretado (relembre-se que interpretação apli­
cação).
Ninguém, ao dele tratar, jamais, exercita atividade discri­
cionária.
O exercício, pela Administração, da autêntica discricio­
nariedade— formulação de ju íz o de oportunidade, que ape-nas
poderá exercitar quando norma válida a ela atribuir essa fa­
culdade — não está sujeito ao controle do Poder Judiciário, sal­
vo quando esse exercício consubstancie desvio ou abuso de po­
der ou de finalidade. Dai por que, embora o controle da dis-
crícionanedade apenas se justifique quando tal ocorra, o seu
exame, pelo Judiciário, sempre se impõe. Por isso, demite-se
de seu dever, afrontando o direito, o juiz que liminarmente re­
cuse o exame de ato discricionário, embora deva, após esse exa­
me, se, em determinado caso, apurar a inocorrência de desvio
ou abuso de poder ou de finalidade, abster-se de controlar (no
sentido de questionar a sua correção) o ato.

33. Atos motivados por razões de interesse público — bem


assim todos e quaisquer atos de aplicação de “conceitos in­
determinados” (vale dizer, de noções) (=ju ízos de legalidade) —
estão, evidentemente, sujeitos ao exame e controle do Poder
Judiciário.
Aliás, mesmo a doutrina que deriva a discricionariedade
dos “conceitos indeterminados" admite, e afirma, o dever, do
Judiciário, de sindicar esses atos, que erroneamente chama
de discricionários.

Veja-se, por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello (1993/424


e ss.). A tarefa de exame da aplicação de “conceitos indetermina­
dos” é, para Celso Antônio, interpretativa (1993/428); a sua aplica­
ção, discricionária. Do que concluo que a distinção entre uma e
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 217

outra atividades — interpretação e discricionariedade — estaria no


sujeito que as pratica. Aqui, mais uma vez, por outro lado, a in­
devida cisão entre aplicação e interpretação (v. item 20, acima).

Indetermtntido o termo do conceito de interesse público — e


mesmo e especialmente porque ele é contingente, variando
no tempo e no espaço, eis que não é conceito, mas noção — , a
sua interpretação {interpretação = aplicação) reclama a escolha
de uma, entre várias interpretações possíveis, em cada caso, de
modo que essa escolha seja apresentada como adequada.
Como a atividade da Administração é infralegai — admi­
nistrar é aplicar a lei de ofício, dizia Seabra Fagundes — , a au­
toridade administrativa está vinculada pelo dever de m otivar
os seus atos.

A Constituição do Estado de São Paulo afirma expressamente,


no seu art. 111, o princípio da motivação do ato administrativo. Em­
bora não o faça a Constituição de 1988, este é um princípio do di­
reito brasileiro (v. meu A ordem econômica na Constituição de 1988,
2001/75 e ss.).

Assim, a análise e ponderação da motivação do ato admi­


nistrativo informam o controle, pelo Poder Judiciário, da sua
correção.
Então, verifica o Judiciário se o ato é correto. Não, note-se
bem — e desejo deixar isso bem vincado — , qual o aio correto.
E isso porque, repito-o, sempre, em cada caso, na interpre­
tação, sobretudo de textos normativos que veiculem “concei­
tos indeterminados” (vale dizer, noções), qual o de interesse
público, inexiste uma interpretação verdadeira (única correta); a
única interpretação correta — que haveria, então, de ser exa­
ta — é objetivamente incognoscível (é, in concreto, in cog n os-
cíueí).
Ademais, é óbvio, o Poder Judiciário não pode substituir-
se ã Administração, enquanto personificada no Poder Execu­
tivo. Logo, o Poder Judiciário verifica se o ato é correto-, apenas
isso.
218 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Inobstante o quanto acima afirmei relativamente à sujeição


de todo e qualquer juízo de Legalidade ao exame e controle do Poder
Judiciário, devo observar que o controle, pelo Poder Judiciário,
mesmo de determinados atos vinculados, há de, em certas circuns­
tâncias, ser relativizado. Adoto, neste passo, exposição ainda de
Antônio Francisco de Sousa (1994/213 e ss.), praticamente a
transcrevendo. Segundo ele, excepcionalmente, certas decisões
vinculadas contêm elementos que, não obstante vinculem o autor
do ato, são incompatíveis com a idéia de controle por um órgão es­
tranho à entidade que decide. Aí encontramos (i) as decisões alta­
mente pessoais, fiij as valorações vinculativas, (lii) as decisões de ca­
ráter prognóstico e (iv) as decisões de ertformaçcuo. É, no entanto, ób­
vio que o desvio ou abuso de poder ou de finalidade impõe, em
qualquer circunstância, a anulação judicial de qualquer dessas
decisões.
Decisões altamente pessoais, prossegue o autor, são aquelas in-
dissoluvelmente ligadas à personalidade de quem as toma; aí as deci­
sões tomadas em exames, as apreciações pedagógico-científlcas,
as apreciações dos servidores da Administração pelos seus superio­
res. Trata-se de “decisões que se caracterizam pela Iirepetibilidade
da situação na sua globalidade e no seu caráter único”.
Valorações vinculativas são decisões tomadas por órgãos admi­
nistrativos especiais, quais as comissões que apreciam filmes ou
avaliam monumentos, v.g. Cuida-se, aí, de decisões que assentam
em padrões de apreciação dos domínios da cultura, da ética etc,
Essas decisões distinguem-se das primeiras na medida em que
aquelas se caracterizam pela “iirepetibilidade” (o juiz, por falta de
fundamento da apreciação, não pode repetir a decisão da Adminis­
tração) , ao passo que estas se caracterizam não pela impossibilida­
de de controle, mas pela falta de competência de controle. A compe­
tência exclusiva destes órgãos para o “último reconhecimento" re­
sulta não apenas da suá perícia, mas sobretudo da sua “represen­
tação social” e da sua independência e imparcialidade.
Decisões de caráter prognóstico são as fundadas na antecipação
intelectual do futuro, ou seja; sobre uma afirmação sobre acon­
tecimentos futuros (Sousa 1994/115). Essas decisões de caráter
prognóstico devem estar sujeitas a controle limitado porque, como
propõe Bachof (apiid Sousa 1994/215), em caso dê duvida em si­
tuações desta natureza, o direito à última decisão deve ser reco­
nhecido à autoridade administrativa, que será política, econômica
e socialmente responsável por uma eventual decisão errada.
Decisões de enformação — ou “decisões de planificação admi­
nistrativa” — são aquelas tomadas em um todo que consubs­
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 219

tancia uma política da Administração; aí “o político infiltra-sc no


jurídico, sem deixar limites claros onde acaba um e principia o
outro”. Essas decisões também devem estar sujeitas a controle
limitado pelo Judiciário.

34. Visando a operar essa verificação, o Poder Judiciário


apura (i) se o ato se insere no quadro (na moldura) do direito;
(il) se o discurso que o justifica se processa de maneira racio­
nal; (iii) se ele atende ao código dos valores dominantes (crité­
rios propostos por Aarnio; vide item 25, acima).
E, nisso, éntre outros parâmetros de análise e ponderação
de que para tanto se vale, o Judiciário não apenas examina a
proporção que marca a relação entre meios e fins do ato, mas
também aquela que se manifesta na relação entre o ato e
seus motivos, tal e qual declarados na motivação.
Avalia a adequação do ato ao enganosamente denomina­
do princípio da proporcionalidade.

35. Nossa doutrina tem cometido inúmeros erros e peca­


dos ao tratar desse tema.
É que o chamado "princípio” da proporcionalidade con­
substancia não um princípio, mas um postulado normativo
aplicativo. Como tal im põe — qual observa Hum berto Berg-
mann Á vila (1999/170) — uma condição form a l ou estrutural
de conhecim ento concreto (= aplicação) de outras normas. Des­
dobra-se em três subpostulados, o da adequação, o da neces­
sidade ou indispensabilidade e o da proporcionalidade em
sentido estrito (Alexy 1986/100; Bonavides 1998/360 e ss.;
Guerra Filh o 1989/69 e ss.).
A proporcionalidade não consubstancia princípio dado que,
como salienta Alexy (1986/100, nota 84), adequação, neces­
sidade e proporcionalidade em sentido estrito não são pon­
deradas em relação a algo diferente; não se passa que algu­
mas vezes tenham precedência, outras não; o que se pergunta
é se essas exigências são satisfeitas ou não e se sua não-satis-
façâo traz como conseqüência a ilegalidade; daí por que essas
três exigências, nas quais se desdobra a proporcionalidade em
sentido amplo, são classificadas como regras.
220 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

A propósito, diz Humberto Bergmann Ávila (1999/169-170):


“sua descrição abstrata não permite uma concretização em princí­
pio gradual, pois a sua estrutura trifãsica consiste na única pos­
sibilidade de sua aplicação; a aplicáção dessa estrutura inde­
pende das possibilidades fátiças e normativas, já que o seu con-
teúdo normativo é neutro relativamente ao contexto fático; sua
abstrata explicação exclui, em principio, a sua aptidão e necessi­
dade de ponderação, pois o seu conteúdo não irá ser modificado
no entrechoque com outros princípios, Não bastasse, a propor­
cionalidade não determina as razões às quais a sua aplicação
atribuirá um peso, mas apenas uma estrutura Formal de aplica­
ção de outros princípios. (...). Não consiste numa condição no
sentido de que, sem ela, a aplicação do direito seria impossível.
Consiste numa condição normativa, isto é, instituída pelo próprio
direito para a sua devida aplicação. Sem obediência ao dever de
proporcionalidade não há a devida realização integral dos bens ju ­
ridicamente resguardados. Ê dizer: ele traduz um postulado nor­
mativo aplicativo como aqui se afirma".

Nossa doutrina a tem, porém, banalizado, de modo a, to­


mando-a como um princípio superior, pretender aplicá-lo a
todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Ju ­
diciário a faculdade de “corrigir” o legislador, invadindo a
competência deste.
Jã a razoabilídade foi cunhada no seio do direito adminis­
trativo, atuando como instrumento de controle do exercício,
pela Administração, de discricionariedade.
A distinção entre ambas é debuxada por Humberto Berg­
mann Ávila (1999/173-174): (i) “Primeiro, há casos em que é
analisada a correlação entre dois bensjurídicos protegidos por
princípios constitucionais, em função dos quais é preciso sa­
ber se a medida adotada é adequada para atingir o fim consti­
tucionalmente instituído (relação meio x fim), se a medida é
necessária enquanto não substituível por outro meio igual­
mente eficaz e menos restritivo do bem jurídico envolvido (re­
lação meio x meio) e se a medida não está em relação de des­
proporção em relação ao fim a ser atingido (relação meio xfim ).
Nesse caso, devem ser analisados dois bens jurídicos protegi­
dos por princípios constitucionais e a medida adotada para
sua proteção (...). Trata-se de um exame abstrato dos bens ju-
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 221

ridicos envolvidos (segurança liberdade, vida, etc.) especifica­


mente em função da medida adotada” — aqui, a proporcionali­
dade-, (il) “Segundo, há casos em que é analisada a constitu-
cionalidade da aplicação de uma medida não com base em
uma relação meio-fim, mas com fundamento na situação pes­
soal do sujeito envolvido. A pergunta a ser feita ê: a concre­
tização da medida abstratamente prevista implica a não-realiza-
ção substancial do bem jurídico correlato para determinado su-
j eito ? Trata-se de um exame concreto-individual dos bertsjurídi-
cos envolvidos, não em Junção da medida em relação a um
Jvn, mas em razão da particularidade ou excepcionalidade do
caso individual (...). A razoabilidade (...) determina que as con­
dições pessoais e individuais dos sujeitos envolvidos sejam consi­
deradas na decisão ”— aqui, a razoabilidade.
Nada há de novo na proporcionalidade e na razoabilidade,
postulados que desde há muito, e independentemente da for­
mulação dessas duas noções, vem o Poder Judiciário exerci­
tando na interpretação/aplicação do direito, como se ambas
estivessem contidas nas suas dobras (Ávila 1999/170).
Proporcionalidade e razoabilidade são, destarte, postula­
dos normativos da interpretação/aplicação do direito, e não
princípios.
A proporcionalidade (Verhãltnismãssigkeit) desdobra-se,
como observado, em três “subprincípios” — o de adequação
(Geeignetheit), o de necessidade [mandamento de uso do meio
mais brando) [Erforderlichkeit - Gebot des mildestem Mittels)
e o de proporcionalidade em sentido estrito (mandamento de
ponderação específica) {Verhãltnism ãssigkeit im engeren Sin-
ne — eigentliches Abwãgungsgebot) (Alexy 1986/100) — en­
contrando sua origem mais imediata na obra do último von
Jhering [D erZw eck im Recht e Der K am pf ums Kecht) (Bona-
vides 1993/315 e Guerra Filho 1989/70) e operando primor­
dialmente no campo dos juízos de legalidade, informando a
interpretação do direito. Porque opera neste campo é que
afeta, conformando-a, a atuação das autoridades adminis­
trativas (inclusive quando atuem com alguma margem de
discricionariedade autêntica = que a elas norma jurídica atri­
bua). Logo, toda atuação da autoridade administrativa, que
necessariamente supõe interpretação/aplicação do direito,
222 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

é informada pela proporcionalidade. Importando a proibição


de excesso (Übermassverbot), compele, na dicção de Pierre
Muller (apud Bonavides 1993/319). os órgãos do Estado a
adaptar, em todas as suas atividades, os meios de que dis­
põem aos fins que buscam e aos efeitos de seus atos; a pro­
porção adequada toma-se, assim, condição da legalidade. Essa
adequação encontra-se na conformidade dos meios com o obje­
tivo (Zielkonforrmlât) e na sua prestabilidade para atingir o fim
CZivecktcdglichkefí) do ato (Guerra Filho 1989/75). O razoável é o
veículo da idéia de proporcionalidade (Philippe 1990/21).

9. Observações conclusivas

3 6 . Penso ter demonstrado, no correr desta exposição, a


correção das verificações extraídas do texto do Ministro Sea­
bra.
Quanto à primeira delas, a discricionariedade, deveras, é
atribuída, pela lei (pela norma ju ríd ica válida, direi agora), à
autoridade administrativa.
A discricionariedade não é conseqüência da utilização,
nos textos normativos, de falsos, inexistentes — porque em
verdade se trata de noções — , “conceitos indeterminados”.
Em outros termos: a autoridade administrativa está au­
torizada a atuar discricionariamente apenas, única e exclusi­
vamente, quando norma jurídica válida expressamente a ela
atribuir essa atuação.
Insisto: a discricionariedade resulta de expressa atribui­
ção normativa à autoridade administrativa, e não da circuns­
tância de serem ambíguos, equívocos ou suscetíveis de rece­
berem especificações diversas os vocábulos usados nos tex­
tos normativos, dos quais resultam, por obra da inteipreta-
ção, as normas jurídicas.
S

37, Essa verificação será prontamente contestada, pelos


que aderem à doutrina brasileira da discricionariedade,4 me­
diante alusão ao argumento do porte de arma.

4- Uso a expressão “doutrina brasileira”, aqui, para referir a doutri­


na que referi nos itens 3 a 5, acima.
IX — DISCRICIONARIEDADE E LEGALIDADE 223

Esse, o argumento de sempre, assim enunciado: a) a. auto­


ridade policial pode, discricionariamente, perm itir ou não permi­
tir, indistintamente, a umas e a outras pessoas, o porte de ar­
ma; b) exerce essa liberdade, a autoridade policial, porque não
se pode da norma “extrair objetivam ente uma solução unívoca"
que informe quando o porte de arma. deve ser outorgado, quan­
do não deve ser outorgado.

E ssa doutrina, fazendo petição de princípio, assume como


dogma que o porte de arma é um ato dito discricionário (v. Celso
Antônio 1992/39).

A afirmação em “a” é, em face do direito brasileiro, corre­


ta. Mas não porque não se possa da norma “extrair objetiva­
mente uma solução unívoca”, que informe quando o porte de
arma deve ser outorgado, quando não deve ser outorgado.
No Brasil, a autoridade policial pode, discricionariamente,
perm itir ou não permitir, indistintamente, a umas e a outras pes­
soas, o porte de arma porque o ordenamento jurídico positivo
contempla texto normativo válido que expressamente a ela
atribui, nessa matéria, o exercício de discricionariedade: o
Decreto federal n. 92.795, de 18 de junho de 1986, especial­
mente no quanto dispõem o seu art. 3a e §§ l s e 2Q.
Assim, o argumento do porte de arma prova demasiada­
mente, mais do que desejariam os que aderem à doutrina
brasileira da discricionariedade.
Prova que, de fato, a discricionariedade, também neste ca­
so, resulta de expressa atribuição normativa à autoridade. E
prova ser equivocada a afirmação — em "b” — de que essa
autoridade atua discricionariamente porque não se pode da
norma “extrair objetivamente uma solução unívoca”, que infor­
me quando o porte de arma deve ser outorgado, quando não
deve ser outorgado.

38. Permito-me, ademais, ainda observar, neste passo,


que apenas em determinada hipótese cabe aludirmos a uma
discricionariedade judicial, porém também expressamente
atribuída pela norma ao juiz.
Refiro-me à discrionaríedade que o juiz pode exercitar ao
decidir no âmbito da jurisdição voluntária. Não estará ele en­
224 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tão, nos termos do que expressamente define o art. 1.109 do


Código de Processo Civil, obrigado a observar critério de lega­
lidade estrita; poderá adotar, em cada caso, a solução que re­
putar mais conveniente ou oportuna.
Apenas nessa hipótese poderá a autoridade judicial exer­
citar discricionariedade, contudo porque a tanto expressa­
mente autorizada pela norma processual. Formulará, então,
Juízo de oportunidade (adotará, em cada caso, a solução que
reputar “mais conveniente ou oportuna”).

39. Quanto à segunda verificação extraída do texto do Mi­


nistro Seábra, Inquestionável o fato de, no exercício da dis­
cricíonariedade, a autoridade administrativa formular ju ízos
de oportunidade.
A alusão ã circunstância de tais juízos respeitarem exclu­
sivamente à ocasião em que o ato deve ser praticado, ou à sua
utilidade, ou ao conteúdo do ato, é, ademais, preciosa, na me­
dida em que plenamente adequada à legalidade.
Relembro o quanto inicialmente afirmei, ao observar ine-
xlstir, assim para o direito público como para o direito no seu
todo, qualquer perspectiva fora da legalidade.
Cumpre-nos restaurá-la, o que impõe tomarmos a discri-
cionaríedade como uma técnica da legalidade, recusando a
doutrina que admite a convivência, no Estado de Direito, da
própria legalidade com uma injustificável categoria de “juízos
discricionários".
Insisto em que, tal como produzida pela nossa doutrina, a
concepção de discricionariedade Jragjliza a legalidade, permi­
tindo a introdução, nela — repito-o — , de um autêntico cava­
lo de Tróia.
Denunciando a afronta à legalidade, visando à restauração
de sua dignidade, na lembrança^ daquele que personifica o ideal
maior de jurista, íntegro e digno, honro a sua memória.
X
CRÍTICA D A "SEPARAÇÃO D O S PO D E R E S ":
A S FU N Ç Õ E S E S T A T A IS , OS REGULAM ENTOS
E A LEGALIDADE N O DIREITO BRASILEIRO ,
A S tlLEIS-M EDIDA”

1. A “separação" dos poderes. 2. Poder e função. 3. Norma Jurídica.


4. Função normativa e função legislativa. 5. Os regulamentos e a le­
galidade no direito brasileiro, 6. As “teis-medidc?.

“Donc, Vidée de séparer les aularités étatiques est completement


absente de 1’Espiit des lois; elle n’y est ni realisée, nijormulêe."
(Eisenmann)

1. A “separação " dos poderes


1. A separação dos poderes constitui um dos mitos mais
eficazes do Estado liberal, coroado na afirmação, inscrita no
art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789, de que “qualquer sociedade em que não esteja asse­
gurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação
dos poderes, não tem Constituição”.
A exposição de Marx e Engels (1986/72) a respeito das idéias
dominantes culmina com a enunciaçãò da doutrina da separação
dos poderes como lei eterna: “As idéias (Gedanken) da classe do­
minante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tem­
po, sua força espiritual dominante. A classe que tem ã sua dispo­
sição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos
226 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam sub­
metidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos
quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominan­
tes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, as relações materiais concebidas como idéias; por­
tanto, a expressão das relações que tomara uma classe a classe
dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indivíduos
que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas,
também consciência e, por isso, pensam; na medida em que do­
minam como classe e determinam todo o âmbito de uma época
histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão e, conse­
qüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensa­
dores, como produtores de idéias; que regulem a produção e a dis­
tribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por
isso mesmo, as idéias dominantes da época. Por exemplo, numa
época e num país em que a aristocracia e a burguesia disputam a
dominação e em que, portanto, a dominação está dividida, mos­
tra-se como idéia dominante a doutrina da divisão dos poderes,
enunciada então como ‘lei eterna”’.

Sua doutrina chega até nós a partir da exposição de Mon-


tesquieu, e não pela via da postulação norte -americana dos
freios e contrapesos. De resto, mesmo a prioridade de Montes-
quieu na sua formulação merece questionamentos, seja des­
de a ponderação de antecedentes remotos, em Aristóteles
(1982), seja na sua anterior enunciação por Bolinbroke e na
contribuição de Locke.

A “separação dos poderes” é, em Montesquieu, um mecanismo


imediatamente voltado à promoção da liberdade do indivíduo; pa­
ra os federalistas norte-americanos, diversamente, ela está ime­
diatamente voltada ã otimização do desempenho das funções do
Estado, fundando-se também no princípio da divisão do trabalho.
Aristóteles (1982/315-16; IV, 14) ensaia princípios análogos
àqueles sobre os quais, posteriormente, se apõia a doutrinà do
equilíbrio entre os poderes, ao aílrmar a existência, nos governos,
de três partes: “Toutes les. Constitutions comportent trois parties,
au sujet desquelles le législateur sérieux a la devoir d’étudier ce
qui est avantageux pour chaque Constitution. Quand ces parties
sont en bon état, la Constitution est nécessairement elle-même en
bon état, et les Constitutions different les unes des autres d’aprés
la façon différente dont chacune de ces parties est organisée. De
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇAO DOS PODERES" 227

ces trois parties, une première est celle que délibere sur les affai-
res communes; une seconde est celle qui a rapport aux magtstra-
tures (c’est-à~dire quelles magistratures 11 dolt y avoir, à quelles
matières dolt s’éntendre leur autorité, et quel doit être leur mode
de recrutement), et une troislème est la partie qui rend la justice”.
Releia-se o seguinte trecho: “Quand ces parties sont en bon. état,
la Constitution est nécessalrement en bon état (...)”. Bon état signi­
fica, no contexto da exposição arlstotélica, bem ordenadas (o senti­
do de bon état pode ser encontrado na Ética a Nicômaco, na idéia de
composição, justa medida, virtude no valor médio). Aristóteles, creio
seja assim, está imediatamente atento às funções, e não aos pode­
res do Estado.
A respeito de Bolinbroke, vide Schmitt [1982/187-188) e Tro-
per (1980/109-110).

2. John Locke (1973/97-98) é incisivo na proposição de


que se opere uma separação entre os poderes. Discorre, no
capítulo XII de sua obra, sobre os Poderes Executivo, Legis­
lativo e Federativo. Quanto a este último — e Locke pouca
importância dã à sua denominação: “se entenderem a ques­
tão, fico indiferente ao nome” — , aponta-o como distinto dos
dois primeiros: “Existe outro poder em uma comunidade que
se poderia denominar natural, visto como é o que corres­
ponde ao que todo homem tinha naturalmente antes de en­
trar em sociedade; porquanto, embora em uma comunidade
os seus membros sejam pessoas distintas ainda relativamen­
te umas às outras, e como tais são governadas pelas leis da so­
ciedade, contudo, relativamente ao resto dos homens, cons­
tituem um corpo que se encontra, como qualquer dos seus
membros anteriormente se encontrava, ainda no estado de
natureza com os demais homens. Daí resulta que as contro­
vérsias que se verificam entre qualquer membro da socieda­
de e os que estão fora dela são resolvidas pelo público, e um
dano causado a um membro desse corpo empenha a todos na
sua reparação. Assim, neste particular a comunidade inteira
é um corpo em estado de natureza relativamente a todos os
estados e pessoas fora da comunidade”. E continua Locke:
“Ai se contêm, portanto, o poder de guerra e de paz, de ligas e
alianças, e todas as transações com todas as pessoas e co­
munidades estranhas à sociedade, podendo-se chamar ‘fede­
rativo’, se assim quiserem”.
228 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Nas palavras de Locke, o Poder Executivo compreende a


execução das leis naturais da sociedade, dentro dos seus li­
mites, com relação a todos que a ela pertencem. O Poder Fe­
derativo, a gestão de segurança e do interesse do público fora
dela, juntamente com todos quantos poderão recebér benefi­
cio ou sofrer dano por ela causado. O Poder Legislativo é o
que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a for­
ça da comunidade no sentido da preservação dela própria e
de seus membros.
Segundo Locke, é conveniente que os Poderes Legislati­
vo e Executivo fiquem separados: “E como pode ser tentação
demasiado grande para a fraqueza humana, capaz de tomar
conta do poder, para que as mesmas pessoas que têm por
missão elaborar as leis também tenham nas mãos a facul­
dade de pô-las em prática, ficando dessa maneira isentas de
obediência às leis que fazem, e podendo amoldar a lei, não
só quando a elaboram como quando a põem em prática, a
favor delas mesmas, e assim passarem a ter interesse dis­
tinto do resto da comunidade, contrário ao fim da sociedade
e do governo”.
Se a separação entre Poderes Legislativo e Executivo é
conveniente, dificilmente podem separar-se e colocar-se ao
mesmo tempo em mãos de pessoas distintas os Poderes
Executivo e Federativo: ambos exigindo a força da socieda­
de para seu exercício, é quase impraticável colocar-se a for­
ça do Estado em mãos distintas e não subordinadas; além
disso — continuo a transcrever palavras de Locke — , na co­
locação destes poderes em mãos de pessoas que possam
agir separadamente, a força do público ficaria sob coman­
dos diferentes, o que poderia ocasionar, em qualquer oca­
sião, desordem e ruína.
Para logo se vê, destarte, que no pensamento de Locke
surge perfeitamente delineado o princípio da separação dos
poderes. De toda sorte, observa-se que, embora visualize três
tipos de poder, a separação que surge como conveniente e
viável é a que se operaria entre o Legislativo, de um lado, e o
Executivo e o Federativo, de outro. O que Locke propõe é
uma separação dual — e não tríplice — entre os três poderes
que descreve.
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES” 229

3. A exposição de Montesquieu (1973/156 e ss.) encon­


tra-se no capítulo VI do Livro IX de O espirito das Ieis. As
idéias que coloca inicialmente, neste capítulo, a sumariam:
“Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o Poder Legis­
lativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito
das gentes, e o Executivo das que dependem do direito civil.
Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tem­
po ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas.
Pelo segundo, estabelece a segurança, previne as invasões.
Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indiví­
duos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro,
simplesmente, o Poder Executivo do Estado. A liberdade polí­
tica num cidadão é esta tranqüilidade de espírito que provém
da opinião que cada um possui de sua segurança: e, para que
se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal
modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quan­
do na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o
Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe
liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o
mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para exe­
cutá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o
poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e
do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o po­
der sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário,
pois o ju iz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Exe­
cutivo, o ju iz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria
perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos princi­
pais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três pode­
res: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o
de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”.
É certo, todavia, que Montesquieu não sustenta a impe-
netrabilidade, um pelos outros, dos poderes que refere. As­
sim, por um lado afirma que: “apesar de que, em geral, o po­
der de julgar não deva estar ligado a nenhuma parte do
Legislativo, isso está sujeito a três exceções, baseadas no in­
teresse particular de quem deve ser julgado” (1973/160). Por
outro lado, distinguindo entre faculdade de estatuir — o di­
reito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi orde­
nado por outrem — e faculdade de impedir — o direito de
anular uma resolução tomada por qualquer outro (isto é, po­
230 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

der de veto) (1973/159) — , entende deva esta última estar


atribuída ao Poder Executivo, em relação às funções do Le­
gislativo; com isso, o Poder Executivo.faz parte do Legislativo,
em virtude do direito de veto: "Se o Poder Executivo não tem o
direito de vetar os empreendimentos do campo Legislativo,
este último seria despótico porque, como pode atribuir a si
próprio todo o poder que possa imaginar, destruiria todos os
demais poderes” (1973/150). “O Poder Executivo, como disse­
mos, deve participar da legislação através do direito de veto,
sem o quê seria despojado de suas prerrogativas” (1973/161).
O que importa verificar, inicialmente, na construção de
Montesquieu, é o fato de que não cogita de uma efetiva sepa­
ração de poderes, mas sim de uma distinção entre eles, que,
não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio. Isso fica
bastante nítido na análise de outro trecho de sua obra: “Eis,
assim, a constituição fundamental do governo de que fala­
mos. O corpo legislativo sendo composto de duas partes,
uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir.
Todas as duas serão paralisadas pelo Poder Executivo, que o
será, por sua vez, pelo Poder Legislativo. Estes três poderes
deveriam formar uma pausa ou uma inação. Mas como, pelo
movimento necessário das coisas, eles são obrigados a cami­
nhar, serão forçados a caminhar de acordo” (1973/161).
De outra parte, importa enfatizar que já da sua exposição
resulta a distinção entre Poderes Executivo e Legislativo, de
um lado, e funções executiva e legislativa, de outro. Segundo
Montesquieu, o Poder Executivo deve estar dotado de funções
executivas e — pela titularidade da faculdade de impedir (po­
der de veto) — também de parcela das funções legislativas. Da
mesma forma, entende deva o Poder Legislativo, em casos ex­
cepcionais, estar dotado de funções jurisdicionais.
É relevante observarmos também que, segundo Montes­
quieu (1973/159): “O Poder Executivo deve permanecer nas
mãos de um moriarca porque esta parte do governo, que qua­
se sempre tem necessidade de uma ação momentânea, é mais
bem administrada por um do que por muitos; ao passo que o
que depende do Poder Legislativo é, amiúde, mais bem orde­
nado por muitos do que por um só” (grifei). Afirma ele, ainda:
“O Poder Executivo se exerce sempre sobre coisas momentã-
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES” 231

neas" (1973/160 — grifei). Em contrapartida, a verificação de


que o Poder Legislativo se exerce sobre situações não mo­
mentâneas, isto é, estáveis. Ora, se as situações que recla­
mam a atuação do Executivo, no exercício de uma capacida­
de normativa de conjuntura, são nitidamente de natureza mo­
mentânea, daí poderíamos extrair a conclusão da inexistên­
cia de incompatibilidade entre esse exercício e a doutrina
postulada por Montesquieu.

Classifico as formas de intervenção do Estado no domínio eco­


nômico distinguindo: I) a intervenção por absorção ou participação,
que ocorre quando a organização estatal assume — parcialmente
ou não — ou participa do capital de unidade econômica que detém
o controle patrimonial dos meios de produção e troca; ii) a interven­
ção por direção, que se verifica quando a organização estatal passa
a exercer pressão sobre a economia, estabelecendo mecanismos e
normas de comportamento compulsório para os sujeitos da ativi­
dade econômica; iii) a intervenção por indução, que se manifesta
quando a organização estatal passa a manipular o instrumental
de intervenção em consonância e na conformidade das leis que re­
gem o funcionamento do mercado (1991/162-163). A atuação In-
terventiva por direção é em parte exercida mediante a dinamiza-
ção, por órgãos e entidades da Administração, de atividade nor­
mativa cujo exercício lhes tenha sido autorizado pela lei. Cumpre
aos titulares da função normativa, no caso, observar os critérios e
parâmetros estabelecidos na lei que lhes autorizou esse mesmo
exercício. Observe-se que não hã, na hipótese, atribuição de fun­
ção legislativa, mas sim de Junção normativa (regulamentar) a es­
ses órgãos e entidades; adiante retomarei a esse ponto. Resultam
enriquecidas, destarte, as funções atribuídas à Administração, que
jã não se bastam no mero exercício do poder de polícia, consubs­
tanciado na fiscalização do exercício de atividades pelos particula­
res, mas agora compreendem também o poder de estatuir normas
destinadas ã regulação desse mesmo exercício. Ao exercerem a
Junção normativa que lhes incumbe — efetivo dever-poder, em ver­
dade, no qual são investidos —, órgãos e entidades da Administra­
ção dinamizam o que tenho denominado capacidade normativa de
conjuntura. Observei, em outra ocasião (1977/48-49), que à compre­
ensão de que o processo de desenvolvimento implica uma dinâmi­
ca mobilidade social corresponde a adoção de uma nova visão da
realidade, prospectiva, acompanhada do repúdio a concepções que
divisavam na norma jurídica — como o faziam Bouvier e Jèze — a
“regra primordial e fundamental que rege as relações sociais no
232 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

interior do Estado, de um modo geral e permanente (ou perpé­


tuo)”. Descortina-se, assim, a evidência de que o direito — tal
como o divisou von Ihering, em sua teoria organicista — necessita,
como todo organismo vivo, estar em constante mutação, impondo-
se a superação do descompasso existente entre o ritmo de evolu­
ção das realidades sociais e a velocidade de transformação da or­
dem jurídica. Nesse clima, a instabilidade de determinadas situa­
ções e estados econômicos, sujeitos a permanentes flutuações —
flutuações que definem o seu caráter conjuntural —, impõe sejam
extremamente flexíveis e dinâmicos os instrumentos normativos
de que deve lançar mão o Estado para dar correção a desvios ocor­
ridos no desenrolar do processo econômico e no curso das políti­
cas públicas que esteja a implementar. Aí, precisamente, o emer­
gir da capacidade normativa de conjuntura, via da qual se pretende
conferir resposta à exigência de produção imediata de textos
normativos, que as flutuações da conjuntura econômica estão, a
todo o tempo, a impor. À potestade normativa através da qual es­
sas normas são geradas, dentro de padrões de dinamismo e flexi­
bilidade adequados à realidade, é que denomino capacidade nor-
matíua de conjuntura. Cuida-se — repita-se — de dever-poder, de
órgãos e entidades da Administração, que envolve, entre outros as­
pectos, a definição de condições operacionais é negociais, em de­
terminados setores dos mercados. Evidente que esse dever-poder
hã de ser ativado em coerência não apenas com as linhas funda­
mentais e objetivos determinados no nível constitucional, mas
também com o que dispuser, a propósito do seu desempenho, a
lei. Note-se, ademais, que, no exercício da capacidade normativa
de conjuntura, nada mais faz a Administração senão atender às
demandas do sistema econômico, provendo a fluência da circula­
ção econômica e financeira. Os agentes econômicos com atuação
em campo objeto de regulação através da capacidade normativa de
confuntiira restam, em tais condições, nesta atuação, vinculados
pelo que dispuserem tanto as emanações dessa capacidade nor­
mativa quanto a própria lei. Esta, de resto, haverã de ser sempre
o fundamento de tal vinculação, visto que aludida capacidade nor­
mativa somente estará ungida de legalidade quando e se átivada
nos quadrantes da lei. Assim, o atuar de tais agentes econômicos
estará sempre submetido aos ditames conjunturais que motivam
a edição de atos normativos produzidos no âmbito daquela mesma
capacidade normativa. O exercício da capacidade normativa de con­
juntura estaria, desde a visualização superficial dos arautos da
“separação” de poderes, atribuído ao Poder Legislativo, não ao Po­
der Executivo. A doutrina brasileira tradicional do direito adminis­
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES" 233

trativo, Isolando-se da realidade, olimpicamente ignora que um


conjunto de elementos de índole técnica, aliado a motivações de
premência e celeridade na conformação do regime a que se subor­
dina a atividade de intermediação financeira, tomam o procedi­
mento legislativo, com seus prazos e debates prolongados, inade­
quado ã ordenação de matérias essencialmente conjunturais. No
que tange ao dinamismo do sistema financeiro, desconhece que o
caráter instrumental da atuação dos seus agentes, e dele próprio,
desenha uma porção da realidade à qual não se pode mais amol­
dar o quanto as teorias jurídicas do século passado explicavam.
Por isso não estão habilitados, os seus adeptos, a compreender o
particular regime de direito a que se submete o segmento da ativi­
dade econômica envolvido com a intermediação financeira. Não é
estranho, assim, que essa doutrina — no mundo irreal em que se
afaga — não avance um milímetro além da afirmação, por exem­
plo, de que todas as resoluções do Conselho Monetário Nacional,
editadas pelo Banco Central do Brasil, são inconstitucionais!

4. O alinhamento procedido, das colocações de Locke e de


Montesquieu, permite-nos verificar que o primeiro propõe
uma separação dual entre três poderes — o Legislativo, de um
lado, e o Executivo e o Federativo, de outro — e o segundo su­
gere não a divisão ou separação, mas o equilíbrio entre três po­
deres distintos — o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Nossas Constituições vêm afirmando serem Legislativo, Execu­


tivo e Judiciário poderes independentes e harmônicos entre si.

Mais ainda: de modo bastante nítido na exposição de Mon­


tesquieu — o que está implícito na postulação de Locke —
visualizamos a necessidade de distinguir entre poderes e Jun­
ções. Para que o equilíbrio a perseguir seja logrado, impõe-se
que o Poder Executivo exercite parcelas de função não exe­
cutiva — mas legislativa.
A consideração deste segundo ponto permitirá a pontua-
lização de alguns aspectos que reclamam detida ponderação.
Anteriormente a isso, contudo, breve referência à crítica da
própria doutrina, tal como já tem sido produzida, se impõe.

5. Deteriho-me, Inicialmente, sobre dois textos de Char^


les Eisenmann (1985), nos quais encontra Althusser (1985)
234 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

os fundamentos da assertiva de que a “separaçao dos pode­


res" não passa de um mito.
Montesquieu, como vimos, além de jam ais ter cogitado de
uma efetiva separação dos poderes, na verdade enuncia a
moderação entre eles como divisão dos poderes entre as p o ­
tências e a limitação ou moderação das pretensões de uma
potência pelo poder das outras; daí por que, como observa Al-
thusser (1985/104), a “separação dos poderes” não passa da
divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o
rei, a nobreza e o “povo”.
O ponto de partida de Montesquieu no Livro IX de O espí­
rito das leis é a liberdade: “Encòntra-sc a liberdade política
unicamente nos Estados moderados. Porém ela nem sempre
existe nos Estados moderados: só existe nesses últimos quan­
do não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra
que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai
até onde encontra limites (...). Para que não se possa abusar
do poder é. preciso que, pela disposição das coisas, o poder
freie o poder” (1973/156; cap. IV}. Ora, se a liberdade só pode
existir nos Estados moderados nos quais ninguém abuse do
poder, a divisão dos poderes encerra em si a virtude, precisa­
mente, do equilíbrio. Esse equilíbrio é que Althusser (1985/
103-104} visualiza na divisão dos poderes entre as potências
— o que importa que, nos Estados moderados, o poder não
seja absoluto, porque, mercê daquele equilíbrio, controlado
(Miaille 1985/200).

Daí a Indagação que se introduz: a quem beneficia o equilíbrio


que provém da divisão dos poderes? Ou, em outros termos, quem
controla o poder? A resposta a tais perguntas dá-nos Althusser na
afirmação de que Montesquieu fázia da nobreza a beneficiária de
tal equilíbrio — a nobreza controlava o poder.
A aplicação da teoria, contudo, na praxis política, finda por de­
monstrar que não, apenas quando Executivo e Legislativo estejam
controlados pela mesma classe ou fração hegemônica a divisão
dos poderes é, no seu funcionamento, inexistente; pois — observa
Poulantzas (1968/135) —, mesmo quando são grupos diferentes
os que os controlam, a unidade do poder institucionalizado se
mantém no lugar predominante onde se reflete a classe ou fração
hegemônica.
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES” 235

Diz o próprio Montesquieu (1973/157): “Assim, em Veneza, ao


Grande Conselho cabe a legislação; aos pregandL a execução; aos
guaranties, o poder de julgar. Mas o mal é que esses tribunais di­
ferentes são formados por magistrados do mesmo corpo, o que
quase faz com que componham um mesmo poder” (grifei).

6. Por outro lado, é oportuno também anotarmos o fato de


que, para Montesquieu, o poder de julgar não é um poder no
sentido próprio, mas, “por assim dizer, invisível e nulo”
(1973/157); e, mais adiante (p. 159), prossegue: “Dos três
poderes dos quais falamos, o de julgar é, de algum modo, nu­
lo”; o ju iz não passa, como observa Althusser (1985/102), de
uma presença e uma voz: “Porém, os juizes de uma nação não
são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sen­
tenças dã lei, seres inanimados que não podem moderar nem
sua força nem seu rigor” (Montesquieu 1973/160).

Observa ainda Montesquieu (1973/158): “Porém, se os julga­


dores não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto,
que nunca sejam mais do que um texto exato da lei”.

Daí por que, em rigor, Montesquieu nos coloca diante de


dois poderes, o Executivo e o Legislativo, o que o leva a afir­
mar, no capítulo XXVII do Livro XIX de O espírito das leis
(1973/284), que a Constituição que concebe não prevê senão
“dois poderes visíveis — o Legislativo e o Executivo” (v.
Eisenmann 1985/54 e ss.).
A desimportância atribuída por Montesquieu ao poder de jul­
gar decorre da circunstância de, ã época, ser ele efetivamente me­
nor. Aqui desejo traçar, desde logo, paralelismo entre essa desim-
portãncia e a de outro poder (função), àquela época inconcebível e,
ainda hoje, injustiflcadamente tido como desimportante. Refiro-me
a um novo poder (função) empalmado pelo Estado, o de imple­
mentar políticas públicas. A propósito, a observação de Fábio Kon-
der Comparato (1985/408): “A omissão das Constituições moder­
nas em regular a realização de políticas, ocupando-se unicamente
da produção do direito, toma inoperante a divisão dos poderes,
seja como mecanismo de limitação do poder estatal (preocupação
original), seja como disciplina da eficiência governamental (preo­
cupação atual)”.
236 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

2 . P od er e Ju n çã o

7. Retomando o tema da distinção entre poder e Junção,


cumpre observarmos que o poder estatal compreende várias
Junções. A classificação mais freqüentemente adotada, des­
sas funções, é a que — na expressão de Santi Romano
(1974/173) — concerne aos ofícios ou às autoridades que as
exercem. Trata-se da classificação que se denomina orgânica
ou institucional. Segundo ela, tais funções são a legislativa, a
executiva e a jurisdicional.
Se, porém, pretendermos classificá-las segundo o critério
material, teremos: a função norm ativa — de produção das
normas jurídicas (= textos normativos); a função administrati­
va — de execução das normas jurídicas; a função ju ris d i­
cion a l— de aplicação das normas jurídicas.
Aquela primeira classificação decorre da adoção de um
sistem a organizacional, construído precisamente sobre a téc­
nica da divisão dos poderes. A busca de uma classificação
material, no caso, nos conduz à determinação da noção de
ju n çã o estatal.
Tome-se, para tanto, do vocábulo Junção no sentido que
lhe atribui Renato Alessi (1978/3), a partir da noção de poder
estatal', este, enquanto preordenado às Jbxalidad.es de inte­
resse coletivo e enquanto objeto de um dever jurídico, consti­
tui uma Junção estatal.
Neste ponto impõe-se a determinação de uma precisão a
propósito do uso da palavra poder. Por um lado, o poder é ex­
pressão de uma capacitação para efetivamente realizar ou
impor a realização de determinado fim. Quando nos referi­
mos a poder estatal, visualizamos o poder — político — juridi­
camente organizado. Assim, se o Estado é uma ordem jurídi­
ca, o poder éstatal é capacitação para a realização dos fins
dessa ordem. Neste sentido é que Alessi menciona poder es­
ta ta l o poder, nó' ordenamento estatal, se traduz em uma Jun­
ção — mas a idéia de junção envolve a consideração do poder
desde o seu aspecto materiaL Podemos usar a mesma pala­
vra, todavia, com ênfase não no seu aspecto material, mas no
subjetivo. Então, ao referirmos, v.g., os Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, estaremos a mencionar os centros
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES” 237

ativos de funções, ou seja, os órgãos incumbidos de sua exe­


cução (Alessi 1978/14-15).
Fixadas tais noções, verificamos que na menção aos Po­
deres Legislativo, Executivo e Judiciário estamos a referir
centros ativos de Junções — da Junção legislativa, da Junção
executiva e da Junção jurisdicionaL Essa classificação de Jun­
ções estatais, todavia, decorre da aplicação de um critério
subjetivo■estão elas assim alinhadas não em razão da consi­
deração de seus aspectos materiais.
Retomando à exposição de Locke, teremos que ele, mate­
rialmente, alinha três funções: a executiva, a legislativa e a f e ­
derativa, propondo, no entanto, desde a perspectiva sub/eti-
va, uma separação dual, entre Poderes Legislativo — de um
lado — e Executivo-Federativo — de outro. Já, Montesquieu,
na busca do equilíbrio entre os poderes — centro ativos de
funções (aspecto subjetivo) — , recomenda exerça o Executivo
parcelas de poder (aqui usada a palavra no sentido material)
legislativo.
Em conseqüência, demonstra-se a correção do anterior­
mente afirmado. A classificação das funções estatais em le­
gislativa, executiva e jurisdicional é corolário da consideração
do poder estatal desde o seu aspecto subjetivo-, desde tal con­
sideração, identificamos, nele, centros ativos que são titu­
lares, precipuamente, de determinadas Junções. Estas são
assim classificadas em razão das finalidades a que se voltam
seus agentes — isto é, finalidades legislativas, executivas e
jurtedicionais. Tal classificação, como. vimos, tem caráter or­
gânico ou institucional
As funções estatais, porém, quando classificadas desde o
critério material, levarão à definição de diversa taxionomia.
Isso passo, em seguida, a demonstrar.

8. Entenda-se por Junção estatal a expressão do poder es­


tatal, enquanto preordenado às finalidades de interesse cole­
tivo e objeto de um deverjuríd ico — tomada a expressão po­
der estatal, então, no seu aspecto m aterial
A consideração do poder estatal desde tal aspecto, assim,
liberta-nos da tradicional classificação das funções estatais
238 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

segundo o critério orgânico ou institucional Nesta última, por­


que o poder estatal é visualizado desde a perspectiva subjeti­
v a alinham-se as funções legislativa, executiva e jurisd icio-
n a l a que estão vocacionados, respectivamente, os Poderes
J^egislativo, Executivo c Judtciáiio.
Afastado, contudo, o critério tradicional de classificação,
fixemo-nos naquele outro, que conduz à seguinte enuncia-
ção:
i) Junção normativa — de produção das normas jurídicas
(= textos normativos);
ii) Junção adm inistrativa — de execução das normas jurí­
dicas;
iii) Junçãojurisdicional— de aplicação das normas jurídicas.
Tomarei como fios condutores da minha demonstração,
para precipuamente cogitar da Junção normativa e da Junção
legislativa, como se verá, a noção de ordenamento ju ríd ico e
algumas colocações de Renato Alessi.

3. N orm a ju ríd ica


9. A introdução do conceito de Junção normativa supõe a
colocação de duas premissas: Ia) a norma jurídica constitui
um elem ento essencial do ordenamento jurídico; 2a) a norma
jurídica consubstancia inovação de preceito prim ário no orde­
namento jurídico.
A postulação de tais premissas coloca imediatamente em
pauta a noção de ordenamento jurídico. Esta é geralmente fi­
xada na afirmação de que o conjunto das normas jurídicas,
consideradas umas em relação às outras, o constitui.

O vocábulo “ordenamento”, não obstante, ainda quando quali­


ficado pelo adjetivo “jurídico’\ compreende sentidos diversos (v.
Frosini 1981/8). ps primeiros, a colocarem a noção foram os fns-
titucionalistas, nó começo do século. O .tema recebeu tratamento
detido de Kelsen, para quem ordenamento jurídico e direito positi­
vo coincidem, razão pela qual o ordenamento se reduz a um siste­
ma normativo. Neste sentido, o ordenamento jurídico deve ser en­
tendido como um sistema fechado, completo, dotado de unidade e
homogeneidade.
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES”

Aqui, tomo da noção de ordenamento jurídico tal como con­


cebida pelos ínstitucionalistas, que encontram a sua unida­
de no impulso prático que ele, como instituição social, recebe
no seu processo de formação (Frosini 1981/30).

I O. Isto posto, conceituaremos a norma jurídica como o


preceito, ábstrató, genérico e inovador — tendente a regular o
comportamento social de sujeitos associados — que se integra
no ordenamento jurídico.
Relembre-se, a propósito, que a norma jurídica não tem
.existência isolada, mas sim em um complexo de outras nor­
mas relacionadas entre si. Daí por que Bobbio (1960/3)
acentuou que a construção de uma teoria do direito supõe o
desenvolvimento de uma teoria da norma jurídica e de uma
teoria do ordenamento jurídico.
Outra característica da norma jurídica, porém, como
enfatiza Alessi (1978/5) — além das já apontadas — , é a de
constituir um preceito primário, no sentido de que se impõe
por fo rça própria, autônoma.

A designação normas primárias, em contraposição às secundá­


rias, pode assumir várias significações: indica tanto uma relação
temporal, quanto uma relação funcional, quanto — ainda — uma
relação hierárquica (v., a propósito, Bobbio 1970/175 e ss.).

Os ordenamentos jurídicos são referidos como primários


porque se impõem, aos grupos sociais a que respeitam, por vir­
tude própria, isto é, por força primária — tal como ocorre com as
normas. Assim, se o caráter inovador dá norma a peeuliariza,
seus reflexos, em termos de inovação — para que existam como
tais — , penetram o próprio ordenamento. Por isso que a norma
configura inovação no ordenamentojurídico e, daí, é de ser defi­
nida como preceito primário. A característica da inovação, des­
tarte, está subsumida na prirnariedade da norma.
Deixando, neste passo, à margem considerações que Ales­
si (1978/5) traça a respeito da coligação entre os atributos de
abstração e generalidade da norma — com a subsunção do
segundo no primeiro — , nele recolhamos a noção de que por
função normativa deve entender-se aquela de emanar .esta-
240 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tuições prim árias — isto é, operantes por força própria — con­


tendo preceitos abstratos (1978/6; Alessl refere: "contendo
normalmente preceitos abstratos”).
Um outro ponto de extrema relevância, porém, deve ser
aqui enfatizado. Refiro-me à circunstância de Alessi apartar
a noção de primarieda.de da de originariedade. Por isso, tem
como prim ário — isto é, im posto p or fo rça própria — mesmo
um preceito que integra um ordenamento derivado ou um
preceito que seja emanado com fundamento em uma atribui­
ção áe poder normativo conferida a órgão que ordinariamente
não o detenha (1978/5).
Daí, por outro lado, a enunciação da Junção normativa co­
mo aquela de emanar estatuições prim árias — seja em decor­
rência do exercício de poder originário para tanto, seja em de­
corrência de poder derivado — contendo preceitos abstratos, e
genérico s.
A Junção normativa, como passo a demonstrar, adotando
ainda a exposição de Alessi, não se confunde com a junção
legislativa

4 . Fu n çã o norm ativa e fu n ç ã o legislativa

11. Ao referir a Junção legislativa, Alessi (1978/6-7 e 14)


indica ser ela construída — tal como venho afirmando •— a
partir de uma perspectiva subjetiva, decorrente da adoção do
sistema de divisão dos poderes. Consagrada tal adoção, resta
confiada a determinados órgãos a tanto predispostos a tarefa
suprema de constituir (integrar) o ordenamento jurídico. A
tais órgãos — que constituem o Poder Legislativo — , pois, na
colocação de Alessi, resulta confiada a tarefa de emanar
estatuições primárias, isto ét que valem por fo rça própria.
Mas — continua Alessi ~ ao Poder Legislativo está atri­
buída também a emanação dè certos atos que não estãò efeti­
vamente voltados â integração do ordenamento jurídico, al­
bergando, portanto, diverso conteúdo e diversa finalidade.
Cumpre mencionar, neste passo, os atos legislativos que se
refere como lei em sentido apenas fo rm a l Trata-se de esta­
tuições primárias, na medida em que emanadas do Poder Le­
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES"

gislativo, ainda que sem conteúdo normativo; leis, embora


não possam ser caracterizadas como normasjurídicas.

A propósito da distinção entre lei em sentido material e lei em


sentido formal, Duguit 1911/132 e ss. e Canotllho 1983/607-609.

Alessi conclui sua exposição contrapondo as noções de


lei e de norma. Norma é todo preceito expresso mediante es-
tatuições primárias (na medida em que vale por força própria,
ainda que eventualmente com base em um poder não origi­
nário, mas derivado ou atribuído ao órgão emanante), ao pas­
so que lei é toda estatuição, embora carente de conteúdo
normativo, expressa, necessariamente com valor de estatui­
ção primária, pelos órgãos legislativos ou por outros órgãos
delegados daqueles. A lei não contém, necessariamente, uma
norma. Por outro lado, a norma não é necessariamente ema­
nada mediante uma lei. E, assim, temos três combinações
possíveis: a tei-norma, a tei não-norma e a norma não-lei.

12. A partir das colocações de Alessi podemos referir a


ju n çã o legislativa como aquela de emanar estaíufções prim á­
rias, geralmente — mas não necessariamente — com conteú­
do normativo, sob a forma de lei.
A noção de função legislativa, assim, é tautológica, funda­
da sobre um conceito formal. É certo, todavia, que não há
como fugir à tautologia (Ferreira Filho 1978/93), visto como
há estatuições primárias, contendo preceito abstrato e gené­
rico, que não são leis: refiro-me às normas que não são leL
Na tentativa, portanto, de superação das distorções de­
correntes do caráter tautológico da noção de função legisla­
tiva, cumpre-nos recorrer ao direito positivo, para, no texto
constitucional, identificarmos parâmetros que iluminem a
definição dos contornos desse objeto, a lei.
É necessário apontar, de toda sorte, neste passo, que a
distinção entre função normativa e função legislativa impõe-
nos a manipulação de critérios distintos: a noção de função
normativa pode ser alinhada desde a consideração de critério
materiak a de Junção legislativa apenas se tom a equacionãvel
na consideração de critério form aL Isso, porém, é conseqüên­
242 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

cia da circunstância de — como vimos — a legislativa alinhar-


se como um dos tipos de função estatal identificada em classi­
ficação que decorre da adoção de um sistema organizacional,
construído sobre a técnica da “separação” dos poderes.
O que importa reter, todavia, ó a verificação de que — li­
bertando-nos daquela forma tradicional de classificação das
funções estatais — poderemos (e deveremos) classificá-las
desde a perspectiva material.
Donde a seguinte taxionomia: função normativa — a de
produção das normas jurídicas (= textos normativos); Junção
administrativa — a de execução das normas jurídicas; Jitnção
jurisdicional — a de aplicação das normas jurídicas.
Mais ainda — cumpre reter também — , entende-se como
Junção norm ativa a de em anar estatuições prim árias, seja em
decorrência do exercício do poder originário para tanto, seja
em decorrência de poder derivado, contendo preceitos abstra­
tos e genéricos.

13. Diante da realidade do exercício, nos dias que correm,


pelo Executivo, de largas parcelas de capacidade normativa, a
generalidade dos autores sustenta que tal desempenho envol­
ve a dinamização de Junções legislativas. Ainda quando não
expressamente formulada observação desse jaez, é ela que se
coloca como pano de fundo às afirmações de que aquele exer­
cício consubstancia derrogação do principio da separação dos
poderes e de que, no caso, há delegação de poder.

V.g., Bodenheimer (1966/309), ao referir as fontes formais do


direito, alude a uma legislação autônoma e a uma legislação dele­
gada; segundo. Manoèl Gonçalves Ferreira FUho (1978/93), “é prá­
tica freqüentíssima o exercício pelò governo (o Executivo) do poder
legislativo que lhe vem às mãos por meio de delegação — às ocul­
tas ou às escãncaras”.
\
Um crítico menos atento poderia mesmo sustentar que o
próprio Alessi, ao referir a Junção legislativa, dá a entender
que, aos órgãos do Poder Legislativo estando confiada a tare­
fa suprema de constituir (integrar) o ordenamento jurídico,
mediante a emanação de estatuições primárias, a eles — õr-
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES” 243

gãos do Poder Legislativo — incumbiria o exercício da função


norrnativa', pelo quê, em conseqüência, o exercício da função
normativa pelo Executivo dar-se-ia em virtude de delegação.
Tanto mais quando o próprio Alessi, em determinado mo­
mento de sua exposição, afirma, surpreendentemente, que a
emanação de regulamento pelo Executivo constitui uma
derrogação do princípio de divisão dos poderes (1978/12).
Não é esse, todavia, o seu entendimento (dele, Alessi), co­
mo se observa do exame de sua exposição sobre os regula­
mentos (1978/456-458). Os regulamentos são estatuições
primárias — impostas por força própria — ainda que não
emanados de um poder originário. Por isso se apresentam
como derivados, no sentido de que devem fundar-se sobre
uma atribuição de poder normativo contida explícita ou impli­
citamente na Constituição ou em uma lei formal.
O fundamento do poder regulamentar, pois, está nesta
atribuição de poder normativo — e não no poder discricionário
da Administração (como, equivocadissimamente, apregoam
nossos publicistas). Assim, o fundamento da potestade regu­
lamentar decorre de uma atribuição de potestade normativa ma­
terial, de parte do Legislativo, ao Executivo. E conclui Alessi
(1978/458): “atribuizone da tenersi naturalmente ben dis­
tinta dalla delega di potestà legislativa form alé". Tal atribui­
ção — completa — não há de ser necessariamente explícita,
surgindo, por vezes, de modo implícito.
O que importa reter, neste passo, é o fato de que o exercí­
cio da função regulamentar, pelo Executivo, não decorre de uma
delegação de função legislativa.
Retomando, porém, as verificações até este passo enuncia­
das, teremos que, materialmente, classificamos as funções
estatais em normativa, administrativa ejurisdicional. Procedi­
da a classificação desde a perspectiva organizacional, toda­
via, teremos as funções legislativa, executiva ejurisdicional.
Daí, em uma tentativa de conciliação de critérios, tere­
mos que a função normativa {material) compreende a função
legislativa e a Junção regulamentar (institucionais)1— mais a

1. Neste sentido, Sérgio Andréa Ferreira (1981/58), distinguindo entre


função legislativa e poder normativo regulamentar.
244 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

função regimental, se considerarmos a normatividade emana­


da do Poder Judiciário.
Em conseqüência — considerado que o princípio em refe­
rência não é para ser tomado em termos absolutos — , tere­
mos que, efetivamente, na atribuição de Junção normativa (re- ■
gulamentar) ao Executivo não há derrogação dele, visto como aí
não ocorre delegação de função legislativa.

S. Os regulam entos e a legalidade


no direito brasileiro 2
Sobre a função regulam entar, no Brasil, im põe-se a leitura de
Víctor N un es Leal (1960/57 e ss.), Caio Tácito (1953/473 e 1955/
261) e Leães (1978/37 e ss.).

14. A exposição que desenvolvi a propósito das funções


estatais permitiu-me demonstrar o equívoco que tem siste­
maticamente circundado as análises que entre nós são de­
senvolvidas a propósito dos regulamentos.
Vimos, assim, que o Legislativo não é titular de monopó­
lio senão da junção legislativa, parcela da função normativa, e
não de toda esta, como a recepção irrefletida da teoria da “se­
paração” dos poderes, ã primeira vista, indica.

A pen as cabe referirmos delegação de fu n çã o legislativa, pois,


quando o Executivo a desem penhe (ela, Junção legislativa, como
ocorre nas hipóteses dos arts. 62 e 68 d a Constituição de 1988).

Um outro ponto, de toda sorte, atinente ainda ao tema dos


regulamentos, deve ser ferido. É que a nossa doutrina tem,
com grande freqüência, aludido ao princípio da legalidade
como impediente do exercício, pelo Poder Executivo, da fun­
ção regulamentar, salvo no que respeite à produção de regula­
mentos de execução.

A maioria de nossos publicistas classifica os regulamentos em


quatro tipos; i) os regulamentos executivos (ou de execução) destinam-
se ao desenvolvimento de textos legais, tendo em vista a fiel exe­

2. V., da jurisprudência do STF, HC 85.060. Sobre a reserva da lei


e legalidade em sentido amplo, o RE 140.669.
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES” 245

cução da lei; ii) regulamentos delegados são os que, em decorrência


de delegação, legislativa, o Poder Executivo emana como manifesta­
ção unilateral de sua vontade, suficientes para inovar a ordem
jurídica; iii) regulamentos autônomos (ou independentes) são os que,
consubstanciando inovação na ordem jurídica, emanam do Poder
Executivo não como mero desenvolvimento de lei anterior e inde­
pendentemente de delegação legislativa; são expressões da prerro­
gativa do exercício de funções normativas pelo Poder Executivo; iv)
regulamentos de urgência ou necessidade são os que emanam do Po­
der Executivo em situação excepcional, de verdadeiro estado de ne­
cessidade, para impedir danos ao interesse público, que não seriam
evitados senão mediante a sua emanação. Importa, no contexto
desta exposição, cuidarmos especialmente dos três primeiros tipos.
A doutrina nacional sustenta que, entre nós, o sistema consti­
tucional vigente só admite a existência dos regulamentos de execu­
ção. E isso porque o art. 5a, II, e o art. 84, IV, da Constituição de 1988
impedem que Executivo, por ato seu, possa estabelecer restrições à
liberdade e ã propriedade dos indivíduos. A razão do Estado de Direi­
to é a defesa do indivíduo contra o Poder Público, para o quê se sus­
tenta sobre a tripartição do exercício do poder. Assim, só a lei pode
impor obrigações aos indivíduos; jamais meros atos do Poder
Executivo. Ademais, o art. 84, IV, limita a ação do Chefe do Poder
Executivo. Logo, entre nós apenas seria admitida a emanação de re­
gulamentos para fiel execução das leis. E, por fim, o principio da
vedação da delegação de atribuições — parágrafo único do art. 6a da
Emenda Constitucional n. 1/69 —, embora não positivado na Cons­
tituição de 1988, proíbe delegações, ressalvadas exclusivamente exce­
ções previstas na própria Constituição; assim, o Legislativo não po­
deria delegar suas funções ao Executivo, para o efeito da produção
de regulamentos. Seriam, portanto, inadmissíveis, no Brasil, os re­
gulamentos delegados e os regulamentos autônomos.
A única função dos regulamentos de execução, no direito bra­
sileiro, seria a de desenvolver a lei, no sentido de deduzir os di­
versos comandos já nèla virtualmente abrigados (não, pois, a de
explicitar ou explicar a lei, de enunciar a interpretação da lei ou de
a desenvolver — no sentido de expressar o que não está expresso
no alcance das disposições legais). Seu objeto seria a disciplina
das situações em que cabe discricionariedade administrativa no
cumprimento da lei, da qual resultariam diferentes comporta­
mentos administrativos possíveis (por isso, os regulamentos po­
deriam apenas estabelecer regras e padrões a serem adotados pe­
los agentes da Administração, quando de sua atuação, como meio
para o cumprimento da lei; apenas poderiam indicar a maneira de
246 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ser observada a lei; não poderiam gerar obrigações ou direitos no­


vos, Isto é, não previamente contidos na lei). O poder hierárquico
seria o fundamento da função regulamentar; seus destinatários,
exclusivamente os agentes da Administração. Os regulamentos de­
finiriam a maneira de proceder dos agentes da Administração, no
cumprimento da lei; não poderiam, portanto, em nenhuma hipóte­
se, vincular o comportamento dos particulares.
Essa doutrina, como se vê, adota uma visão inteiramente errô­
nea da teoria da tiipartição dos poderes, concebendo-a como pro­
posta de separação e não de equilíbrio entre os poderes, além de
prestar acatamento exagerado, e radical, à Ideologia liberal. Por isso
mesmo, ignora a realidade, supondo-a existente em função do di­
reito... Em favor dessa doutrina, a Constituição brasileira de 1988
refere, no § 4a de seu art. 60, com todas as suas letras, a “separa­
ção dos Poderes”! Esse texto, não obstante, deve ser interpretado, o
que importará interpenetração entre o mundo do dever-ser e o mun­
do do ser, além de uma necessária reflexão, para o quê não basta, a
quem pretende interpretar, ser alfabetizado. O tratamento do direi­
to não é acessível a amadores; nem mesmo a profissionais desa­
tualizados em relação à evolução do pensamento jurídico.

Nesta oportunidade pretendo, nó exame do princípio da le­


galidade, cogitar exclusivamente de um dos múltiplos aspec­
tos, nele, a reclamar atenção. Tome-se o seu enunciado na
Constituição de 1988, art. 5S, II: “ninguém será obrigado a fa­
zer ou deixar de fazer alguma coisa senão ém virtude de lei” .
Ora, há visível distinção entre as seguintes situações: i)
vinculação da Administração às definições da lei; ii) vincu-
lação da Administração às definições decorrentes — isto é, fi­
xadas em virtude dela — de lei. No primeiro caso estamos di­
ante da reserva da let, no segundo, em face da reserva da nor­
ma (norma que pode ser tanto legal quanto regulamentar, ou
regimental).
Na segunda situação, ainda quando as definições em
pauta se operem em atos normativos não da espécie legisla­
tiva — mas decorrentes de previsão implícita ou explícita em
atos legislativos contida — , o princípio estará sendo devida­
mente acatado. No caso, o princípio da legalidade expressa
reserva da lei em termos relativos (= reserva da norma}, razão
pela qual não impede a atribuição, explícita ou implícita, ao
Executivo para, no exercício de função normativa, definir
X — CRÍTICA DA "SEPARAÇÃO DOS PODERES" 247

obrigação de fazer e não fazer que se ímponha aos particula­


res — e os vincule.
Voltando ao art. 5“, II, do texto constitucional, verificamos
que, nele, o princípio da legalidade é tomado em termos relati­
vos, o que induz a conclusão de que ò devido acatamento lhe
estará sendo conferido quando — manifesta, explícita ou im­
plicitamente, atribuição para tanto — ato normativo não
legislativo, porém regulamentar (ou regimental), definir obri­
gação de fazer ou não fazer alguma coisa imposta a seus des­
tinatários.
Tanto isso é verdadeiro — que o dispositivo constitucio­
nal em pauta consagra o princípio da legalidade em termos
apenas relativos — que em pelo menos três oportunidades
(isto é, no art. 5Q, XXXIX, no art. 150, I, e no parágrafo único
do art. 170) a Constituição retoma o princípio, então ò ado­
tando, porém, em termos absolutos: não haverá crime ou
pena, nem tributo, nem exigência de autorização de órgão
público para o exercício de atividade econômica, sem lei —
aqui entendida como tipo específico de ato legislativo — que
os: estabeleça. Não tivesse o art. 5a, II, consagrado o princípio
da legalidade em termos somente relativos, e razão não have­
ria a justificar a sua inserção no bojo da Constituição, em
termos então absolutos, nas hipóteses referidas.
Dizendo-o de outra forma: se há um princípio de reserva da
lei — ou seja, se há matérias que só podem ser tratadas pela lei
— , evidente que as excluídas podem ser tratadas em regula­
mentos; quanto à definição do que está incluído nas matérias
de reserva de lei, há de ser colhida no texto constitucional;
quanto a tais matérias não cabem regulamentos. Inconcebível
a admissão de que o texto constitucional contivesse disposição
despicienda — verba cum effecta sunt aecipiendci.
Resta evidenciado, desta sorte, não importar ofensa ao
princípio da legalidade inclusive a imposição, veiculada por
regulamento, de que alguém faça ou deixe de fazer algo, des­
de que isso decorra, isto é, venha, em virtude de lei. Note-se,
ademais, que, quando o Executivo expede regulamentos —
ou, o Judiciário, regimentos — , não o faz no exercício de dele­
gação legislativa.
248 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

25. Onde e quando não houver transferência de função


legislativa, do Legislativo para o Executivo (ou para o Judi­
ciário), não há que falar em delegação, nem em derrogação do
princípio da divisão dos poderes.
Logo, quando o Executivo e o Judiciário emanam atos
normativos de caráter não legislativo — regulamentos e regi­
mentos, respectivamente —, não o fazem no exercício de fun­
ção legislativa, mas sim no desenvolvimento de Junção nor­
mativa. Relembre-se que a Junção legislativa, em face do di­
reito positivo nacional, consiste na emanação de estatuições
primárias, em decorrência de poder originário para tanto, ge­
ralmente — mas não exclusivamente — com conteúdo norma­
tivo, sob uma das formas definidas no art. 59 do texto consti­
tucional. De outra parte, a Junção regulamentar — bem assim
junção regimental, exercitada pelo Judiciário — consiste na
emanação de estatuições primárias, em decorrência de poder
derivado, com conteúdo normativo.
Daí por que, evidenciadamente, o exercício da função re­
gulamentar e da função regimental não decorre de delegação
de função legislativa, não envolvendo, portanto, derrogação
do princípio da divisão dos poderes.

Observe-se, parenteticamente, que a “separação" dos poderes


não está presa a arquétipos apriorístlcos; ela é historicamente de­
terminada — por isso, consubstancia um non sense falarmos em
“derrogações da separação dos poderes”; a "separação" dos pode­
res existe em cada direito positivo se nele contemplada e qual nele
tenha sido contemplada (Canotilho 1981/72-75).

A consideração assim enunciada nos faz retom ar à expo­


sição de Renato Alessi.

16. Em determinado momento, no alinhamento de sua


construção, Alessi (1978/12) afirma que a emanação de re­
gulamento pelo Executivo constitui uma derrogação do prin­
cípio da divisão dos poderes. E, adiante (1978/457-458), sus­
tenta que o poder règulamentar — porque os regulamentos
se apresentam como derivados — encontra seu fundamento
em uma atribuição de poder normativo, e não no poder discri­
cionário da Administração. Estou em desacordo, nestes dois
pontos, com Alessi.
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES”

Quanto à primeira afirmação, parece-me, irrepreensível a


conclusão anteriormente definida, segundo a qual só ocorre
derrogação do princípio da divisão dos poderes onde e quan­
do tiver se verificado — no caso — delegação de função legis­
lativa. Ora, se na hipótese dos regulamentos não há delega­
ção de função legislativa — e é o próprio Alessi quem o afirma
(1978/458) — , por força, não há que conceber, aí, derrogação
do princípio.
No que concerne à segunda afirmação, observo, inicial­
mente, que a Junção normativa, assim designada e tendo seu
conteúdo definido a partir de uma classificação material das
funções estatais, está originariarnente espraiada pelo todo
que constitui o Estado. Apenas, em conseqüência da adoção
de um determinado sistema organizacional, parte dela, trans-
mutada em Junção legislativa, ê destinada à titularidade do
Legislativo. Não obstante, remanescem as partes restantes,
como faculdades do Executivo e do Judiciário. Apenas, em
razão da contemplação daquele sistema, que supõe a divisão
de poderes — não, porém, para cindi-los, mas para tê-los em
situação de equilíbrio — , o exercício de tais faculdades recla­
ma uma atribuição, explícita ou implicitamente reconhecida
em ato legislativo.
A norma jurídica, como anteriormente vimos, é preceito
abstrato, genérico e inovador que se integra no ordenamento
jurídico. Por isso, não tem existência isolada, mas sim em um
complexo de outras normas relacionadas entre si, isto é, no
ordenamento jurídico. A função normativa, desde este aspec­
to, pois, está vocacionada à integração do ordenamento ju rí­
dico. Neste sentido, diviso o fundamento da função norma­
tiva, enquanto faculdade a ser exercitada pelo Executivo —
função regulamentar — e pelo Judiciário — função regimen­
ta l— , não na permissão (atribuição) para o seu exercício, mas
na vocação do ordenamento jurídico a realizar-se como um to­
do, para o quê é indispensável a ativação da função nor­
mativa em sua globalidade. Isto é, das funções legislativa, re­
gulamentar e regimental, e não apenas da primeira delas.
' Assim, cumpre observar que a exigência de o exercício
sobretudo da função regulamentar condicionar-se a atribui-
250 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Ções do Legislativo é mero expediente tendente à promoção


do equilíbrio na dinâmica dos poderes tripartidamente orga­
nizados, sem que tal signifique a não preexistência de tais
funções, como faculdades vocacionadas à integração do or­
denamento.

Essa atribuição conferida ao Executivo pelo Legislativo con­


substancia permissão para o exercício de função que é própria do
Executivo, como faculdade vocacionada à integração do ordena­
mento jurídico. Por isso, ela preexiste à atribuição, da qual pode­
mos dizer cumprir o papel de instrumento do controle da legalida­
de daquele exercício. Assim, a atribuição conferida ao Executivo
para aludido exercício poderia ser comparada ao tiro de partida
que é dado para que se desenrole uma corrida de 100 metrôs; a
faculdade de correr velozmente é própria a quem participa da pro­
va, como é própria ao Executivo, repito, a função normativa regula­
mentar, não obstante, tanto a faculdade de correr quanto a função
normativa regulamentar não poderão ser desencadeadas — o atleta
a correr, o Executivo a emanar regulamentos — senão após, res­
pectivamente, o estampido do tiro de partida e a expedição, pelo
Legislativo, daquela atribuição.

Após deixar bem vincado esse ponto, posso e devo con­


cluir que o desenvolvimento, pelo Executivo, da função regu­
lamentar efetivamente não consubstancia exercício de Jun­
ção legislativa, razão pela qual não há que cogitar, na hipóte­
se, de delegação desta última àquele.
E assim é — repito — ainda quando a esse desenvolvi­
mento seja conseqüente a imposição de obrigações de fazer
ou deixar de fazer alguma coisa, desde que tenha ele decorri­
do de uma atribuição de poder normativo, explícita ou impli­
citamente contida em ato legislativo — a imposição de tal
obrigação, então, terã surgido “em virtude de lei”.
\
E nem se alegue estou a valer-me de um jogo de palavras, (em vir­
tude de leQ sacado dó texto da Constituição de 1988, para argumen­
tar. A redação do preceito, exatamente como adotada pela Cons­
tituição vigente, pode ser lida na Constituição de 1824 (art. 179, I),
na de 1891 (art. 72, g 1D), na de 1934 (art. 113, 2D) — a de 1937 não
consagrou o princípio—, na de 1946 (art. 141, § 2a), na de 1967 (art.
150, § 2a) e na Emenda Constitucional n. 1/69 (art. 153, § 2D }. „
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES"

A conclusão assim firmada é, de resto, a que guarda com­


patibilidade com a ideologia consagrada no vigente texto cons­
titucional, que reclama e exige, de modo intenso, na ação do
Executivo, uma aproximação cada vez maior entre política e
direito, ao contrário do que sucedia no Estado liberal.

Observa Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1978/ 63): “A teoria


clássica da divisão dos poderes, construída com um claro acento
antí-hierarquizante e com a finalidade de explodir a concepção
mono-hierárquica do sistema político, irá garantir de certa forma
uma progressiva separação entre política e direito, regulando a le­
gitimidade da influência política na Administração,.que se torna
totalmente aceitável no Legislativo, parcialmente aceita no Execu­
tivo e é fortemente neutralizada no Judiciário, dentro dus quadros
ideológicos do Estado de Direito”.
É certo que há, no momento em que preparo os originais deste
texto para publicação, um intento macunaímico neoliberal em
marcha. De toda sorte, a ideologia consagrada na Constituição de
1988 ainda não foi substituída por outra.

17. Note-se bem que acatar o princípio da legalidade, no


quadro integrado pelos regulamentos, é só admitir o exercício
de potestade regulamentar prévia e normativamente (= por
lei) atribuída ao Executivo.
Quem não se recusa a conhecer a realidade sabe que
existem, no direito positivo brasileiro, três tipos de regula­
mento: os de execução, os equivocadamente chamados de
“delegados” e os autônomos.
Os regulamentos de execução decorrem de atribuição ex­
plícita do exercício de função normativá ao Executivo (Cons­
tituição, art. 84, IV). O Executivo está autorizado a expedi-
los em relação a todas as leis (independentemente de inser­
ção, nelas, de disposição que autorize emanação deles). Seu
conteúdo será o desenvolvimento da lei, com a dedução dos
comandos nela virtualmente abrigados. A eles se aplica,
sem ressalvas, o entendimento que prevalece e m . nossa
doutrina a respeito dos regulamentos em geral. Note-se,
contudo, que as limitações que daí decorrem alcançam ex­
clusivamente os regulamentos de execução, não os “delega­
dos” e os autônomos.
252 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Observe-se, ainda, que, algumas vezes, rebarbativamente


(art- 84, TV), determinadas leis conferem ao Executivo autori­
zação para a expedição de regulamento tendo em vista sua
fie l execução; essa autorização apenas não será rebarbativa
se, mais do que autorização, impuser ao Executivo o dever de
regulamentar.
Outras vezes essa atribuição é mais extensa, então se
configurando hipótese de regulamento “delegado”. Será ne­
cessário, portanto, em cada caso verificarmos qual o sentido
daquela atribuição. Se do primeiro tipo [própria aos regula­
mentos de execução), o Executivo estará sujeito àqueles li­
mites (desenvolvimento da lei, com a dedução dos comandos
nela virtualmente abrigados); se do segundo tipo, não.
Os regulamentos “delegados", assim indevidamente cha­
mados, porque não decorrem de nenhuma delegação de fun­
ção — e que, portanto, adequada e corretamente, chamo de
regulamentos autorizados — , são emanados a partir de atri­
buição explícita do exercício de função normativa ao Executi­
vo. Dela encontramos exemplo no art. 153, § I a, da Constitui­
ção (exceção à legalidade estrita) e em leis ordinárias que
contemplam disposições do tipo “fica o Poder Executivo au­
torizado a regulamentar as atividades (...)” , ou do tipo “o Po­
der Executivo regulará a forma e o processo para aplicação
do disposto no (...)” . Essas leis ordinárias ou permitem a ema­
nação de regulamento ou conferem o dever de sua emana­
ção. Torno a repetir que o que sé atribui ao Executivo é o
exercício de Jurtção normativa, e não de Junção legislativa;
logo, não há, no caso, qualquer delegação. Erradíssima, pois,
a menção, no caso, a regulamento “delegado”', cuida-se, no
caso, de regulamento autorizado.
O Executivo fica sujeito, ao editar esses regulamentos au­
torizados, exclusivamente às limitações definidas na atribui­
ção explícita do exercício da sua função normativa. Logo, es­
ses mesmos regulfxmentos autorizados podem impor obriga­
ção de fazer ou deixar de fazer alguma coisa (essa obrigação
terá sido imposta em vutude de lei).
Os regulamentos autônomos ou independentes são ema­
nados a partir de atribuição implícita do exercício de função
normativa ao Executivo, definida no texto constitucional ou
X — CRÍTICA DA “SEPARAÇÃO DOS PODERES'

decorrente de sua estrutura. A sua emanação é indispensá­


vel à efetiva atuação do Executivo em relação a determinadas
matérias, definidas como de sua competência.
Verifica-se, portanto, no caso deles, atribuição implícita do
exercício de função normativa na destinação de determinada
competência ao Executivo. O exercício da função administra­
tiva impõe, em certos casos, o exercício ancilar de função
normativa. Exemplifico com o art. 21, XII, da Constituição de
1988, que assinala a competência da União — Executivo —
para explorar determinados serviços públicos. Quando essa
exploração se dá mediante autorização, permissão ou con­
cessão, se impõe a emanação de regulamento autônomo para
regulamentar a exploração dos serviços. Outros exemplos
encontraremos nos incisos IX, X e XII do art. 84, e seu pará­
grafo único, do texto constitucional.
O Executivo, ao editar esses regulamentos, fica sujeito a
limitações decorrentes da atribuição implícita, evidentemen­
te neles podendo definir-se a imposição, inclusive, de obriga­
ção de fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
Isto posto, reconstruindo a classificação dos regulamen­
tos no Brasil, teremos:
i) regulamentos executivos ou de execução, que são os que,
decorrendo de atribuição do exercício de função normativa
explícita no texto constitucional (art. 84, IV, in fine) , desti­
nam-se ao desenvolvimento da lei, no sentido de deduzir os
diversos comandos nela já virtualmente abrigados;
ii) regulamentos autorizados, que são os que, decorrendo
de atribuição do exercício de função normativa explícita em
ato legislativo, importam o exercício pleno daquela função —
nos limites da atribuição — pelo Executivo, inclusive com a
criação de obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa;
iii) regulamentos autônomos ou independentes, que são
os que, decorrendo de atribuição do exercício de função nor­
mativa implícita no texto constitucional, importam o exercício
daquela função pelo Executivo para o fim de viabilizar a atua­
ção, dele, no desenvolvimento de função administrativa de
sua competência; envolvem, quando necessário, inclusive a
criação de obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
254 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Evidentemente, não estou a propor a liberação do Execu­


tivo para “legislar”. Pelo contrário, reconhecer o desenho cor­
reto do princípio, tal como contemplado pelo direito brasilei­
ro, significa possibilitarmos o controle do exercício da Junção
regulamentar pelo Executivo, ao que se recusam nossos pu­
blicistas, sob o argumento de que os regulamentos são in­
constitucionais...

Ainda quando esboçam o empreendimento de reflexão não me­


ramente repetitiva do que ja foi equlvocadamente dito por algum
outro autor, ainda então, em especial quanto a este tema, novos
equívocos são consumados. Clèmerson Cléve (1993/215), por exem­
plo, sustenta que o Executivo exerce atividade legislativa quando
emana decretos regulamentares; ademais, adiante diz que “o gover­
no, no momento que emana o regulamento, não exerce função le­
gislativa (como quando promulga medida provisória ou lei delega­
da), mas sim verdadeira função administrativa” (1993/221).

6. A s “ leis-medidci”

18. O conjunto das observações até este ponto produzi­


das permite-me, por derradeiro, ferir o tema das leis-medida
{Massnahmegesetze), que surgem no bojo do movimento que
Vincenzo Spagnuolo Vigorita (1962/23-24) refere como ammi-
nistratiuizzazione do direito público: aí a fratura entre hierar­
quia formal e substancial e a divergência entre força e valor
jurídico-formal e relevância efetiva dos atos legislativos e ad­
ministrativos. A lei tom a-se vaga nos seus enunciados, im­
precisa nos seus pressupostos de aplicação e elástica em
sua determinação; de outro íado, contudo, passa a discipli­
nar diretaiíiente interesses de segundo grau, mostrando-se
imediata e concreta tal qual um procedimento administrativo
especial. Na primeira hipótese, a lei se realiza através da prá­
tica de um ato administrativo; na segunda, é, em si mesma,
um ato administrativo espècial (v. Comparato 1971/62).
Forsthpff (1973a/9-10 e 60-61) observa que a fronteira
entre ação administrativa e ação legislativa desaparece
quando (i) o Legislativo habilita o Executivo a legislar, quan­
do (li) o legislador passa à ação e não edita mais regras abs­
tratas e gerais, desenvolvendo medidas de execução, e quan­
X — CRÍTICA DA "SEPARAÇÃO DOS PODERES”

do (iii) o legislador se abstém de qualquer regulamentação,


deixando tudo, em relação a determinada matéria, ã liberda-
de da Administração. Na situação indicada em "ii”, as leis-me-
dida. Daí operar-se, modernamente, como anota ainda
Fòrsthòff (1973b/101-128), o declínio do conceito clássico de
lei: o legislador não se limita mais a editar comandos gerais e
abstratos: a aparência da generalidade de uma lei é só uma
questão de formulação lingüística — com isso, um cornando
concreto reveste a forma de norma geral.
O tema é amplamente examinado pela doutrina germâ­
nica, resultando, da sua exploração, a verificação de que as
leis-medida, configuram ato administrativo apenas completá-
vel por agente da Administração, mas trazendo em si mes­
mas o resultado especifico pretendido ao qual se dirigem. Daí
por que são leis apenas em sentido formal, não o sendo, con­
tudo, em sentido materiaL As sementes da teorização desen­
volvida em tom o delas, aliás, encontram-se precisamente na
oposição entre ambas — lei em sentido form al e lei em sentido
materiaL Cuida-se, então, de lei não-riorma. É precisamente a
edição delas que a Constituição de 1988 prevê no seu art. 37,
XIX c XX.

Cuida-se, aí, de leis apenas em sentido formai, leis que não são
norma jurídica dotada de generalidade e abstração; leis que não
constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por for­
ça própria, autônoma (Alessi 1978/5). Vide Carl Schmitt (1971/XV1
e 106 e ss.), Larenz (1983/360), Canotilho (1991/829-832 e ss. e
1981/609-611 e 616-619) e Ataíde (1970/28-29).
A Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal não está referida
às leis-medida, A propósito, Hely Lopes Meirelles (1995/31) e Seabra
Fagundes (1979/261 e ss.).

Uma derradeira observação, aqui, ainda se impõe, referi­


da ã circunstância de ao movimento a que Vigorita refere
como amministrativizzazione, que importa a transferência de
função administrativa ao Legislativo, ser paralelo o da amplia­
ção da função normativa — regulamentar — do Executivo. A
interpenetração de funções deixa bem evidenciada, neste
passo, a face real da exposição de Montesquieu, atinente ao
equilíbrio e não ã “separação” de poderes.
XI
O E S T A D O , A L IB E R D A D E
E O D IR E IT O A D M IN IS T R A T IV O

“Cum ígnem aceenderet, domum suainjunto (mplehat, non luce


íllustrabat"
Aim Atioo’

1. A análise do tema enunciado — o Estado, a liberdade e o


Direito Administrativo — exige a introdução de duas premissas,
a primeira das quais repousa na impossibilidade de pensarmos
o direito “fechado” às demais ciências humanas ou culturais,
Lembrando a frase de Terêncio, recuperada pelo jovem
M arx — “Sou Jiomem: nada do que é humano me é estranho"
— nada do que é humano é estranho a quem se embrenhe no
pensamento sobre o direito, esse plano, essa instância, essa
linguagem do social.
A visão do direito como ciência “fechada” transforma o
dogmático em um pobre tecnólogo ou tecnocrata, nada mais
do que um mero leguleio.3
Toma-se vítima de uma. doença incurável quem não se dá
conta de que -^ corao ensina Enrique Marí (1993/219 e ss.) —

1. Apud Pe. Orlando Vilela, O drama Helolsa-Abelardo, p. 27. Para os


que não sabem latim ou o esqueceram: “Se acendia o fogo, enchia a casa de
fumaça, mas não a iluminava".
2, Os rábulas eram (ou são) mais humanos...
XI — ESTADO/LIBERDADE/DIREITO ADMINISTRATIVO 257

o discurso da ordem abrange o lugar da racionalidade (a lei) e


o lugar do imaginário social como controle da disciplina das
condutas humanas e da sua sujeição ao poder. Essa doença
crônica que envelhece o jurista que pretende fazer ciência à
custa do isolamento do direito, perdido em análises de concei­
tos, critérios descritivos e classificatórios das condutas que as
normas proíbem ou autorizam, sacerdote de uma religião tão
absurda como o mundo de Franz Kafka,3 isolado, ele próprio,
da realidade, para, ingenuamente, “fazer o jogo” do poder.
2. Em segundo lugar, é necessário tomarmos consciência
de que o individual sempre esteve, entre nós, inserido no Es­
tado, de modo a conformar e a determinar o interesse público,
mesmo e especialmente o chamado interesse público primário.
E assim é porque as virtudes republicanas são imanentes
à ordem social mas não podem realizar-se entre nós, porque
essa ordem, aqui, é privatista.4
A noção que temos da coisa pública relaciona-a não ao
povo, porém ao Estado. O público é o estatal, não o comum a
todos. Desconhecemos a sentença de Ulpiano,5 demarcando
a distinção entre ambos: os bens pertencentes ao Estado são
abusivamente chamados de “públicos”, pois assim devem ser
considerados unicamente os bens que pertencem ao povo ro­
mano. E desconhecemos também, inteiramente, a. síntese de
Cícero:6 res publica, res populL
O individualismo possessivo que toma conta de nós permi­
te visualizarmos exclusivamente o que pertence a cada um, e
os bens que são ditos públicos assim são chamados porque ar­
rebatados pelo Estado, este inimigo de cada um, concebido co­
mo instituição rigorosamente separada da sociedade.
Esse, o defeito essencial que vicia o pensamento de nossos
juristas, carentes de vocação para a crítica da realidade social,
dedicados exclusivamente à oposição ou ao apoio sem limites
aos governantes, desde a perspectiva estreita do individual.

3. A expressão é de Fãbio Konder Comparato (1978/472).


4. V. Eros Roberto Grau e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, “A corrupção
no Brasil", in Revista Brasileira de Estudos Políticos 80/20. ■
■ 5. Dlgesto, 50. 16, 15.
6. De Re Publica. I. 25, 39.
258 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

3. Parecem ou são efetivamente incapazes de compreen­


der que Estado e Governo não se confundem.
O Estado é uma instituição, abstrata. Embora aja como
um ator no embate das forças políticas, no exercício do poder
estatal, o Estado é, concomitanteménte, o troféu da política,7
disputado por essas forças, interessadas na conquista desse
mesmo poder, o poder estatal.
Mas isso não são capazes de perceber. Ou, antes, sabem
disso, mas raciocinam, porque vítimas da doença crônica que
os envelhece, como se não o soubessem. Uns combatem o “es-
tatismo” porque estão á serviço, mesmo sem o saber, do poder
empresarial; outros, simplesmente porque dirigem seus petar­
dos contra o inimigo errado, não contra a tyrannia absque titulo
ou a tyrannia quoad exercitium; não contra quem detém ou
exerce o poder estatal de modo ilegítimo, mas contra a própria
instituição estatal.
4. Falta aos nossos juristas o discernimento de que Esta­
do e sociedade constituem dois momentos de uma só unida­
de e de que, como ensina Hegel (1993) o indivíduo obtém a
sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua
essência, como ao fim e ao produto da sua atividade.
Por isso — e a este ponto, adiante retornarei — não há es­
paço para a liberdade individual senão no seio do Estado, se­
não enquanto os indivíduos permaneçam ligados ao Estado
como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua ativida­
de individual.
5. Essa incompreensão ou ignorância deixa marcas pro­
fundas na doutrina, e de modo tal que, ainda que se afirme a
distinção entre interesse público primário e interesse público se­
cundário, a coisa pública, aqui, ê a coisa do Estado, não a coisa
do povo.
Assim, porque ingênua8 ou maliciosamente atuam como
autêntica “linha ^auxiliar” dos que detém os poderes de fato
hegemônicos, juristas que se recusam a praticar o pensa­
mento crítico nutrem uma concepção do princípio da supre­

7. V. Georges Burdeau, O Estado, pp, 90 e as.


8. V. Luciano de Oliveira e Affonso Cezar Pereira (1988/143 e 146-147).
XI — ESTADO/LIBERDADE/DIREITO ADMINISTRATIVO 259

macia do interesse público que resulta por privilegiar não o


que se poderia supor ser o interesse do Estado (= da socieda­
de), mas os interesses, privados, daqueles que detém o contro-
le do Estado, usado o vocábulo "controle”, aqui, sob o sentido
de dominação.
Em seus tratados e cursos, bem assim em ensaios sibi-
linos, o Estado é descrito como deve ser, jamais como é.
6. A culpa, porém, não é exatamente deles, “sino de otros
más duros y siniestros”9 que, desde a Colônia, inseriram o
individual em nosso Estado, de modo a conformar e a deter­
minar o interesse público, permitindo que relações promís­
cuas entre o público e o privado caracterizem os comporta­
mentos de nossas elites,10 de onde um modo de ser marcan-
temente cultural, enrustido tanto na classe média como nas
de renda mais elevada.
Afinal de contas, é explicável que, por sermos assim, vice­
je, entre nós, e mesmo na doutrina produzida pelos juristas
— porque o direito, repita-se, é uma linguagem do social —
confusão entre Estado e Governo e a equivocada concepção
de que seria ele, o Estado, o grande vilão, o inimigo mais te­
mível da sociedade.
E isso de tal sorte se passa que chega mesmo a lembrar o
A rrêt burlesque, composto por Boileau (1861/191-193), que
decreta o banimento da Razão da Universidade de Estagirita,
além de proibir a um tal de Aristóteles de, na posse e no gozo
da Razão, nela entrar, incomodá-la ou inquietá-la, sob pena
de ser declarado jansenista e amigo de novidades...
7. Mas, além disso, especialmente no que tange ao Direi­
to Administrativo, seus fundamentos estão ancorados, ain­
da, no pensamento liberal.

É bastante expressiva a transcrição de um trecho da exposição


de John Gilissen (1979/738-739): “Estas ideias tomar-se-ão, no sé-

9. Cf. o poema de Mario BenedetU, "Hombre preso que mira su hi/o", in


Poemas de otros, p. 34.
10. Para uma visão de como, durante a Monarquia, a máquina püblica
era' manipulada pelos donos do poder como se fossem instalações do seu
quintal privado, v. Antonlo Candldo, Umfuncionário da Monarquia,
264 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

mente, contudo, acoca a teoria dos "conceitos indeterminados”,


dando franca liberdade ao exercício, pelo Executivo, da discri­
cionariedade, que concebe como um poder da Administração,
não como faculdade de formular juízos de oportunidade, exerci-
tãvel exclusivamente nos estritos termos de lei, tal como por
ela, lei, atribuída à autoridade administrativa.
Daí porque se impõe a crítica e a defesa da legalidade, o
que supõe, como premissa, o conhecimento da realidade, tal
como ela é — e não tal como seria bom que ela fosse, segundo
as crenças ideológicas de cada um — e, nela, da necessária
existência de regulamentos autorizados, que essa mesma
doutrina chama de regulamentos “delegados”; regulamentos
que são editados pelo Executivo em decorrência de atribui­
ção explícita a ele, definida em lei, do exercício da sua função
normativa regulamentar, o que permite o controle da legali­
dade de todos eles.

Diante de argumentos irrefutáveis, os arautos da doutrina a


eles escapam fazendo uso do velho método descrito por Galbralth
(195970-71): “É muitas vezes mais eficiente e Invariavelmente
poupa mais tempo e energia o ataque a uma posição como anti-
americana. alienígena, extravagante, cheia de subterfúgios, inexe-
qüível ou pró-comunista do que se se adotasse a técnica algo anti­
quada de examinar a questão em seus méritos". Limitam-se a afir­
mar que “todo marxista é autoritário e defende o Executivo forte",
sem se dar conta que é exatamente a tese dos “regulamentos dele­
gados” que conduz ao descontrole da ação do Poder Executivo.

1 1 . 0 fato é que essa doutrina se perde dentro de si pró­


pria porque construída desde, a visão do individual, incapaz
de perceber que urge reconstruirmos o Direito Administrati­
vo como regulação da ação do Estado voltada à satisfação do
social e não apenas como conjunto de regras que regula as
relações dos particulares com a autoridade administrativa.
Impõe-se substituirmos o Direito Administrativo/defesa do
indivíduo por um outro, um Direito Administrativo/organização
do Estado, que não apenas proteja o indivíduo, mas, ademais,
esteja a serviço da satisfação do social, Um Direito Adminis­
trativo erguido sobre uma distinta noção de legalidade, que
respeite aos procedimentos administrativos em si, e não atue
XI — ESTADO/LIBERDADE/DIREITO ADMINISTRATIVO 265

exclusivamente na medida em que a eles seja correlata uma


situação subjetiva do particular, sobre a qual tenha incidência
um efeito de extinção ou limitação. Uma legalidade que não se
manifeste exclusivamente no quadro da dialética da autorida­
de e da liberdade — uma necessariamente adversa da outra —
mas que se imponha como regra de conteúdo (não apenas de
limite) da atividade administrativa; legalidade que consubs­
tancie a garantia de fins públicos, na implementação de políti­
cas públicas, e não somente, e de modo exclusivo, a proteção
do interesse privado.16

A contribuição da literatura jurídica para uma noção de políti­


ca pública é bastante pequena. Um dos poucos juristas que escre­
veu sobre o tema, Fábio Comparato (“Ensaio sobre o juízo de cons-
titucionalidade de políticas públicas”, in Esíudos em homenagem a
Geraldo Ataltba. 2 — Díreíío Administrativo c Direito Constitucional,
pp. 343-359) salienta a novidade da política pública em relação às
normas e aos atos, pois uma política pública não é uma coisa nem
outra, ainda que as englobe como seus componentes. A política
pública é uma atividade, vale dizer, um conjunto organizado de
normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado.
Esse conjunto — a política — é unificado pela sua finalidade (veja-
se, sobre elas, Marlã Paula Dallarl Bucci. Direito Administrativo e
políticas públicas, 2002). A verdade é que inúmeras vezes mencio­
namos a circunstância de o direito deixar de meramente prestar-
se à harmonização de conflitos e à legitimação do poder, passando
a funcionar também como instrumento de implementação de polí­
ticas públicas, sem prestar a devida atenção às conseqüências
disso. Em monografia sobre o tema, Charles-Albert Morand (1999)
analisa a profunda influência das práticas das políticas públicas
sobre as formas jurídicas, afirmando mesmo a existência de um di­
reito das políticas públicas, cujas características são a flexibilidade,
o "fiou" e a complexidade; por fim o autor indaga, para negá-lo, se
esse direito das políticas públicas não estaria a dar lugar ao advento
de um “direito pós-modemo” (1999/194-211). O fato é que as rees­
truturações da “ordem capitalista”, que assistimos durante a últi­
ma década do século que passou, não se limitam a encaminhar
transformações isoladas na ordem jurídica, identificadas na criação
de um novo ramo ou mesmo de um novo instituto jurídico, 'mas
apanham e afetam o direito no seu todo. Em breve síntese podemos
dizer que desde a segunda metade do último século alterou-se, e

16. Vide Massimo Severo Glannlni (1970/3-88).


266 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de modo extremamente sensível, o processo de juridificação do


econômico e do social. E essa juridificação, que importou em uma
cada vez mais apurada e refinada regulação de ambos, o econômi­
co e o social — é verdade que negada nos últimos anos, os anos
do neoliberalismo — essa juridificação, dizia, conduziu a enorme
complexidade. Quem percorrer os índices das revistas jurídicas
estrangeiras da década dos 70, por exemplo, verificará que o fenô­
meno da “inflação normativa" desde então atormentava os estudio­
sos do direito. Em 1970 André Hauriou mencionava o direito admi-
ntstratiuo do aleatório-, em 1983 Carbonier explorava a idéia de fle ­
xibilidade do direito, A todas essas transformações permaneceu,
como que imunizada, nossa doutrina.

Um Direito Administrativo voltado à análise da funciona­


lidade da Administração, capaz de discernir, na complexida­
de da organização estatal, os inúmeros pontos a harmonizar
na atuação das suas entidades — não uma fotografia exata­
mente estática, mas o movimento de sua ação.

A múltipla e vária, quase verborrágica, produção de ensaios e


teses sobre as “agências” (vide meu “As agências, essas reparti­
ções públicas”, in Regulação e Desenvolvimento, pp. 25-28) é feita
para e pelo lado de fora, sem que se detenham, os que escrevem
sobre elas, no exame dos efeitos internos, no quadro da Adminis­
tração ela própria, que decorrem da sua criação. Resultado é que
mais não se faz, aqui, do que macaquear a doutrina norte-ameri­
cana e da Comunidade Européia, sem nenhuma construção dou­
trinária atinente ao direito brasileiro (por exceção, entre uns pou­
cos outros, Tércio Sampaio Ferraz Junior, “Agências reguladoras:
legalidade e constitucionalidade”, in Revista lYihutdria e de Finan­
ças Públicas 35/143 e ss., e Floriano Peixoto de Azevedo Marques,
Regulação estatal e interesses públicos, 2002),

12. A reconstrução do Direito Administrativo demanda


multa leitura interdisciplinar .e reflexão.17
Seria conveniente, preliminarmente, tomassem conheci­
mento, os que aderirem a essa'empreitada, de que o Estado é
o espaço de socialização da liberdade.

17. Cabe como u‘a luva, aqui. a obseivação de Luclano de Oliveira e


Affonso Cezar Pereira (1988/148): "não é possível ao Direito Administrativo
se põr à margem de discussões que, ná área das ciências sociais, enfocam a
questão do Estado a partir dos dados da realidade atual e concreta”.
XI — ESTADO/LIBERDADE/DIREITO ADMINISTRATIVO 267

Discorrendo sobre a relação entre Estado e sociedade,


Hegel os toma como duas etapas de uma mesma ordem, a or­
dem política. A sociedade civil é um momento anterior ao Es­
tado, uma etapa da ordem política; é um momento abstrato da
pura e simples realidade da idéia moral objetiva; não é ainda a
vontade substancial revelada “clara para sí mesma, que se co­
nhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe”; ela ape­
nas se realiza como totalidade concreta no plano do Estado.
Leia-se, do Princípios da filosofia do direito [1993), os §§
182 e 183.18
Após, o § 157, b),19 de onde se extrai:
“A sociedade civil é associação cujos membros são indiví­
duos independentes, reunidos em uma universalidade formal
em função das suas carências e pela constituição jurídica
(Rechtsverfassung) como instrumento de segurança da pessoa
e da propriedade dos bens e por meio de uma regulamentação
exterior destinada a satisfazer os interesses particulares e co­
letivos.
“Este Estado exterior20 encontra sua unidade e sua coe­
são no fim e na realidade dessa universalidade substancial e
da vida pública consagrada a essa universalidade, isto é, na
constituição do Estado (Staatveifassung).”
E do § 257:21
“O Estado é a realidade em ato da Idéia ética — o Espírito
ético enquanto vontade substancial revelada, clara para sí
mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e
porque sabe.
"O Estado tem a sua existência imediata no costume e a sua
existência mediata na consciência de sí, no saber e na atividade
do indivíduo, que obtém a sua liberdade substancial nele (o Es­
tado), que é sua essência, o fím e o produto da sua atividade.”
Em seguida, do § 25822 se extrai:

18. Ob. Cit., pp. 215-216.


19. Idem, p. 198.
20. = regulamentação exterior. ■
21. Ob. clt., p. 258.
22. Ob. Clt., pp. 258-259,
268 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

“O Estado, enquanto realidade em ato de vontade subs­


tancial, realidade que ele, o Estado, adquire na consciência
particular de si universalizada, ele (o Estado) é o racional em
si e para si. Essa unidade substancial é fim em si, absoluto e
imóvel, no qual a liberdade obtém o seu valor supremo, da
mesma forma que este último fim possui um direito soberano
perante os indivíduos cujo dever supremo está em serem
membros do Estado.
%..)
“Sendo, o Estado, Espírito objetivo, apenas como seu
membro é que o indivíduo adquire verdade, uma existência
objetiva e uma vida ética [= moralidade]. A associação como
tal — associação dos indivíduos no Estado — é o verdadeiro
conteúdo e o verdadeiro fim,23 porque o destino dos indiví­
duos está em participarem de uma vida coletiva; quaisquer
outras satisfações, atividades e modalidades de comporta­
mento encontram seu ponto de partida e seu resultado neste
ato substancial e universal. Considerada abstratamente, a
racionalidade consiste essencialmente na união íntima do
universal e do particular. Considerada concretamente, como
no caso se dá, ela consiste, quanto ao seu conteúdo, na uni­
dade da liberdade objetiva (a vontade geral substancial) e da
liberdade subjetiva como consciência individual e vontade
que busca a realização de seus fins particulares,”
Convém, por fim, a releitura de trecho do § 260:24
“Daí provem que o universal não tem valor e não pode ser
realizado sem o interesse, a consciência e a vontade particu­
lares e que, paralelamente, os indivíduos não vivem unica­
mente orientados pelo seu interesse, como simples pessoas
privadas, sem relação com o universal /= com a vontade uni-
versalí, sem exercer uma atividade consciente deste fim. O
princípio dos Estados modernos possuí esta imensa força e
profundidade: permitirem que o espírito da subjetividade al­
cance a extrema autonomia da particularidade pessoal ao
mesmo tempo em que o reconduz à unidade substancial, as­
sim mantendo esta unidade no seu próprio princípio."
O Estado é a realidade em ato da liberdade concreta.

23. Dos indivíduos.


24. Ob. ctt., p. 264.
XI — ESTADO/LII3ERDADE /DIREITO ADMINISTRATIVO 269

Ora, a liberdade concreta consiste em a individualidade


pessoal, com os seus interesses particulares, possuir de tal
modo o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento de
seus direitos para sí [nos sistemas da família e da sociedade
civil) que, (i) em parte, eles se integram por sí mesmos no in­
teresse universal e (ii) em parte, consciente e voluntariamen­
te o reconhecem2* como seu particular espírito substancial e
para ele agem como seu último fim.
A leitura de Hegel mostra bem que não há espaço para a
liberdade individual senão no seio do Estado, senão enquan­
to os indivíduos permaneçam ligados ao Estado como à sua
essência, como ao fim e ao produto da sua atividade indivi­
dual. Ao compreendê-lo, extraímos todas as conseqüências
da afirmação aristotélica de que o homem é, essencialmente,
um animal político.

Evidentemente não sou parvo. Conheço bem quem arrebatou


esse troféu, o Estado, e sei que o sistema capitalista da produção
elege como ratto .fundamentalis do ordenamento político o lucro e,
no delírio neoliberal, substitui a Happtness fundada na ética pela
Happiness entendida como valor hedonístico (2002/336 e 342).

13. Carecem de muita leitura e reflexão interdisciplina-


res os nossos dogmáticos, até para que fiquem cientes de que
há sempre um grego ou um romano que já disse antes o que
pensam ser uma criação intelectual sua. Lembro que mesmo
Hegel bebeu nas fontes de Platão e de Aristóteles...
Isso, contudo, ainda é pouco, dado que, para que não lhes
seja amoldável a última frase do antepenúltimo parágrafo do
prefácio que von Ihering escreveu para a décima quarta edição
do Der Karnpj' um’s Recht (1900) (“- wunderUche Scherze, cm.
denen manjertseits des Ocearts seirt Vergnügenju id e f), é preci­
so também que se libertem da ilusão da certeza. O direito, segu­
ramente, não é um jogo de vidrilhos que se olha contra o sol...
Desafiá-los, isso me rejuvenesce, pois — repito o que dis­
se há alguns anos — não merece o privilégio de viver o seu
tempo quem não é capaz de ousar... Ousar pelo social, jamais
pelo individual de e em si mesmo.

25. O interesse universal.


X II
N O T A S O B R E A G LO B A LIZ A Ç Ã O

1. A indagação proposta é a seguinte: a globalização eco­


nômica efetivamente provoca uma revolução no direito? Revo­
lução ou mudança qualitativa? Ou apenas uma mudança quan­
titativa?
Se há revolução (ou mudança) — qualitatUxx ou quantitativa —
onde ela se dá? No direito enquanto discurso (isto é, no próprio
direito)? Ou nos discursos sobre o direito {na doutrina, pois)?
2. O fenômeno da globalização não é novo.'
Basta, para demonstração dessa evidência, rememorarmos
algumas observações de Mane e Engels, no Manifesto do Partido
Comunista (1998/67 e ss): a produção e o consumo de todos paí­
ses tomara-se cosmopolitas mediante a exploração do mercado
mundial; a base nacional é retirada das indústrias; as indús­
trias não empregam mais matérias-primas locais, mas maté­
rias-primas provenientes das mais longínquas regiões, e seus
produtos acabados não são mais consumidos somente in loco,
mas em todas as partes do mundo, ao mesmo tempo; as antigas
necessidades, ãntes satisfeitas pelos produtos locais, dão lugar
a novas necessidades que exigem, para sua satisfação, produ­
tos dos países e dos climas mais remotos; a auto-suficiência e o
isolamento regional é nacional de outrora dão lugar a um inter­

1. Podemos situar o seu momento inicial no século XV, caso não quei­
ramos remontar ao descobrimento da “Rota da seda". Desde aí — e após a
tomada de Constantlnopla pelos turcos, em 1453 — ela se desenrola, como
que levando tudo de roldão.
XII — NOTA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO 271

câmbio generalizado, a uma Interdependência geral entre as


nações; isso vale tanto para as produções materiais quanto pa­
ra as intelectuais: os produtos intelectuais de cada nação tor­
nam-se um bem comum; o espírito nacional tacanho e limitado
toma-se cada dia mais inviável, e da soma das literaturas na­
cionais e regionais cria-se uma literatura mundial; o rápido de­
senvolvimento de todos os instrumentos de produção e as co­
municações impelem todas as nações, mesmo as mais bárba­
ras, para a torrente da civilização.
O que realmente há de novo na globalização decorre das
transformações instaladas pela terceira revolução industrial
— revolução da informática, da microeletrônica e das telecomu­
nicações — transformações que permitiram a sua reprodução
como globalização financeira.
Essa é a novidade instalada nos estertores do século pas­
sado, que permitiu que o dinheiro deixasse de ser, definitiva­
mente, um mero intermediário na troca entre valores de uso,
exercendo uma função própria, como propõe a fórmula de
Marx, D-M-D, O que agora se vê, nos mercados financeiros
internacionais, é D-D, e não D-M-D; o dinheiro se dobra so­
bre si mesmo, na esperança “de uma reprodução hermafrodi-
ta da riqueza abstrata*’.2
Nada além disso. Em 1933 Damia já cantava Tout lejour,
toúte Ia nuit, versão de Night and day, de Cole Porter.
3. É oportuno ainda, a esta altura, propedeuticamente
observarmos que a globalização é um fenômeno histórico, ao
passo que o neoUberalismo expressa uma ideologia, sem que
se manifeste qualquer relação necessária, entre ambos.®

2. V. Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, Prefãclo a Crise e trabalho no Bra-


stl (1996/18).
3. Note-se bem, contudo, que essa globalização financeira não pode ser
tomada como a conseqüência inevitável do progresso científico e tecnológico.
A globalização financeira que aí está é fruto de uma política de globalização
ancorada na ideologia neoliberal, conduzida, conscientemente desenvolvida
pelas instâncias que comandam o mundo (EUA, FMI, Banco Mundial. OMC,
OCDE, G’ 7, etc.) que hoje determinam a produção de Ideologia. Poderia ser
outra, Lembro, por exemplo, a observação de Lionel Jospin (Le Monde,
18.4.2001. p. 16): a. mundiallzação controlada pelos Estados pode conduzir
a.um novo universalismo, aquele dos direitos humanos — uma mundla-
lização com rosto humano, isto é. humanizada. V., também. Avelãs NUNES,
NeoUberalismo e clireitos humanos.
272 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Não obstante, a globalização afeta imediatamente a eco­


nomia e, pois, o mercado. É inútil procurarmos ocultar que a
economia, no modo de produção capitalista, predomina so­
bre o social.
O mercado é uma instituição jurídica. Dizendo-o de modo
mais preciso: os mercados são instituições jurídicas.
Antes, porém, o mercado deve ser compreendido, qual obser­
va Avelãs Nunes (1995/63), como "uma instituição social, um pro­
duto da história, uma criação histórica da humanidade (corres­
pondente a determinadas circunstâncias econômicas, sociais,
políticas e ideológicas), que veio servir {e serve) os interesses de
uns (mas não os interesses de todos), uma instituição política des­
tinada a regular e a manter determinadas estruturas de poder
que asseguram a prevalência dos interesses de certos grupos so­
bre os interesses de outros grupos sociais”. Neste sentido, tanto
o Estado como o mercado são espaços ocupados pelo poder so­
cial, entendido o poder político nada mais do que como uma certa
forma daquele.4'5
A exposição de Natalino Irti (1998) é incisiva: o mercado
não é uma instituição espontânea, natural — não é um locus
naturalis — mas uma instituição que nasce graças a determi­
nadas reformas institucionais, operando com fundamento
em normas jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam;
é um locus artifidalis.
Dissera-o jã, em outras palavras, Hermann Heller (1987/
208): “Com o desenvolvimento da divisão do trabalho e das
trocas, impõe-se a segurança das trocas, que no seu todo se
identifica com aquilo que o jurista costuma chamar certeza do
direito. A segurança das trocas ou certeza do direito tornaram-
se possíveis em decorrência de uma notável calculabilidade e
previsibilidade das relações sociais, que se tomam realizáveis
somente se as relações sociais e sobretudo as econômicas, são
reguladas de modo crescente por um único ordenamento, ou
seja, emanado de um único ponto eqüidistante. O resultado

4. Cf. Norbert Elias, O processo civilizador (1993/63).


5. Sendo instituições sociais — observa ainda Avelãs Nunes (ob. e loc.
cits.), mercado e Estado não apenas coexistem, como são interdependentes,
construindo-se e reformando-se no processo de sua interação.
XII — NOTA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO

final, ainda que não definitivo, desse processo de racionalização


social é o moderno Estado de direito, nascido substancialmente
de uma legislação sempre mais ampla, com a conseqüente
consciente imposição de regras de comportamento social que
excluem a autotutela em um âmbito sempre mais vasto de
pessoas e coisas, em opção por uma normatividade e execução
centralizadas”.6
O fato é que, a deixarmos a economia de mercado desen­
volver-se de acordo com as suas próprias leis, ela criaria
grandes e permanentes males. “Por mais paradoxal que pare­
ça — dizia Karl Polanyi (2000/161 e 163) — não eram apenas
os seres humanos e os recursos naturais que tinham que ser
protegidos contra os efeitos devastadores de um mercado
auto-regulãvel, mas também a própria organização da produ­
ção capitalista”.
O mercado, anota ainda Natalino Irti (1998/5), é uma or­
dem, no sentido de regularidade e previsibilidade de compor­
tamentos, cujo funcionamento pressupõe a obediência, pelos
agentes que nele atuam, de determinadas condutas. Essa
uniformidade de condutas permite a cada um desses agentes
desenvolver cálculos que irão informar as decisões a serem
assumidas, de parte deles, no dinamismo do mercado. Ora,
como o mercado é movido por interesses egoísticos, — a bus­
ca do maior lucro possível — e a sua relação típica é a relação
de intercâmbio, a expectativa daquela regularidade de com­
portamentos é que o constitui como uma ordem. E essa regu­
laridade, que se pode assegurar somente na medida em que
critérios subjetivos sejam substituídos por padrões objetivos

6. Lembro, neste ponto, a observação de Norbert Elias (1993/62): “A


cristalização de normas legais gerais por escrito, que ê parte integral
das relações de propriedade na sociedade industrial, pressupõe um grau
muito alto de integração social e a formação de instituições centrais ca­
pazes de dar à mesma lei validade universal em toda a área que contro­
lam, e suficientemente fortes para exigir o cumprimento de acordos es­
critos. O poder que confere força aos títulos legais e direitos de proprie­
dade não é mais diretamente visível nos tempos modernos. Em propor­
ção ao indivíduo, ele é tão grande, sua existência e a ameaça gue dele
emana são tão axiomáticas que raramente é submetido a teste. E esse o
motivo por que hã uma tendênciá tão forte a considerar a lei, como algo
que dispensa explicação, como se tivesse sido baixada pelos céus, um
‘Direito’ absoluto que existiria mesmo sem o apoio dessa estrutura de po­
der ou se a estrutura de poder fosse diferente.
274 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

de conduta, implica sempre a superaçao do individualismo


próprio ao atuar dos agentes do mercado.
Insisto, neste passo, em que o cálculo econômico e a “ra­
cionalidade” reclamados para as economias, de mercado, exi­
gências vitais da maximização do lucro, são o produto de um
processo histórico concreto, “um método próprio e caracterís­
tico do modo de produção capitalista”, como ensina o velho
Marx.7 Não é por acaso que o Estado Moderno tenha surgido
na Europa quase concomitantemente com o mercado capita­
lista e o cálculo econômico.8
Daí, na dicção de Antonio Baldassarre (2002/58): "a exigên­
cia de um sistema de normas jurídicas uniformes e de um
sistema de decisões políticas integrado em relação a determi­
nado território é essencial para o funcionamento e o desenvol­
vimento dos mercados, ou, de modo mais geral, da sociedade
civil, isto é, da coletividade que participa da distribuição dos
bens e das oportunidades que nascem dos mercados”.
4. Em suma:
(i) a sociedade capitalista é essencialmente jurídica e
nela o direito atua como mediação específica e necessária
das relações de produção que lhe são próprias;
(ii) essas relações de produção não poderiam estabelecer-
se, nem poderiam reproduzir-se sem a forma do direito posi­
tivo, direito posto pèlo Estado;
(iii) este, direito posto pelo Estado, surge para disciplinar
os mercados, de modo que se pode dizer que ele se presta a
permitir a fluência da circulação mercantil, para domesticar
os determinismos econômicos.'
5. A globalização financeira conduz, no entanto, ao esgar-
çamento, ã deterioração da capacidade estatal de por o direito

7. Vide Avelãs .Nunes (1995/48-49).


8, Pressuposto necessário do modo de produção capitalista, a uniformi­
dade (universalidade abstrata) das pessoas — sujeitos de direito — enseja a
consagração dò contratualismo como princípio regulador da vida pessoal,
social e econômica. Contratualismo muito especial, integrado por sujeitos de
direito integrados em uma sociedade atomisticamente constituída por indiví­
duos livres e iguais em direitos, sob a suposição de que as trocas livres en­
tre eles resolveriam todos os problemas da sociedade, sempre, porém, em
função de interessas específicos da burguesia.
XII — NOTA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO 275

(= direito posto). Os mercados financeiros globalizados passam a


ser regulados por outros sujeitos que não o Estado.9 O mínimo
normativo indispensável ao seu funcionamento10 é estabelecido
ã margem dele, como lex mercatoria auto-regulatoria.
O que neste ponto desejo observar é o fato de, no plano do
direito privado, o Código Civil ser codificação de preceitos
normativos que ordenam relações sociais entre pessoas, sim­
plesmente; surge quando o Estado deles se apropria, produ­
zindo direito posto. Além desses, porém, também dos precei­
tos aplicáveis aos que praticam atos de comércio apropria-se
o Estado, inserindo-os no quadro do direito positivo.
O substrato do sistema de Direito Comercial é integrado
por dois tipos de normas: (i) aquelas originárias dos próprios
comerciantes, em sua prática — a lex mercatoria, assim cha­
mada porque por eles próprios produzida — e (ii) aquelas nas­
cidas de autoridades exógenas aos comerciantes.11 O Estado
“recebe” as primeiras, produzindo originariamente as segun­
das para, ao legitimá-las, compor aquela harmonia sem a qual
não há mercados.
Ora, o fato de o Direito Comercial ser fruto de formação au­
tônoma, no âmbito de uma classe, permite o seu desenvolvi­
mento no plano internacional, em obediência às suas próprias
exigências. Isso ocorre, em tempo de globalização financeira,
de modo exacerbado.
Paradoxalmente, no entanto, isso se dá precisamente no
momento em que ao Estado se atribui a responsabilidade pela
performance das economias nacionais.
De todo modo, embora sempre tenha sido assim, desde o
surgimento do Estado moderno, é a contraposição entre as
idéias de Lex Mercatoria, de uma banda, e de nomos da ter­
ra,12 lugar e direito (geo-direito),13 de outra, que hoje nos co­
loca diante de desafio fascinante.

9. O direito econômico, anota Vincent Valentin (2002/245), encontra-se


em vias de escapar a qualquer controle de origem estatal. Vide nota 3, acima.
10. Baldassarre (2002/22-23).
11. Vide Paula Forgioni (2005/508-509).
12:. Vide Carl Schmitt (1950).
13. Por todos, Natalino Irti (2002).
276 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

6. Retomando a exposição de Carl Schmitt, teremos que a


conquista da terra (Landahme} cria o título jurídico mais radi­
cal que existe, o radical title, no sentido pleno e amplo do vocá­
bulo;14 contém a ordem inicial do espaço, a origem de toda or­
denação concreta posterior e de todo direito ultcrior;13 cria um
novo nomos do âmbito total do espaço de um povo que exista
ao lado de outros.16
O nomos, diz ainda Schmitt (1950/42), em seu sentido ori­
ginal, é precisamente a plena imediatidade de uma força ju rí­
dica não atribuída; é um acontecimento histórico constitutivo,
um ato de legitimidade, que dá sentido ã legalidade das leis.
Dizendo-o de outro modo: é o princípio normativo fundante
que dã sentido e ordem ao sistema jurídico e político e que,
desse modo, o legitima.17
Apoiado sobre o nomos, cada Estado afirma-se como so­
berano na comunidade internacional (plano do Direito Inter­
nacional), na qual coexiste com outros Estados em situação
de paridade.
O território e a cidadania são elementos essenciais da so­
berania — o Estado é o ente territorial soberano ou a organi­
zação jurídica e política de um povo.
A terra, ensina Carl Schmitt (1850/13), é definida, na lin­
guagem mítica, como a mãe do direito {o nomos da terra) — o di­
reito é unidade de ordenamento e determinação de território; o
Estado é soberania no espaço de um determinado território.
7. A partir dai passa a ser postulada a tese de que a glo­
balização tout court induziria um processo de de-territoria-
lização das relações econômicas e sociais, agudizado em razão
do desenvolvimento da World Wide Web.18
Estaria aí o ponto de ataque da globalização contra a so­
berania estatal, visto que o seu contexto é rigorosamente
territorial. A unidade entre poder de regulação jurídica e es­
fera territorial19 se dissolve no ar.

14. Carl schmitt (1950/17).


15. Carl Schmitt (1950/19).
16. Carl Schmitt (1950/50).
17. Cf. Baldassarre (2002/50).
18. Neste sentido, Baldassare (2002/59 e ss.).
19. Baldassare (2002/63).
XII — NOTA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO 277

Da assimetria entre mercado global e Estado — o que im­


porta a de-terriLorialização da economia e da técnica da socie­
dade global — decorreria a semi-soberania de muitos Estados
e a hiper-soberanici de alguns poucos.
Sabemos, contudo — e isso exige uma reflexão mais detida
sobre o tema que a soberania ainda é, na América Latina,
um daqueles conceitos que não admite termos intermediários,
porque perdem seu significado.20
8. A globalização financeira, isoladamente, não basta para
revolucionar o discurso do direito posto pelo Estado, ainda
que afete o discurso sobre o direito, exigindo novas análises
doutrinárias.
É certo — repito — que vivemos um tempo de aguda con­
traposição entre as idéias de Lex Mercaioria, de uma banda, e
de nomos da terra, lugar e direito (geo-direito), de outra. Mas
— cumpre dizê-lo ainda uma vez — sempre foi assim, desde o
surgimento do Estado moderno. O conflito entre proprietários
de diversos tipos de bens, bem presente desde o início do sé­
culo XIX, se reproduz no tempo, com maior ou menor intensi­
dade, mas permanece presente, na raiz do capitalismo, con­
trapondo uma doutrina autoritária (= mais Estado) a uma dou­
trina liberal (= menos Estado).
Lá os titulares de riqueza agrária recusavam a liberali­
zação social e reclamavam do Estado proteção para seus pro­
dutos, especialmente aduaneira; desejavam um Estado forte
e autoritário. Os capitalistas industriais, no entanto, cuja
atividade demandava a livre circulação de suas mercadorias,
reivindicavam um Estado liberal, que não apenas afastasse
barreiras aduaneiras, mas ensejasse também a livre circula­
ção da mão-de-obra agrícola em direção à industria.
Em tons diversos, essa oposiçáo permanece, embora la­
tente, mesmo quando o exacerbamento do processo de acu­
mulação de riqueza abstrata ensejado pela globalização finan­
ceira sufoca a consciência crítica do observador da realidade.
9. O que hoje efetivamente afeta o direito {discurso do di­
reito) não é a globalização, isoladamente, nem mesmo a glo­

20. V. Dlego Valadés (2002/175-176).


278 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

balização financeira, mas, de um lado, sucessivos movimen­


tos de reacomodação do capitalismo, agora apontando no sen­
tido de um aggtomamento do neoliberalismo.
Lembre-se que a receita neoliberal prescrevia (i) a desre-
gulamentação dos mercados domésticos e eliminação das bar­
reiras ã entrada e. saída de capital-dinheiro, de modo que a
taxà de juros pudesse exprimir, sem distorções, a oferta, e de­
manda de “poupança" nos espaços integrados da finança mun­
dial; (ii) para os mercados de bens, submissão das empresas à
concorrência global, eliminando-se os resquícios do protecio­
nismo e de quaisquer políticas deliberadas de fomento; (iii)
para os mercados de trabalho, flexibilização e remoção das
cláusulas sociais.21
O malogro do receituário está como que a anunciar re-
leituras keynesianas e o redescobrimento de que, como obser­
va Avelãs Nunes (1972/125), a intervenção do Estado na vida
econômica é um redutor de riscos tanto para os indivíduos
quanto para as empresas, identificando-se, em termos econô­
micos, com um princípio de segurança: “A intervenção do Esta­
do não poderá entender-se, com efeito, como uma limitação ou
um desvio imposto aos próprios objectivos das empresas (par­
ticularmente das grandes empresas), mas antes como uma di­
minuição de riscos e uma garantia de segurança maior na
prossecução dos fins últimos da acumulação capitalista".
De outro lado, afeta-o incisivamente a emergência de uma
única potência mundial, no intento evidente, do imperialismo
hegemônico global dominado pelos Estados Unidos, de produ­
ção de um Estado do sistema capitalista globalizado.22
A revolução .que nos pode afetar — a todos e ao direito —
decorre dessa situação, e seu alvo imediato são as institui­
ções da democracia.
IO . Concluindo: a globalização, em si, é o mal menor — só
importou mudanças quantitativas, não qualitativas — quase
insignificantes diante do perigo iminente, e alarmante, desse
imperialismo hegemônico econômico, militar e político, que
se arroga o direito de exercer o “monopólio da violência” em

21, Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo (1996/12).


22. Istvan Mezaros (2003/12).
XII — NOTA SOBRE A GLOBALIZAÇÃO 279
escala mundial, sempre em defesa de seus interesses, mas,
em seu primitivismo cultural, convencido de que está a pres­
tar um serviço à humanidade.
Como observa Étienne Balibar (2003/137), "les États-
Unis désarment sans envisager de se laisser désarmer eux-
mêmes”, o que lhes confere, mais do uma reivindicação de
superioridade de fato, uma “legitimidade” superior, mercê da
qual não lhes é necessário justificar, no plano internacional,
suas decisões de fazer uso da violência. Aqui, como se vê, já
não é mais o esgarçamento do direito positivo interno a cada
Estado que se opera, mas a decomposição da ordem jurídica
internacional.
Desgraçadamente, uma nova leitura da observação de
Kelsen, ém 1920 (1981/§ 65/320), pode agora ser feita: “Com
a superação do dogma da soberania dos Estados singulares
afirmar-se-á uma ciuitas maxima, um ordenamento de direito
internacional, ou melhor, mundial, que será objetivo, inde­
pendentemente de qualquer ‘reconhecimento’ e superior aos
Estados singulares”.23 Essa civitas maxima é moldada confor­
me a ética da “conquista do Oeste”: “I must kill that Indian
before he kills me!”...24

23. Tradução minha.


2,4. Verso de uma canção de protesto — Canção do subdesenuolvtdo, de
Carlos Lyra e Francisco de Assis — que o Centro Popular de Cultura, da
União Nacional dos Estudantes, tomou popular no final dos anos sessenta.
X I II
E Q Ü ID A D E , R A Z O A B IL ID A D E ,
P R O P O R C IO N A L ID A D E
E P R IN C ÍP IO D A M O R A L ID A D E

1. O direito positivo, direito posto pelo Estado, também re­


ferido como direito moderno, presta-se a permitir a fluência da
circulação mercantil.
A eqüidade, como anotou Franz Neumann (1957/171) ao
tratar da teoria jurídica liberal [liberal legal theory], era sem ­
pre denunciada como incompatível com a calculabilidade, o
primeiro requisito do direito liberal (= direito moderno). Era
necessário transformar-se a eqüidade em um sistema rígido
de normas, a fim de que fosse assegurada a calculabilidade
exigida pelas transações econômicas.
Como o mercado reclamava a produção de normas ju rídi­
cas, pelo Estado, que garantissem a calculabilidade e a confian­
ça nas relações econômicas, essa necessidade justificou, ain­
da segundo .Neumann (1957/167-168), a limitação de po­
der da monarquia patrimonial e do feudalismo. Essa limita­
ção culminou na instituição do poder legislativo dos parla­
mentos; a tarefa primordial do Estado é a criação de uma or­
dem jurídica que tom e possível o cumprimento das obriga­
ções contratuais e calculável a expectativa de que essas obri­
gações serão cumpridas.
A eqüidade comprometia essa calculabilidade e a segu­
rança jurídica. Daí o direito posto pelo Estado, que a rejeita e
substitui.
XIII — EQÜIDADE, PROPORCIONALIDADE

O próprio Neumann (1957/171-172) observa, contudo, que


essa rejeição somente poderia ser absoluta no quadro de um
sistema econômico competitivo. Por isso o ponto de vista da
eqüidade é retomado na medida em que cresce a concentração
do poder econômico e o Estado passa a desenvolver atividades
intervencionistas.1
Daí, inicialmente; a regra da razoábilicLajde, que surge no
bojo da legislação antitruste.

2. Lembre-se que a eqüidade opõe-se ao caráter geral da


lei (= do direito moderno).
Aristóteles (1990/V 14, 14, 1.137-b, 10-20] distingue a
eqüidade e o eqüitativo, relacionando-os ao justo, então ob­
servando que o eqüitativo, embora seja justo, não é o justo se­
gundo a lei, senão um corretivo da justiça legal. A razão disso
está em que a lei é sempre geral e há casos em relação aos
quais não é possível estipular-se um enunciado geral que se
aplique com retidão. Nos casos nos quais é necessário que o
enunciado se limite a generalidades, sendo impossível fazê-lo
corretamente, a lei não toma em consideração senão os casos
mais freqüentes', sem ignorar os erros que isso possa impor­
tar. Nem por isso ela é menos correta, porque a culpa não está
na lei, nem no legislador, mas sim na natureza das coisas. E
isso porque, em razão de sua própria essência, a matéria das
coisas da ordem prática reveste-se do caráter de irregularida­
de. Por isso, quando a lei expressa uma regra geral e surge
algo que se coloca fora dessa formulação geral, devemos, onde
o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por excesso de
simplificação, corrigir a omissão e fazer-nos intérpretes do
que o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente
neste momento, e teria feito constar da lei se conhecesse o
caso em questão.
O que Aristóteles mostra é que toda lei se encontra em
uma tensão necessária em relação à concreção do atuar, por­
que é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda

1. Atividades “intervencionistas^ porque o liberalismo supõe uma níti­


da separação entre Estado e sociedade civil, vale dizer, entre Estado e mer­
cado.
282 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

sua concreção. E prossegue: a lei é sempre deficiente, não


porque o seja em si mesma, mas sim porque, em presença da
ordenação a que se referem as leis,, a realidade humana é
sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das
mesmas.
O fato, porém, é que a lição de Aristóteles foi esquecida: a
eqüidade foi tragada pelo direito modemo, avesso a qualquer
possibilidade de subjetivismo na aplicação da lei pelo juiz. E
de modo tal que, em face da realidade, quando a sua concep­
ção é retomada — e isso desejo sustentar — embora assumin­
do a mesma forma e conteúdo, ela toma outros nomes. Inicial­
mente, o de razoabilidade; mais recentemente, o de propor­
cionalidade.

3. O que pretendo singelamente afirmar, inspirado em


Neumann, é que a proporcionalidade não passa de um novo
nome dado à eqüidade.
Sua rejeição pelo direito modemo, porque incompatível
com a calculabílidade e a segurança jurídica, era plenamente
adequada à teoria da subsunção.2 Hoje porém sabemos que a
interpretação é constitutiva — não meramente declaratória —
que a norma é produzida pelo intérprete e que interpretar o di­
reito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singu­
lar, através do particular, conferindo a carga de contingen-
cialidade que faltava para tom ar plenamente contingencial o
singular.3
Sendo isso correto — ou seja, que a proporcionalidade não
passa de um novo nome dado â eqüidade — essa verificação
tom ará mais fluente a compreensão de dois aspectos que pas­
so a enunciar, objetivamente.

2. A subsunção, implica apreçíàr-se como, da generalidade de ura de-


ver-ser, de suas "impIiCçLÇões gerais”, são obtidas as proposições concretas
desse dewer-ser. Ultimar essa operação é aplicar o direito; sua mecânica
está fundada em um silogismo: a premissa maior é o texto normativo, a
premissa menor são os pressupostos de fato e a conseqüência jurídica
(Canosa Usera 1988/9-10).
3. Ver meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.
3a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005.
XIII — EQÜIDADE, PROPORCIONALIDADE

3.1 A proporcionalidade, qual anotei em outra oportunida­


de (Grau 2005/183-189), não é um princípio, mas uma pauta,
um critério de interpretação.
O chamado "princípio” da proporcionalidade consubstan­
cia um postulado normativo aplicativo. Como tal impõe — ob­
serva Humberto Bergmann Ávila (1999/170) — uma condição
formal ou estrutural de conhecimento concreto (= aplicação)
de outras normas.
Nossa doutrina, no entanto, equivocadamente, toma-o co­
mo um princípio superior, pretendendo aplicã-lo a todo e
qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a
faculdade de “corrigir” o legislador, invadindo a competência
deste.
Nada há, porém, de novo — repito — na proporcionalidade
e na razoabilidade, postulados que desde há muito, e inde­
pendentemente da formulação dessas duas noções, vem o Po­
der Judiciário exercitando na interpretação/aplicação do di­
reito. Antes os denominavam simplesmente eqüidade.

3.2 0 segundo aspecto que remeto à reflexão dos que ain­


da cultivam este hábito estã em que a pauta da proporcio­
nalidade — bem assim a da razoabilidade — é atuada no mo­
mento da norma, de decisão.
Também, em outra oportunidade (Grau 2005/24) afirmei
que o intérprete produz a norma jurídica não por diletantis­
mo, mas visando a sua aplicação a casos concretos.
Interpretamos para aplicar o direito e, ao fazê-lo, não nos li­
mitamos a interpretar (= compreender) os textos normativos,
mas também compreendemos {= interpretamos) os fatos.
A norma jurídica é produzida para ser aplicada a um caso
concreto. Essa aplicação se dá — digo-o seguindo a conhecida
exposição de Kelsen — mediante a formulação de uma decisão
judicial, uma sentença, que expressa a norma de decisão.
A í a distinção entre a norma jurídica e a norma de decisão.
Esta é definida a partir daquela.
’ Pois bem: o que afirmo é ò fato de ambas as pautas — a da
proporcionalidade e a da razoabilidade — serem atuadas no
284 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

momento da norma de decisão {— Interpretação in concreto),


não naquele da produção da normajurídica {= interpretação in
abstracto}.4
Explico-me,
À separação entre interpretação e dpítcdção decorre da
concepção da primeira como mera operação de subsunção. No
silogismo subsuntivo, a premissa maior é o texto normativo; a
menor, os pressupostos de fato e a conseqüência jurídica. A
premissa maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme
ou não conforme à lei.
Propõe-se então a distinção entre interpretação in abs­
tracto e interpretação in concreto. A primeira respeita ao texto,
ã premissa maior no silogismo; a segunda, à conduta, aos fa­
tos. Esta última é tida como aplicação; a primeira, como inter­
pretação. Isso íica bem claro se considerarmos o disposto no
artigo 12 da lei francesa de 16-24 de agosto de 1790: “lis [os
juizes] ne pourront point faire de règlements, mais ils
s’adresseront au Corps législatif toutes les fois qu’ils croiront
nécessaire, soit d ’interpréter une loi, soit d’en rendre une
nouvelle”. Aqui se trata de interdição, aos juizes, de determi­
nação da premissa maior, atribuição que caberia a quem fez a
lei, ao legislador. Essa interdição conduziu, na França, ã cria­
ção do Tribunal de Cassação.5
Tem-se assim, na exposição de Troper (2001/129-130),
que a partir da criação do Tribunal de Cassação pela lei de 27
de novem bro-ls de dezembro de 1790:

[i] a interpretação in concreto não é interpretação, porém


mera aplicação da lei, visto que respeita à premissa menor do

4. Não obstante, também o legislador as aplica ao elaborar os textos


normativos, as Iéis. Lembre-se existirem, na verdade, dois intérpretes au­
tênticos da Constituição: além dos juizes que operam ó controle difuso e o
seu controle direto, .concentrado, o legislador ordinário é também seu in­
térprete autêntico no'sentido de Kelsen,
5. Lembro, a propósito, as palavras de François Gény (1899/67-68, nota
2) a esse respeito: "En somme, 1'idée de la Constituante paraít bien avoir été
que les tribunaux devaient se bomer â appliquer la loi, dans ses dispositions
claires et précises, sans pouvoir Vinterprétsr, au cas de diffieulté réelle et
sérieuse sur sa portée. Entre ces deux termes, application et interpréiation, la
distfnction assurément ne laissait pas d'étre délicate".
XIII — EQÜIDADE, PROPORCIONALIDADE

silogismo, não à premissa maior; o juiz não pretende determi­


nar a significação dos termos da lei, cabendo-lhe exclusiva­
mente perguntar-se se a lei, tida como clara, é aplicável aos
fatos do caso, para o quê basta o exame desses fatos;
[ii] a inteiprétàção in concreto é autorizada, mas não reco­
nhecida como interpretação, senão como mera aplicação da
lei, como qualificaçãojuiidica dosfcitos\
[iii] a má interpretação in concreto consubstancia uma vio­
lação da lei, uma Jalsa aplicação da lei, devendo ser cassada
pelo Tribunal de Cassação; também este tribunal não exerce
poder legislativo, visto que controla exclusivamente a premis­
sa menor do silogismo subsuntivo;
[iv] o exercício desse controle pode revelar que a lei é obs­
cura e deve dar lugar à interpretação in abstracto, cabendo po­
rém ao legislador interpretá-la; daí o artigo 21 da Constituição
francesa de 3 de setembro de 1791 ter estabelecido que
“Lorsque après deux cassations le jugement du troisième tri­
bunal sera attaqué par les mêmes moyens que les deux
premiers, la question ne pourra plus être agitée au tribunal de
cassation sans avoir été soumise au Corps législatif, qui
portera un décret déclaratoire de la loi, auquel le tribunal de
cassation sera tenu de se conformer”;
[v] para deixar bem sublinhado que esse tribunal controla
a boa aplicação da lei e reservar ao Legislativo a iritegralidade
de sua função, o artigo 19 da Constituição cria o Tribunal de
Cassação “auprès du Corps législatif’;
[vi] o legislador não interpreta in concreto, mas in abstracto;
cogita da premissa maior do silogismo, sob a forma legislativa,
pois interpretar in abstracto é legislar.

Mais adiante, essa divisão de atribuições é afirmada nos


artigos 4a e 5a do Código de Napoleão: o artigo 4a obriga o juiz a
interpretar in concreto e o artigo 5Qo proíbe de interpretar in
abstracto.
Sabemos também hoje, no entanto, que a chamada inter­
pretação in abstracto envolve necessariamente a consideração
dos fatos, de modo que não é possível apartarmos interpreta­
ção e aplicação, ou seja, interpretação in abstracto e interpre­
tação in concreto.
286 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

O que permanece útil, ainda que seja assim, é a distinção


entre o momento da produção da norma jurídica — insisto em
que a interpretação/aplicação do direito não é simples exercí­
cio de subsunção — e o momento da norma de decisão. A dou­
trin a — porque insiste em apartar interpretação e aplicação —
tropeça no equívoco de situar o recurso à proporcionalidade e
à razoabilidade nó primeiro deles, quando é certo que uma e
outra atuam no segundo.

4. Outro tema que pode ser aqui considerado, porque rela­


cionado ao quanto até este ponto exposto, diz com a afirmação
do princípio da moralidade, que a Constituição do Brasil toma,
no seu artigo 37, como um dos princípios da Administração.
Esta, nos termos desse artigo 37 obedecerá, entre outros, a
esse princípio.
O conteúdo desse princípio da atividade administrativa há
de ser encontrado no interior do próprio direito, até porque a
sua contemplação não pode conduzir ã substituição da ética
da legalidade por qualquer outra. O princípio exige condutas
sérias, leais, motivadas e esclarecedoras, ainda que não pre­
vistas na lei, decorrentes, no entanto, da interpretação do di­
reito, no seu todo, como ordenamento. A boa-fé há de ser tida
como exigência da vinculação da Administração pelo princípio
da moralidade.6
Lembre-se bem, neste passo, as considerações de Jesús
González Pérez [1983/58-59): “se da la desconfianza más ab­
soluta entre el administrado y los administradores. Los debe-
res de unos y otros se relegan al olvido más absoluto y la
fratem idad se traduce en una còhtinuada actitud de descon­
fianza y receio. De aqui la especial importancia en el Derecho
Administrativo de un principio que constituye cauce para la
integración de todo el Ordenamiento conforme a la idea de
creenciay confianza”.

6. Cabe qual u'a luva, aqui, a observação de Karl Larenz (1978/59), no


sentido de que uma sociedade em que cada um desconfia do outro asseme-
lhar-se-ia a “un estado de guerra latente entre todos, y en lugar de Ia paz
dominaria la discórdia, Allí donde se ha perdido la confianza, la co-
municaciõn humana está perturbada en lo más profundo".
XIII — EQÜIDADE, PROPORCIONALIDADE

5. Mas é certo que isso não significa uma abertura do sis­


tema jurídico para a introdução, nele, de preceitos morais,
O que importa assinalar, ao considerarmos a função do di­
reito positivo, o direito posto pelo Estado, é que este o põe de
modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume a so­
ciedade civil, conferindo concomitantemente a ela a forma que
a constitui.
Nessa medida, o sistema jurídico tem de recusar a invasão
de si próprio por regras estranhas a sua eticidade própria,
advindas das várias concepções morais ou religiosas presen­
tes na sociedade civil, ainda que isto não signifique o sacrifício
de valorações éticas.
Ocorre que a ética do sistema jurídico é a ética da legalida­
de. E nãó pode ser outra, senão esta, de modo que a afirma­
ção, pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, do
princípio da moralidade o situa, necessariamente, no âmbito
desta ética, ética da legalidade, que não pode ser ultrapassa-
do, sob pena de dissolução do próprio sistema.
Isto posto, compreenderemos facilmente esteja confinado,
o questionamento da moralidade da Administração, nos lindes
do desvio de poder ou de finalidade. Qualquer questionamen­
to para além desses limites estará sendo postulado no quadro
da legalidade pura e simples. Essa circunstância é que expli­
ca e justifica a menção, a um e a outro princípios, ria Consti­
tuição e na legislação infraconstitucional.
Lembre-se, a propósito, a observação de Maurice Hauriou
(2000/566): “Le détoumement de pouvoir correspond à la
notion de Ia bonne administration considéré en soi dans
1’acte”.
Seja como for — e desejo insistir neste ponto — a mora­
lidade da Administração somente pode ser concebida por refe­
rência ã legalidade.
290 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

com os critérios do direito positivo, que se não podem substituir


por quaisquer outros. A solução de cada problema judicial estará
necessariamente fundada na eticidade (= ética da legalidade), não
na moralidade. Como a ética do sistema jurídico é a ética da
legalidade, a admissão de que o Poder Judiciário possa decidir
com fundamento na moralidade entroniza o arbítrio, nega o
direito positivo, sácrifica a legitimidade de que se devem nutrir os
magistrados. Instalaria a desordem. Eis, então, por que resulta
plenamente confinado o questionamento da moralidade da
Administração - e dos atos legislativos - nos lindes do desvio de
poder ou de finalidade. Qualquer questionamento para além
desses limites apenas poderá ser postulado rio quadro da
legalidade pura e simples. Essa circunstância é que explica e
justifica a menção a um e a outro princípio na Constituição e na
legislação infraconstitucional. A moralidade da Administração - e
da atividade legislativa, se a tanto chegarmos - apenas pode ser
concebida por referência à legalidade, nada mais.
4. Digo-o com ênfase porque o que caracteriza o surgimento
do chamado direito moderno — esse direito que chamo direito
posto pelo Estado, opondo-o ao direito pressuposto - é precisa­
mente a substituição do subjetivismo da eqüidade pela objetivi­
dade da lei. Isso significa a substituição dos valores pelos prin­
cípios. Não significa que os valores não sejam considerados no
âmbito do jurídico. Não significa o abandono da ética. Significa,
sim, que a ética do direito moderno é a ética da legalidade.
A legalidade supõe a consideração dos valores no quadro do
direito, sem que, no entanto, isso conduza a uma concepção
substitutiva do direito pela moral. Ò sistema jurídico deve por
força recusar a invasão de si m esm o por regras estranhas ã
sua eticidade própria, regras advindas das várias concepções
morais ou religiosas presentes na sociedade civil. E - repito-o -
ainda que isto não signifique o sacrifício de valorações éticas. O
fato é que o direito posto pelo Estado é por ele posto de modo a se
constituir a si próprio, enquanto suprassume2 a sociedade civil,
conferindo concomitantemente a esta a forma que a constitui.

2. Suprassumir como “desaparecer conservante”, para traduzir Aufkeben,


no sentido apontado por Paulo Meneses, tradutor de Hegel na Enciclopédia das
Ciências Filosóficas em Compêndio (São Paulo, Edições Loyola, 199S, nota do
tradutor, p. 10). Cf. Michael Inwood, Diáonárío Hegel, trad. de Álvaro Cabral,
XIV — MORALIDADE E DIREITO MODERNO

5. Os valores, teleológicos, alcançam o direito pelo caminho


deontolôgico dos princípios. Porém, isso assim se dá sem que
seja esquecida a distinção hegeliana entre moralidade e eticida-
de. A moralidade respeita às virtudes do homem na sua subje­
tividade, ao passo que a eticidade repousa sobrêas instituições e
as leis - o nomos. Homem virtuoso será, em ambos os casos, o
que exerce de modo adequado seu predicado essencial, o ser
racional; virtuoso é o homem que usa a razão [logos) exercitando
a prudência (phrõnesis). No plano da eticidade, o homem já não é
visto isoladamente, porém inserido no social; logo, sujeito às
instituições e às leis. Virtuoso, então, desde a perspectiva da
tradição que vai de Platão a Hegel, no plano da eticidade, é o
homem que respeita as instituições e cumpre as leis.
Daí por que cumpre nos precavermos em relação aos que
afirmam o antipositivismo sem limites, desavisados de que a
ética da legalidade não pode ser ultrapassada, sob pena de
dissolução do próprio sistema. Certo conteúdo de justiça por
certo se impõe na afirmação do direito, mas conteúdo de justiça
interno a ele, quer dizer, conteúdo de justiça positivado.3

Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, pp, 303-404), em especial o seguinte
trecho: “Aufheben é semelhante à negação determinada que tem um resultado
positivo. O que resulta da suprassunção de algo, por exemplo, o todo em que
ele e seu oposto sobrevivem como momentos, é invariavelmente superior ao
item, ou à verdade do item suprassumido”.
3. Um último argumento de que se valem os que pretendem substituir
a racionalidade do direito moderno pelo subjetivismo da moralidade
repousa na alusão a uma ética pública. Como são muitas as morais e os
sistemas éticos aos quais nos podemos vincular - o que nos deixaria sem
rumo e sem padrões de comportamento recorrem à moralidade como
expressão dessa ética, pública. Mas essa moralidade pública não pode operar
como critério de juízos praticáveis no âmbito do direito, pois compromete a
segurança e certeza jurídicas, na medida em que, como observa José
Arthur Gianotti (“Moralidade pública e moralidade privada”, in Adauto
Moraes (org.), Êtica, p, 336), compreende um aprender a conviver com os
outros, um reconhecimento da unilateralidade do ponto vista de cada qual,
que não impõe conduta alguma. Anoto, por fim, a circunstância bizarra de
esse tipo de raciocínio ordinariamente coexistir com o sentimento de tédio e
cansaço que nossas elites, nos dias de hoje, nutrem em relação a sua
própria mediocridade.
X IV
N O T A S O B R E A M O R A L ID A D E
E O D IR E IT O M O D E R N O

1. A evolução do pensamento sobre o direito nos últimos


vinte anos é notável. Na última década do século passado
apreendemos a importância dos princípios e, em seguida - a
partir da que se convencionou chamar nova hermenêutica que
o momento da produção normativa é posterior ao da redação
dos textos normativos. Somos agora, capazes de distinguir a
dimensão legislativa da dimensão normativa do direito, o
processo legislativo, de um lado, e o processo de produção
normativa {= produção da norma pelo intérprete), do outro.1
Nesse sentido, mais que apenas evolução, o pensamento
jurídico foi campo, nos últimos anos, de uma revolução.
Discernimos, entre tantas outras coisas, a distinção entre o
direito posto pelo Estado e o que tenho designado direito
pressuposto, uma das linguagens do social. Poucos a percebe­
ram. A grande maioria dos que pàrticipam das práticas sociais
expressivas da produção das normas jurídicas o faz sem se dar
conta dessa enorme revolução.
Daí suportarmos paradoxos e contradições. A superada
subsunção convive, nas abstrações dos que carecem de voca­
1. Note-se bem que esses dois momentos - o momento do texto e o mo­
mento da norma — não são expressivos de uma cisão na dinâmica jurídica,
como se ela fosse divisível, como se a pudéssemos partir em distintos
pedaços. Pois o texto é desdobrado pelo intérprete no momento da
interpretação, de modo que o processo que o direito é enquanto totalidade ai
não se interrompe; ao contrário, esse processo nesse ponto se completa.
V
XIV — MORALIDADE E DIREITO MODERNO 289

ção para as abstrações, com sua mais completa negação her­


menêutica. Como faltam pensadores capazes de um salto à
frente e, hoje, livros repetitivos são publicados aos borbotões, o
simples compreender resulta enigmático.
São muitos os aspectos dignos de alguma reflexão por quem
se disponha a praticar esse hábito (o antigo hábito da reflexão)
sem arrogância intelectual. Nesse passo me disponho a con­
siderar um deles.
2 . Este diz com a circunstância de que há no ar uma
vontade de superação da cisão entre direito e moral. O que se
deseja é trazer valores éticos para dentro do horizonte do
jurídico. Isso permitiria qualificar como tal, como jurídico,
somente um sistema normativo, ou uma norma singular,
dotado de certo conteúdo de justiça. O que permitiria carac­
terizar como válida a norma ou o sistema de normas seria
esse conteúdo de justiça.
Mesmo em certas decisões judiciais de quando em quando
surge, em discursos que desbordam da racionalidade para
tons de folhetim, o apelo à moralidade como razão de decidir.
Tal e qual texto normativo estariam a violar o ordenamento, ou
seriam mesmo inconstitucionais, por comprometerem a mo­
ralidade ou o princípio da moralidade. Bem a propósito, al­
guém já disse que a demagogia e os clichês, para os que não
conseguem produzir mais que tanto, são irrefreáveis. Algumas
citações repetitivas são reproduzidas como se bastassem para
suprir formação intelectual incompleta e/ou inacabada, e
tolices são proclamadas à larga.
3. É certo que a Constituição do Brásil define a moralidade
como um dos princípios da Administração. Não a podemos,
contudo, tomar de modo a colocar em risco a substância do
sistema de direito. O fato de o princípio da moralidade ter sido
consagrado no art. 37 da Constituição não significa abertura
do sistema jurídico para introdução, nele, de preceitos morais.
Daí que o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no
interior do próprio direito. Sua contemplação não pode conduzir à
substituição da ética da legalidade por qualquer outra. O
exercício da judicatura está fundado no direito positivo (= a
eticidade de Hegel). Cada litígio há de ser solucionado de acordo
XV
S O B R E A É T IC A J U D IC IA L

1. Sobre a ética e a ética judicial* 2. A interpretação/aplicação do


direito. 3. A função de julgar. 4. Os cânones fundamentais da ética
judicial.

1. Sobre a ética, e a ética ju d icia l


1. A ética é uma disciplina, no campo da filosofia, que
estuda as condutas humanas inseridas em determinada
cultura, a ciência do agir.
Daí a necessidade de inicialmente distinguirmos esta
disciplina (a ética} da qualidade (ética) atribuível, ou não
atribuível, a determinada conduta, considerando, contudo,
que o vocábulo (ética) pode significar, ainda, sistema ou
conjunto de critérios normativos a serem obedecidos pelo
homem no exercício de determinada conduta.
No primeiro sentido (disciplina do conhecimento), a ética é
uma ciência descritiva e normativa - ciência do agir, ela não
apenas descreve condutas-, mas indaga a quais princípios o
agir humano deve obedecer para atender ã sua peculiaridade
essencial, isto é, ã circunstância de ser racional. No segundo
sentido, uma qualidade de uma ação ou modo de ser humano
(valor). No terceiro (disciplina deontolõgica), ciência norma­
tiva que define critérios a serem obedecidos pelo homem no
exercício de determinadas condutas - neste sentido, a deon-
tologia deriva da ética, é a aplicação da ética a uma deter­
minada atividade profissional.
XV — SOBRE A ÉTICA JUDICIAL 293

A êtica respeita ao todo do agir humano, às condutas do


homem na sua totalidade. A ética judicial respeita aos deveres
que o juiz hã de observar no exercício das condutas próprias a
suas funções.
A êtica judicial, como aqui a considerámos, é o sistema de
normas que regulam as condutas dos membros do Poder
Judiciário.1 Não a ciência que as estuda, mas o objeto deste
estudo, ou seja, uma deontologia.

2. Por outro lado, convém compreendermos a diferenciação


hegeliana entre moralidade e eticidade. A primeira respeita às
virtudes do homem na sua subjetividade, ao passo que a
eticidade repousa sobre as instituições e as leis (nomos). Em
ambos os casos, homem virtuoso será o que exerce de modo
adequado seu predicado essencial, o ser racional; virtuoso é o
homem que usa a razão (logos) exercitando a prudência
{phrõnesis). No plano da eticidade o homem já não é visto
isoladamente, porém inserido no social; logo, sujeito às insti­
tuições e às leis. Virtuoso, então, desde a perspectiva da tra­
dição que vai de Platão a Hegel, no plano da eticidade, é o
homem que respeita as instituições e cumpre as leis.
Aqui vamos tratar da deontologia, em razão do quê sugiro
a alteração do título do nosso tema. Em rigor, cuidamos da
ética na atividade judicial, não da ética judicial enquanto
ética do direito. Esta, a ética do direito, é a ética da legalidade.

3. A ética judicial enquanto ética da (na) atividade judicial


compreende critérios normativos que devem orientar o exercício
da função jurisdicional pelo juiz. Esses critérios se expressam em
princípios e regras que incidem sobre a conduta do homem ao
qual atribuída a função de julgar (= tomar uma decisão em
relação a uma lide, com fundamento na ética da legalidade).
Não se trata de princípios e regras sobre a interpretação/
aplicação do direito. Em outros termos, não se trata de meta-
princípios ou meta-regras sobre a interpretação/aplicação do

1. Sistema de normas que regulam apenas as condutas dos membros


do Poder Judiciário. Por isso, dela excluímos os códigos de ética aplicáveis
aos advogados (Código de Êtica e Disciplina da OAB — Ordem dos
Advogados do Brasil, de 13.2.1995).
294 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

direito, porém de princípios e regras de conduta dos juizes no


exercício de suas funções; regras de conduta na e não sobre a
interpretação/aplicação do direito.
Isso significa que o exercício da judicatura está fundado
no direito positivo (- a eticidade de Hegel), sem que os
princípios e as regras da ética judicial enquanto deontologia
sejam determinantes para a solução do litígio. O litígio será
solucionado de acordo com os critérios do direito positivo. A
conduta do juiz, ao solucioná-lo, deverá conformar-se a
critérios deontológicos que constituem a ética judicial; mas a
solução estará fundada na eticidade {= ética da legalidade) .

2. A interpretação/aplicação do direito
4. Aqui se imporia, a fim de que possam ser explicitadas
algumas observações feitas linhas acima, breve exposição a
respeito da interpretação/aplicação do direito. Pretendendo não
ser repetitivo, remeto o leitor ao meu Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito,2 onde tratei dos seguintes
aspectos: (i) não se interpretam normas, senão textos nor­
mativos - as normas resultam da interpretação; o significado da
norma ê produzido pelo intérprete; (ii) interpretamos para apli­
car o direito, de modo que, ao interpretar os textos normativos,
interpretamos também os fatos do caso ao qual ele será aplicado
e a realidade; (iii) interpretação e aplicação não se realizam
autonomamente; (iv) a interpretação do direito é dotada de
caráter constitutivo, não meramente declaratório, pois.
Igualmente, cumpre, ainda, a esta altura, observarmos que
os juizes julgam segundo a ética do direito positivo. Do que
resulta claro o quanto inicialmente afirmei: aqui tratamos da
ética na atividade judicial; a ética judicial, enquanto ética do
direito {= ética da legalidade), compreende um outro tema.
s

3. A fu n çã o de ju lg a r
5. O ato de julgar é o ponto terminal de um processo de
compreensão que se desenrola como interpretação/aplicação

2. 4» ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2006.


I

XV — SOBRE A ÉTICA JUDICIAL 295

do direito {= direito positivo, posto pelo Estado) e culmina na


afirmação de uma decisão em relação a uma lide, decisão que
encontra fundamento na ética da legalidade.
O que o caracteriza é a circunstância de a interpretação se
desenvolver a partir de pressuposições. A compreensão escapa
ao âmbito da ciência, respeita ao ser no mundo (Dasein). E o ser
no mundo é um ente que não se limita a se colocar entre outros
entes; é, ao contrário, ente que se caracteriza onticamente pelo
privilégio de, em seu ser - isto é, sendo - estar em jogo seu
próprio ser.3 Logo, o compreender é algo existencial; a com­
preensão do ser é, ela mesma, uma determinação de ser do ser
no mundo. Ela se dã como compreensão do ser.4A compreensão
é, então, experiência. Por isso mesmo resultará sempre inútil,
em qualquer "ciência compreensiva”, qualquer tentativa de
separação entre racionalidade e personalidade da compreen­
são. O direito — diz Kaufmann5 —, diferentemente da lei (do
texto, digo-o}, não é algo que permaneça inalterado; é ato e, por­
tanto, não pode ser um objeto de que se possa conhecer inde­
pendentemente de um sujeito.
Daí, por consubstanciar uma experiência existencial, o
exercício da função judicante suscita algumas questões
clássicas em torno da neutralidade, da independência e da
imparcialidade do juiz. Torna-se necessária, contudo, antes
de delas cuidarmos, uma sucinta alusão a um aspecto em
geral ordinariamente não abordado quando se trata do tema.

6. Refiro-me à legitimidade dos juízes, que não se deve


apurar no plano da legitimidade do titulo (legitimidade absque
título), mas sim no do exercício da função judicante (legitimidade
quoadexerátium). No Brasil o ingresso na carreira judicial é feito
mediante concurso público, e nos tribunais superiores por
indicação do presidente da República e aprovação do Senado

3. Cf. Martin Heidegger, El sery el tiempo, 2fl ed., 5a reimpr., pp. 21-22.
4. Cf. Ulrich Schroth, “Hermeneutica filosófica y jurídica”, In Arthur
Kaufmann e Winfried Hassemer (orgs.), El pensamiento jurídico contempo­
râneo, p. 290.
5. Arthur Kaufmann, “Panorâmica histórica de los problemas de la
fllosolia dei derecho", in Arthur Kaufmann e Winfried Hassemer (orgs.), El
pensamiento jurídico contemporâneo, p. 130.
296 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Federal. A legitimidade dos membros do Poder Judiciário há de


ser sindicada, portanto, no plano daquele exercício.
Neste ponto importa observarmos que o discurso da ordem
abrange não apenas o lu gar_da racionalidade (a lei), mas
também o lugar do imaginário social como controle da disci­
plina das condutas humanas e de sua sujeição ao poder.6 A
questão da legitimidade do exercício da função jurisdicional
envolve a consideração desses dois planos - o da raciona­
lidade da lei e o do imaginário social cabendo ao magistra­
do, no Estado de direito, considerar as manifestações desse
imaginário sem, contudo, permitir que a ética da legalidade
seja tragada pela emoção coletiva, que pode conduzir não
apenas aos linchamentos, mas à indiferença em face do
desprezo autoritário pelos chamados direitos fundamentais.
Para isto existem os princípios e as regras jurídicas, para
assegurar que o devido processo legal seja observado também
quando quem não mereça a nossa simpatia o reclame.

7. Resta, por fim, indagarmos, neste apartado, quem pode/


deve impor aos juízes a ética judicial, tal qual aqui a consi­
deramos, ou seja, quem pode/deve a eles impor obediência aos
critérios deontológicos da chamada ética judicial.
Alguns desses critérios decolam do direito positivo, desdo­
brados de determinados princípios nele afirmados; outros sen­
do discernidos no plano do que denomino direito pressuposto.7
Entre os primeiros, os que conferem concreção aos prin­
cípios da necessária fundamentação da decisão judicial - art.
93, IX, da Constituição do Brasil - e os da impessoalidade e da
moralidade,s que o art. 37 da Constituição do Brasil define
como aplicáveis à Administração Pública, mas também vincu­
lam o Poder Judiciário.
No que tange ao segundo plano, ao observar que alguns dos
critérios da ética judicial são discernidos no bojo do direito pres­
suposto, estou a afirmar que a ética judicial é uma construção
social; vale dizer, seus critérios são construídos socialmente.

6. Enrique Marí, Papeles de filosofia, pp. 219 e ss.


7. V., neste livro, o capítulo II.
8. V., neste livro, o capítulo XIV.
XV — SOBRE A ÉTICA JUDICIAL 297

S. A exposição até este ponto desenvolvida permite a


enunciação de algumas conclusões:
(i) Alguns dos critérios da ética judicial decolam do direito
positivo, desdobrados de determinados princípios nele afir­
mados; estes se aplicam de modo heterônomo àos juízes (aqui
a neutralidade, a independência e a imparcialidade}.
(íi) Outros,, que não se impõem de modo heterônomo em
decorrência do direito posto pelo Estado, estão contemplados
em “códigos de ética” editados por determinados órgãos do
Poder Judiciário, aplicando-se aos juízes e servidores abran­
gidos pelas suas respectivas jurisdições.

4. Os cânones fu n da m en tais da ética ju d icia l


9. Os “códigos de ética” editados por órgãos do Poder
Judiciário - Tribunais ou Conselhos de Magistratura - em
geral estabelecem princípios, regras funcionais e regras
sociais. Alguns deles estipulam medidas corretivas aplicáveis
ao desatendimento daqueles princípios e regras e criam
tribunais de ética.
Em linhas gerais, os três cânones primordiais da ética
judicial são a neutralidade, a independência e a imparcialidade.

10. A neutralidade é o primeiro destes cânones, signi


ficando que o juiz deve manter-se em situação exterior ao
conflito que é o objeto da lide a ser solucionada. Ele deve ser
estranho ao conflito. Seus interesses não devem, sob maneira
nenhuma, entrar em jogo no conflito que ele deve resolver. Por
isso e apenas assim ele serã capaz de dizer o direito, não se
engajando no conflito, mantendo-se estranho a ele.9
Somente desde essa perspectiva podemos falar em neutra­
lidade política de qualquer intérprete do direito, inclusive do
intérprete autêntico. Pois é certo que ~ ainda que na inter­
pretação do direito deva prevalecer a força dos princípios (são
eles que dão coerência ao sistema) - a neutralidade política do

9. V. Isabelle Pariente-Butterlin, Le droit, la norme et le rêel, p. 143.


298 O.DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

intérprete só existe nos livros. Na prãxis do direito ela se


dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas,
porque jurídicas, são políticas; que o ato de julgar consubstan­
cia uma experiência existencial.
A neutralidade do juiz há de ser concebida, portanto, exclu­
sivamente no sentido acima indicado. Haverá neutralidade
quando nenhum interesse do juiz estiver em jogo no conflito
que lhe incumbe resolver.
A neutralidade desdobra-se em independência e imparcia­
lidade.

11. A independência é expressão da atitude do juiz em


face de influências provenientes do sistema e do governo.
Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interes­
ses do governo - quando o exijam a Constituição e a lei mas
também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não
gostariam que fossem adotadas.
A vinculação do juiz à ética da legalidade algumas vezes o
coloca sob forte pressão da imprensa, que patrocina lincha­
mentos no tribunal de exceção erigido sobre a premissa de
que todos são culpados até prova em contrário. A imprensa,
entre nós, atua como um quarto poder, à margem de qualquer
controle, de molde a influenciar de modo determinante a
formação da opinião pública. Somos uma sociedade à qual
deve ser esclareçido que a garantia de imunidade à censura
se destina a tolher não apenas o controle da informação pelo
Estado, mas em especial a distorção da informação promo­
vida pelo proprietário do veículo,de informação, pelo redator-
chefe, pelo editorialista, pelo repórter; uma sociedade à qual
se deve ensinar que o titular da liberdade de imprensa não é o
jornal, a emissora de rádio ou televisão, mas o povo.
A imparcialidade, por fim, ô expressão da atitude dò juiz
em face de influênçias provenientes das partes nos processos
judiciais a ele submetidos. Significa julgar com ausência
absoluta de prevenção a favor ou contra alguma das partes.
Aqui nos colocamos sob a abrangência do princípio da im­
pessoalidade, que a impõe.
XVI
IM U N ID A D E P A R L A M E N T A R E P R E R R O G A T IV A
D E F O R O ; A D IS T IN Ç Ã O E N T R E
P R E R R O G A T IV A E P R IV IL É G IO

1- Trate-se do tema da imunidade parlamentar ou da prer­


rogativa de foro, a questão que imediatamente é posta em
debate respeita à superposição ou oposição entre prerrogativa
e privilégio.
Nenhuma prerrogativa é, contudo, expressão de qualquer pri­
vilégio. Isso gostaria de deixar bem claro, muito claro. Até porque,
como observou Rui Barbosa1referindo-se a elas, basta, para des­
moralizar uma instituição, pregar-lhe o cartaz de privilégio.

2, O privilégio constitui uma ruptura da igualdade. A


igualdade se expressa em (i) isonomia (= garantia de condições
idênticas asseguradas ao sujeito de direito em igualdade de
condições com outro) e (ii) na vedação de privilégios. Privilégio
é vantagem, da qual alguém desfruta, que faz exceção ao
direito comum.
O conceito de privilégio sempre esteve relacionado, excep­
cionando-o, à idéia de direito comum. Excepciona-o porque se
coloca em oposição a ele ou porque se situa à margem dele. O que
o constitui, o privilégio - afirma Sieyès2-, é estar ele fora do direito
comum.

1. Comentários á Constituição Brasileira, coligidos e ordenados por Ho­


mero Pires, p. 39,
2. “Essai sur les privilèges", in Qu’est-ce que le Tíers État, 2a ed,, p. 1.
300 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Um autor anônimo do século XVII3 referia: "Qu’eft-ce


qu\m privilége? C ’eft un avantage que le prince accorde
gratuitement ou à prix d ’argent, mais toujours contre le droit
commun”, Francisco Suarez4 define-o como lei privada que
concede algo especial. A lei que concede o privilégio ê “lei
privada” porque concede a uma pessoa em particular, ou a
uma comunidade, um direito especial, distinto do comum.
Diz-se “algo especial” para distingui-lo do que é concedido
pelo direito comum. O privilégio corresponde à concessão de
um favor ou beneficio. Suarez, no entanto, nega ser da
essência do privilégio a concessão de algo contra o direito
comum. O privilégio - diz ele5 —, ainda consubstanciando
“algo especial", pode ser uma graça do príncipe (indulgência,
licença, graça) não necessariamente contra o direito comum.
Basta que seja â parte, fora do direito comum. Mesmo uma
concessão ou graça praeter ju s pode constituir lei privada,
estranha ao direito comum; logo, constitui um privilégio. O
que se concede por privilégio não é lícito sem ele; o privilégio
permite “algo especial”, sem o qual o ato seria proibido ou não
corresponderia a uma potestade do agente.6

3. A prerrogativa, em geral, é expressão de um direito subje­


tivo afirmado pelo direito comum. Diz-se que, em sentido
subjetivo, direito é a prerrogativa que uma pessoa tem de
exigir de outra pessoa determinadas prestações e abstenções
ou o respeito a uma situação de que ela seja beneficiária. O
privilégio, alguém pode vir a ter, por exceção ao direito co­
mum; a prerrogativa é algo que, em determinadas circuns­
tâncias, determinado sujeito tem pu deve ter.

4. Neste ponto direi que o privilégio é uma vantagem de que


goza uma pessoa, vantagem que se expressa como poder de
exigir de outra pessoa determinadas prestações e abstenções ou
o respeito a uma. situação de' que ela seja beneficiária. A

3. Droit public de la province de Bretagne, avec des obfervations


relatives aux circonftances actuelles, pp. 137-138, nota de rodapé.
4. Tratado de las leyes y de Dios legislador, t. VIII, pp. 4 e ss.
5. Ob. cit., p. 7.
6. Idem, p. 12.
XVI — IMUNIDADE/PRERROGATIVA DE FORO

prerrogativa é também poder que uma pessoa tem de exigir de


outra pessoa determinadas prestações e abstenções ou o
respeito a uma situação de que ela seja beneficiária. Há
paralelismo, pois, entre ambos, o privilégio e a prerrogativa. No
primeiro caso, contudo, o titular do poder no qual o privilégio se
expressa recebe tratamento desigual, da lei, em relação a
terceiros - o princípio da igualdade perante a lei é rompido. No
segundo caso, o titular do poder no qual a prerrogativa se
expressa é mantido, pela lei, em situação de igualdade em
relação a terceiros, sem que o princípio seja afrontado.
Permito-me explicá-lo. No plano do direito comum, todos
os que se encontram em situação de desigualdade em relação
a terceiros são tratados de modo desigual, em relação a esses
terceiros, pela lei comum. Pois sabemos que a igualdade
consiste em tratar desigualmente situações desiguais. Cada
grupo de desiguais é titular de determinadas prerrogativas,
que se compõem no plano da igualdade perante a lei. O titular
de um privilégio, não. Este merece tratamento desigual não
por se encontrar em situação de desigualdade em relação a
terceiros, senão porque o princípio da igualdade perante a lei
é rompido, de modo que o titular do privilégio goze de uma
vantagem que não beneficia seus iguais. “Banir os privilé­
gios”, esta expressão sempre significou o afastamento de
tratamentos desiguais entre iguais. Insisto: as prerrogativas
não são incompatíveis com a igualdade perante a lei, antes a
confirmam, na medida em que - repito - a igualdade consiste
em tratar desigualmente os desiguais.

5. A Constituição do Brasil afirma, em-seu art. 5a, XXIX, os


privilégios de invenção e menciona, no § 2- do seu art. 173, pri­
vilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado. Os
primeiros correspondem a um monopólio legal. Os segundos
não consubstanciam privilégio; trata-se de isenções tributárias:
a Constituição diz que as empresas públicas e as sociedades de
economia mista não poderão ser beneficiárias delas senão
quando elas sejam extensíveis ao setor privado. Lembre-se que
nomina non suní consequentia rerum. Aqui não há privilégio,
exceção ao direito comum. Os assim chamados, pela Constitui­
ção, “privilégios de invenção” e “privilégios fiscais” são estabe­
lecidos pelo direito comum.
302 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

6. Ainda em relação ao tema, lembro que Carlos Maximilia-


no,7 cogitando da imunidade parlamentar, ajlrma que ela "não
é privilégio incompatível com o regimen igualitário em vigor,
nem direito subjectivo ou pessoal; é prerrogativa uni­
versalmente acceita por motivos de ordem superior, ligados
intimamente ás exigencias primordiaes do systema represen­
tativo e ao jogo normal das instituições nos governos cons-
titucionaes; relaciona-se com a própria economia da divisão
dos poderes, assegurando a liberdade e a independencia do
Legislativo”. Mais adiante,8 observa que “[a] immunidade
parlamentar foi estabelecida por motivos políticos, tendo-se
em vista o interesse público, e não o particular; não constitue
direito subjectivo, e sim objectivo; não é privilégio individual,
fizeram-na prerrogativa de uma collectividade independente e
vigilante” .
As prerrogativas de que gozam os parlamentares são garan­
tias estabelecidas em benefício do Legislativo. Daí não con­
substanciarem direito subjetivo cujo exercício dependa da
vontade do parlamentar, porém simples interesse legítimo.9
Por isso são indisponíveis. Consubstanciam, como afirma Carl
Schmitt,10 um direito do Parlamento como totalidade, não do
deputado individualmente considerado. Ou, como decidiu o
STF no Inq. 510, relator o Min. Celso de Mello, as prerrogativas
asseguradas aos parlamentares atuam "como condição e ga­
rantia da independência do Poder Legislativo, seu real desti­
natário, em face dos outros poderes do Estado”.11 O discrímen
que justifica a diferença de tratamento não é definido em
função da pessoa, qual se dá na exceção ao direito comum;
mas, como anota Alberto Zacharías Toron,12 está no exercício
de uma função que traz consigo a necessidade de uma pro­
teção especial. ’

7. Comentários á Constituição brasileira, 3a ed., p. 353.


8. Ob. cit,, p. 361.
9. Cf. Paolo Biscaretti Di Ruffia, Direito constitucional, p. 323.
10. Teoria de la Constitución, p. 304.
11. RTJ 135/509.
12. Inviolabilidade penal dos vereadores, pp. 204-205.
X V II
A R B IT R A G E M
E C O N T R A T O A D M IN IS T R A T IV O

1. Jurisdição e arbitragem. 2. A equivocada noção de “contrato adminis­


trativo3. IndisponibiUdade do interesse público e disponibilidade de
direitos patrimoniais.

1. O debate a respeito da juridicidade da solução, mediante


arbitragem, de conflitos entre as partes nos contratos adminis­
trativos segue inúmeras vezes por vias inadequadas. Os ar­
gumentos em favor e contra a adoção do instituto da arbitragem
nesses contratos não atingem, em regra, o núcleo da questão.
Seu deslinde reclama o exame de três pontos, o primeiro
deles extremamente singelo.

1. Jurisdição e arbitragem
2. O primeiro aspecto a considerar está em que a arbi­
tragem não encerra jurisdição.1
Ao contrário, a arbitragem previne a jurisdição.

1. Entre outros, Piero Calamandrei, Instüuciones de derecho pracesal


civil, v. II, p. 279; Salvatore Satta, Manual de derecho procesal civil, v. II, p.
289; e J. J. Calrnon de Passos, Da jurisdição, p. 46.
304 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Sua origem é contratual.2'3Desfaça-se de pronto, pois, a


confusão freqüentemente estabelecida entre uma e outra.

2. A equivocada noção de “contrato administrativo**


3. O segundo ponto respeita à noção de contrato admi­
nistrativo.
Permito-me, contudo, inicialmente anotar a circunstância
de que, ainda que o uso da arbitragem por entidades da
Administração não seja comum, a ponto de atiçar a curiosi­
dade dos acadêmicos da atualidade, essa não é questão que
tenha passado despercebida pelos nossos juristas.
O fenômeno, até certo ponto paradoxal, pode encontrar
inúmeras explicações. E uma delas pode ser o erro, muito
comum, de relacionar a indisponibilidade de direitos a tudo
quanto se puder associar, ainda que ligeiramente, à Admi­
nistração.
Um pesquisador atento e diligente poderá, todavia, facil­
mente verificar que não existe qualquer razão a inviabilizar o
uso dos tribunais arbitrais por agentes do Estado.

2. V. Calmon de Passos {Da jurisdição, p. 46): “De tudo se conclui, na


verdade, que os árbitros não têm jurisdição. E porque não a têm é que os
autores, diante da perplexidade, procuram fugir com afirmativas de
nenhum conteúdo, quais as de jurisdição extraordinária, ou menos plena,
ou quase-ordinária. Não têm jurisdição, disse-o Manoel Gonçalves da
Silva, com propriedade que Pontes de Miranda ressalta elogiosamente,
‘porque apenas conhecem jurisdicionalmente das causas que lhes são
submetidas — neque jurisdictione habent, sed tantum cognitionei. Juris­
dição è conhecimento (raíio), julgamento (judicium) e execução (imperíum)
do julgado. Aus.ente qualquer desses elementos não hã jurisdição’. O
laudo arbitrai, ensina Redenti, em si e por si, não pode ser tido como
sentença, porque os árbitros não são investidos de uma função pública e
muito menos de um poder soberano, donde o seu pronunciamento, em si
e por si, não ser munido de nenhuma autoridade ou eficácia própria,
originária”.
3. Hã quem preterida que a arbitragem tenha cunho jurisdicíonal, como
Nelson Nery Júnior (Princípios do processo civil na Constituição Federal, 3a
ed., p. 75). O argumento de que lança mão esse autor não impressiona,
contudo. O fato de o laudo arbitrai constituir titulo executivo e transitar em
julgado é absolutamente irrelevante. A transação celebrada para prevenir um
litígio também faz coisa julgada entre as partes (art. 1.030 do CC) e é título
executivo. Mas ninguém irá tão longe a ponto de atribuir caráter jurisdicional
a esse negócio jurídico.
XVII — ARBITRAGEM E CONTRATO 305

Aliás, os anais do STF4 dão conta de precedente muito


expressivo, conhecido como "caso Lage”, no qual a própria
União submeteu-se a um juízo arbitrai para resolver questão
pendente com a Organização Lage, constituída de empresas
privadas que se dedicavam a navegação, estaleiros e portos.
A decisão, nesse caso, unanimemente proferida pelo
Plenário do STF é de extrema importância, porque reconheceu
especificamente “a legalidade do juízo arbitrai, que o nosso
direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas causas
contra a Fazenda” . Esse acórdão encampou a tese defendida
em parecer de Castro Nunes e fez honra a acórdão anterior,
relatado pelo Min. Amaral Santos.

4. Não só o uso da arbitragem não é defeso aos agentes da


Administração como, antes, é recomendável, posto que pri­
vilegia o interesse público. São candentes, nesse sentido, as
palavras de Themístocles Cavalcanti, que transcrevo a seguir:
“Pareçe-me que a Administração realiza muito melhor os seus
fins e a sua tarefa convocando as partes, que com ela contra­
tarem, a resolver as controvérsias de direito e de fato perante
o juízo arbitrai do que denegando o direito das partes, reme­
tendo-as ao juízo ordinário ou prolongando o processo admi­
nistrativo, com diligências intermináveis, sem. um órgão
diretamente responsável pela instrução do processo”.5
De todo modo, ainda que não exista impedimento abso-
luto ao uso da arbitragem pela Administração, é natural que
nem toda matéria possa ser resolvida por essa via. A questão
transporta-se, então, para a definição do que possa e do que
não possa ser objeto de arbitragem.
A melhor doutrina manifesta-se no sentido de que só
podem ser arbitradas as questões de natureza contratual ou
privada. “São essas relações que podem comportar o juízo
arbitrai” - pondera Castro Nunes.6 “Aquelas em que o Estado

4. RTJ 68/382.
5. Parecer como consultor-geral da República no processo PR-11.210-
55, RDA 45/517.
6. Da Fazenda Pública em juízo, 2a ed., p. 284.
306 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

age como poder público estão de seu natural excluídas, pois


que, em linha de princípios, não podem ser objeto de tran­
sação".7

5. A doutrina faz distinção entre os contratos administra­


tivos p o r determinação da lei e p or natureza, sendo extrema­
mente rico — e complexo — o debate travado em torno do
critério destes últimos, os contratos administrativos p o r natu­
reza,s
Esse debate perde, contudo, relevância entre nós, visto
que não existem, em fáce do direito positivo brasileiro, con­
tratos privados da Administração (= contratos estatais de
direito privado, por oposição aos contratos administrativos).
Pois é certo que a própria Constituição atribui a todos os
contratos celebra.dos pela Administração a denominação de
contratos administrativos.9

6. Tem sustentado a doutrina que a procura da qualifi­


cação do contrato significa procura do regime jurídico a ele
aplicável.10
O fato, no entanto, é que, para azar da doütrina, não
existe um regime jurídico próprio aos chamados contratos
administrativos.

7. Lembre-se, ademais, das observações de Sérgio de Andréa Ferreira


(Lições de direito administrativo, p. 183): "A autoridade administrativa não
poderá, sem autorização legislativa, firmar compromisso quando se trate de
matéria em que aja iure impera, quando esteja em jogo a ordem pública.
Mas nenhum problema há quando se cuida de um contrato, que prevê, ele
mesmo, a cláusula compromissória" (grifos no original).
8. V. a sintética - mas suficiente - exposição de Luís Solano Cabral de
Moncada ("O problema do critério do contrato administrativo e os novos
contratos-programa”, separata do número especial do Boletim da Faculdade
de Direito de Coimbra — Estudos em ' homenagem ao professor Dr. José
Joaquim Teixeira Ribeircy, 1979).
9. V., por todos, Carlos Ari Sundfeld, Licitação e contrato administrativo,
2a ed., pp. 199-200.
10. Cf. Luís Solano Cabral de Moncada, “O problema do critério do
contrato administrativo e os novos contratos-programa”, separata do
número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - Estudos
em homenagem ao professor Dr. José Joaquim Teixeira Ribeiro, pp. 16-17.
XVII — ARBITRAGEM E CONTRATO 307

A alusão a regime jurídico apenas se torna útil, na ciência


do direito, quando atrelada àqueles conceitos jurídicos que
Ascarelli11—distinguindo-os dos conceitos jurídicos meramente
form ais e dos conceitos tipológicos (fattispecie] - chama de
regulae juris.
As regulae juris consubstanciam expressões que sintetizam
o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, sem que lhes
corresponda um significado próprio. Limitam-se a exprimir,
condensadamente, um sistema normativo, a modo - diz Fábio
Konder Comparato12- de autêntica estenografia legal.
Tome-se como exemplo dessa espécie de conceito o de
propriedade, que apenas assume alguma significação na me­
dida em que tenhamos sob consideração a função, por ele
cumprida no discurso do direito, de resumir toda disciplina
normativa atinente ao modo de aquisição e aos poderes,
faculdades e deveres decorrentes da aquisição de uma
posição jurídica subjetiva em relação a um bem.13A utilidade
do conceito de propriedade - e isso o torna, na prática,
insubstituível — está na enorme economia de tempo e de
energia que seu uso permite a quem pretenda expor o
conteúdo do subsistema normativo aplicável à propriedade,14
Mas é, porém, certo que contrato administrativo não sin­
tetiza o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas; nem
exprime, condensadamente, um sistema normativo. Logo - e
até porque não há distinção jurídica entre contrato adminis­
trativo e contrato privado, como passo a demonstrar -, ine-
xiste um regime jurídico dos contratos administrativos. Portan­
to, a alusão a tal regime é juridicamente irrelevante.

7. E assim é porque a circunstância de um contrato ser


regido pelo direito público - isto é, pelo regime de direito
público -, no que equivocadamente insistem muitos, ainda

11. Studi di diritto comparato e in tema di interpretazione, pp. XIII-XVII.


12. “Direito de recesso de acionista de sociedade anônima”, RT 558/269.
13. V. Massimo Meroni, La teoria deWinterpretazione di Tullio Ascarelli,
p. 285, V. também meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação
do.direito, 4a ed., item 89, p. 233. .
14. No mesmo sentido: Alf Ross, “Tü-tü”, in Diritto e analisi dei
linguaggio, pp. 165-181.
308 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

que fosse veraz, não importaria que os atos de uma das partes
no dinamismo da relação contratual, a Administração, dei­
xassem de caracterizar “atos de gestão” e pudessem ser con­
cebidos como “atos de soberania” .
Desejo dizer, com isso, que, embora a Administração dis­
ponha, nesse dinamismo, de poderes que se tomam como
expressão de puissance publique (alteração unilateral da
relação, v.g.), essa relação não deixa de ser contratual. Pois é
certo que esses mesmos poderes são contemplados como
estipulações de ordem contratual, ainda que por imposição
legal. Isso negássemos e, por força, teríamos de admitir que
toda e qualquer limitação disposta em lei ao pleno exercício
da liberdade de contratar teria a virtude de sonegar aos
acordos de vontade celebrados sob a égide do chamado
dirigismo contratual o caráter de contratos. Não seriam con­
tratos, destarte, mesmo os celebrados entre agentes priva­
dos em um regime de controle de preços; e também não o
seriam aqueles cujas condições de validez dependem de
preceitos normativos ou atos administrativos externos ã
vontade das partes. Da mesma forma, contratos não seriam
aqueles dotados de cláusulas padronizadas por ato estatal,
dos quais fazem exemplo os contratos de loteamento, de
seguro, as convenções condominiais, inúmeras fórmulas
contratuais praticadas no mercado financeiro. Nesta última
hipótese, sem dúvida, efetivamente surgèm modelos contra­
tuais inteiramente padronizados — tal como no caso de
contratos celebrados com o BNDES e com o extinto BNH.

S. Em todos esses casos, bem assim naqueles nos quais é


afetada a própria liberdade de contratar,15 as partes estão entre
si relacionadas por vínculo obrigacional. Permanecem a celebrar
contratos, ainda que vinculadas também pelo dever de adotar
determinadas estipulações contratuais ou mesmo de contratar,
o que significa dever de assumir obrigação perante terceiro;

15. Mencionem-se, v.g., determinados contratos de seguro e os


contratos coativos de que tratam os incisos XIII, XIV, XVI e XXII do art. 21
da Lei 8.884, de 11.6.1994; anote-se, ainda, o dever dos bancos comerciais
de aplicar parte de seus recursos disponíveis na concessão de crédito rural
e de crédito às pequenas e médias empresas.
XVII — ARBITRAGEM E CONTRATO 309

A propósito, entenda-se por dever jurídico uma vinculação


ou limitação imposta à vontade de quem por ele alcançado.
Obrigação, em sentido estrito, como vínculo em razão do qual
uma pessoa (devedor) deve à outra (credor) o cumprimento de
certa prestação. O dever é um vínculo imposto à vontade; a
obrigação, embora suponha uma situação de dever, na qual
se coloca o devedor, é conseqüência da manifestação da von­
tade do devedor. Quando o Estado impõe ao particular o dever
de contratar ou de admitir a alteração unilateral da relação pela
Administração, v.g., vincula sua vontade no sentido de
manifestá-la em determinada direção, Esse dever de contratar
ou de contratar determinadas cláusulas contratuais é dever de
assumir obrigação. Assumida a obrigação, por imposição do
dever que o vincula, o particular, no contrato coativo, coloca-
se sob situação obrigacional.

9. Por isso - repita-se embora a Administração dispo­


nha, no dinamismo do contrato administrativo, de poderes que
se tomam como expressão de puissance publique {alteração
unilateral da relação, v.g), essa relação não deixà de ser
contratual, os atos praticados pela Administração enquanto
parte nessa mesma relação sendo expressivos de meros atos
de gestão.
Em suma, é preciso não confundirmos o Estado-aparato
com o Estado-ordenamento. Na relação contratual adminis­
trativa o Estado-aparato (a Administração) atua vinculado pe­
las mesmas estipulações que vinculam o particular; ambos se
submetem à lei (Estado-ordenamento); ou seja, a Admi­
nistração não exerce atos de autoridade no bojo da relação
contratual.l6_17

16. São bastante oportunas as observações de Laurent, transcritas por


Pedro Lessa [Do Poder Judiciário, p, 208): "É o Estado uma pessõa civil, isto
ê, póde exercer os direitos privados de que são titulares os indivíduos.
Assim, é proprietário, póde adquirir e possuir bens; diariamente está em
condições de contractar. Os actos que pratica o Estado como pessõa civil
não dífferem na essência dos que realisam os particulares: uma compra e
venda não se altera em sua natureza porque o Estado ê comprador ou
vpndedor, e as obrigações permanecem idênticas, inalteradas, quando o
Estado contracta. Ahi temos, pois, relações de direito e de interesse
privados: qualquer ideia de poder, de soberania, é estranha aos actos em
310 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Dai por que, como observa Garcia de Enterría,18 contrato


administrativo e contrato privado não podem ser conside­
rados como realidades radicalmente diferentes e rigorosa­
mente separadas; qualquer contrato pode refletir elementos
de direito administrativo e de direito privado.
Vale dizer: não hã diferença entre uns e outros senão na
medida em que a ambos se aplicam múltiplos regimes jurí­
dicos.
Toda a razão, pois, a Juan Alfonso Santamaría Pastor: “En
nuestra opinión, el problema carece de interés. En sus
términos más estrictos, se trata de una más de tantas logo-
maquias estériles que tanto abundan en la ciência dei de-
recho (...). Una discrepancia, pues, de mera perspectiva que,
además, carece de consecuencias prácticas: lo que importa,
exclusivamente, es saber a qué normas se sujetan uno y otro
tipo de contratos, cuestíón que sólo puede resolver el derecho
positivo”.19

10. Alcançada essa verificação, um último aspecto resta


ainda a examinarmos: o relacionado à indisponibilidade do
interesse público e à disponibilidade de direitos patrimoniais.
Cogitando dos contratos de direito público, em conferência
pronunciada em São Paulo, em 9.3.1977, Orlando Gomes diz
serem eles: “a) os que celebram entre si algumas pessoas
jurídicas de direito público interno, tais como os estipulados
entre a União e algum Estado-membro, entre unidades da Fe­
deração, entre qualquer destas e um Município ou entre Mu­
nicípios. Tais acordos se realizam para que as partes alcancem o

que intervem o Estado como pessoa privada. Por conseguinte, quando o


Estado age num processo como proprietário, como credor ou devedor, não
está em questão a soberania, não é o Estado como poder que litiga, é o
Estado a exercer direitos de um particular; é, pois, um particular cujos
direitos apreciam os tribunaes, e que por estes é condemnado a pagar, e
não um soberano, nem lim orgam de soberania”.
17. V, também Fábio Konder Comparato, Novos Ensaios e Pareceres de
Direito Empresarial, especialmente pp, 304-305,
18. Curso de derecho administrativo, c j Tómas-Ramón Fernández, 4a
ed., v. I, p. 639.
19. Princípios de derecho administrativo, v. II, p. 194.
XVII — ARBITRAGEM E CONTRATO 311

mesmo fim; b) os que o Estado conclui com particulares ou


outros entes públicos para a satisfação de interesses comuns,
implicando disposição de direitos subjetivos patrimoniais (Virga)
- o que não sucede com os acordos primeiramente enunciados;
c) os contratos administrativos que se ajustam entre a Admi­
nistração Pública e particulares para a execução e desempenho
de atividade do Estado, de interesse geral, que este não pode ou
não quer exercer diretamente”.20

21. A exposição de Orlando Gomes - precisa e incisiva,


como costumavam ser suas manifestações —tem as virtudes
(i) de distinguir os contratos que a Administração celebra com
particulares visando à atribuição, a estes, de funções pró­
prias do Estado - a concessão de serviço público, v.g. ~ daque­
les celebrados com particulares tendo em vista a satisfação de
interesses comuns e (ii) de observar que estes últimos im­
plicam (= podem implicar) disposição de direitos subjetivos
patrimoniais.
Essa derradeira observação assume fundamental impor­
tância, na medida que a doutrina tem tropeçado em injus­
tificada confusão entre indisponibilidade do interesse público
e disponibilidade de direitos patrimoniais.
Uma e outra não se confundem.

3. Indisponibilidade do interesse público


e disponibilidade de direitos patrim oniais
12. Para demonstrá-lo, lembro, inicialmente, que indis­
ponível é o interesse público primário, não o interesse da
Administração.
Ensina Renato Alessi21 que os interesses públicos, coleti­
vos, cuja satisfação deve ser perseguida pela Administração,

20. “Os contratos e o direito público”, Revista da Procuradoria-Geral do


Estado de São Paulo 10/45-46.
21. Principi di diritto amministrativo, 4a ed., v. I, pp. 232-233: “Questi
interessi pubblici, collettivi, dei quali l’Amministrazione deve curare il
sòddisfacimento, non sono, si noti bene, semplicemente 1’interesse deli’
Amministrazione intesa come apparato organizzativo autonomo, sibbene
312 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

não são simplesmente o interesse da Administração enquanto


aparato organizacional autônomo, porém aquele que é cha­
mado interesse coletivo primário. Este é resultante do complexo
dos interesses individuais prevalentes em determinada organi­
zação jurídica da coletividade, ao passo que o interesse do
aparato organizacional que é a Administração, se pode ser con­
cebido um interesse desse aparato, unitariamente conside­
rado, será simplesmente um dos interesses secundários que se
fazem sentir no seio da coletividade e que podem ser realizados
somente na medida em que coincidam - e nos limites dessa
coincidência —com o interesse coletivo primário.
A distinção - fundamental e necessária - entre interesse
público primário e interesse da Administração (interesse públi­
co secundário) também está pacificada entre nós.22

quello che è stato chiamato l'interesse collettivo primário, formato dal


complesso degli interessi individuali prevalenti in una determinata
organizzazione giuridica delia collettività, mentre 1interesse dell’apparato,
se può esser concepito un interesse deU’apparato unitariamente consi-
derato, sarebbe semplicemente uno degli interessi secondari che si fanno
sentire in seno alia collettività, e che possono essere realizzati soltanto in
caso di coincidenza, e nei limiti di siffatta coincidenza, con 1’interesse
collettivo primário. La peculiarità delia posizione giuridica delia Pubblica
Ammmistrazione sta appunto in ciò, che la sua funzione consiste nella
reaIiz2azLone delFinteresse collettivo, pubblico, primário. Anche volendosi
concepire un interesse, secondario, dclTAmininistrozione considerata
comme apparáto organizzativo autonomo, esso non potrebbe esser rea-
lizzato se non in vista delia coincidenza con 1'interesse primário, pubblico".
Camelutti distingue interesses que são Andiwduais na modalidade e
coletivos na. finalidade, chamando-os interesses coletivos mediatos ou secun­
dários (Sistema di dírittoprocessuale civite, v. I, pp. 11-12).
22. Diz Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito adminis­
trativo, 24- ed., pp. 69-70), após averbar que os interesses públicos ou
interesses primários são os interesses àa coletividade como um todo, e os
interesses secundários são os que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de
direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independen­
temente de sua qualidade de servidor de interesses da coletividade:
"(...). Poderia, portanto, [o Estado, a Administração] ter o interesse
secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes,
ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem,
ou de cobrar tributos' .ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal
modo, defendendo interesses apenas ‘seus’, enquanto pessoa, enquanto
entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e
abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao
interesse público, ao interesse primário, isto ê, àquele que a lei aponta como
sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica
estabelecida a título de bem curar o interesse de todos.
XVII — ARBITRAGEM E CONTRATO 313

Por certo, é possível tomarmos como interesse da Admi­


nistração o de pagar o mínimo a seus credores, com o quê ela,
Administração, permaneceria mais rica. Mas esses interesses
- interesses públicos secundários diz Alessi, “possono
essere realizzati soltanto in caso di coincidenza, e nei limiti di
siffatta coincidenza, con Tinteresse collettívo primário” - inte­
resse como tal “non potrebbe esser realizzato se non in vista
delia coincidenza con 1’interesse primário, pubblico’. Ou, na
dicção de Celso Antônio Bandeira de Mello, esses interesses
“não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses
primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axio-
maticamente os encarna e representa”.23

13. De outro lado, a medida do interesse público é a lega­


lidade.
Assim, é evidente que quando se afirma que a arbitragem
se presta a “dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais
disponíveis”24 isso não significa não possa a Administração
socorrer-se dessa via visando ao mesmo fim. Pois não hã
qualquer correlação entre disponibilidade ou indisponibili-
dade de direitos patrimoniais e disponibilidade ou indisponi-
bilidade do interesse público.
Dispor de direitos patrimoniais é transferi-los a terceiros.
Disponíveis são os direitos patrimoniais que podem ser alie­
nados.

“Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando


coincidirem com interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por
quem axíomaticamente os encarna e representa. Percebe-se, pois, que a
Administração não pode proceder com a mesma desenvoltura e liberdade com
que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob
pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir.”
E insiste, ainda, o mesmo autor (p. 96): “Interesse público ou primário,
repita-se, é o pertinente â sociedade como um todo, e só ele pode ser
validamente objetivado, pois este é o interesse que a lei consagra e entrega ã
compita do Estado como representante do corpo social. Interesse secundário
é aquele que atina tão-só ao aparelho estatal enquanto entidade
personalizada, e que por isso mesmo pode lhe ser referido e nele encamar-se
pelo simples fato de ser pessoa, mas só que pode ser validamente perseguido
pelo Estado quando coincidente com o interesse público primário”.
23, Curso de direito administrativo, 24a ed-, pp. 69-70.
24. Art. I a da Lei 9.307/1996.
314 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

A Administração, para a realização do interesse público,


pratica atos, da mais variada ordem, dispondo de determi­
nados direitos patrimoniais, ainda que não possa fazê-lo em
relação a outros deles. Por exemplo, não pode dispor dos
direitos patrimoniais que detém sobre os bens públicos de
uso comum.
Mas é certo que inúmeras vezes deve dispor de direitos
patrimoniais, sem que com isso esteja a dispor do interesse
público, porque a realização deste último é alcançada me­
diante a disposição daqueles.
Bem a propósito, as observações de Alessi e de Celso Antônio
Bandeira de Mello, acima reproduzidas, permitem-nos salientar
a circunstância de, v.g., se realizar o interesse público na
omissão, pela Administração, do uso de recursos judiciais mera­
mente protelatórios, que se prestam unicamente a retardar, em
beneficio exclusivo do interesse da Administração, secundário, o
cumprimento de suas obrigações.
Daí por que, sempre que puder contratar - o que importa
disponibilidade de direitos patrimoniais -, poderá a Admi­
nistração, sem que isso importe disposição do interesse pú­
blico, convencionar cláusula de arbitragem. Retorno, a esta
altura, às observações de Themístocles Cavalcanti, para
afirmar que precisamente o fazendo a Administração estará a
prestar acatamento ao interesse público.

14. O debate a respeito da juridicidade da solução me­


diante arbitragem de conflitos entre as partes nos “contratos
administrativos” será, como se yê, facilmente espancado se
um mínimo de reflexão vier à ser praticado em torno do
núcleo da questão.
X V III
O F U T U R O D O D IREITO *

I. O futuro, há mais de dez anos. 2. Os juristas, a subsunção, a


preservação das estruturas e o não-futuro. 3. O direito ~ o posto e o
pressuposto - e as transformações. 4. Soberania, violência e direito,
exceção. 5. O não-lugar da soberania. 6. Um novo nomos da terra?.
7. Um direito (= ordenamento) sem nomos da terra?. 8. Nova Lex
Mercatoria e arbitragem transnacional. 9. A exceção. 10. Contraponto.
I I . Ainda a exceção. 12. Conclusão: a super-soberania, a exceção e o
novo nomos.

1. O fu tu ro, há mais de dez anos


1. Há algum tempo, mais de dez anos,1 cometi a impru­
dência de registrar por escrito breve reflexão sobre.o tema do
futuro do direito. Um quase nada subsiste das notas que então
alinhavei: (i) a impressão de que o direito passaria por uma
desestruturação, uma dupla desestruturação, enquanto direito
moderno e enquanto direito formal; (ii) a alusão, no plano do
discurso do direito, a uma nova Lex Mercatoria; no bojo do
discurso jurídico2 e nas jurisprudências, à afirmação da preva­
lência dos princípios; (iii) a informatização da sociedade, pro-

* Dedico este ensaio a E d u a r d o K u g e l m a s , amigo querido que se foi em


14.11.2006.
1. V. meu “A dupla desestruturação do direito”, in Derecho y transidón
democrática — Problemas de la gobernabilidad (Onati Proceedings 20), pp.
171-185; também meus La doppia destrutturazione dei diritto, 1996, e La
doble desestructuración y la interpretación dei derecho; neste livro, o
capítulo IV.
i 2. Sobre o discurso do direito e o discurso jurídico, v. capítulo VI, item
6, acima.
316 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

piciando a desburocratização do direito, uma sua talvez quase


desregulação; (iv) a revalorização do direito pressuposto (?).
Lembrava, então, que Francesco Galgano,3 à época, ques­
tionava a identidade entre o ius ou iurisprudentia dos romanos e
o direito. Apenas por suposição afirmaríamos que o direito
tomou o lugar do ius e quer dizer a mesma coisa. Mas, “chi ci
dice che con la parola non sia estinta anche la cosa che la parola
indicava? Chi ci assicura che la nuova parola non sia nata per
indicare tutt’altra cosa?” . Mais, indagava-me se as notas do­
minantes do “direito” do futuro não seriam tais, eventualmente,
que fariam de nós, os juristas de hoje - e quantos assim se
julgam pessoas que se ocupavam de uma coisa antiga...
O tempo passou, e ao modismo dos princípios, após sua
aterradora banalização, seguiu-se o da hermenêutica, da qual
todos tratam com injustificada familiaridade. Criaturas do
direito formal, os juristas permanecem presos à dogmática da
subsunção, uma enorme distância apartando os discursos
que repetem da prática dos tribunais. Passam à margem de
uma incisiva observação de Jacques Derrida,4 que me permito
reproduzir: a decisão ju sta hã de, para ser justa, ser conforme
a uma lei preexistente; mas a interpretação dessa lei, que a
decisão pressupõe, há de ser re-instauradora, re-inventiva,
livre; daí que a decisão ju sta há de ser a um tempo só regrada
e sem regra, há de conservar a regra (a lei, rectius o direito) e
destruí-la ou suspendê-la para reinventá-la em cada caso;
“[c]ada caso é um caso - prossegue Derrida cada decisão é
diferente e requer uma interpretação absolutamente única,
que nenhuma regra existente ou codificada pode nem deve
absolutamente garantir” .5

2, Os ju rista s , a subsunção , a preservação


das estruturas e o unão-futuro”
2. Deveras,vhá de ser mesmo tormentosa, para .quem a
toma exclusivamente como subsunção, a aceitação do fato de a

3. II rovescio dei diritto, p. 3.


4. Força de lei, pp. 51-52.
5. Idem, p. 44.
XVIII — O F U T U R O DO DIREITO 317

interpretação do direito ter caráter constitutivo — não mera­


mente declaratório, pois - e consistir na produção, pelo intér­
prete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um
determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas
para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma
de decisão.6 Aceitar a oposição entre a dimensão legislativa e a
dimensão normativa do direito - uma no processo legislativo;
outra no processo de produção normativa (= produção da
norma, pelo intérprete7) isso não é fácil para os servos da
subsunção. Nossos juristas se enredam na oposição que se põe
entre a necessária tutela da segurança jurídica e da liberdade
individual, de um lado, e, doutro, a função da interpretação no
desenvolvimento do direito.8 Dizendo-o na síntese de Paolo
Grossi:9 são duas as forças que, em direções opostas, percor­
rem o direito, uma tendente à rigidez, outra à elasticidade; e
duas são as exigências fundamentais que nele se manifestam:
a da (i) certeza e liberdade individual garantidas pela lei no
sistema do direito burguês e a da sua (ii) contínua adequação
ao devir social, garantida pela interpretação. Aquela apenas
será assegurada na medida em que o texto vincule o intérprete;
esta demanda criatividade que pode fazê-lo ir além do texto.
Essa oposição somente poderá ser compreendida se nos
dispusermos a admitir que texto e norma não se superpõem;
que o processo legislativo termina no momento -do texto - a
norma virá depois, produzida no bojo de um outro processo, a
interpretação.

3. São assim os juristas, porque constituídos para prover


a conservação do status quo.
Poderemos bem compreender esse destino desde a obser­
vação,10 em síntese, (i) de que a sociedade capitalista é essen­

6. V. meus Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito,


4a ed., e Interpretación y aplicaciõn dei derecho, 2007.
7. Refiro-me ao intérprete autêntico, no sentido atribuído à expressão
por Kelsen.
8. Cf. Tullio Ascarelli, Studi di diritto comparato e in tema di interpre-
tazione, p. 59.
' 9. Assolutismo giurídico e diritto priuato, pp. 358-359.
10. V. o capítulo XIII, item 4, acima.
318 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

cialmente jurídica e o direito nela atua como mediação específica


e necessária das relações de produção que lhe são próprias; (ii)
essas relações de produção não poderiam estabelecer-se, nem
poderiam reproduzir-se, sem a forma do direito positivo, direito
posto pelo Estado; (iii) daí que este, o direito posto pelo Estado,
sUrge para disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer
que ele se presta a viabilizar a fluência da circulação mercantil, a
domesticar os determinismos econômicos. Seu único fim é a
conservação dos meios. Nesse sentido, o Estado põe um direito
definidor das regras de um jogo cujo fim ou cujos fins são
externos a ele, porque definidos pelo individuo, que se vale de
suas formas para realizar os seus fins11 - o espaço reservado a
esse direito não compreende senão a predisposição dos ins­
trumentos necessários a que cada agente econômico possa
atingir os fins à que se propõe.12
Fomos constituídos, os juristas, para preservar as estru­
turas. E aqueles aos quais falta senso crítico e nos quais a
singularidade prevalece nem se dão conta desse seu caráter.
Liberais, sim, entusiastas do Estado de direito, mas conserva-
dores, sem que isso conduza a qualquer paradoxo.

4. Ora, se eu me perguntasse por que as coisas assim se


passam, a resposta haveria de ser encontrada em um texto do
velho Marx, o “Prólogo” à Contribuição ã crítica da economia
política: “Uma organização social nunca desaparece antes que se
desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter;
nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem
antes que as condições materiais de existência destas relações se
produzam no próprio seio da velha sociedade” .13
Por isso somos assim, os juristas. Formados para conser­
var as estruturas, tudo o que for novo, mesmo se ainda não
revolucionário, abominaremos. O futuro é detestável. O direi­
to é, para nós, dotado de passado e tão-somente de presente.
Foi, no passado, -e para sempre pertencerá ao presente, não
mais que ao presente...

11. Cf. o capítulo IV, item 10, acima.


12. Cf. Natalino Irti, L ’etã delia decodificazione, p. 4.
13. Contribuição à critica, da economia política, p. 6.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 319

5. O futuro do direito, como qualquer outro futuro, depen­


de do lugar a partir de onde o projetamos. Logo, se o proje­
tarmos desde o lugar que ocupamos, não haverá futuro para o
direito. Daí que esta minha exposição haveria de ser encer­
rada por aqui, nada mais haveria a ser declarado...

3. O direito - o p o s to e o pressuposto
—e as transform ações
6. Devo, não obstante, prosseguir.
Inicialmente para dizer que o direito de que falamos é o
direito posto pelo Estado, que referimos, em seús modelos,14
como direito modemo, direito formal. Este que ensinamos na
universidade e praticamos nos tribunais.
O fenômeno jurídico abrange o posto e o pressuposto. Em
síntese,15 direi que o direito é uma instância, um nível da
realidade. Instância que nela se manifesta de forma imen­
samente rica, na medida em que se opera, na estrutura social
global, uma contínua, constante e permanente interpene-
tração de instâncias. Daí - fazendo uso da quase infeliz
metáfora da base e da superestrutura -, direi que o direito está
e não está na base e, a um tempo só, está e não está na
superestrutura. Na base manifesta-se como direito pressu­
posto; na superestrutura, como direito posto. Produto histó-
rico-cultural, em seu momento de pressuposição condiciona a
formulação do direito posto. E assim é ainda que, conco-
mitantemente, o direito posto Finde por conformar novas ma­
nifestações do direito pressuposto.
Instância do social, linguagem que instrumentaliza uma
modalidade de comunicação entre os homens, ele não se
altera - ainda que alterações paradoxalmente nele não
cessem de ocorrer - ele não se altera, dizia, enquanto não
esgotadas inteiramente suas possibilidades. Vem daí que do
futuro do direito não se pode cogitar senão na medida em que
estejamos a cogitar do futuro do modo de produção social, na
sua totalidade.

. 14. V. o capítulo IV, acima.


15. V. o capítulo II, acima.
320 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Isso eu desejava afirmar, interessando imediatamente pa­


ra o nosso tema, o futuro do direito. Ele não se altera enquanto
não esgotadas inteiramente as suas possibilidades.

7. Talvez eu devesse, mesmo, parar por aqui. Supor a pos­


sibilidade de estabelecer, definir, um momento, cravar esse ins­
tante na imobilidade. Ponto final. Como se pudesse interromper
a passagem das horas, ignorando o processo que essa lingua­
gem - o direito - é. Não obstante, isso seria inútil, eis que a esta
altura o movimento já nos envolveu. Entramos no carrossel...
Prossigo, portanto, consciente de que - a realidade estando em
(= sendo) movimento, tudo se movendo em transformação - nada
mais se pode apontar em um escorço sobre o futuro do direito se­
não aparentes tendências, ainda que e até mesmo contraditórias.
Assim, para começar, cumpre indagarmos se transforma­
ções pelas quais o direito vem passando afetaram/afetam,
comprometendo-o, o adequado cumprimento de suas funções,
fundamentalmente a de instrumentalizar a fluência da relação
mercantil, nutrindo a sociedade civil (= o mercado) de seguran­
ça, certeza e calculabilidade jurídica e econômica.
Isso não se deu. Nem se dá. Pelo contrário, essas transfor­
mações aprimoraram o direito, aprestando-o ao cumprimento de
suas funções. Por exemplo, a práxis da nova hermenêutica enseja
a criação de melhores soluções normativas, permitindo a com­
posição de interesses à margem dos rigorés formais instalados
nos casulos da subsunção, elenco de decisões prêt-à-porter. É ver­
dade que os juizes a praticam sem se darem conta de que,
fazendo-o, produzem o direito; sem discernir a circunstância de
serem eles os sujeitos (= autores) dessa produção. Produzem
normas como Monsieur Jourdain fazia prosa, sem o saberem...
É, porém, a duas tendências que desejo me referir: uma, a
atinente ao não-lugar da soberania; outra, à exceção.

4. Soberania, violência e direito, exceção


8. Soberano, diz Carl Schmitt,16 é quem decide sobre o
estado de exceção. Uma e outra, soberania e exceção, mutua­

16. Teologia política, p. 7.


XVIII — O FUTURO DO DIREITO 321

mente se incluem. Soberania é ponto de indiferença entre


violência e direito, espaço “juridicamente vazio”, no qual tudo
pode acontecer; vale dizer, no qual predomina a exceção.17
Nesse ponto aquelas duas tendências se encontram, de sorte
que o rumo que esta minha exposição vai tomando se torna
justificável.

S. O “não-lugar da soberania.”
9. Um traço marcante do direito moderno está em que ele
é posto pelo Estado, sendo dotado de validade no espaço do
seu (= dele, Estado) território. O Estado é soberano nesse
(seu) espaço. O território - diz Natalino Irti - “marca também a
extensão da política e do direito. No ‘dentro dos limites’ (...)
nascem as normas jurídicas”.18
Pois a primeira tendência a apontarmos está em um pro­
cesso de desterritorialização da soberania. Já não apenas a
produção e o consumo tornam-se cosmopolitas, mediante a
exploração do mercado mundial, como se disse na entusiás­
tica descrição do capitalismo feita em um manifesto de 1848.
Agora, é o poder político que se projeta para além do(s) terri-
tório(s), reproduzindo-se na mundialização da(s) soberania(s).
Não faço alusão, contudo, às soberanias, porém a uma
super-soberania, supranacional Aqui não se trata de afirmar
que as soberanias estatais excedem seus respectivos territó­
rios, mas sim que a soberania avança sobre todos os terri­
tórios. Algo antevisto por Kelsen em um texto de 1920: “Com a
superação do dogma da soberania dos Estados singulares
afirmar-se-á uma civitas maxima, um ordenamento de direito
internacional, ou, melhor, mundial, que será objetivo, inde­
pendentemente de qualquer 'reconhecimento’, e superior aos
Estados singulares”.19

17. Cf. Giorgio Agamben, Homo Sacer - O poder soberano e a vida nua,
pp. 38 e 44.
18. iZ diritto nelVetà delia técnica, pp. 25-26.
19. Das Problem der Souverãnitãt und die Theorie des Võlkerrechts:
Béitrag zu einer Reinen Rechíslehre, reimpr. da 2a ed., § 65, p. 320 (tra­
dução minha).
322 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

IO . Uma super-soberania que desconhece fronteiras, algo


que, surgindo juntamente com o mercado global e com
circuitos globais de produção, Michael Hardt e Antônio Ne~
gri20 identificam como o império. O poder supremo que gover­
na o mundo, a substância política que, de fato, regula essas
permutas globais. Essa super-soberania avança sobre todos
os territórios, vale dizer, sobre todos os Estados. Daí que
Hardt e Negri afirmam que “[o] imperialismo acabou. Nenhum
país ocupará a posição de liderança mundial que as avan­
çadas nações européias um dia ocuparam” .21
Sem aderir a essa tese - note-se bem;, não estou a ela ade­
rindo —, nela poderemos sublinhar dois traços bem marcados:
(i) o Império não tem fronteiras {= não tem limites, abrange a
totalidade do espaço) e (ii) se apresenta não como um regime
histórico nascido da conquista, mas como uma ordem que
suspende a História (= regime sem fronteiras temporais).22
O lugar da política e do direito é, como observa Natalino
Irti, dilacerado e arrasado por “duas imensas forças que não
conhecem limites, não têm pátria, se expandem para qualquer
lugar. Forças da des-limitação, que se chamam técnica e
economia, e que, as duas em conjunto, geram a tecno-eco-
nomia do nosso tempo5’.23
O que importa a esta altura considerarmos é a circuns­
tância de jamais, anteriormente, a interpenetração entre mer­
cado e política {= economia c soberania) ter sido tão efetiva.
Passo, aqui, à margem do debate a respeito da localização do
Império "fora da História ou no fim da História” ,24 debate que
não desejo alimentar, mesmo porque permaneço a acreditar
na dialética materialista. Mas é certo que o estreito conúbio
entre aqueles planos - mercado e política, economia e sobe­
rania ~ compromete a consistência do chamado Estado mo­
demo. A soberania política -agora se contém, toda ela, no
Estado exterior.

20. Império, p. 11.


21. Ob. cit., p. 14.
22. Idem, pp. 14-15.
23. 11 diritto nell'età delia técnica, p. 26.
24. Hardt e Negri, Império, p. 15.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 323

11. O Estado moderno precede o Estado hegeliano, estado


da racionalidade como razão efetiva.25 Neste, posterior àquele,
deverão desaparecer os antagonismos, dado que, dialetica-
mente, o que dã sentido às partes é a totalidade. O Estado
moderno é ainda determinado por certos particularismos, an­
tagônicos a outros. Ainda se confunde, por uma larga parte,
com o Estado do exterior, o Estado da necessidade e do en­
tendimento, isto é, carrega ainda características da sociedade
civil [Bürgerliche Gesellschaft), que, logicamente suprassu-
mida no sistema hegeliano,26 ainda não encontrou sua plena
realização nas estruturas engendradas pela modernidade.
Nele se constrói a paz burguesa, dotada de caráter tem­
porário, na medida em que o dissenso entre os particula­
rismos antagônicos é apenas mediado, superado pela con­
veniência - o que, no direito, não consubstancia, a rigor,
nenhuma mediação efetiva, nem supras sunção, mas justapo­
sição conflitante.
Por certo superpõem-se, no mundo da vida, manifestações
próprias a ambos, ao Estado moderno e ao Estado na concep­
ção hegeliana. Mas o que prevalece na forma institucional do
primeiro é a apropriação pela burguesia dos monopólios da
violência e da tributação, caracterizando uma eticidade
(Sittlichkeit) ainda não de todo permeada pela racionalidade
como razão efetiva Daí, na medida em que a serviço do modo
de produção social capitalista, o Estado moderno caracteriza
um Estado de classes. Dizendo-o de outro modo: não é ainda
o Estado hegeliano em plenitude, mesmo porque neste não há
classes, que consubstanciam uma manifestação própria da
sociedade civil.

12. O que estou a afirmar é o fato de —comprometida a


consistência do Estado moderno em razão da interpenetração
entre mercado e política - a soberania ter se reinstalado no
plano da sociedade civil, dispensando a mediação das insti­

25. Transcrevo, neste passo, trecho do meu A ordem econômica na


Constituição de 1988, 12a ed., pp.'17-18.
26, V. o capítulo XI, item 12, acima.
324 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

tuições estatais. É como se a modernidade, construída sobre


a necessária definição de espaços demarcados, cedesse
passagem. Não ousarei dizer ao ou a quê...
O poder político passa a funcionar como um não-lugar,27
de modo que já não se encontra mais dentro, nem fora , de
lugar nenhum. Constitui uma rede descentralizada e desterri-
torializada.28 Algo a demandar a reconstrução do nom os da
terra, visto que o nomos “estatal” já não está mais atrelado a
nenhum território.

6. Um novo “nom os da terra ” ?


13. Não somente o Estado e a soberania, mas o direito
também aparece, na modernidade, desdobrado de um terri­
tório. A terra - qual lembrava Carl Schmitt29 no início da
segunda metade do século passado - ê definida, na linguagem
mítica, como a mãe do direito. O direito é unidade de orde­
namento e determinação de território; o Estado, soberania no
espaço de um determinado território.
O nomos - nomos da terra - resultava da conquista da terra
(Landnahmé), que criava o título jurídico mais radical que po­
deria existir, radical title, no sentido pleno e amplo do vocá­
bulo.30 O nomos, em seu sentido original - dizia ainda Carl
Schmitt31- seria a plena imediatidade de uma força jurídica até
então não atribuída. Um acontecimento histórico constitutivo,
um ato de legitimidade, que dá sentido à legalidade das leis.
Dizendo-o de outro modo: princípio normativo fundante que
conferiria sentido e ordem ao sistema jurídico e político e,
desse modo, o legitimaria.32 Apoiado sobre o nomos, cada Es­
tado afirmavaTse como soberano na comunidade internacional
(plano do direito internacional), na qual coexistiria com outros

27. V. Hardt e Negri, Império, pp.. 208-210.


28. V. Giuseppe Coco, “Uma filosofia prática”, Cult - Revista Brasileira
de Cultura 118/51.
29. Der Nomos der Erde, p. 13.
30. Idem, p. 17.
31. Ob. cit., p. 42.
32. Cf. Antonio Baldassarre, Globali2zazione contro democracia, p. 50.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 325

Estados em situação de paridade. Conteria a ordem inicial do


espaço, a origem de toda ordenação concreta posterior e de
todo direito ulterior,33 O território e a cidadania eram
concebidos como elementos essenciais da soberania: o Estado
seria o ente territorial soberano ou a organização jurídica e
política de um povo.

14. Precisamente essas assertivas perecem diante do


processo de desterritorialização da soberania, a que linhas
acima fiz alusão. Daí cogitar-se de um novo nomos da terra,34
Pois o que pretendo neste ponto sustentar é o perecimento
de qualquer nomos da terra. Não sobrevêm outro nomos da
terra, senão um novo nomos, simplesmente Estado, soberania
e direito (= ordenamento) já não podendo ser tidos como
desdobramentos de determinado território e a soberania
tendo se reinstalado no plano da sociedade cixnl, dispensando
a mediação das instituições estatais, é necessário tecermos
uma nova fundamentação de validade do direito (= orde­
namento) e legitimação do Estado.

7. Um direito (= ordenamento)
sem “nom os da terra”?
15, Limito-me, nesta exposição, a considerar os desafios
instalados no quadro do pensamento sobre o direito. O Estado,
aqui, nos interessa imediatamente enquanto produtor do
direito positivo.
O que se passa no plano do direito interno*5é não mais que
tênue tendência - lembre-se que as super estruturas não se
alteram completamente enquanto não esgotadas inteiramen­
te suas possibilidades. Evidentemente estou a aludir, aqui, ao

33. Cf. Carl Schmitt, Der Nomos der Brde, p. 19.


34. V.g., Agamben, Homo Saccr - O poder soberano e a vida nua, pp.
44-45.
35. A menção ao direito interno resulta dúbia em face da afirmação de
que o poder político passa a funcionar como um não-lugar, de modo que já
não se encontra mais dentro, nem fora, de lugar nenhum. Anoto-o a fim de
que a contradição não pareça grosseira.
326 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

direito posto pelo Estado, que referimos, em seus modelos,


como direito modemo, direito formal.36 Pois as mesmas forças
que se unem para construir o Império —a técnica e a economia
- engendram o novo nomos, que jã não pode ser mais referido
como “da terra”. Aqui se pode identificar um novo momento do
processo que o modo de produção social capitalista é, do que
resulta expressar-se de forma mais incisiva aquela tendência.

16. O trágico talvez se encontre {= venha a ser encon­


trado), no entanto, na substituição do nomos da terra por um
nomos estranho a qualquer medida de legitimidade, a-legíti-
mo, fundado exclusivamente na violência. Esta, então,
ocuparia inteiramente o espaço do direito. A exceção, que
justifica o direito, valeria como a regra. O nomos não seria,
então, senão qualquer ordem emanada do mais forte. Seria,
nas palavras de Schmitt,37 uma expressão da força normativa
dos fatos, da metamorfose do ser em dever, do efetivo em lei.

17. No plano do direito internacional privado prevalece a


ordem jurídica do mercado. Note-se bem que uso a expressão
neste ponto não para dizer que o mercado é uma ordem jurídica
- como de fato é38-, senão para afirmar que o mercado põe sua
ordem jurídica, “sua” na medida em que por ele produzida. Não
a ordem que ele é, porém a ordem que ele instaura.
O mercado assim se coloca na situação de produtor do di­
reito, que o Estado modemo ocupara. E isso - gostaria de
deixar essa circunstância bem vincada - nos dois planos, isto
ê, no plano do direito interno e no plano do direito internacional
privado.
No primeiro, em termos reíativos. Porém de modo mar­
cante, visto que - retorno à exposição de Irti39 - as empresas
\
36. V. item 6, acima.
37. Schmitt, Der' Nomos der Brde, p. 42. V. Gilberto Bercovici,
Constituição e Estado de exceção permanente: atualidade de Weimar, pp.
171-180.
38. V. meu A ordem econômica na Constituição de 1988, 12a ed., pp. 29
e ss., e Natalino Irti, L ’ordine giuridico dei mercato, 3a ed.
39. J7 diritto nelVetã delia técnica, pp. 28-29.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 327

preferem o ordenamento mais vantajoso e conveniente: “o


'qualquer lugar’ do mercado global permite que as empresas
escolham - em razão das diversas fases da atividade econô­
mica —uma pluralidade de sedes jurídicas” . De outra banda, o
direito internacional público é vigorosamente afetado pelo
processo de áesterritorialização da soberania, ponto de par­
tida desta exposição.
Tudo conduz, como se vê, não somente ao esgarçamento
do direito positivo interno a cada Estado, mas à decomposição
da ordem jurídica internacional.

S. Nova “Lex M ercatoria”


e arbitragem transnacional
18. O mercado instaura uma nova Lex Mercatoria. Ele o
faz, não os mercadores, como se dizia anteriormente. Não me
deterei também sobre este ponto, mas me permito fazer, aqui,
uma breve anotação ã margem do corpo central desta comu­
nicação. Breve anotação a respeito do papel desempenhado
pelos árbitros no quadro da arbitragem internacional.
O árbitro, ao atuar nesse quadro, é um ju iz aculturado, na
medida em que não vinculado a determinado ordenamento. O
direito (rectius ordenamento) é um produto cultural.40 Pois o
árbitro internacional não está, nesse sentido, preso a um
determinado direito. Daí a indagação: em nome de quem esse
juiz - contratualmente investido em sua função - em nome de
quem esse juiz produz justiça? O juiz estatal o faz em nome do
Estado; o árbitro, em nome das partes. O que faz dele, árbitro
— porque não vinculado a um direito nacional e porque atua
não em nome de um Estado nacional - o que faz dele, árbitro,
um juiz da ordem jurídica transnacional; uma espécie de
guardião dessa ordem.
Aí uma das distinções que apartam o árbitro que atua no
plano interno de um Estado e os que fazem arbitragem in­
ternacional (transnacional). Cumpre a estes últimos asse­
gurar a preservação de uma ordem jurídica transnacional,

40. Por isso mesmo tenho insistido em que não existe o direito; existem
apenas, concretamente, os direitos (v. o capitulo I, itens 3 a 6, acima).
328 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

por eles mesmos produzida. Produzida plenamente, contudo,


na medida em que eles se ocupam tanto do processo legis­
lativo quanto do processo de produção normativa; no seu
atuar superpõem-se as duas dimensões do direito, a dimen­
são legislativa e a dimensão normativa.41 Se o juiz estatal —
assim como o que atua no plano nacional - diz o direito que
existe, o árbitro do comércio internacional estabelece o di­
reito, em nome do mercado. A distinção entre o juiz estatal e o
árbitro atuante no plano nacional, de um lado, e o árbitro
internacional, de outro, está nas fontes de que se utilizam.
Dir-se-ia que os primeiros são apenas juizes, produzem as
normas; o segundo, juiz/legislador, produzem os textos a
partir dos quais eles mesmos produzirão as normas.
Basta tanto para criar distúrbios no sono dos que ador­
mecem encantados pelo fascínio da “separação” dos poderes...

9. A exceção
19. Não devo, no entanto, alongar-me. Cuido de pronto,
portanto, da segunda tendência que desejo apontar, referida
ã exceção.
Em outra ocasião42 anotei ser “realmente curioso que o
tema da exceção não tenha exercido fascínio sobre os nossos
juristas, o que há de ser atribuído ao prestígio que assumiu
entre nós, desde o século passado, o pensamento kelseniano.
Carl Schmitt, aliás, com indisfarçãvel ponta de ironia, obser­
va ser natural que um neokantiano como Kelsen não saiba,
por definição, o que fazer com a situação excepcional”.
A conhecida afirmação de Carl Schmitt - soberano é quem
decide sobre o estado de exceção — exige detido cuidado em
relação ao que se deva entender como “estado de exceção” .
A exceção è o caso que não cabe no âmbito da norma­
lidade abrangido pela norma geral - a norma geral deixaria de

41. V. item. 2, acima.


42, Minha “Apresentação” ã tradução brasileira de Teologia política, de
Carl Schmitt, cit., p. XIII. Permito-me transcrever, nas linhas que seguem,
trechos dessa “Apresentação”.
XVIII —- O FUTURO DO DIREITO 329

ser geral se a contemplasse. Da exceção não se encontra


alusão no discurso da ordem jurídica vigente; define-se como
tal justamente por não ter sido descrita nos textos escritos
que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito
positivo não existissem palavras que tomassem viável sua
descrição. Por isso dizemos que a exceção está no direito,
ainda que não se a encontre nos textos normativos de direito
positivo.
Carl Schmitt dedica os dois primeiros capítulos da primei­
ra parte da Teologia política precisamente ã impossibilidade
estrutural de a norma geral apreender o caso de exceção.
Como ela escapa à norma, ainda que esteja no interior do
direito - e neste ponto a ambigüidade é extremamente rica ~,
ao soberano, aquele que decide sobre ela, incumbe a definição
da decisão que a inclua no marco das normas jurídicas.

20. À afirmação de que a exceção é o caso que não cabe no


âmbito da normalidade abrangido pela norma geral corres­
ponde outra: a de que as normas só valem para as situações
normais; a normalidade da situação que pressupõem é um
elemento básico do seu “valer” .43 44
A exceção não está situada além do ordenamento, senão no
seu interior. Pois o estado de exceção é uma zona de indi­
ferença entre o caos e o estado da normalidade; zona de indife­
rença, no entanto, capturada pelo direito. De sorte que não ê a
exceção que se subtrai â norma, mas ela que, suspendendo-se,
dá lugar à exceção - somente desse modo ela se constitui como
regra, mantendo-se em relação com a exceção.45

43. V. Carl Schmitt, “Los tres legisladores extraordinarios de la Cons -


titución de Weimar”, in Carl Schmitt, teólogo de lapolitica, p. 313.
44. Vem bem a propósito, neste ponto, a menção de Maurice Hauriou
(Notes d ’arrêts sur dècisions du Conseil d ‘Êtat et du Tribunal des Conflits,
tome troisième, p. 173) a “cette idée très juste que les lois ne sont faites
que pour un certain état normal de la société, et que, si cet état normal est
modífié, il est natural que les lois et leurs garanties soient suspendus”. E
prossegue: “C’est très joli, les lois; mais il faut avoir le temps de les faire, et
il s’agit de ne pas être mort avant qu'elles ne soient faltes”.
45. Cf. Giorgio Agamben, Homo Sacer —O poder soberano e a vida nua,
pp.' 26-27. V. Gilberto Bercovici, Constituição e Estado de exceção per­
manente: atualidade de Weimar, pp. 65-75.
330 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

21. Outro ponto marcante na Teologia política está em que


Carl Schmitt, nas considerações preliminares sobre a 2a edi­
ção - o “Prefácio” de novembro/193346.—, faz nítida opção pelo
pensamento institucionalista de Hauriou, preparando o pen­
samento da ordem jurídica concreta. É este modo de pensar
que nos permite compreender que a violação de uma norma é
expressão não apenas de uma conduta adversa ao que está
escrito em um texto, no plano abstrato do mundo do dever
ser, mas violação de uma ordem concreta, histórica, situada
no espaço e no tempo.
A situação de exceção, embora não prevista pelo direito
positivo (= pelas normas), hã de ser decidida em coerência
com a ordem concreta da qual a Constituição é a repre­
sentação mais elevada no plano do direito posto. Esta ordem
concreta ê anterior ao direito posto pelo Estado. Arranca de
um direito pressuposto e expressa a visibilidade de um nomos.
O processo de objetivação que dá lugar ao fenômeno ju ­
rídico não tem início na emanação de uma regra, mas sim em
um momento anterior, no qual aquela ordem é culturalmente
forjada. Refiro-me a uma ordem geral concreta, situada geo­
graficamente e no tempo, com as marcas históricas e cultu­
rais que a conformam tal como ela é. Por isso mesmo, incom­
pleta e contraditória, reclamando permanentemente comple-
mentação, refazimento e superação de situações de exceção.
Ao Judiciário, sempre que necessário, incürnbe decidir regu­
lando também essas situações de exceção. Mas ao fazê-lo não
se afasta do ordenamento. Aplica a norma ã exceção desapli-
cando-a, isto é, retirando-a da exceção, retirando-se desta.47

22. O fato digo-o, neste passo, parenteticamente - é que


a analogia estabelecida por Carl Schmitt48 entre o direito e a
teologia permite a compreensão de aspectos que o racio-
nalismo do Iluminismo (Aufklàrttng) não considera. O discer­
nimento de que alguns conceitos da teoria do Estado são

46. Ob. cit., pp. 3-6.


47. A expressão é de Gíorgio Agamben, Homo Sacer—O poder soberano
e a vida nua, p. 25.
48. Teologia política, p. 35.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 331

conceitos teológicos secularizados, de que o Deus onipotente


tornou-se o legislador onipotente, esse discernimento se
completa na verificação de que a situação de exceção assume,
para a jurisprudência, o mesmo significado que o milagre para
a teologia. Apenas na medida em que tomarmos consciência
dessa analogia poderemos perceber a evolução pela qual pàs-
saram as idéias atinentes à filosofia do Estado nos últimos
séculos. Prossegue Carl Schmitt: “A idéia de Estado de direito
moderno se impõe junto com o teísmo, com uma teologia e uma
metafísica que expulsam o milagre para fora do mundo e
recusa a ruptura das leis da natureza, ruptura contida no con­
ceito de milagre, que implica uma exceção devida a uma
intervenção direta”.49 Assim também é recusada a intervenção
direta do soberano na ordem jurídica vigente. O racionalismo
do Iluminismo (Aufklárung) condena a exceção sob todas as
suas formas .so

23, Na tarefa de concretização da Constituição, o Judi­


ciário há de aplicar-se a prover a força normativa da Cons­
tituição e sua função estabilizadora, reportando-se à inte­
gridade da ordem concreta da qual ela é a representação mais
elevada no plano do direito posto. A sua mais prudente apli­
cação, nas situações de exceção, pode corresponder exata­
mente à desaplicação de suas normas a essas situações.
Ao interpretar/aplicar o direito - porque aí não há dois
momentos distintos, mas uma só operação51 ao praticar
essa única operação, isto é, ao interpretar/aplicar o direito, o

49. Idem, ibidem.


50. “A convicção teísta dos autores conservadores da contra-revolução
pôde então tentar fundamentar ideologicamente a soberania pessoal do
monarca em analogias extraídas de uma teologia teísta” (Carl Schmitt,
Teologia política, p. 35). Embora o racionalismo do Iluminismo (Aufklárung)
condene a exceção, dela faz uso quando conveniente, seja como a
prerrogativa de John Locke, seja como a ditadura de salvação pública da
República Jacobina, o "Poder Neutro” de Benjamin Constant ou o estado de
sítio c o n s t i t u c i o n a l izado pelos textos constitucionais liberais do século XIX
(v. Gilberto Bercovici, Soberania e Constituição: poder constituinte, estado de
exceção e os limites da teoria constitucional, mimeografado, pp. 101-104,
137-145, 166-175 e 201-213).
51. V. meus Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do di­
reito, 4a ed., e Interpretación y aplicaciõn dei derecho, cit.
332 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

Judiciário não se exercita no mundo das abstrações, porém


trabalha com a materialidade mais substancial da realidade.
Decide não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas a respeito
de situações do mundo da vida. Não cumpre seu ofício vi­
sando a prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém
para vivificar o ordenamento, todo ele. Por isso o toma na sua
totalidade. Não procede como mero leitor de seus textos -
para o quê bastaria a alfabetização -, mas produzindo nor­
mas, tecendo e recompondo o próprio ordenamento.
O STF tem procedido assim em alguns casos, assumindo
claramente tê-lo feito. Menciono as decisões tomadas na ADI
2.240, da qual fui relator, e na--Red. 3.034. Em ambos os
casos atuou a força normativa dos fatos (normative Kraft des
Faktischen), a que refere Georg Jellinek,52 que nos permite
compreender a origem e a existência da ordem jurídica. Pois é
certo que na vida do Estado as relações reais precedem as
normas em função delas produzidas.53 A Constituição - qual
observa Konrad Hesse - “compõe-se de normas. Nelas estão
exigências ã conduta humana, ainda não a essa conduta
mesma; elas permanecem letra morta e nada produzem se o
conteúdo daquelas exigências não passa à conduta huma­
na”;54 “Constituição e ‘realidade', portanto, não podem ser
isoladas uma da outra” .55

IO. Contraponto
24. Parte do que acabei de afirmar linhas imediatamente
acima, no item 21, nos leva de volta ao quanto foi dito a
propósito da primeira tendência: a realidade estando em (=
sendo) movimento, tudo se movendo em transformação,
“nada mais se pode apontar em um escorço sobre o futuro do
direito senão aparentes tendências, ainda que e atê mesmo
contraditórias”.55 s

52. Teoria general ãel Estado, 2a ed., pp. 319 e ss.


53. Ob. cit.,-p. 338.
54. Elementos de direito constitucional da República Federal da Ale­
manha, p. 47.
55. Hesse, ob. cit., p. 49.
56. Item 7, acima.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 333

A contradição expor-se-ia quando falo de “uma ordem,


concreta, histórica, situada no espaço e no tempo” , “uma or­
dem geral concreta, situada geograficamente e no tempo, com
as marcas históricas e culturais que a conformam tal como
ela é” . Pois exatamente essa ordem, que pertence a um lugar
localizado dentro de um território, resulta dilacerada e
arrasada pelas duas forças referidas por Natalino Irti,57 “duas
imensas forças que - repito-o - não conhecem limites, não
têm pátria, se expandem para qualquer lugar. Forças da des-
limitação, que se chamam técnica e economia, e que, as duas
em conjunto, geram a tecno-economia do nosso tempo” .
A exceção está dentro do direito posto pelo Estado, porém
concomitantemente destrói esse mesmo direito, o que não
surpreende aos que acreditam na dialética materialista. A
exceção está dentro do direito, mas nos transporta para fora
dele... O estado de exceção ê uma zona de indiferença entre o
caos e o estado da normalidade, zona de indiferença, não
obstante, capturada pelo direito. É, contudo, também ponto
de indiferença entre violência e direito, espaço “juridicamente
vazio”, no qual tudo pode acontecer, porque nesse espaço se
encontra a soberania.
Neste passo de minha exposição vê-se que, em rigor, não
são excludentes as tendências de que cogito: uma e outra,
soberania e exceção, mutuamente se incluem.

11 . Ainda a exceção
25. A exceção poderá, contudo, resvalar para a violência,
nela se cristalizando, de modo que o estado de natureza
exclua o nomos, qualquer nomos.
A anotação de Agamben58 é aterradora —e aqui jogo com
toda- a ambigüidade de palavra que pode derivar tanto de
terror, quanto de terra: “[o] que ocorreu e ainda está ocorrendo
sob os nossos olhos é que o espaço juridicamente vazio’ do
estado de exceção (...) irrompeu de seus confins espaço-
temporais e, esparramando-se para fora deles, tende a g o r a

57. II dirítto nelVetã cbeUa técnica, p. 26-


58. Homo Sacer - O poder soberano e a vida nua, p. 44.
334 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

por toda parte a coincidir com o ordenamento normal, no qual


tudo se torna assim novamente possível”. O soberano (rectius
super-soberania que avança sobre todos os territórios) man­
tém a possibilidade de decidir sobre lei e natureza, externo e
interno, violência e direito, na mesma medida em que os con­
funde.59

26. Por isso é indispensável, neste passo, a anotação de


que a decisão sobre a exceção a inclui, não podendo subscre­
ver sua inserção à margem do direito. Isso se impõe assina­
larmos, vigorosamente. A captura da exceção pelo direito im­
porta que a violência que ela expressa seja por ele colonizada.
Essa é a conseqüência de tal captura. A exceção é incluída
plenamente no espaço do direito. Do direito como um todo.
Não simplesmente no espaço da lei, porém do direito en­
quanto ordem concreta anterior ao direito posto pelo Estado.
Ordem que arranca de um direito pressuposto, ao qual linhas
acima fiz alusão.60 Essa ordem pretende e deve ser uma não-
violência, embora nela não se produza senão a chamada paz
burguesa. É como se o direito “domesticasse” a violência,
razão pela qual a captura da exceção não pode se prestar, em
qualquer circunstância, à justificação da violência.61

12. Conclusão: a super-soberania”, a exceção


e o novo “n om os”
27. Restaria, a esta altura, identificarmos a super-sobera-
nia, o sujeito da decisão sobre a exceção, sujeito que instaura
o regime de exceção que caracteriza [ró] o novo nomos da Terra
(não um novo nomos da terra, repito). Vimos que essa super-
soberania avança sobre todos os territórios, vale dizer, sobre

59. Cf. Agamben, ob. cit., p. 72. '


60. Item 21.
61. Daí ser inconcebível a afirmação de Horst Dreir, indicado para
exercer o cargo de juiz do Tribunal Constitucional alemão. Diz ele que a
tortura pode ser excepcionalmente justificável, se e quando aplicada para
salvar vidas (cf. o Süddeutsche Zeitung, 23.1.2008, p. 5). A reação contrária
a essa indicação, de juristas alemães e juizes do Tribunal, deverá conduzir
à recusa de tal indicação. Assim seja, espero.
XVIII — O FUTURO DO DIREITO 335

todos os Estados. Por isso não se trata de dizermos, a esta


altura, que determinada Nação ou Estado é o titular dela,
mesmo porque Estado e Nação pressupõem um território e a
super-soberania é um não-território, um não-lugar.
Devo chamâ~lo5o titular dessa super-soberania, de merca­
do, ainda que ao fazê-lo lance sobre esta minha comunicação
um manto de imprecisão mais denso ainda que o que cã já
estava. Pois estamos imersos em um estado de exceção per­
manente. O estado de exceção, como anotou Walter Benja-
min62 na primeira metade do século passado, é a regra geral.
Mercado e modo de produção capitalista designam, neste
texto, um mesmo significado. Dai podermos singelamente
afirmar que a sua ordem - ordem jurídica do mercado, engen­
drada pelo mercado - não perecerá antes que se desenvolvam
todas as forças produtivas que ela é capaz de conter. A
exceção ê a regra na sua fase atual de desenvolvimento. Faz-
se regra, contudo, acobertada pelo direito. O que se manifesta
então, como observa Luiz Gonzaga Belluzzo, é a “codificação
da razão do mais forte, encoberta pelo véu da legalidade” ,63
Isso porque o mercado necessitará sempre do direito posto
pelo Estado, ainda que esse direito seja outro, corresponda a
um novo nomos, ancorado na violência.
Por enquanto - e talvez isto seja para festejarmos, apesar
de tudo -, por enquanto o futuro é, para os juristas, o pre­
sente. Um presente sombrio, no âmbito do qual a contradição
entre o que estrutura jurídica diz e o que a estrutura eco­
nômica admite engendra párias. Até quando?

(Honfleur, 18.12.2007-25.1.2008)

62. “Sobre o conceito da história”, in Magia e técnica, arte e política, 5a


ed., p. 226. V. também Gilberto Bercovici, Soberania e Constituição: poder
constituinte, estado de exceção e os limites da teoria constitucional, capítulo
6, pp. 269-317.
63. "Prefácio” ao meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação
do direito, 4a ed., p. 8.
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ÍN D IC E A L F A B É T IC O R E M IS S IV O
(Os números romanos referem-se aos capítulos e os arábicos aos itens.)

administraçao como execução — auctoritas - III.4


VIII.6 auto-regulação - IV. 12, V.14 e 15
agências - XI. 10
aggiomamento do neoliberalismo — Banco Central - X.3
XII. 9 bens públicos de uso comum -
alteração unilateral do contrato - XVII. 13
XVII.7 e 8 bloco da legalidade — VIII. 13
América Latina - V.20, VIII .2 boa-fé - XIII.4
aplicação dos conceitos jurídicos
“indeterminados” - IX. 13 calculabilidade econômica
arbitragem - XVII xvur.y
* e entidades da cálculo econômico — XII.3
Administração - XVII.3 e
caos e normalidade - XVIII.20
ss.
* e Fazenda Pública - XVII.3 capacidade normativa de
conjuntura - X.3 e 13
e ss.
• Montesquieu - X.3
arbitragem transnacional -
XVIII. 18 capitalismo: e direito - II. 6 e 12,
IV.8, V.l, 12 e 15
árbitro internacional - XVIII. 18
caso “Lage” - XVII.3
arcaico/moderno - V. 11
categorias epistemolõgicas — V. 10
atividade do Estadp: categorias
(Habermas) — V.S certeza da norma - VIII. 17
ato administrativo - X. 18 certeza e segurança jurídicas -
IV. 9, XVIII.2.7
ato de julgar - XV.3 e 5
c|dadania - XVIII. 13
ato vinculado - IX. 33
ciência do direito - 1.18, 20, 22 e 23
atos de comércio - XII. 5-
civitas maxima — XII. 10
atos de gestão - XVII.7
Código Civil - XII.5
atos de soberania - XVII.7
compreensão ~ XV. 5
atribuição de função normativa —
X.3, 10, 13, 14, 16 e 17 conceito
atuação estatal: e intervenção — ■ e concepção - IV.7
VIII.4 • e noção - IX.4 e 6
ÍN D IC E A L F A B É T IC O -R E M IS S IV O 353

• e termo — IX.6, 7 e 16 ♦ de decisões altamente


• suma de idéias - IX.6 e 7 pessoais, das valorações
conceitos “indeterminados” - vinculativas, das decisões
1.17, VIII.15, IX.3 e 4 de caráter prognóstico e
conceitos jurídicos - IX.6, XVII.6 das decisões de enformação
ou de planificação
conceitos jurídicos administrativa - IX.33
“indeterminados” - ÍX.7, 9, 10,
11e 12 corporações de oficio - V.15
• e interpretação - IX. 30 crise do direito - VIII. 19
• e juízo de legalidade - IX.30 crises: papel do Estado - V.S e ss.
■ unidade de solução justa - crítica do direito - 1.16, VI
IX. 14, 15 e 29 * argentina - VI.3
conceitos jurídicos meramente • francesa - VI.2 e 8
formais - IX.8 e 9, XVII.6 crítica do discurso jurídico e
• regulae iuris e tipológicos ~ crítica da doutrina jurídica -
IX.8 VI.2
conceitos jurídicos tipológicos críticos do direito - VI.2
[fattispecie) - IX.8 e 9, XVII.6
conflito - VI. 8 de-territorialização — XII.7
• e litígio - 1.11 e 12 decisão - XV.5, XVIII. 1
conflito interclasse - XII. 8 * fundamentação - XV. 7
conhecer e pensar - 1.19 decisão justa - XVIII. 1
conquista da terra - XII.6 decisões
Conselho Monetário Nacional - • altamente pessoais - IX.33
X.3 * de caráter prognóstico -
Constituição e realidade - IX.33
XVIII.23 • de enformação - IX.33
contra legem —VI.5 * de planificação
contrato administrativo - XVII administrativa ■ IX.33
• alteração unilateral - XVII.9 Declaração dos Direitos do
■ e contrato de direito público Homem e do Cidadão, de 1789 -
- XVII. 10 e 11 X .l
• e contrato privado - XVII.9 dejuridificação da economia -
■ noção — XVII.3, 5 e 6 VIII. 18
• regime jurídico dos delegação de função legislativa -
contratos administrativos - X. 13 a 17
XVII.6 e 7 delegação de poder - X. 13 e 15
contrato coativo - XVII.8 democracia - XII.9 e 10
contratos de direito público — deontologia - XV. 1, XV.2
XVII. 10 e 11 desafios da ciência e da
controle dos atos discricionários prudência - 1.24
pelo Poder Judiciário - IX.32 a desestruturaçao do direito - VI. 6
35 e 7, XVIII. 1
controle judicial desregulação — XVIII. 1
• da decisão discricionária e desregulamentação e desregulação
da aplicação de conceito da economia —V. 18 a 21
' jurídico “indeterminado” — desterritorialização - XVIII.9 é ss.
IX. 14 e 33 desvio de poder - XIII. 5
354 O D IR E IT O P O S T O E O D IR E IT O P R E S S U P O S T O

dever de contratar - XVII .8 • fluência da circulação


dever e obrigação - XVII.8 mercantil - XII.4, XIII. 1,
devido processo legal ~ XV.6 XVIII.3 e 7
devir social — XV1I1.2 • futuro do - XVIII
dimensão legislativa do direito - ■ generalidade - V.S
XIV. 1, XVIH.2 e 18 • instância da realidade —'
dimensão normativa do direito - II.6
XIV. 1, XVIII. 2 e 18 • linguagem e processo -
direito XVIII.7
• análise funcional do direito • mediação específica das
- 1.15 e ss., V.3 relações de produção — II.5,
V I.4
• ciência e prudência - 1.20 e
ss. • moral política universal - V.9
• não é produto do Estado —
• como conceituado pela
11.19
crítica do direito - VI.4
• neutralidade — V.9
• contingente e variável -
VIII.16 • nível do todo social — 1.3 e
ss., II.7, VI.4
• diferentes modos de ver o
direito - 1.1 e 2 • norma, decisão e
ordenamento e estrutura -
• domesticação dos 1.2
determinismos econômicos
■ o direito e os direitos - 1.3
- XII.4, XVIII.3
a 6, 11.12 e 15, IV. 1, V.l
• e ciência do direito - 1.21,
• ordem concreta, histórica,
22 e 24
situada no espaço e no
• e conflito — 1.10 a 12, VI.4 tempo - XVIII.21, 24 e 26
• e conservação dos meios - • posto e pressuposto -
IV. 10, XVIII.3 XVIII.6
• e economia — II. 1 e ss. • prática social — VI.4
» e ideologia — II.6 e 13, VI.8 • preservação do mercado -
• e linguagem - II.4 V.7, 9, 12 e 15
• e luta de classes - II.3 • previsão e calculabilidade —
• e moral - IV.5, 6, 9 e 16, IV.8, V.3, VIII.8 e 18
V.4 • produto cultural - 1.5 e 19,
• e mudança social — 1.3, II.5 11.12, 14, 19 e 22, HI.2
e 6, VI.4 • relações de mercado - V.7 e 9
• e norma: superposição entre • sentidos deõntico e
- 1.2, IV.8 e 12, V.3 ideológico — VI.6
■ e política - 1.18 • sistema - 1.7 a 9
• e razão de conteúdo - IV. 10, • sistema de -rrormas
19 e 20 primárias e secundárias
• e realidade social - VI.8 que regulam o uso da força
com pretensão de
• e teologia - XVI 11.22
monopólio, objetivando
• e violência - 1.15, XVIII.8, excluir o uso privado da
16, 24, 26 e 27 força nas relações sociais —
• e voluntarísmo - III.4 1V.6 e 8
• elemento constitutivo do • soluções exatas e soluções
modo de produção — II.5 corretas ~ 1.24, IX. 15 e 29
ÍN D IC E A L F A B Ê T IC O -R E M IS S IV O 355

• universalidade abstrata - discricionariedade — 1.17, VIII. 15


IV.8, V.2, 5 e 7, VII.1 e 18, IX, XI. 8
• verdadeiro/falso e aceitável • argumento do porte de arma
- 1.24 - IX. 37
• visão formalista — 1.17 a 19 • como técnica da legalidade
• visão positivista — 1.17 a 19 - IX.24 e 37 ...................
direito administrativo - VIII.2, 3 e • conceito (Celso Antônio ■
13, IX.3 e 5, X.3, XI Bandeira de Mello) - IX.4 e
direito alternativo - IV.'3, 12 e 20, 26
VI.5 e ss. • decisão discricionária
• crítica ideológica - VI.6 correta - IX. 34
• critica metodológica - VI.7 • é atribuída pela lei — IX. 1,
36 e 37
• significados da expressão —
VI.5 • e conceitos jurídicos
“indeterminados” - IX. 10,
direito .comercial - XII.5
11, 13, 14 e 36
direito do modo de produção
capitalista - V.2 a 9, VIII. 16 • e interpretação do direito -
IX.4, 16 a 18 e 33;
direito e moral - XIV.2 e 4 confronto entre - IX.28, 29
direito econômico — V.9, XII.5 e 33
direito escrito — XII.3 • e poder regulamentar — X;13
direito formal - IV.2 a 4, 13 e 14, e 16
XVIII. 1, 6 e 15 • e regulamentos de execução
direito internacional — XII. 6 e 10, - X.14
XVIII, 17 • eleição entre indiferentes
direito interno — XVIII. 15 e 17 jurídicos - IX. 14 e 19
direito moderno - IV.7 a 9 e 14, • elementos - IX.26
V. 14 a 16, XIV, XVIII. 1, 6 e 15 • exemplo de ato
• traços que o caracterizam discricionário - IX. 19
(Hãbermas) —V.4 e 5 • fundamento, segundo
• /direito formal - 11.26, IV, Francisco Campos - IX.3 e
VI.4, 6 e 7, VII. 1, VIII.19 26
direito natural - II. 1, VIII. 11 • juízo discricionário,
(nota) incompatibilidade com a
direito posto - 1.19 e 22 legalidade - IX. 2
• e direito pressuposto - II • juízos de oportunidade a
direito posto legítimo — III.6 respeito da ocasião em que
direito pressuposto — IV. 14 o ato deve ser praticado, ou
da sua utilidade, ou do
• e direito posto - II
conteúdo do ato - IX. 1 e 39
• e legitimidade do direito
posto - III.3 e 5 • otimização flexível das
funções do Estado - IX.31
• e ordem jurídica concreta -
XVHI.21 e 26 • quando é admitido seu
exercício — IX. 1, 32 e 36
direito público e direito privado —
II. 14, VIII.4 • quanto â finalidade da
norma, inadmissibilidade -
direitos alternativos - IV. 13 IX.2
direitos patrimoniais - XVIII. 12 e • resulta de expressa
. 13 atribuição normativa ã
dirigismo contratual - XVII.7
356 O D IR E IT O P O S T O E O D IR E IT O P R E S S U P O S T O

autoridade administrativa - • e economia, separação entre


IX.36 e 37 - VIII.4
• sentido fraco - IX.2 e 31; e • e governo — XI.3 e 5
sentido forte (Dworkin) - ■ e mercado - V, 11, 12 e 18 e
IX. 2 ss.
• solução unívoca (Francisco ■ e sociedade — VIII.5, XI.4, 7
Campos e Celso Antônio) - e 11
IX. 18, 26 e 37 • funções de integração e
• subversão da legalidade - modernização capitalista —
IX.13 V .ll
discricionariedade judicial (= Estado burguês de direito - V.2
poder de criação da norma Estado de classes ~ XVIII. 11
jurídica mediante a formulação Estado de direito - 11.15, IV.8,
de juízo de legalidade) - IX. 24 e VIII.2 e 5, XVIII.3
38
• como mito - VIIÍ.6
discricionariedade técnica -
IX.3 1 • desmistificação - VIII. 12
discurso da ordem - XI. 1, XV.6 • e Estado autoritário - VIII. 1
discurso do direito - VI.6 estado de exceção —XVIII.8, 19 e 27
discurso ideológico - VIII.9 e 11 estado de exceção permanente -
XVIII. 27
discurso jurídico - VI.6
Estado do bem-estar - V . l l
discurso mítico — VIII.9 e 11
Estado hegeliano - XVIII. 11
discurso neoliberal — V. 10
Estado liberal - VIII.5
• e liberalismo - V.10 e ss.
Estado moderno - IV. 13 e 20,
disponibilidade de direitos V. 12 e 13, XVIII. 11 e 12
patrimoniais XVII. 12 e 13
Estado social e preservação do
doutrina real do direito - 1.19 mercado - V.9
dupla desestruturação do direito - Estado-aparato - XVII.9
IV.12 e 13, VI.6 e 7, XVIII. 1
Estado-ordenamento - XVII.9
dupla instrumentalidade do
direito - V.9, VIII. 16 estatal e público — XI.2
duplo caráter do direito - V.9 ética — IV. 12 e 15 a 20, XV. 1
• com. desprezo à legalidade,
ao procedimento legal e à
economia universalidade da lei -
• e direito — II-1 e ss. IV. 16 e 20
• e política (conflitos) — V.9 ■ ética da legalidade - XIV.3, 4 e 5,
• e técnica - XVIII. 15 e 24 XV. 3, 5 e 11
• e soberania - XVIII. 10 ética do direito modemo - XIV.4
empresa brasileira de capital '■ ética do direito .positivo - XIV.4
nacional - V.21 ética judicial - XV
empresa pública - XVI.5 eticidade - XIV. 3 e 5, XVIII. 11
empresas estatais - XI.8 • de Hegel - XIV. 3, XV. 3
eqüidade - XIII. 1 e ss. • e moralidade - XV.2
erro de direito — VIII. 17 exceção - XVIII.8, 16/19, 20, 21,
Escola de Frankfurt - VI. 1 24, 25 e 27
Estado - XI, XVIII. 13
• descrição de como deve ser, fattispecie - XVII.6
não de como é - VIII.3 federalistas - X.l
ÍN D IC E ALFABÉTICO-REM ISS1VO 357

fenômeno jurídico — II, 1 e 26 ignorantia legis neminem excusat —


força normativa dos fatos - IV.9 e 12, VIII. 16 e 17
XVIII. 16 igualdade - VII. 1, XVI .2 e 4
forma jurídica - VIII. 12 • perante a lei - IV.8, V.2 e
formalismo - IV. 5 7,VIII ,4
função — X.7 ilegitimidade originária e
função administrativa - X.7, 8, superveniente do direito - III.8
12, 13 e 18 Iluminismo - XVIII.22
função de julgar - XV.3 e 5 imaginário social - XI. 1, XV.6
função estatal - X.8 imperialismo hegemônico global -
• classificação - X.7 e 12 XII. 9
função executiva - X.7, 8 e 13 impessoalidade -- XV.7
função jurisdicional - X.7, 8, 12 • princípio da impessoalidade
e 13 - X V .ll
função legislativa - X.3, 7, 8, 11 imunidade parlamentar - XVI
e 13 a 16 indisponibilidade do interesse
• conceito - X. 12 público - XVII. 12 e 13
função normativa - VIII. 13 e 14, individualismo possessivo — V. 10
X.3 e 7 a 15 indivíduo e direitos individuais -
• atribuição - X.3, 10, 13, 14, VIII. 4
16 e 17 inflação legislativa - VIII. 16
• conceito - X.12 inflação normativa - 1.14, VIII. 16
• e função legislativa - X. 11 e 17
• espraiada pelo Estado - informatização da sociedade;
X. 16 desestruturação do direito -
XVIII. 1
função regimental - X . 13, 15 e 16
instância e nível - II.4, 7 e 11
função regulamentar - X.3, 13,
15, 16 e 18 institucionalismo - XVIII. 21
funções e poderes - X.3, 4 e 7 interesse da Administração -
futuro do direito - XVIII XVII, 12
interesse público - 1.13, VIIÍ.3,
IX.32 e 33, XI.2 e 5, XVII. 12
geodireito - XII.5 e 8
• e interesse social - VIII.2 e
globalização - IV. 19 e 20, XII 4
globalização financeira - XII • e legalidade - XVII. 13
interpretação
hermenêutica — XVIII. 1 e 7 • concreção da lei — IX. 21
homem prudente — 1.24 • “criação" do direito - IX.22 e
homem virtuoso - XIV.5, XV.2 24
• e aplicação - XIII.3.2
ideal de justiça - VIII. 19 • e conceito jurídico
idéias dominantes — X. 1 “indeterminado" - IX, 30
ideologia - 11.13, VIII.7 e 9 • e regulamentos de execução
• e significados - VIII.7 - X.14
• sentido e valor de • norma de decisão — 1.23,
referência - VIII.7 e 11 IV.2, IX.21, 23 e 24
ideologia do direito — VI,6 * • /aplicação do direito —
ideologia jurídica - VI.6 IX. 15 e 21, XV.3 e 4
3 58 O D IR E IT O P O S T O E O D IR E IT O P R E S S U P O S T O

interpretação autêntica — 1.24, • e conceito jurídico


IX.21 e 22 “indeterminado” — IX. 30
interpretação do direito — 1.23 a • e juizo de oportunidade —
26, IV.2 a 4 e 8, IX.20 a 25, IX.4, 5, 15, 16, 18, 19, 24
XVIII. 1 e 2 e 39
* e discricionariedade, juízo de oportunidade e juízo de
confronto entre - IX,28, 29 legalidade - IX.4, 5, 15, 16, 18,
e 33 19, 24 e 39
* e juizes alternativos - VI. 6 juris prudentia e juris scientia —
* e norma-objetivo - VIII. 16 1.24
* e princípios — VI. 7 jurisdição e arbitragem - XVII.2
* e prudência - 1.24, IX, 15 jurisprudência dos princípios —
* elementos — IX. 27 VI.6
* normas sobre - VI.5 e 6 • e jurisprudência dos valores
- IV. 18
* one right answer —1.24
jurisprudência dos valores e
* única resposta correta -
jurisprudência dos princípios -
1.24 e 25, IX.29
IV .18
interpretar o direito é formular
juristas - XVIII.3 e 4
juÍ2QS de legalidade — IX. 24
juristas “cientistas” - IV. 12
intérprete autêntico - 1.24, IX.21
e . 22 justiça - IV. 11, XIV.2 e 5
* vinculação pelos textos - justiça alternativa - VI. 5
IX.24 justiça material e justiça formal —
intervenção do Estado - 1.13 e IV. 10 e 12
14, VIII.4
* formas - X.3 kelsenianos — 1.16 e 18
* na economia - XII.9
isomorfla - IX. 20 legalidade - IV.8, 9 e 20, V.2, 7,
isonomia - XVI.2 18 e 21, VI.5 e 7, VII. 1, VIII,
IX.2, 19, 31, 35 e 39, XIV.3
ius mercatarum - 11.12
• como mito - VIII.6, 7 e 11
• como procedimento - VIII.8
juiz - XV
• declínio - VIII. 15
* e concreção do direito -
XVIII.23 • desmistifícação - VIII. 12 e
13
* e força normativa dos fatos
- XVIII.23 • e interesse público -
1 XVII. 13
* e realidade - XVIII.23
* imparcialidade do juiz — • e legitimidade - VIII. 11
(nota)
XV.5, 8, 9 e 11
• e legitimidade do direito —
* independência do juiz —
III
XV.5, 8, 9 e 11
\ * e neutralidade axiolõgica do
* legitimidade dos juízes -
direito - VIII. 5
XV.6
• e nomos - XVIII, 13
* neutralidade do juiz — XV.5,
8, 9 e 10 • e violência - XVIII.27
* neutralidade política dos • em sentido formal - VIII.8
juízes - XV. 10 • em situações de tensão
juízo de legalidade autoridade/liberdade —
ÍN D IC E A L F A B É T IC O -R E M IS S IV O 359
VIII.6, 18 e 19 XV.3
• em virtude de lei e • e conflito - 1.11 e 12, VI.8
decorrente de lei - X. 14, 16 lógica da conseqüência e lógica
e 17 da preferência - 1.24
• ideologia da modernidade - luta, jogo e debate - VI.8
VIII.8
• - proteção do interesse “mais sociedade, menos Estado” -
privado - VIII.6 V. 14
• lógica interna do sistema marxismo — II. 1 e ss., VI.2
jurídico - VIII.8
materialismo — IV. 20
■ regra de limite e regra de
materialismo histórico - II.2, VI. 1
conteúdo da atividade
administrativa - VIII.6 e 13 medida - X. 18
• válvulas da legalidade - meios e lins — VIII.6
IX.5 mercado - V. 11 e 12, XI.7,
legem patere quam feàsti - VIII. 14 XVIII. 18
legitimação pelo procedimento - • e Estado - V . l l , 12 e 18 e
IV .9 ss., XII.3
legitimação procedimental e • e política - XVIII, 10
substancial — IV. 12 • é uma ordem jurídica -
legitimidade - IV.9 e 12, VIII. 1 XVIII. 17 e 27
• e legalidade - V1H. 11 (nota) • global - XVIII. 17
legitimidade do direito • instituição jurídica ~ XII.3
• e direito pressuposto - III.3 ■ instituição social - XII.3
e 5 • locus artificialis - XII.3
• e legalidade do direito - III • põe sua ordem jurídica -
legitimidade do direito posto — XVIII. 17 e 27
III. 6 • regularidade e
lei - X.12 e 14 previsibilidade de
comportamentos - XII.3
■ e norma —X. 11, 12 e 18
• titular da soberania -
• em sentido formal - VIII. 13,
XVIII. 2 7
15 e 16, X .ll e 18
mercado livre - V. 13, 18 e 20
• em sentido material - VIII.8
e 16, X .ll e 18 mercados financeiros
internacionais — XII.2
lei-medida - VIII.8 e 16, X. 18
mercadorias - II.9
Lex Mercatoria - IV. 12, XII.5 e 8
milagre - XVIII.22
• desestruturação do direito -
XVIII. 1 e 18 mito - VIII.6 e ss.
liberdade - XI ■ separação dos poderes - X. 1
e 5
liberdade burguesa - VIII.4
modelos de direito — IV. 1
liberdade de contratar - V.7,
XVII.8 modo de produção - 11,2, 3, 5 e 14
liberdades modernas (“ jurídicas) modo de produção capitalista - 1.3
- VIII.5 a 6 e 13, V .l, VIII.2 e 4;
XVIII. 15
liberdades públicas - VIII. 5
modo de produção social - 1.3 e
linguagem jurídica - IX. 13, 20 e
ss.
' 29
moral e direito - XIV.2 e 4
litígio -1.11, 12 e 23, XIV.3,
moralidade - XIII.4 e 5, XIV
360 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

• e eticidade - XIV.5, XV.2 obrigação e dever - XVII.8


• interpretação e aplicação - ordem jurídica concreta - XVI1I.21
XIII.3.2 ordem social - XI.2
• princípio da moralidade — ordenamento jurídico - X.9 a 11,
X V.7 13 e 16
moralidade da Administração — ordens de necessidade - VIII. 15,
XIV.3 IX.5
motivação do ato administrativo -
IX.33 pensamento da ordem jurídica
concreta - XVIII.21
não-lugar da soberania — XVIII.7, pensar e conhecer - 1.19
9, 12, 15 e 27 pharmakon - IV. 18
natureza singular do presente - pluralismo jurídico - IV.7, 9, 12 e
V I.7 20, VI. 5
negative Bindung - VIII. 13 poder de regulação jurídica - XII.7
negócio jurídico - 11.20 e 21 poder discricionário: sentido
neoliberalismo - VIII. 15, XII.3 e 9 fraco e sentido forte (Dworkin)
• discursos imprudentes - - IX.2
V.10 poder estatal - XI.3
neutralidade da ciência - IV. 12, poder político - XVIII. 12 e 15
V I.8 • e poder social - XII.3
nível e instância - II.4, 7 e 11 ~ poderes e funções - X.3, 4 e 7
noção - IX.4, 6, 11, 12, 14, 15, poliarquia global - V.10 e 15
24, 30, 32, 33 e 36 políticas públicas - 1.13 è ss.,
nomos - XVIII.13, 15, 16, 21 e 25 IV.10, V.S, 7, 9 e 15, VIII.15 e
nomos basileus — 1.2 16, X.6, XI. 10
nomos da terra — XII. 5 e 8, pós-modemo - IV.7
XVIII.13, 14, 15 e 16 positive Bindung — VIII. 13
nomos estatal - XVIII. 12 positivismo — 1.18, IV. 4 e 5
norma potestas - III.4
• e lei - X.11, 12 e 18 prerrogativa — XVI
• e texto - IV.2 e 3, IX.21, prerrogativa de foro - XVI
XIV. 1 presunção da legitimidade dos
norma de decisão - 1.23, IV.2, atos administrativos - VIII.3
IX.21, 23 e 24, XIII.3.2 primitivismo cultural - XII. 10
norma jurídica - X.9, 10 e 16, princípio da igualdade - XVI.4
XIII.3.2
princípio da moralidade - XIV. 3,
• conceito - X.10 XV. 7
• estatuição primária - X. 10 princípio da proporcionalidade -■
• quando nasce - 1.17, 11.19 v IX.34 e 35
norma regimental - X.14 • não é princípio - IX, 35
norma regulamentar - X.14 princípio da razoabilidade - IX.35
norma-objetivo - IV, 10, VIII. 16 principio da segurança - XII.9
normalidade e cáos - XVIII,20 e princípio normativo fundante —
24 XII. 6
normativismo - 1.2 e 18 princípios — II.3 e 4
nova. hermenêutica — XIV. 1 • conflito entre - 1.17
ÍNDICE ALFABÉTICO -REMIS SIVO 361
• direito de princípios - IV.20 regulação
• e direito pressuposto - II. 1, • e regulamentação - V. 14 e
15, 18 e 26 ss.
• e valores - IV. 18, XtV.4 • nova teoria do direito - V. 14
princípios e valores - IV. 18, e 15
XIV.4 regulae iuris - IX.8, XVII.6
princípios gerais do direito - 1.8 regulamentação e regulação -
princípios jurídicos - IV. 14 e 18 V.14 e ss.
privatização — V. 18 regulamentos - V.18, X.13, 14,
• do Estado - V.20 e 21 16 e 17, XI.9
• serviços públicos — VIII.2 • a doutrina brasileira - X. 14
privilégio - XVI • autônomos - X. 14 e 17
privilégios de invenção - XVI.5 • autorizados - X.17
privilégios fiscais — XVI.5 • de execução - X.14 e 17
procedimento legal - IV, 16 e 20, • de urgência ou necessidade
V.21, VI.7 - X.14
proporcionalidade - XIII. 1 e ss. • delegados - X.14 e 17
• não é princípio - IX. 35 relação jurídica - II.9, 10 e 21
• /razoabilidade: distinção relações
entre ambas ~ IX. 35 • de comunhão de escopo —
propriedade (conceito) - XVLI.6 V. 16
propriedade dos bens de produção • de intercâmbio - V. 15 e 16
- II.3 • de produção - VI.8
prudência - IX.24 e 25 • de propriedade - II. 8
• arte e ciência — 1.24 representação parlamentar —
• segundo Aristóteles - 1.24 V III.15
publicidade do direito - IV.9 e 12, reserva da lei - VIII.8, X.14
V.4, 5 e 7, VIII. 16 ressemantização do discurso do
público e estatal - XI.2 direito - VI. 6
puissance publique - XVII.7 e 9
segurança - IV. 11
questão política e questão • como valor-condição -
científica - 1.19 V III.17
• das relações jurídicas -
racionalidade ~ XVIII. 11 VIII. 16 e 17
racionalidade econômica - XII.3 • = segurança da propriedade
- VUI.4
racionalismo do Iluminismo -
XV1H.22 segurança e certeza jurídicas -
IV.9
razão do mais forte - XVIII.27
separação dos poderes - VIII. 5,
razão efetiva - XVIII, 11 13e 16, X, XVIII. 18
razoabilidade - XIII. 1 e ss. • Aristóteles - X.l
• /proporcionalidade: • derrogação do princípio -
distinção entre ambas ~ X.13, 15 e 16
IX.35
■ equilíbrio — X .l, 3 a 5, 7,
reforma constitucional (no Brasil) 14, 16 e 18
- V.21
• Locke - X.2
regimentos - X. 14
362 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

• Montesquieu - X.3, 5 e 6 teoria do direito e teoria da justiça


* pcnctrabüidade — X.3 - IV .ll
separação entre Estado e teoria formal da interpretação -
sociedade — VIII.5 IV. 8 -
ser moderno - V . l l e 12 teoria jurídica formal — 1,19
ser no mundo - XV.5 teorias críticas do direito — VI.2 e 4
serviço público - V. 18, VIII.2, XI.8 terceira revolução industrial -
silogismo subjuntivo - XIII.3.2 IV. 19 e 20, V.10, 19 e 20, XII,2
Sittlichkeit - XVIH. 11 terceiro-árbitro — V. 15
situações estruturais e situações terceiro-ordenador - V, 15
conjunturais - VIII. 16 a 18 termo do conceito - IX. 16
soberania - IV. 19, XII.6, 7 e 10, termo indeterminado do conceito
XVIII.8, 9, 10, 12, 13, 14, 17, - IX. 13
24, 25 e 27 território - XVIII.9, 13 e 24
soberano é quem decide no estado texto e norma - IV.2 e 3, IX.21,
de exceção - XVIII.8, 19 XIV. 1, XVIII.2 e 18
sociedade brasileira - V.21 * “abertura” dos textos - IX.24
sociedade civil - XVIII. 11, 12 e 14 Tribunal de Cassação - XIII.3.2
sociedade de economia mista - tyrannia absque titulo e tyrarmia
XVI. 5 quoad exercitium - III. 1, IV.9
sociedade e Estado - XI.4, 7 e 11
sociedade e mercado — XI.7 unidade de solução justa - IX, 13,
subsunção - XIII.3.2, XIV, 1, 14 e 29
XVIII.l, 2 e 7 un iver s alidade
subversão do texto - ÍX.24 e 25 • das formas jurídicas - V.2,
Súmula 266 do STF - X.18 VII. 1
super-soberania - XVIII.9, 10, 25 .* do direito - IV.9 e 12, V.4 e 5
e 27 uso alternativo do direito — VI.5
suprassumir - XIV.4
suprassunção - XIV.4, XVIII. 11 valorações vinculativas — IX.33
supremacia valores - IV. 18, XIV.4
* da lei - VIII. 5 "ueri" diritti e diritti adi carta"
• do interesse público - VIII.2 I V 10
violência e direito - XVIII.8, 11,
técnica e economia - XVIII. 15 e 24 16, 24, 25, 26 e 27
teoria da regulação - IV. 12, V. 10 virtudes republicanas - XI.2
a 17 voluntarismo e direito - III.4
ÍNDICE ONOMÁSTICO
(Os números romanos referem-se aos capítulos e os arábicos aos itens.)

AARNIO - 1.25, IV.20, IX.23 e 34 BANDEIRA DE MELLO, Celso


ABELARDO - XI. 1 Antônio ~ IX.4, 7, 17, 18, 26, 29,
ADOMEIT - 1.18 e 24, IX.23 32, 33 e 37, XI.9, XVII. 12 e 13
BARCELLONA - 11.12
AGAMBEN - XVIIL8, 14, 20, 21 e 25
ALESSI - X.7, 8, 10 a 13, 15, 16 BELLUZZO - V.21, VI.7, XI.2,
XII.2 e 9, XVIII.27
e 18, XVII.12 e 13
BENEDETTI, Mario - XI.6
ALEXY - 1.25, IX.23 e 35
ALF ROSS - XVII.6 BENJAMIN - IV. 19, XVIII.27
BENJAMIN CONSTANT -
ALTHUSSER - X.5 e 6
XVIII. 22
AMARAL SANTOS, Moacyr -
XVII. 3 BENTHAM - 1.1
BERCOVICI - XVIII. 16, 20, 22 e
AMSELEK - V. 18, VIII. 16 (nota)
27
ANDRÉA FERREIRA, Sérgio de -
X.13 (nota), XVII.4 BETTI - 11.21
ANTÍSTENES - VII BILAC PINTO - V.18
ARISTÓTELES - 1.5 e 24, VII, BISCARETTI DI RUFFIA - XVI.6
IX.23, X.l, XI.13, XIII.2 BLOCH.-J. - II.3
ARNAUD - 11.13 . BOBBIO - 1.14 a 16 e 18, 11.13,
1V.4 e 10, V.5 e 15, X.10
ASCARELLI, Tullio - V.16, IX.8,
XVII.6, XVIIL2 BODENHEIMER - X.13
ASSIS BRASIL - 11.14 BOILEAU - XI.6
ATAÍDE - X. 18 BOLINBROKE - X.l
AVELÃS NUNES - XII.3 e 9 BONAVIDES - IX.35
ÁVILA, Humberto - IX.35, XIII.3.1 BORGES ~ VII. 1
AZEVEDO - 11.20 e 21 BOULANGER - VIU. 19
BOURJOL - VIII. 19
BALDASSARE - XII.3, 5, 6 e 7, BOUVIER - X.3
XVIII. 13 BULLINGER - VIII. 18, IX.31
BAL1BAR - II.2 e 3, XII. 10 BURDEAU, Georges - XI.3
364 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

CABANTOUS - XI .7 DUJARDIN - VI.8


CABRAL DE MONCADA, Luís DWORKIN - 1.25, 1X.2, 23 e 31
Solano - XVII. 5 e 6
CALAMANDREI, Piero -■ XVII.2 ECO, Umberto - IX.7
CALMON DE PASSOS - XVII.2 EISENMANN - X.5 e 6
CAMBACÈRES - XI.7 ELIAS - XII.3
CAMPOS - VIII. 15, IX.3, 4, 17, ENGELS - 11.3, 6 e 13, XII.2
18, 26 e 29 ENTELMAN - VI.3
CANARIS - 1.7 e 8, 11.15 EPICURO - IV. 11
CÂNDIDO, Antonio - XI.6
CANOSA USERA, Raúl - XIII.3, FAUSTO - II.8 a 10
nota 2
FAVARD - XI. 7
CANOTILHIO - VIII. 12, X . l l , 15
e 18 FERRARI, Vicenzo - 1.15
CAPELLA - V.15 FERRAZ JÚNIOR - III.7, VIÍI.6,
Í5 e 17, IX.5, X. 16, XI. 11
CARBONIER - VII. 16 e 17, XI. 11
CÁRCOVA - 1.16, 11.13, VI.3, 4 e 6 FERREIRA FILHO - X.12 e 13
CARNELUTTI - 1.14 e 23, VIII.16 FORGIONI - XII.5
e 17, XVII. 12 FORSTHOFF - VIII.4, IX.10, X.18
CARRIÓ - IV.4 FRIEDRICH, Carl - III.4
CASTRO NUNES - XVII.3 e 4 FROSINI - X.9
CAVALCANTI, Themístocles -
XVII.4 e 13 GADAMER - IX.21
CELSO - IX.20 GALBRAITH - V.18, XI. 10
CELSO DE MELLO - XVI.6 GALGANO - 11.12, IV. 14, V.20,
CERRO NI - II .2 VIII.2, 5 e 6, XVIII. 1
CHEVALIER - V.19, VIII.2 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo
CÍCERO XI.2 - VIII. 13, IX. 14, XVII. 9
CLÉVE - VI.5, X.17 GENRO, Tarso - II.2
COCO, Giuseppe - XVIII. 12 GÉNY, François - XII1.3.2, nota 5
COMPARATO, Fábio Konder - GIANNINI - VIII.5 e 6, XI. 11
I.14 e 24, VIII. 17, IX.8 e 23, GIANOTT1 - XIV.S
X.6 e 18, XVII.6 e 9 GIERKE - II. 17.3
CORREAS, Oscar - 1.15, 16 e 19, GILISSEN, John - XI.7
II.11, V.5, VI.3 e 6 GODELIER - 1.4, 11.12
-GOETHE - V.S
D ’ORS - VIII. 11 GOMES, Orlando - XVII. 10 e 11
DAHRENDORF - IV.20 GONZÁLEZ ARZAC - V.18
DALLARI - VIII. 15 GONZÁLEZ PÉREZ, Jesüs -
DALLARI BUCCI, Maria Paula - XIII.4
XI. 11 GRAMSCI - 11.22
DE SOUSA - VIII. 18, IX.31 e 33 ' GRAU, Eros Roberto ~ 1.18 e 23,
DERRIDA - XVIII. 1 IV.2 e 10, V.21, VI.7, XI.2,
DONATI, Alberto - XI. 12 XIII.3.1 e 3.2, XVII.6, XVIII. 17
DREIR, Horst - XVIII.26 e 22
DUGUIT - 11.17 a 17.6, 18 e 19, GROSSI - XVIII.2
X .ll GROTIUS - IV. 5
DÜHRING - II.2 GUASTINI ~ IV. 10
ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 365

GUERRA FILHO - IX.35 LENIN - II. 2


GULLIVER, P. H. - 1.11 LESSA, Pedro - XVII.9
LINGUET - II.3
HABERMAS - 1.11, 11.14, IV.S. 9, LOCKE - X .l, 2, 4 e 7, XVIII.22
11 e 18, V.4 a 6, 8, 9, 16 e 19 LOPEZ DE OfÍATE - V.S, VIII. 17
HARDT - XVIII. 10 e 12 LUHMANN - 1.12, IV.5, 12, 14 ç 19
HAURIOU, André - XI. 11 LYRA FILHO - VI.3
HAURIOU, Maurice - 111,6,
VIII. 13, XIII.5, XVIII.20 e 21 MADRAZO - 1.18
HAYEK - V.10 MANENT - V .ll
HEGEL - II.2 e 3, XL4 e 12, MARÍ - VI.3, IX.21, XI.1, XV.6
XIV.4 e 5, XV.2 e 3, XVIII. 11 MARKOVIC - 11.24
HEIDEGGER - XV.5. MARQUES, Floriano Peixoto de
HELLER, Hermann - 1.18 e 24, Azevedo — XI. 11
IX.23, XI.3 MARTINO - IX. 13
HENRY - V.18, VIII. 16 (nota) MARX - II. 1 a 3, 8, 9, 13, 14 e
HERÓDOTO - 11.21 21, V.7, VI.8, VIII. 10, XI. 1,
HESSE - XVIII.23 XII.2 e 3, XVIII.4
MARX e ENGELS - II.2 e 3, X.l
IHERING - XI. 13 MAXIMILIANO, Carlos - XVI.6
INWOOD - XIV.4 MEHRING, Franz - II.3 e 13
IRTI - IV. 10, XII,3 e 6, XVIII.3, 9, MEIRELLES - X .l8
10, 17 e 24 MENESES, Paulo (trad.) - XIV.4
(nota)
JEAMMAUD - 1.11 e 16, II.3,- MENEZES CORDEIRO -1.17, 19
V.18, VI.2, 4, 7 e 8, VIII. 1 e 19 e 24
JEANTIN - VIII. 19 MERONI, Massímo - IX.8, XVII.6
JEAUMMAUD - II. 6 MEZAROS - XII. 9
JELLINEK, Georg - XVIII.23 MIAILLE - II.2, 3 e 6, V.2, VI.3,
JÉZE - X.3 X. 5
JOSPIN - XII. 3 MICHEL - VI. 8
MONTESQUIEU - X .l, 3 a 7 e
KAFKA - XI. 1 18, XVIII.23
KANT - IV.5 MORAND, Charles-Albert - XI. 11
KAUFMANN - IV.7, XV.5 MULLER, Pierre - IX. 35
KELSEN - 1.16, 18 e 23, 11.13,
IV. 5, 6 e 10, V.3, VI.6, VII. 1, NASCIMENTO E SILVA - VIII.7
IX.21, 22 e 29, X.9, XII. 10, (nota)
XIII.3.2, XVIII.2, 9, 19 e 23 NEGRI - XVIII. 10 e 12
KOHLBERG - IV. 5 NERY JÚNIOR, Nelson - XVII.2
KUGELMAS - XVIII NEUMANN - XIII. 1 e 3
KÜHN - IV.7 NITSCH - VIII. 16 (nota)

LAPORTA - IV.6 OFFE - V.9


LARENZ - 1.23 e 24, IV.12, IX.20 OLIVEIRA - V.21, VI.7, VIII. 1 e
’ e 23, X. 18 3, XI.5 el2
LAURENT - XVII.9 ORLANDO - VI.8
366 O DIREITO POSTO E O DIREITO PRESSUPOSTO

ORTEGA Y GASSET - 1.2 SIEYÈS - XVI .2


ORTIGUES - IX.21 SMITH - 1.14, VII.1
ORWELL - VII. 1 SOUTO - IV. 19
OST - 11.25, III.7 STARKENBURK - II.3
STHAL - VIII. 12
PAREJO ALFONSO - VlII.2 STOPPINO - 11.13
PARIENTE-BUTTERLIN - XV. 10 SUAREZ - XVI.2
PASUKANIS - II.8 SUNDFELD, Carlos Ari - XVII.5
PAUL NIZAN - IV. 11
PEREIRA - V.21, VIII.3, XI.5 e 12 TARELLO - IV. 8
PETRAS - IV. 19 TERÊNCIO - IV. 12, XI. 1
PHILLIPPE - IX.35 TERRÉ - VIII. 17
PÍNDARO - 1.2 TEUBNER - IV. 14 e 19
PLATÃO ~ XI.13, XIV.5, XV.2 THOMPSON - 11.13, VI.7, VIII. 1
POLANYI - XII.3 TOMASIUS - IV.5
POULANTZAS - 1.13, II.6 e 12, TORON, Alberto Zacharias -
VIII.4, X.5 XVI. 6
TOSEL - V.10
RADBRUCH - VIII. 17 TROPER - X.l, XIII.3.2
RAMOS FILHO - VI. 5
RAPOPORT - VI.8 ULPIANO - DÍ.20, XI.2
REALE - 11.18
REICH - IV.8 e 9, V.9, VIII. 18
VALADÉS - XII.7
RESTA - V.14
VALENTIN - XII.5
RIBEIRO - VIII. 13
van der KERCHOVE - 11.25, III.7
RIPERT - V. 18, VIII.16 (nota)
VERNENGO - 1.22
RIVERO - V.18 e 19
VIGORITA T X.18
ROSCOE POUND - 1.2
VILELA, Oriando - XI. 1
ROUSSEAU - XI .7
VINCENT - II.2, 11 e 12
RUI BARBOSA - XVI. 1
RUIZ - IV, 19, VI.3 e 6 VIRGA - XVII. 10
von IHERING - 1.5, 9, 10, 14 e
18, HI.4, IV.8, 14 e 20, V.16,
SANTAMARÍA PASTOR, Juan VII. 1, VIII. 12, X.3
Alfonso - XVII.9
von STEIN - VIII.4
SA im ROMANO - IV. 12, X.7
SARTRE - 11.23, JX.ll
WARAT- VIII.7 e 10
SATTA, Salvatore - XVII.2
.W E B E R ,- III.3, IV.4, 6 e 8, V.3,
SAVATIÉR - V.18,. VIII. 16 (nota)
VI.7, VIII. 11 e nota 2
SCHMIDT, Conrad — II .3 e 6
■WIEACKER - II. 12, IV.8
SCHMITHOFF - 11.12
WIENER - VIII. 16 (nota)
SCHMITT - 1.2, X .l e 18, XII.6,
XVI.6, XVIII.8, 13, 16, 19, 20, WOLKMER - VI .2
21 e 22 WRÒBLEWSKI - IX.20
SCHROTH - XV. 5
SEABRA FAGUNDES - IX. 1, 33, ZAGREBELSKY - 1.23 e 25, IV.2.
36 e 39, X. 18 IX.23
GRÁFICA PAYM
Tc!. (011) 4392*3344
paym@terrfl.com,br

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