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O QUE SABEMOS SOBRE JESUS DE

NAZARÉ: AS FONTES

1 Introdução

Na história da humanidade, por mais


de 2000 anos, existiram pessoas que
foram fascinadas por Jesus e, nunca
como em nossos dias, apareceu sobre ele
uma quantidade tão grande de livros,
reportagens em revistas, filmes e
programas na TV. Mesmo na nossa época
secularizada, numa civilização pós-cristã,
mas que ainda vive de uma tradição
cristã, a figura de Jesus não pertence ao
passado; ele continua tão atual como
outrora. Apareceram, inclusive, teorias
extravagantes sobre Jesus, onde ele foi
apresentado de maneiras muito diversas:
um sábio como Buda, um reformador
como Zaratustra, um moralista como
Confúcio, um profeta como Maomé, um
hippie, um revolucionário, um iluminado,
um sonhador, um organizador da
sociedade, um anarquista e como chefe
do culto da Nova Era (New Age).
2

Consideramos a seguir apenas alguns


aspectos que podem nos ajudar a
conhecer um pouco mais a verdadeira
identidade histórica de Jesus de Nazaré,
mesmo estando persuadidos de que o
Jesus da história1 e o Cristo da fé2 são
uma mesma e única pessoa3. Será levado
em conta aquilo que foi dito de Jesus por
testemunhas que viveram no seu tempo e
no início do cristianismo. A questão de
fundo é: o que podemos saber dele com
precisão? Portanto, não serão
considerados aspetos de sua vida pública
e nem as temáticas fundamentais do seu
ensinamento.
1 É o Jesus terrestre como é conhecido através da pesquisa
puramente histórica, sem recorrer à fé. Existem algumas
conclusões históricas a respeito de Jesus: o fato que era
judeu, que anunciou o Reino, que realizou milagres, que
narrou parábolas e que foi crucificado em Jerusalém sob
Pôncio Pilatos.
2 Expressão que quer indicar a diferença que existe entre os

resultados provenientes de um estudo puramente histórico


de Jesus e a posição da fé que aceita Jesus como Filho de
Deus e Salvador do mundo.
3 A distinção entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé” não

é própria do Novo Testamento nem da Igreja primitiva. Ela


só aparece e se desenvolve no mundo moderno, quando se
radicalizam as exigências de cientificidade, especialmente
no campo da história. Esta distinção aparece dentro de um
contexto polêmico.
3

Nos dias de hoje é fácil saber muitas


coisas a respeito de uma pessoa pública
(governador, presidente, etc.), mesmo
sem nunca ter falado com ela
pessoalmente. Olha-se a TV, livros e
jornais são lidos diariamente. Mas Jesus
pertence a um outro “mundo”. Ele viveu
há muito tempo, numa cultura diferente
da nossa e num país geograficamente
longínquo. No seu tempo não existiam
jornais e nem TV. Mesmo para aqueles
que sabiam ler, os livros copiados à mão
eram sempre um luxo e adquiri-los
implicava um custo economicamente alto.
Por outra parte, muitos dos livros
escritos na antiguidade não chegaram até
nós: por exemplo, foram perdidos pelo
menos a metade dos escritos do grande
historiador romano Tácito4.
Nós sabemos relativamente pouco até
dos grandes líderes políticos do tempo de
Jesus. Júlio César5 escreveu as memórias
4 Historiador latino (Roma, 55-120 d.C.), autor de Anais:
Histórias; Sobre a origem e posição da Germânia;
Diálogo sobre os oradores.
5 Estadista e general romano (Roma, 101-44 a.C.).
Historiador e escritor, César deixou, principalmente: De
bello gallico (sobre a guerra da Gália) e De bello civili
4

das próprias campanhas militares e


Tácito nos deixou uma descrição da vida
na corte imperial. Mas Jesus não foi uma
grande figura política e não escreveu
nenhum livro.
Do ponto de vista do ambiente literário
do seu tempo, Jesus poderia inclusive
nunca ter existido. Ele foi uma homem de
condições modestas, era dotado de uma
cultura elementar e viveu poucos anos de
popularidade como pregador itinerante.
Ele não pregou nem em Roma e nem em
Atenas, centros de cultura do tempo, mas
no meio de pessoas que pertenciam a
uma faixa social comumente desprezada
e na província mais oriental do império
romano: a Judeia. O único momento em
que ele conquistou notoriedade foi
quando os seus próprios concidadãos
convenceram o governador romano
Pôncio Pilatos que era necessário
condená-lo à morte.
Por que um homem semelhante a esse
deveria deixar algum sinal nas páginas da
história? Como poderemos conhecer
alguma coisa de Jesus?
(sobre a guerra civil).
5

Em todos os tempos foram feitas


tentativas de escrever uma biografia
coerente da vida de Jesus. Ninguém
conseguiu. Neste sentido deve-se dar
razão a J.-M. Lagrange6, quando diz ser
impossível compor uma biografia
histórica de Jesus Cristo, com valor
científico. Esta impossibilidade deve-se à
natureza das fontes, que enquanto não
cristãs, são muito poucas, e enquanto
cristãs, constituem um gênero de
conhecimento histórico muito particular.

2 Jesus nos escritos não cristãos


2.1 Historiadores judeus

O silêncio dos contemporâneos de


Jesus é quase total. Este silêncio
surpreende-nos bastante, se bem que
nada revele de anormal. A existência
pública de Jesus foi breve e terminou por
um suplício ignominioso. O único escritor
não-cristão contemporâneo de Jesus que
6 Marie-Joseph LAGRANGE (1855-1938). Dominicano,
exegeta e professor de história da Igreja e filosofia em
Salamanca e Tolosa. Contribuiu de modo decisivo no
desenvolvimento do método histórico-crítico na exegese
católica. Obra principal: O método histórico (1903).
6

nos oferece informações sobre ele é o


judeu Flávio Josefo7, historiador muito
bem documentado. Mas o seu
testemunho é muito limitado e
dificilmente verificável. Ao longo dos
vinte oito volumes que escreveu sobre a
guerra judaica, escritos pelo fim do
primeiro século d.C., encontram-se
apenas duas passagens que se referem a
Jesus. Ele escreveu para leitores
romanos e não tinha nenhuma razão para
se interessar por um personagem
suspeito em Roma e pelo qual ele
próprio, sem dúvida, não tinha grande
admiração.
Flávio Josefo fala de uma maneira
honrosa da condenação à morte violenta,
no ano 62 d.C., de Tiago “o irmão de
Jesus, o assim denominado Messias”8,
mas não fornece nenhuma outra
informação a respeito do próprio Jesus.
Numa passagem precedente ele havia
escrito um breve parágrafo sobre esse
Messias. O problema é que as obras de
7 Historiador judeu (Jerusalém, 37 d.C. - Roma, 100), autor
de As Antiguidades judaicas e A História da Guerra dos
Judeus.
8 As Antiguidades Judaicas, XX, 2000.
7

Flávio Josefo foram conservadas pelos


cristãos e é comumente admitido o fato
que a passagem sobre Jesus é o
resultado de um acréscimo àquilo que
Flávio Josefo havia originariamente
escrito. Ele fala de Jesus de um modo
que somente um cristão o faria, e Josefo
não era cristão. Em 1971, o prof. Pinés, da
Universidade hebraica de Jerusalém,
descobriu numa obra árabe do século X,
uma versão diferente daquela das
edições clássicas, e este seria o texto
original escrito por Flávio Josefo, que diz
o seguinte:

Naquela época vivia um sábio de


nome Jesus. Sua conduta era boa, e
era estimado por sua virtude.
Numerosos foram os que, entre os
judeus e outras nações, se tornaram
seus discípulos. Pilatos condenou-o
à crucifixão e à morte. Mas os que se
haviam tornado seus discípulos não
deixaram de lhe seguir o
ensinamento. Ele contaram que lhes
aparecera três dias após sua
crucifixão e estava vivo. Era talvez o
8

Messias de quem os profetas


narraram tantos fatos maravilhosos.

Os estudiosos discutem sobre aquilo


que Josefo realmente escreveu. Como
conclusão de toda a discussão, pode-se
dizer que é muito provável que Josefo
tenha escrito alguma coisa sobre Jesus
de Nazaré, porque do contrário as suas
referências a “Jesus o assim chamado
Messias”, ficariam no ar. Entretanto não
podemos saber com certeza como ele
tenha descrito Jesus.
Além destas referências de Flávio
Josefo, existem pouquíssimos
testemunhos sobre Jesus por parte de
escritores não cristãos contemporâneos
ou quase contemporâneos e mesmo
aquilo que temos, provém de gerações
sucessivas.

2.2 Historiadores romanos

A mais antiga menção a respeito de


Jesus por parte de um escritor romano
encontra-se em Tácito (por volta de 115
d.C.), onde descreve a perseguição do
9

Imperador Nero contra os cristãos. Para


explicar quem eram estes “cristãos”, ele
diz que na Judéia, aquele que tinha dado
o nome a esta seita, Cristo, foi condenado
à morte, quando Tibério era imperador,
por ordem do procurador Pôncio Pilatos.
Isto é tudo. Tácito provavelmente repetiu
aquilo que os cristãos do seu tempo
diziam sobre as próprias origens.
Quase no mesmo período, também
Suetônio9, acenou ao fato de que em
Roma, sob o poder de Nero, foram
“sujeitos ao suplício os cristãos, raça de
homens com uma superstição nova e
maléfica”, mas não acrescentou nada
sobre as suas origens. Plínio, governador
da Bitínia (hoje parte da Turquia), fala dos
problemas que os cristãos lhe estavam
causando, mas a única menção de Jesus
na sua longa carta é que eles cantavam
“um hino a Cristo como se fosse um
deus”. Este texto não nos oferece
conteúdo suficiente para um

9Historiador latino. Escreveu Vidas dos doze Césares (de


César a Domiciano), antologia de fatos históricos
pitorescos.
10

conhecimento de Jesus como figura


histórica.

3 Jesus na tradição cristã


3.1 Evangelhos apócrifos

Ao longo do tempo, muitas coisas


foram acrescentadas àquilo que se
encontra nos quatro evangelhos. Às
vezes ficamos surpresos em descobrir
que muitas coisas, ditas e repetidas por
todos, não se encontram na Bíblia. Por
exemplo, os textos dos evangelhos não
nos dizem que Jesus nasceu numa
estrebaria; dizem somente que Jesus foi
colocado numa manjedoura. Também não
afirmam que os magos que o visitaram
eram três, nem cita os nomes, que eram
reis, e menos ainda que um era negro. As
tradições sobre Jesus foram ampliadas e
interpretadas no decurso dos anos, às
vezes acrescentando pias fantasias e
outras vezes deturpando o sentido.
A partir do segundo século d.C. temos
muitos escritos judaicos e cristãos que
narram fatos sobre Jesus e fornecem
informações a respeito do seu
11

ensinamento. Em geral esses livros são


classificados com o nome de
“Evangelhos Apócrifos10”, que se
constituem de escritos muito
diversificados. Apresentam doutrinas
estranhas e até mesmo heréticas. Nesses
textos, com algumas variações, pode-se
encontrar narrações que coincidem com
as do Novo Testamento.
Pode-se perguntar se é possível
encontrar dados autênticos no meio
desta fecunda proliferação de escritos.
Teriam conservado alguma coisa do
ministério histórico de Jesus que os
evangelhos não registraram? Isto é
possível. A conclusão do evangelho de S.
João diz que “há muitas outras coisas
que Jesus fez e que, se fossem escritas
uma por uma, creio que o mundo não
poderia conter os livros que se
10São denominados apócrifos (que significa escondidos),
uma série de escritos que remontam ao judaísmo tardio e
aos primeiros séculos do cristianismo. Diz-se, entre os
católicos, dos escritos de assunto sagrado não incluídos
pela Igreja no Cânon das Escrituras autênticas e
divinamente inspiradas. Os protestantes chamam de
apócrifos os livros, tanto do Antigo como do Novo
Testamento, que os católicos preferem chamar de
deuterocanônicos.
12

escreveriam” (21,25). Mesmo se os


apócrifos foram escritos um século ou
mais após o tempo em que Jesus viveu,
muito daquilo que ele disse e fez pode
não ter sido registrado pelos evangelistas
e sim ter sido recordado e incluído com
fidelidade em outros livros escritos sobre
ele. O problema é como provar se esses
escritos são historicamente verdadeiros.
Muito daquilo que está contido nesses
livros é claramente legendário ou se
destina a sustentar algumas novas
doutrinas, sobretudo o gnosticismo11,
doutrina que tem alguns pontos em
comum com as idéias que hoje são
sustentadas pela Nova Era.
Porém, uma parte desse material foi
definido como histórico, especialmente
algumas citações do “Evangelho de
Tiago”. Trata-se de uma coleção de
sentenças de Jesus que foi descoberta
no Egito em 1946, como parte de uma
coleção de antigos escritos gnósticos.
Algumas dessas sentenças do Evangelho
11Ecletismo filosófico-religioso surgido nos primeiros séculos
da nossa era e diversificado em numerosas seitas, e que
visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o
sentido mais profundo por meio da gnose.
13

de Tiago são muito semelhantes com


aquelas que se encontram nos
Evangelhos do Novo Testamento,
enquanto que outras são claramente
gnósticas (heréticas).

3.2 Os Evangelhos do Novo Testamento

Se o nosso conhecimento sobre Jesus


tivesse por fundamento somente as
fontes até aqui consideradas, então
poderíamos concluir que ele foi um
visionário arrebatador de multidões. Este
não é, porém, o fundamento do
cristianismo.
O fundamento está naquilo que até
agora ficou fora da nossa consideração e
que qualquer estudioso da história deve
reconhecer como testemunho primário
sobre Jesus: os quatro livros que falam
dele, escritos pelos seus discípulos, e
que são conhecidos como os quatro
evangelhos do Novo Testamento. A maior
parte daquilo que sabemos hoje a
respeito de Jesus, procede destas fontes.
No mundo antigo, não era coisa rara
que as biografias dos grandes filósofos
14

ou chefes religiosos fossem escritas


pelos seus seguidores. As biografias
estavam difundidas no mundo grego e
romano. Em alguns casos, temos mais do
que uma obra a respeito de um único
personagem: por exemplo, existem
diversas narrativas sobre a vida de
Sócrates por parte de Platão e da parte de
Xenofonte12.
Os evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas estão intimamente ligados entre si.
Cada um deles nos apresenta uma
imagem própria da pessoa de Jesus,
mesmo que muita coisa seja comum
entre os três. Mesmo quando estes
autores narram os mesmos fatos, existe
às vezes um certo grau de independência
que pode se apresentar desconcertante
para aqueles leitores modernos que
querem suprimir todas as diferenças.
Quanto ao evangelho de João, deve-se
dizer que é tão diverso dos demais, que
seria quase legítimo perguntar-se se é

12Historiador, filósofo e general ateniense (430-355 a.C.),


um dos discípulos de Sócrates. Espírito mais curioso que
profundo, Xenofonte escreveu um tratado sobre Sócrates
(Memórias de Sócrates).
15

sobre o mesmo Jesus que ele está


escrevendo.
Portanto, nós possuímos testemunhos
sobre a vida e sobre os ensinamentos de
Jesus. Nós temos quatro coleções de
tradições sobre ele, memórias que devem
ter sido recolhidas e transmitidas por
muitos dos seus discípulos, antes que
fossem incorporadas nos livros, na forma
como chegaram até nós. Fazendo uma
comparação de Jesus com a maior parte
das figuras da antiguidade, nós temos
uma quantidade notavelmente abundante
de testemunhos antigos.

3.3 Veracidade dos Evangelhos

Qual seria a razão que nos leva a


deduzir que estas antigas narrações
sobre Jesus são historicamente mais
confiáveis do que aquelas que se
encontram nos “Evangelhos
Apócrifos”?13 Existem estudiosos que
apresentam dúvidas sobre o valor
13Podem ser citados: Evangelho dos Hebreus, Evangelho
de Pedro, Os Atos de Pilatos, Evangelho da Infância,
Evangelho de Nicodemos, Proto-Evangelho de Tiago,
etc.
16

histórico de grande parte daquilo que se


encontra nos evangelhos do Novo
Testamento. Alguns, como Rudolph
Bultmann, chegaram a afirmar que nós
estamos numa condição de conhecer
muito pouco sobre Jesus, além do fato da
sua existência.
Hoje em dia, a maior parte dos
especialistas não chega a tanto
ceticismo. Se por um lado se discute
sobre muitos ditos ou fatos particulares,
por outra parte existe hoje um acordo
geral sobre as linhas gerais do ministério
e dos ensinamentos de Jesus, da maneira
como são apresentados nos evangelhos.
Do ponto de vista histórico, são tidos
como confiáveis. Os evangelhos
apresentam a figura histórica de Jesus e
não somente a devoção dos seus
discípulos.
Para tanto, ocorre ter presente que o
período de tempo que vai da atividade de
Jesus e a redação das primeiras
narrações sobre ele, deve ter sido
bastante breve. Lucas inicia o seu
evangelho dizendo que já conhecia
muitas destas narrações, quando diz:
17

“Visto que muitos já tentaram compor


uma narração dos fatos que se
cumpriram entre nós - conforme no-las
transmitiram os que, desde o princípio,
foram testemunhas oculares e ministros
da Palavra...”(1,1-2). As narrações
transmitidas oralmente, segundo a nossa
experiência ocidental, não são muito
confiáveis. No antigo oriente, porém, a
tradição oral gozava de uma estima mais
alta do que aquela escrita: as histórias,
como as palavras, eram recontadas de
uma maneira inalterada através das
gerações, e entre os judeus isto
acontecia de um modo todo particular. De
qualquer modo, no tempo em que foram
escritos os evangelhos do Novo
Testamento, ainda vivia um grande
número de pessoas que estiveram
presentes durante a vida pública de
Jesus.
18

Podemos nos perguntar se tem alguma


importância o fato de todos os
depoimentos fundamentais sobre Jesus
procederem de fontes cristãs. É certo que
as narrações apresentadas não são
objetivas e imparciais. Os autores dos
evangelhos escreveram sobre Jesus
porque estavam convencidos que se
devia falar dele e queriam que outros
seguissem os seus ensinamentos. Os
que foram conquistados por Jesus
tiveram o cuidado de transmitir a verdade
sobre ele.
19

Concluindo, podemos dizer que não se


pode pretender conhecer Jesus como se
conhece algum outro personagem da
história. O estudo sobre Jesus deve estar
precedido da fé, pois as únicas fontes
que nos permitem conhecê-lo são
documentos cristãos, isto é, textos
escritos por pessoas que viam nele não
só um homem, mas Deus e que,
consequentemente, prestaram maior
atenção aos fatos sobrenaturais.
Portanto, o melhor caminho para saber
quem foi Jesus é empenhar-nos para que
a nossa vida seja uma nova edição da
história que Ele viveu na Palestina, há
quase dois mil anos.

4 Jesus de Nazaré: quando tudo começou

O primeiro anúncio sobre Jesus


começa narrando a sua história. Por isso
no ponto anterior vimos a presença de
Jesus Cristo na história e o que podemos
saber sobre ele a partir das fontes que
nos fornecem as informações. Vimos que
as fontes de informação são limitadas.
Consistem em algum dado proveniente
20

de escritos extra-bíblicos da antiguidade,


um certo número de detalhes presentes
nos evangelhos apócrifos, indicações
dispersas que aparecem nos escritos
neotestamentários fora dos Evangelhos
legítimos e aquelas que podemos
considerar autênticas tradições históricas
contidas nos próprios Evangelhos. Por
isso João Paulo II afirma:

Mas aquele grande acontecimento,


que os historiadores não-cristãos se
limitam a mencionar, adquire a sua
luz plena nos escritos do Novo
Testamento, os quais, apesar de
documentos de fé, nem por isso
deixam de ser, no conjunto das suas
referências, menos atendíveis como
testemunhos históricos14.

Disto tudo concluímos que Jesus


Cristo não é um mito, nem uma
personagem legendária e nem uma
invenção dos primeiros cristãos. Jesus,
que viveu no início do primeiro século da

14 JOÃO PAULO II. Tertio Millennio Adveniente, n. 5.


21

era cristã, foi uma pessoa histórica no


pleno sentido da palavra.
A seguir vamos ver os inícios da vida
de Jesus e o que significou para ele viver
na condição humana.

4.1 Os inícios

É muito complicado fazer uma


comparação da história bíblica com a
história conhecida do tempo de Jesus.
Jesus nasceu durante o reinado de
Herodes o Grande (37-4 a.C.) e isto
aconteceu antes que Quirino se tornasse
governador da Síria (6-9 d.C.), sob cujo
governo foi realizado o recenseamento
(Cf. Lc 2,1). É bem provável que tenha
havido um longo processo de
recenseamento, que começou sob o
reinado de Herodes e terminou no tempo
da nomeação de Quirino como
governador. Jesus, portanto, deve ter
nascido antes do ano 4 a.C., ano da morte
de Herodes. Mateus diz que Herodes
mandou matar todos os meninos de dois
anos para baixo (Cf. Mt 2,16). Segundo
22

esta referência, o nascimento de Jesus se


deu no ano 6 a.C.

4.2 Infância de Jesus

Os evangelistas Mateus e Lucas


iniciam o seu Evangelho situando-a cada
qual num lugar diverso. Marcos não faz
nenhuma referência ao nascimento e
infância de Jesus; ele entra quase que
imediatamente no ministério público de
Jesus. O evangelista S. João vai a um
outro extremo: situa o seu cenário além
da dimensão histórica. Numa frase breve
e incisiva ele diz que “a Palavra se fez
carne” (1,14). Esta afirmação suscita a
pergunta: como e em que circunstâncias
isto aconteceu? Mateus e Lucas nos dão
a resposta. Embora narrando o
nascimento de Jesus de modo diferente,
as duas narrativas se complementam.
Naquele tempo existiam pessoas
devotas entre os judeus que esperavam
impacientemente a vinda do Messias (que
significa ungido). As suas expectativas
tinham raízes nas profecias do A. Testa-
mento e tinham como centro espiritual a
23

cidade de Belém. Ninguém, porém,


poderia imaginar que Jesus nascesse nas
condições em que de fato nasceu.
O fato de José e Maria não terem
encontrado hospedagem não deve nos
surpreender. Afinal, estava em curso um
recenseamento, e todos deviam deslocar-
se para a sua cidade de origem e por isso
todas as hospedarias foram logo
ocupadas. Se a manjedoura, que José en-
controu, estivesse junto a um humilde
lugar para peregrinos, ou fizesse parte de
uma gruta transformada em habitação,
como algumas tradições sugerem, isto é
impossível demonstrar. Tradicionalmente
se admite que fosse uma estrebaria, mas
de fato nenhuma estrebaria é mencionada
nos evangelhos. É somente uma dedução
da palavra “manjedoura”, porque na
antiga Palestina, geralmente os animais
eram mantidos em estrebarias, junto com
a habitação das pessoas. O que os
evangelistas dizem com clareza é que o
menino Jesus nasceu em condições de
extrema pobreza (Cf. Lc 2,7).

4.3 Quatro modos diferentes


24

No registro que Lucas faz do anúncio


do anjo Gabriel a Maria, tanto a
concepção, como a criança que devia
nascer, foram fruto de um desígnio
sobrenatural. No nascimento de Jesus
não aconteceu nada de extraordinário.
Sua mãe passou pela dor do parto e
experimentou a alegria da qual todas as
mães do mundo têm experiência. Isto foi
tudo normal e natural. Mas o modo da
concepção de Jesus, segundo a Bíblia,
foi diverso: foi fora do comum, porque foi
sobrenatural. Isto é o que os cristãos
entendem quando falam do “nascimento
virginal”.
A importância desta afirmação consiste
naquilo que ela nos diz de Jesus, mais do
que aquilo que nos diz de sua mãe. O
centro é Jesus. Maria deve ser honrada e
amada. Jesus deve ser adorado e
glorificado. É certo que a “encarnação”,
pela qual o Filho de Deus se tornou o
homem Jesus, representa um problema
para a razão humana. De que modo uma
pessoa pode ser ao mesmo tempo
verdadeiro Deus e verdadeiro homem? A
25

nossa compreensão deste problema é


iluminada quando levamos em conta a
maneira como Jesus nasceu. Ele nasceu
de um modo natural: isto destaca a sua
humanidade; verdadeiro homem. Mas ele
foi concebido de maneira sobrenatural;
verdadeiro Deus: isto é possível admitir
se nós cremos também na sua divindade.

4.4 Importância e sentido da encarnação

Pela encarnação, Jesus assume a


matéria frágil da qual todos nós somos
feitos. Assume e associa a si uma
natureza humana concreta e completa:
“Invisível em sua divindade, tornou-se
visível em nossa carne” (Pref. do Natal).
Aceita ser homem, sem deixar de ser
Filho de Deus. Isto teve consequências
muito concretas na sua vida. A
encarnação impôs a Jesus um leque de
limitações, mas também lhe deu muitas
chances.

4.5 Vejamos algumas limitações


26

Jesus nasceu e cresceu no seio de


uma pequena família do interior, em
Nazaré, vila obscura e sem notoriedade.
Passou a maior parte de sua vida no
anonimato, sem que ninguém
suspeitasse do seu mistério e de sua
missão. Dedicou-se, junto como o seu pai
adotivo s. José, a um trabalho humilde e
rude que apenas lhe rendia o sustento
familiar. O documento do Concílio
Vaticano II Gaudium et Spes (alegria e
esperança), diz que Jesus “trabalhou com
mãos humanas, pensou com inteligência
humana, agiu com vontade humana,
amou com coração humano” (n. 22).
Ele teve uma vida terrena muito curta.
O que pode fazer uma pessoa que
pretende reformar o mundo e que morre
ao redor dos 30 anos? E mais: não
ultrapassou de três anos o tempo que se
dedicou à sua missão. Ele veio para ser o
centro e o salvador da história humana
que contava já com dezenas e até
centenas de milhares de anos e que se
estenderia para um futuro de milhares ou
talvez milhões de anos. Em relação à sua
missão universal, atingiu uma
27

limitadíssima área geográfica e um


número muito reduzido de pessoas.
Assumiu a língua e a cultura dos
judeus, sem importância em relação ao
mundo habitado daquela época. Ele teve
que aprender a falar como qualquer
criança judia do seu tempo.
Uma curiosidade a respeito do Jesus
histórico é saber qual a língua que ele fa-
lava. No tempo de Jesus, saber falar uma
única língua não era suficiente, nem
mesmo para os romanos, que eram os
dominadores do império. A língua grega
era falada em diversos dialetos, sendo o
mais comum conhecido como “koiné”.
Como era natural, cada região ou
província do império romano tinha a sua
própria língua. Na Palestina havia duas: o
hebraico, a antiga e tradicional língua
bíblica usada na sinagoga, e o aramaico,
a língua quotidiana, quase tão antiga
como o hebraico. Toda a criança judia
que frequentava a escola, aprendia o
hebraico e o aramaico. É bem provável
que Jesus tenha usado o aramaico como
língua normal e quotidiana e também
conhecesse o grego. Para isso podemos
28

usar o testemunho do N. Testamento.


Existem pelo menos duas ocasiões que
aludem a uma possível conversa em
grego.
Certa ocasião, segundo nos diz Marcos
(7,26), Jesus encontrou uma mulher
grega, siro-fenícia de nascimento.
Provavelmente ela não sabia falar o
aramaico ou o hebraico. Jesus também
falou com Pôncio Pilatos, que falava
grego e latim. Por isso devemos
novamente concluir que Jesus conhecia
também o grego. A língua grega fazia
parte da experiência quotidiana de Jesus
e dos seus discípulos.

4.6 Vejamos as chances da encarnação

Assumindo a natureza humana, Jesus


de alguma forma assume a cada homem.
A distância infinita que existia entre Deus
e a criatura, com a encarnação
desaparece. O máximo de distância
tornou-se o máximo de proximidade e
identificação. Jesus passa a fazer parte
da nossa raça, da família humana.
29

Comunica-se com palavras, gestos e


atitudes humanas. O que ele nos diz de
Deus, a quem conhece perfeitamente, é
compreensível até pelos mais simples e
ignorantes. O Deus invisível torna-se
visível, palpável, audível. É com
entusiasmo que João diz: “O que era
desde o princípio, o que ouvimos, o que
vimos com nossos olhos, o que
contemplamos, e nossas mãos apalparam
da Palavra da vida” (1Jo 1,1).
Na vida terrena assume toda a
experiência humana, menos o pecado.
Evidentemente, experiência limitada a um
homem que viveu apenas 30 anos. Mas
nesta curta vida, passa pela experiência
da pobreza, do exílio, do trabalho duro,
da ingratidão, da rejeição, da condenação
injusta, da tortura, da angústia, do
abandono e da morte.
Também experimentou as alegrias
humanas, o amor familiar, a amizade, a
paz da oração, a contemplação da
natureza.

4.7 Conclusão
30

Concluindo este ponto, podemos dizer


que a história da existência humana de
Jesus é a história da presença de Deus
no meio de nós. O nosso desejo de saber
quem é Deus nos leva às vezes a
imaginar um Deus fantástico, um Deus
como nós desejaríamos que ele fosse ou
como tememos que possa ser. Em Jesus,
Deus saiu fora do seu mistério e
apresentou-se a nós com uma identidade
humana, para que nós pudéssemos
conhecê-lo. “Ele é a imagem do Deus
invisível” (Cl 1,15).

Prof. Ângelo Lôndero

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