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A poética da memória e o efeito-arquivo


no trabalho de Leila Danziger

Luiz Cláudio da Costa


O artigo busca compreender o efeito-arquivo presente na arte contemporânea,
analisando trabalhos da artista plástica Leila Danziger, cuja obra mostra que se apro-
priar de dispositivos é realizar no lugar próprio de práticas de poder um espaço
discursivo crítico.
Arquivo, arte contemporânea, arte e espaço, arte e memória.

A arte contemporânea interessa-se por ob- a arte toma a matéria-documento como a


jetos do mundo e da cultura, por aconteci- ponte para ousar relacionar-se reflexivamen-
mentos sociais e geopolíticos, apropriando- te com dispositivos que não são originalmen-
se de dispositivos discursivos externos a seu te os seus.
próprio saber e até a sua instituição. O pro-
cedimento da apropriação, tão comum nos O projeto a que Rosângela Rennó2 deu iní-
trabalhos de arte atualmente, é, entretanto, cio a partir de 1992 envolvendo recortes de
criterioso quando reflete a consciência de jornais com pequenas histórias impressas
que toda matéria assimilada é um documento sobre fotografias e utilizando processos de
da máquina de discursos, de visibilidades e digitalização recebeu o nome de Arquivo
de afetos do contexto do qual procede. Isso Universal. Tomar posse de material de ar-
significa algo simples, mas que constitui es- quivos, da memória individual ou institucional,
crupuloso ponto de partida da política da é a estratégia pela qual Rennó problematiza
arte na contemporaneidade: toda apropria- mecanismos de identificação e de classifica-
ção e consequentemente sua transferência ção. Traduzidas por processos de transfe-
contextual já configuram uma leitura e pro- rência de um contexto a outro, de um su-
vêm de interesses que acarretam definições porte a outro, as imagens provocam peque-
éticas. Arthur Danto argumenta que desde nos deslocamentos afetivos, estéticos e/ou
Duchamp e, especialmente, com o Fluxus e políticos. Rennó revela ainda dispositivos de
a Pop, a arte insiste no desejo de transfigu- visibilidade ao apropriar-se de negativos e
rar o lugar-comum, colecionando artefatos de cópias fotográficas encontrados em fei-
do cotidiano e os transformando em obras ras de antiguidade, álbuns pessoais, jornais
de arte que organizam seus próprios “arma- diários. Comentando o trabalho Bananeira,
zéns”.1 Esse interesse da arte em arquivos e da série Frutos estranhos, com o qual a ar-
coleções remete antes a uma vontade de tista cria um efeito de movimento em ima-
mapear e articular saberes e campos através gem originalmente instantânea, Antônio
de processos simultaneamente conceituais Fatorelli3 chama a atenção para “o modo
e expressivos. Atravessada por domínios dis- particular de contrair e de dilatar o instantâ-
tantes e à procura de subjetividades outras, neo” na pós-produção digital”. Alterando a

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temporalidade ou conjugando imagens e internos da instituição arte, como o fazem
textos, Rennó produz um inventário de prá- os americanos dos anos 80 ainda vinculados
ticas, mas também de percepções e afetos à chamada crítica institucional, como Andrea
de diversos contextos distintos. Fraser, Renée Green e Fred Wilson, prefe-
rindo atuação antes transversal, que confron-
Ricardo Basbaum também tem utilizado ta outros dispositivos e subjetividades. Eles
procedimentos que inventariam, arquivam optam por fazer circularem visibilidades e
e criam deslocamentos de informações, im- discursos provenientes de outros campos e
pressões e afetos desde o projeto da marca contextos impregnados por afetos e expres-
Olho, exposto na mostra Como vai você são poética e artística, assim criando espa-
geração 80. Envolvendo uma dinâmica de ços que potencializam relações inesperadas
publicidade que contaminava o público, a entre forças e sentidos antes invisíveis ou
marca Olho multiplicava-se em adesivos grá- indizíveis. Articulando também outras forma-
ficos, filipetas e cartazes, entre outros dispo- ções discursivas como a biblioteca e o jornal
sitivos comunicacionais. Esse projeto contém diário, Leila Danziger gera um espaço crítico
as origens do programa integrado de traba- transversal para o campo da arte, vinculan-
lhos conhecido pela sigla NBP – Novas Ba- do-o à cultura das comunicações, à história e
ses para a Personalidade –, composto por à literatura, em trabalhos que alcançam des-
textos, diagramas, objetos e ambientes locar conjuntos inteiros de discursos e afetar
construídos sobre a forma hexagonal criada poeticamente visibilidades não artísticas.
pelo artista. Em 2007, Basbaum cria o arqui-
vo-site Você gostaria de participar de uma Em texto publicado no folder da exposição
experiência artística?4 e mapeia vidas geo- Pequenos impérios (Galeria Cândido
graficamente dispersas no mundo que acei- Portinari, UERJ, 1999),5 Leila Danziger se
tam a proposta-base do projeto de experi- pergunta: “A que categorias submeter tudo
mentar, cada um a sua maneira, o objeto aquilo que sobra, mas guarda ainda possibi-
NBP de ágata com as dimensões de 80 x lidades não realizadas? Sob que critérios reu-
125 x 18cm. Como uma espécie de artista- nir, relacionar, classificar?” Pequenos impéri-
comissário que catalisa através de seu obje- os expunha livros feitos a partir de proces-
to o conjunto das expressões, afetos e do- sos serigráficos sobre impressos em papel e
cumentações dos participantes, Basbaum dispostos sobre mesas de madeira com lâm-
organiza um diagrama no site e relaciona padas elétricas que pendiam do teto. Todos
aquelas vidas, tramando uma rede e entrela- os elementos dessa exposição tinham dimen-
çando histórias de outro modo não sões variadas, o que, quanto às lâmpadas,
conectadas. O arquivo da internet de Ricardo significava potências luminosas diferenciadas,
Basbaum permite ao cibernauta escolher suas e, quanto aos livros e mesas, caráter, isto é,
entradas e urdir suas próprias relações en- corporeidade, massa e peso. Ainda que não
tre as ações, as imagens e as narrativas dos oculto, um dos livros buscava resistir em sua
participantes, tecendo seus caminhos e aces- materialidade, apesar de cerrado numa cuba
sos às subjetividades e visibilidades de óleo de linhaça. Esses trabalhos, surgidos
cartografadas. São 118 experiências relata- de outros mais antigos e não concluídos,
das em várias línguas: português, inglês, es- tomados do arquivo da própria artista, guar-
panhol e alemão. davam por isso mesmo certa memória
afetiva. Por outro lado, Pequenos impérios
Esses artistas brasileiros rejeitam insistir ape- utilizava palavras e imagens retiradas de jor-
nas na exploração disciplinar dos sistemas nais diários, de um espaço público de infor-

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mações. Interioridade e exterioridade arti- quivo, para a história e para a memória en-
culavam-se nas sobras de um tempo que quanto espaço de uma ferida. Dito de outra
aspira à memória, mas enfrenta o atrito do maneira, Danziger organiza o material sensí-
esquecimento. A membrana densa desses vel sob perspectiva conceitual e política. Se
papéis volumosos, organizados na forma de não há sequer uma imagem fotográfica no
livros, parecia conservar as cicatrizes de um painel (nos livros há imagens), há o procedi-
tempo insubordinado às separações de pú- mento indicial da impressão. O processo da
blico e privado, prolongando apenas a pre- fotogravura instaura uma referência pelo
cariedade própria à memória. Danziger co- contato do papel com a matriz de metal
menta em texto recente que dá continuida- preparada com a emulsão fotossensível. A
de às reflexões da época da exposição Pe- matriz em metal cria sensações que a
quenos impérios: “Se cada resto, cada ‘pe- serigrafia em tela certamente não produzi-
queno império’ é um arquivo, cabe pergun- ria, pois os sulcos que o ácido escavou na
tar o que está arquivado na matéria que os placa para inscrever aqueles nomes são as
constitui e sobre o modo mesmo como são feridas impressas no papel. A marca da cica-
constituídos”.6 triz deixada no metal da gravura era o índice
de um acontecimento profundo que seria
Entre 1996 e 1998, Leila Danziger produziu impresso na superfície do papel. À
uma série de trabalhos em que listava no- materialidade corporal dos papéis tratados
mes de judeus alemães, com o mesmo so- com óleo de linhaça por Leila Danziger, im-
brenome da artista, pessoas desaparecidas pregnam-se os índices impressos dos crimes
nos campos de concentração da Segunda nazistas perpetrados em Auschwitz.
Guerra Mundial. A série Nomes próprios é
composta por 76 gravuras de matrizes em Listando junto aos nomes algumas informa-
metal e um conjunto de 12 livros feitos so- ções como data e local de nascimento e
bre imagens extraídas de jornais alemães, morte, a série de gravuras de Danziger
reproduzidas em serigrafia. Os livros, encor- desdramatiza o evento histórico sem nem
pados em sua materialidade com óleo de mesmo tentar dar imagens aos nomes va-
linhaça, foram mostrados junto às gravuras zios. Tampouco há narrações ou represen-
na exposição Nomes próprios.7 O painel tações de vidas. Há apenas a lembrança do
dessa exposição media 4,20m x 2m e reunia esquecido e os documentos-nome da feri-
todos os nomes extraídos do Livro da Lem- da sobre o corpo do papel, ferida que não
brança, guardado na biblioteca da comuni- cessa de doer e que, por isso mesmo, não
dade judaica de Berlim, em Charlottenburg. pode ser esquecida.9 O painel de Danziger
Nenhuma fotografia, nenhum desenho, ape- apenas toma aqueles nomes de um lugar
nas os nomes. Com a coleção desses no- próprio da memória: o arquivo da bibliote-
mes-documento retirados dos arquivos de ca em Charlottenburg. Mas na leveza do
Charlottenburg, Leila Danziger criava um papel com os nomes gravados, fantasmas
espaço de visibilidade no campo da arte vol- invisíveis parecem insinuar-se e criar um es-
tado para o esquecimento. Segundo a artis- paço outro. Ou seriam as palavras que se
ta, “estamos longe do esquecimento produ-
tornam imagens? Enquanto o observador se
tivo recomendado por Nietzsche como an-
delonga para ler as palavras vazias de senti-
tídoto contra o historicismo”.8
do, um espaço de melancolia penetra os
Transcendendo a estética, em certa medida, nomes do frágil papel embebido em linhaça.
Danziger volta-se, com sua poética do ar- Com a demora da leitura de uma simples

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lista, ainda que longa, aumenta estrondosa- riência do tempo do visível.12 Mas nos Diári-
mente o silêncio que os nomes reverberam, os públicos de Danziger, o observador ex-
abrindo uma errância no vazio do tempo perimenta uma reviravolta do tempo, que
para imagens surgirem no pensamento. Re- se insinua sob perturbador silêncio entre pa-
ferindo-se ao trabalho de Leila Danziger lavras que antes parecem ocultar-se para per-
como uma “poética da memória”, Márcio mitir a um pensamento peregrino emergir
Seligmann-Silva10 argumentou que a artista com a percepção viva das imagens
“apresenta a memória traumática por meio consentidas.
de uma escritura que é tão corpórea quan-
to a nossa pele”. Empregando método extrativo, Leila
Danziger apaga as palavras do noticiário,
Em outra série da artista, Diários públicos, mantendo, entretanto, algumas imagens.
exposta pela primeira vez em 2004, no Es- Com carimbos, ela grava outras palavras –
paço Cultural Sérgio Porto, a fotografia apa- “Para-ninguém-e-nada-estar”, de um poema
rece como fantasma de um tempo mudo de Paul Celan; “Pensar em algo que será es-
de informações. Como um saber disciplinar quecido para sempre”, de Nós, os mortos,
da temporalidade do visível, a fotografia fi- de Denílson Lopes; “Vens abaixo em cha-
xou o instante da duração. Segundo argu- mas”, de um poema do Hölderlin; “Todos
menta o teórico e historiador da comunica- os nomes da melancolia”, fragmento da pró-
ção Maurício Lissovsky,11 o legado original pria artista – que estimulam a errância, a de-
da fotografia moderna foi a visibilidade do mora, o esquecimento do tempo linear dos
instante como tempo de uma espera do ins- instantes velozes.
tante. Para o teórico, o tempo na fotografia
instantânea manifesta-se por seu ausentar- O tempo instantâneo e efêmero das notíci-
se: um refluir do tempo para fora da ima- as começa a flutuar, suspenso, atingido pelo
gem, deixando apenas o traço de sua retira- gesto que extrai as palavras com um único
da, o instante. Sem dúvida o tempo da es- golpe. A velocidade com que os momentos
pera que vai ao encontro de um “instante são substituídos no noticiário é aniquilada
decisivo”, como afirmaria Cartier-Bresson, era pelo golpe súbito que apaga o impresso. Fica
o que interessava à fotografia moderna em explicitada, assim, a vocação própria ao jor-
sua origem, ao se opor ao pictorialismo, que nal, o esquecimento. Como afirma
com suas intervenções e manipulações cria- Danziger,13 os jornais traduzem a falácia de
va o aspecto “artístico” de técnicas como o um tempo homogêneo, acumulando-se
desenho e a pintura. Rejeitando as interven- “numa massa de esquecimento, transfor-
ções de laboratório e defendendo o conta- mam-se em dejetos da atualidade”.
to direto com a realidade e a exploração de Um pensamento errante começa a flutuar e
recursos próprios como a escolha do a constituir outra experiência. É o sigiloso
enquadramento, da luz, das lentes, dos fil- espaço nômade do tempo que se abre di-
mes, dos papéis, a fotografia poderia assim ante daquele que observa esses jornais trans-
originar a ordem de um lugar específico en- figurados e cuja função de informar
tre as técnicas de produção de espaços visí- estranhamente desapareceu. As fotos, pri-
veis. Atualmente, através de um “olhar dire- vadas das legendas jornalísticas que tentam
to” de observação da realidade aprendida preencher o que elas não dizem, tomam a
com os fotógrafos modernos, os dispositi- força poderosa do silêncio e se articulam de
vos informacionais controlam nossa expe- viés com as palavras. Entre umas e outras,

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há somente a distância que permite um es- de exposição da fotografia e o lugar de sua
paço crítico penetrar e realizar uma visibili- guarda era o arquivo e não as paredes do
dade não aparente do dispositivo apropria- museu. Ela não pertencia ao arquivo da arte.
do. Transformando esses jornais pelas A fotografia pertencia até meados do século
investidas físicas sobre eles, Danziger expõe 19 ao discurso topográfico da geologia e não
e problematiza a cultura do esquecimento ao saber estético, cujo código visual de re-
conveniente aos meios de comunicação. presentação aplainada e comprimida transfor-
Abrindo fendas no arquivo da informação mou as vistas em paisagens. Foi só depois de
diária, faz atravessar nele o movimento da 1860 que a fotografia entrou verdadeiramente
dimensão poética do real. O tempo, que ha- para a instituição arte e passou a ter lugar no
via refluído para fora da imagem instantânea discurso da história da arte e nas paredes
dos jornais diários, penetra vazio como me- das galerias. Mais contemporaneamente,
mória sem lugar, ativando espaços críticos nos entretanto, segundo a autora, os especialis-
lugares próprios da cultura da informação. tas da fotografia aplicaram aqueles “concei-
tos fundamentais do discurso estético ao
A fotografia, guardando uma memória sin- arquivo visual”.14 A noção de “arquivo visu-
gular do visível, teve papel fundamental para al” no texto de Krauss remete tanto ao móvel
as poéticas críticas que aqui destaco por em que se guardavam e expunham as vistas
constituírem o efeito-arquivo que desloca quanto à noção de “formação histórica” pro-
sentidos e afetos estratificados. Rosalind veniente da teoria foucaultiana sobre os dis-
Krauss em O espaço discursivo da fotografia cursos e as visibilidades do saber em A ar-
afirma que em meados do século 19, o modo queologia do saber.

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Se o arquivo visual da fotografia foi absorvi- para tomadas contínuas. Todos temos uma
do pela arte, ele também apresentaria moti- câmera, nem que seja a do celular. Tudo é
vos de suscitar os interesse da instituição passível de ser fotografado e muitas vezes,
policial. A análise que Tom Gunning faz do continuamente. A toda hora clicamos para
processo de constituição da “sistematização ter uma imagem, uma lembrança. A enorme
de identificação fotográfica de criminosos do facilidade de produzir fotografias é equiva-
século 19” pode contribuir para a compre- lente à velocidade com que os dispositivos
ensão desta formação cultural que, com efei- são substituídos e continuamente consumi-
to, a fotografia ajudou a fundar, o arquivo. dos. A velocidade com que os equipamen-
Gunning analisa as rogues galleries (galerias tos surgem nas prateleiras das lojas é a mes-
dos vilões), coleções de fotografias dos pro- ma que os faz desaparecer. O excesso de
curados pela polícia, e mostra como o siste- imagens para nos fazer lembrar mostra a
ma policial reconhecia no novo procedimen- ansiedade e o medo do esquecimento. Com
to a técnica que “imitava a aplicação anterior os números de telefone guardados na agen-
da marcação a ferro quente” e como a aper- da dos celulares, já não precisamos lembrar
feiçoava tecnologicamente.15 A “própria na- nem mesmo dos números das pessoas mais
tureza da fotografia, sua precisão detalha- próximas. A cultura da memória é uma cul-
da e sua instantaneidade”, porém, ele alega, tura do esquecimento, pois transfere todas
criaram problemas de organização e proce- as informações para os dispositivos de ar-
dimento, pois faltava a construção de um quivamento. A produção artística crítica atual
método que pudesse utilizar a fotografia e é atenta a esse arquivo que ultrapassa a ins-
outros meios de descrição e mensuração fí- tituição arte, enquanto tecnologia que im-
sicas para fixar de modo permanente uma plica técnicas da era digital, mas também
identidade e individualizar uma pessoa.16 O conhecimentos e subjetivações.
sistema policial juntaria a antropometria, a
precisão óptica da câmera, um vocabulário O trabalho de Leila Danziger mostra que se
fisionômico refinado e a estatística. O estu- apropriar de imagens e discursos é assimilar
do de Gunning mostra que faltava ao siste- dispositivos de subjetivação, os quais deseja
ma de identificação fotográfica “a inclusão enfrentar com sua prática artística. Colecio-
em um arquivo de informações”; citando li- nando jornais, ela neutraliza o esquecimen-
teralmente as palavras de Alan Sekula, ele to; apagando imagens, faz ver figuras; gra-
afirma que “o artefato central desse sistema vando balbucios poéticos, impulsiona outras
não é a câmera, mas o arquivo”.17 falas. A artista articula uma experiência do
ver e do falar que ultrapassa o horizonte de
É notável a gigantesca proliferação atual de um campo do conhecimento e atravessa em
dispositivos de visibilidade e de circulação movimento indeterminado a fotografia, a
de imagens que incluem tanto os suportes informação, a cultura de massa, a poesia. O
de produção como os de arquivamento. Até olhar direto não tem mais lugar; busca-se nas
a era digital, o número de fotografias tiradas artes hoje o olhar de viés que, inventariando,
em um evento era normalmente reduzido, processa estratos do saber, círculos da me-
pois os filmes tinham número limitado de mória e afetos do pensamento. É nesse sen-
poses, e o preço da revelação era sempre tido que a reflexividade crítica contemporâ-
alto. Hoje, com a memória digital das câmeras nea se diferencia da autorreflexividade mo-
atuais podemos fotografar infinitamente um derna. Enquanto a reflexividade contempo-
evento. Existem dispositivos automáticos rânea quer abrir espaços poéticos no exer-

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cício heterogêneo de práticas apropriadas, a 8 Danziger, Leila. O jornal e o esquecimento. Ipotesi, Re-
autorreflexividade modernista vista de Estudos Literários, julho-dezembro de 2007,

problematizava as convenções de uma mes-


Juiz de Fora: Ed. UFJF, v.11, n.2:167-177. Disponível
em: http://www.revistaipotesi.ufjf.br/volumes/18/
ma linguagem, tornando-a sempre mais pró- cap16.pdf. Acesso em 22 de junho de 2009.
pria ao exercício daquele lugar ou campo. 9 A artista cita em seu artigo O jornal e o esquecimento a
Leila Danziger efetiva sua poética da memó- frase de Nietzsche, na qual o filósofo afirma que “ape-
ria exercendo e propiciando espaços de re- nas o que não cessa de doer permanece na memória”
sistência ao poder do esquecimento efetua- (Danziger, 2007, op. cit.:172).
do pelos dispositivos do arquivo da cultura 10 Seligmann-Silva, Márcio. Escrituras da memória e da his-
atual. tória. In _________ (org.). Palavra e imagem: memó-
ria e escritura. Chapecó: Argos, 2006:215-225.
Luiz Cláudio da Costa é professor adjunto na Uerj, atua 11 Lissovsky, Maurício. O tempo e a originalidade da foto-
na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas no Pro- grafia moderna. In Doctors, Marcio (org.). Tempo dos
grama de Pós-Graduação em Artes (Instituto de Artes/ tempos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
UerjJ), possui mestrado (1993) e doutorado em Comu-
nicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 12 Faço aqui referência ao título da exposição de Paul
(1999), coordena o Projeto Arquivar, núcleo do grupo Strand, Olhar direto, organizada pelo Instituto Moreira
da base do CNPq Tecnologias da arte: dispositivos, sis- Salles, em cartaz entre os meses de abril e julho de
temas e fissuras, do qual é líder e onde desenvolve suas 2009. O título é referência aos dois momentos-chave
atividades de pesquisa, incluindo a investigação atual, da obra de Strand: quando o fotógrafo estava ligado
intitulada “Poéticas do arquivo”. ao movimento da fotografia modernista em seu país, a
Straight Photography e quando produzia retratos que
aludiam ao lugar do fotógrafo através do olhar direto
para a câmera (Strand, Paul. Olhar direto. Catálogo da
Notas exposição. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles,
2009).
1 Danto, Arthur. O mundo como armazém: Fluxus e filo-
sofia. In Hendricks, Jon (org.). O que é o Fluxus? O 13 Danziger, 2007, op. cit.:172.
que não é! O porquê. CCBB, 2002 (Catálogo).
14 Krauss, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili,
2 Rennó, Rosângela. Rosângela Rennó: o arquivo universal 2002:40-59.
e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
15 Gunning, Tom. O retrato do corpo humano: a fotogra-
3 Fatorelli, Antônio. Reconfigurações da imagem. Comuni- fia, os detetives e os primórdios do cinema. In Charney,
cação oral proferida no Seminário Temático “Cinema Leo; Schwrtz, Vanessa, R (org.). O cinema e a inven-
como arte e, vice-e-versa”, simpósio ocorrido no XII ção da vida moderna. São Paulo. Cosac & Naify,
Encontro Internacional da Sociedade Brasileira de Es- 2001:48.
tudos de Cinema e Audiovisual – Socine, em 2008.
16 Gunning, op. cit.:57.
4 Para acessar o site do artista, vá ao endereço http//
www.nbp.pro.br. 17 Gunning, op. cit.:58.

5 Danziger, Leila. Pequenos impérios, folder de exposição,


Rio de Janeiro: Uerj/Departamento Cultural, junho de
1999. Disponibilizado em http://leiladanzigerportfolio.
blogspot.com/search/label/pequenos%20imp%
C3%A9rios. Acesso em 17.06.2009.
6 Ver portfolio on-line da artista: http://leiladanzigerportfolio.
blogspot.com
7 A série Nomes próprios (gravuras e livros) foi exposta na
Galeria Thomas Cohn, São Paulo (1998); na BBK,
Galerie, Oldenburg, Alemnha (2000) e integrou a
mostra coletiva itinerante WegZiehen (Ir embora),
organizada pelo Frauenmuseum, em Bonn, Alemanha
(2001/02).

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