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JÚ ONZE E VINTE E QUATRO E DZI CROQUETES: PERFORMANCES,

TEXTOS E CONTEXTOS DE DRAG-QUEENS, ATORES E DANÇARINOS, EM


GOIÂNIA – GO

Paulo Reis Nunes1


Orientação: Dr. Eduardo José Reinato

O presente artigo discorre a memória social do espetáculo “Jú Onze e Vinte e Quatro”,
apresentando corpos masculinos em diferentes contextos. A partir de um estudo
etnográfico de atores, dançarinos, performers que trabalharam como Drag-Queens no
show humorístico “Jú Onze e Vinte e Quatro” na cidade de Goiânia (GO) percebe-se
uma aproximação com as inquietações e performances do Grupo Dzi Croquetes (RJ).
PALAVRAS-CHAVE: Performance, Corpo, Paródia, Masculinidade, Gênero.

INTRODUÇÃO

Usando de entrevistas, relatos de atores e espectadores, tentamos aqui traçar uma


memória social do espetáculo que durou quase vinte e cinco anos em cartaz, observando
a produção e cenas existentes no referido espetáculo, percebendo os corpos não
convencionais de dançarinos e suas masculinidades.
Assim como Dzi Croquetes, “Jú Onze e Vinte e Quatro” enfrentou o preconceito
de gênero no palco, tornando a discussão de políticas públicas para o contexto teatral.
Sem dúvida, Júlio Vilela fez do seu humor irreverente uma escola para novos atores que
querem trabalhar como Drag-Queen.
Desta forma, quero me valer de que os fatos narrados coletivamente não podem
ser tidos como uma única verdade, mas que evidenciam maior probabilidade do como
ocorreu determinado fato, pois podem conter fissuras, ruídos, invenções e intervenções
em relação ao acontecimento, assim como o seu ponto de vista sobre determinada

1
Mestrando em Performances Culturais na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de
Goiás (EMAC-UFG/GO); Bolsista da Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG-
GO); Pós-Graduando em Gênero e Sexualidade, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-
UERJ/RJ); Pós-Graduado em Filosofia da Arte, na Universidade Estadual de Goiás (UEG-GO);
Licenciado e Bacharel em Artes Cênicas (UFG-GO); Professor no Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda
da Arte, da Secretaria de Educação (SEDUC-GO); E-mail: (pauloreisnunes@hotmail.com)
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questão. Segundo Jô Gondar (2005, p. 18), “a memória é algo que os homens constroem
a partir de suas relações sociais, e não a verdade do que passou ou do que é”.
Usando desta narrativa, me faço valer das narrativas e fatos ocorridos durante a
existência do espetáculo “Jú Onze e Vinte e Quatro”, criado na década de 1980 e
findado em 2005, com a morte do ator e diretor Júlio César Vilela. A partir de então, a
apresentação do espetáculo passou a ser do ator e Drag-Queen Leleco Diaz, alterando o
nome do espetáculo para “Trupe do Jú”, adaptando todo o roteiro do espetáculo,
tentando não perder a essência do espetáculo original. Retomo Gondar para atentarmos
ao fato de que é no processo que se faz a construção da memória:

Os autores que focalizam o processo de construção da memória não


valorizam tanto os seus pontos de partida e de chegada, concedendo
ênfase ao durante. É no durante que se dão os confrontos e as lutas,
mas também a criação. (2005, p. 21)

Podemos, a partir da polissemia e da transversalidade de diversos campos de


saber, refletir que a memória social do espetáculo Jú Onze e Vinte e Quatro se perpetua
até hoje como referência nas relações de poder e políticas públicas para pessoas LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), pois durante sua existência, apresentou
aproximações e distanciamentos de linguagens teatrais.
A perspectiva apresentada na forma de espetáculo como um espaço de
sociabilidade, problematiza (através da paródia) as relações de poder, parentesco e
família. O tempo e o espaço são imprescindíveis para situarmos o momento em que
Goiânia se enquadrava: crescimento populacional, violência homossexual mascarada,
ascensão das religiões protestantes e momento de fortalecimento teatral Goiano,
segundo relato dos sete ex-integrantes e artistas Goianos, até o momento entrevistados.
Estas implicações éticas e políticas fizeram que o espetáculo aprimorasse
tecnicamente (cenografia, figurino, maquiagem e cenário), pensando em atingir públicos
diferentes, numa construção processual através de temáticas diversificadas a cada
apresentação, firmando o espetáculo em blocos, cenas e performances.
Neste sentido, podemos inferir que os atores que trabalhavam como Drag-
Queens, tinham uma preocupação com as formas de identificação deste espetáculo, na
tentativa de fazer valer tanto de uma memória de roteiro, quanto de uma memória social
dos diversos públicos atingidos.
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1. MAS, AFINAL O QUE ERA “JÚ ONZE E VINTE E QUATRO”?


O espetáculo nasceu a partir das inquietações de Júlio César Vilela com o Teatro
Goiano, questionando a identidade de gênero e sexualidade onde artistas envolvidos
com a militância gay precisavam protestar politicamente através do Teatro, quebrando
tabus e mudando a cena do Teatro Goiano. Jú Onze e Vinte e Quatro foi inspirado no
extinto programa “Jô Soares Onze e meia”, do SBT, exibido de 1988 a 1999.
A partir das entrevistas coletadas, os atores e espectadores relatam que o
espetáculo trazia além de crítica de abordagem ao binarismo homem x mulher, também
apresentavam críticas sociais, abordagens sobre a politica, ao gênero e sexualidade de
forma humorística e performances Drag-Queens. Relatam ainda, entrevistas com
artistas locais e globais na tentativa de fazer um intercambio cultural que valoriza a
produção artística local, interlocuções com políticos e ativistas LGBT para discutir
sobre políticas públicas de saúde e bem estar social do público homoafetivo, tão
discriminado em outros espaços de sociabilidade.
Então, o que as pessoas esperavam do espetáculo? Uma comparação ou
aproximação com Dzi Croquetes? Talvez, esperavam inconscientemente abarcar essas
verdades. Mas, por outro lado, esperavam conscientemente através das cenas, dos
textos, das performances, apontar críticas construtivas que questionassem a sexualidade
LGBT quase sempre ridicularizadas na mídia e em outros espetáculos. Isto me fez
repensar sobre a expectativa dos atores ao rememorar, e da transportação destes atores e
espectadores durante o espetáculo, ao tempo presente, por meio de minha rememoração
do acontecimento.

2. PERFORMANCE DRAG E SEUS ESPAÇOS


No início dos anos 90, as drags passaram de performar nas noites e boates GLS
para os palcos dos ambientes heterossexuais no Brasil e no mundo, além de
revolucionarem nas telas de cinemas, ganhando espaço na mídia e encenando
espetáculos com grandes estrelas do cinema americano e brasileiro.
Essas variadas formas de registro não lhes tiram a característica de performance,
pois as cenas dos espetáculos eram apresentadas em shows particulares, vendidos a
empresas de pequeno e grande porte, ampliando ainda mais a divulgação do espetáculo
a públicos não gays. Assim, estes espaços de apresentação se ampliaram para festas,
formaturas, eventos e congressos, divulgando ainda a produção teatral Goianiense.
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Mas ideologicamente, como as drags pensam a respeito da busca de um espaço


para aceitação? Como lidam com a fragmentação (de suas performances e da identidade
do artista), a fim de serem apresentadas para outros públicos, os quais podem não ter a
pretensão de assisti-las? Para todas estas perguntas, há respostas relativas. Ser
reconhecido profissionalmente, evidentemente alimenta o ego de qualquer artista.
Porém, quando o artista passa a ser manipulado, outros aspectos entram em questão.
Neste sentido, podemos inferir que tais experiências fizeram com que os atores
modificassem o espetáculo a cada momento, inclusive na tentativa de continuar com o
mesmo após a morte do apresentador, mudando o nome do Grupo para “Trupe do Jú”.
Júlio Vilela sofreu de parada respiratória durante a programação da X Parada do
Orgulho Gay de São Paulo, em 17 de Junho de 2005, mas não resistiu à chegada ao
hospital. Na maioria das entrevistas coletadas em Goiânia, os depoentes se emocionam
ao lembrar-se de suas experiências e da ausência que o apresentador deixou.

3. CENAS/QUADROS
As cenas do show humorístico Jú Onze de Vinte e Quatro eram apresentadas em
blocos, satirizando jornais, novelas, programas de TV. Faziam uma crítica à política
brasileira (e goiana), entrevistas artistas ou personalidades importantes, além de
dublagens de cenas de telenovelas.
Além disso, outro ponto bastante marcante do show são performances de atores
Drag-Queens, com produções diferenciadas dos demais quadros. Percebe-se então que
os quadros se aproximavam do teatro de revista, misto a um modelo de talk show, já que
a ideia original se inspirava no apresentador e ator brasileiro, Jô Soares.
Podemos pensar estas intervenções como paródias de gênero, pois brinca e
expõe os sujeitos ali presentes. As paródias de gênero são mais performáticas porque
brincam com a imitação do próprio gênero, segundo Butler apud Sara Salih aponta que:

Neste caso, deve ser possível encenar esse gênero sob formas que
chamem a atenção para o caráter construído das identidades
heterossexuais que podem ter um interesse particular em apresentar a
si mesma como essenciais e naturais, de maneira que seria legítimo
dizer que o gênero em geral é uma forma de paródia, mas que algumas
performances de gênero são mais paródicas que outras. (2002, p. 93)

Estas críticas eram parodiadas por atores Drag- Queens, que eram dirigidos por
Júlio Vilela. A direção optou por mediar a programação do espetáculo numa estrutura
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com esquetes de teatro, jornais informativos, dublagens, desfiles, dança e performance


Drag-Queens, mediando ainda atrações de artistas convidados, divulgação de outros
eventos e entrevistas com celebridades, lembrando o teatro de revista.
Por fim, estes elementos observados serão categorizados dentro de toda a
estrutura do espetáculo Jú Onze e vinte e quatro, pois em seus quadros/ cenas podem ser
observadas tais aspectos que permeiam os conceitos e as performances apresentadas.
Assim, recorro a Rosemary Lobert (2010, p. 106-107) quando apresenta o processo de
espetáculo de Dzi Croquetes:

O espetáculo Dzi Croquetes se renovava noite após noite: texto,


dança, roupas, personagens. Da concepção de um teatro visto como
um elemento dinâmico do projeto do grupo surgia sua riqueza; no
entanto manipulavam-se principalmente aspectos formais.

Outro ponto a ser observado é o momento pós-performance, onde alguns sujeitos


não desligam de sua performatividade de gênero e por outro lado fixam seus repertórios
e registram suas performances.
A partir da metáfora do leque e da rede proposto por Schechner (2012), elenco o
leque da performance Drag a partir do Teatro na Antiguidade, observando a trajetória
dos atores ao longo do tempo quando interpretavam personagens femininos nas
tragédias e comédias Gregas, onde as mulheres tampouco eram inseridas no contexto
teatral. Desta forma, inseridos nas observações da trajetória do homem que interpreta
personagens femininos, podemos estabelecer uma linha evolutiva que passa pela
Commedia Dell’arte, Teatro Oriental até chegarmos ao Teatro pós-moderno, com a
inserção de técnicas de ilusionismo e uso da tecnologia mais o fator improvisação.
Outro ponto a ser pensado é influência da Teoria Queer e suas manifestações
junto à Cultura LGBT nas Performatividades de Gênero, o que remete à Performance
Drag-Queen, que propõem algumas classes de um transformismo estético no gênero
Drag-Queen (perspectiva caricatural, andrógena ou transformista).

4. DRAGS X CORPOS MASCULINOS


No elenco passaram atores e atrizes2 que levaram o oficio de Drag-Queen por
muito tempo. Por outro lado, tiveram alguns que desistiram da profissão e outros que

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Das atrizes que passaram pelo elenco, somente uma se fixou durante algum tempo e outras somente
tiveram participações especiais como convidadas.
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transformaram o próprio corpo em função de suas performances de gênero. Neste


mesmo sentido, outros se identificaram para a sexualidade transgênero, realizando a
cirurgia de vaginoplastia; outras como travestis, por acreditarem que a performance
Drag-queen já não mais a representam, onde usaram a transformação estética que o
espetáculo proporcionava, tais como caracterização da maquiagem, figurino e
construção de gestualidade de um corpo feminino, para trabalharem como profissionais
do sexo. Há ainda, outros que trabalham até hoje, paralelamente, em produções teatrais
na área de aderecistas e figurinistas, ou fazem performances em saunas gays e outros
espaços não LGBT’s. Alguns enveredaram para as Artes Cênicas como atores e
professores de teatro, seguindo carreira artística e acadêmica.
Os corpos masculinos eram performados na dança pelos bailarinos, pois todas as
Drags deveriam apresentar aspectos de feminilidade. O grupo não era composto por
bailarinos com corpos padronizados para o perfil exigidos na Dança: corpos musculosos
que apresentam virilidade. Tinha-se então uma heterogeneidade de corpos que
desconstruíam o padrão corporal que se esperava em qualquer conjunto dançante:
magros, gordos, voluptuosos, afeminados e másculos.
Assim como Dzi Croquetes, a intenção era a provocação da construção do
binarismo de gênero. Porém, já existia a figura do coreógrafo para designar de forma
mais tradicional as coreografias traçadas em simbolismos estéticos na execução de
técnicas de modalidades de Dança, como o Jazz e noções de Modern Dance.

5. EM BUSCA DE UMA PROVOCAÇÃO QUEER NUM ESPAÇO


HOMOFÓBICO3.
O espetáculo “Jú Onze e Vinte e Quatro” perturbou o teatro Goiano por tirar as
Drag-Queens em seus espaços de performatividade cotidianas para serem inseridas sob
o foco do palco. Com isto, se confrontam com o estranhamento, a repulsa e a empatia
dos espectadores, ainda oriundos de uma visão social heteronormativa da sociedade.
Segundo Richard Miskolci:

A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as


obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade
como natural e, portanto, fundamento da sociedade [...] é um conjunto
de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e
controle. (2009, p. 156)
3
Termo utilizado para designar indivíduo que repulsa ou discrimina prática afetiva entre pessoas do
mesmo sexo.
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A recepção do público variava de acordo com as provocações das Drag-Queens,


pois neste espaço teatral, as Drags eram personagens mais performáticos naquele
cenário. Estas provocações faziam com que o público recordassem de situações que
reverberavam numa identificação coletiva em processos discriminatórios, propondo
uma reflexão a posteriori do espetáculo. Paul Ricoeur, traz reflexões sobre a tentativa
ou busca desta memória:

Quanto ao par evocação/recordação, a reflexividade está em seu auge


no esforço de recordação; ela é enfatizada pelo sentimento de
penosidade ligado ao esforço; a evocação simples pode, nesse aspecto,
ser considerada como neutra ou não marcada, na medida em que se
diz que a lembrança sobrevém como presença do ausente; [...] a
evocação já não é simplesmente sentida, mas sofrida. (2007, p. 55)

O processo de recordar, sentir, aproximar, distanciar ou de identificação eram


evocadas através das provocações das performances e cenas apresentadas no palco são
potencializadas com o trabalho das Drags. Pode-se afirmar que a rememoração da
discriminação por gênero era cheios de significados nas performances Drag-Queens.
Em linhas gerais, as Drags em suas performances animavam, reclamavam, ironizavam,
debochavam, satirizavam e criticam a sociedade com suas normas e construtos
hegemônicos calados em essencialismos.
Neste sentido precisamos entender a identificação e diferença como processos
que não se separam, dependentes um do outro, numa construção simbólica e social,
causando uma dependência material. A construção da identidade infere num processo
que se opera no círculo da cultura, num contexto global de regulação e representação.
Stuart Hall aponta que:

Esta identidade marcada pela diferença tem símbolos concretos que


ajudam a identificar nas relações sociais quem é, por exemplo, mulher
e quem não é. Assim a construção da identidade é tanto simbólica
quanto social e a luta para afirmar uma ou outra identidade ou as
diferenças que os cercam tem causas e consequências materiais [...] O
conceito de identidade é importante para examinar a forma como a
identidade se insere no “círculo da cultura” bem como a forma como a
identidade e a diferença se relacionam com o discurso sobre a
representação. (2011, p. 10,16)
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Ao pensarmos nesta representação socialmente construída, podemos inferir uma


tentativa de calar estas minorias colocadas no lugar de culturas subalternas por meio da
exclusão, invisibilizando socialmente vários sujeitos marcados pela diferença, como
homossexuais, negros e estrangeiros, por exemplo.
Talvez este seja o ponto mais revelador das paródias Drag-Queens: dar visão e
voz a quem nunca foi escutado. Como estas minorias foram caladas? Como convivem
com quem as invisibiliza? Como a hegemonia operou neste processo de representação?
Não podemos afirmar que estas vozes estão permanentemente caladas, silenciadas mas
sim, talvez ignoradas, na tentativa de desconstruir estes conceitos essencialistas.
Retomo a Hall que apresenta como a identidade e a diferença convivem:

Elas não só são definidas como também impostas, elas não convivem
harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas
são disputadas. A identidade e diferença estão, pois, em estreita
conexão com a relação de poder: o poder de definir a identidade e de
marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de
poder. A identidade e a diferença não são inocentes. (2011, p. 81)

Hall ainda aponta como a identidade se opera nas rasuras e a identificação é


sempre um processo que se opera por meio da diferença:

A identidade é um desses conceitos que se operam sob rasura, no


intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser
pensada da forma antiga, mas sem a qual questões-chave não podem
ser sequer pensadas [...] A identificação é, pois, um processo de
articulação, uma suturação, uma sobredeterminacao, e não uma
subsunção. [...] Como todas as práticas de significação, ela está sujeita
ao jogo da différance [...] na produção de “efeitos de fronteiras”.
(2011, p. 104, 106)

Estudos recentes Queer apontam para a análise das teorias feministas baseadas
na oposição homens versus mulheres e também aprofunda os estudos sobre minorias
sexuais, dando maior atenção à formação de sujeitos da sexualidade desviante como o
travestismo, a transexualidade e a intersexualidade. Guacira Louro, nos explica que:

Queer pode ser traduzido como estranho, ridículo, excêntrico, raro ou


imaginário [...] e, também se constitui na forma pejorativa com que
são designados os homens e mulheres homossexuais [...] Representa
claramente a diferença que não quer ser tolerada [...] Queer também
representa, na ótica de alguns, uma rejeição ao caráter médico que
estaria implícito na expressão “homossexual”. (2004, p. 38-39)
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Neste sentido, o espetáculo confrontou-se com a provocação do binarismo de


gênero. Ao se travestir de mulher e realizar performances, quais as provocações
receptadas no público? Não há uma resposta pronta, pois a cada momento este
espetáculo mostrou-se cada vez mais aceitável nos meios LGBT e na classe artística
goianiense.
O espetáculo fez com que artistas e público pensassem sobre discriminação,
preconceito, direitos e deveres, políticas públicas e união homoafetiva, de acordo com
Marques Matos, ator que interpreta a Drag Margoza Simpson:

As bichas tinham medo de se expor no dia a dia [...] No início dos


anos 90 a polícia parava a gente na rua quando voltávamos do teatro,
quando ainda montadas4... Até explicar que éramos artistas e não
travestis era o maior custo [...] Não que travesti tem que ser parada na
rua pra levar baculeijo, e os policiais não nos reconheciam como
artistas. Estas situações [que pareciam ser] engraçadas eram levadas
para o palco e provocava o riso. (Entrevista em 12/05/13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que pude perceber e analisar a partir da pesquisa e da elaboração deste artigo,


é que a experiência de ser Drag-Queen proporciona uma vasta gama de conhecimentos
e habilidades para o trabalho de ator-performer. Júlio Vilela foi um homem de seu
tempo e questionou a importância de se questionar o gênero e as relações conflituosas
em sua sociedade, na tentativa de mostrar estes sujeitos invisíveis.
As memórias sociais, os ritos de passagem, a transformação do espetáculo tem
se transformado à medida que o público cativo se mostrava presente e forte. Apesar de
ser humor, por traz disto, existia uma aproximação de suas próprias inquietações
enquanto público predominantemente gay. Estas provocações feitas no palco deram
subsidio para pensarmos numa memoria para a produção de novos conceitos,
linguagens e novas formas que questionar tanto o teatro, quanto à atenção dada às
minorias sociais.
Então, começo a questionar os estudos Queer: em que medida estas memórias
sobre o espetáculo conseguem configurar uma cultura ou subcultura de sociabilidade

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Expressão no dialeto gay que traduz a caracterização total da Drag.
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gay em Goiânia? Não há uma resposta pronta. De fato usar o teatro como local de
aceitação de sujeitos discriminados foi uma ótima percepção e incrível sensibilidade de
Júlio Vilela e de todos os bailarinos e atores que participaram do elenco.
Por fim, posso refletir que sempre vamos retomar num ciclo de identidades,
afinidades e marcadores da diferença para determinar uma posição política. Não
conseguiremos nos distanciar da identidade e da diferença porque estes processos estão
ligados, assim como o bem e o mau. Esta trupe, assim como Dzi croquetes, questionou
os valores de seu tempo e sem dúvida contribuiu para a ampliação dos espaços de
sociabilidade LGBT em Goiânia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARENECHEA, Miguel Angel. Nietzsche e a genealogia da memória social. O que é


memória social? Contra Capa Livraria, Rio de Janeiro, 2005.
GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre a memória social. O que é memória social?
Contra Capa Livraria, Rio de Janeiro, 2005.
HALL, Stuart. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Ed.
Vozes, Petrópolis: 2001.
LOBERT, Rosemary. A palavra Mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquetes.
Unicamp. São Paulo: 2010.
LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria
Queer. Autentica Editora, Belo Horizonte: 2004.
MISKOLCI, Richard. A teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da
normalização. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan/jun 2009.
RICOEUR. Paul. A memória, a história e o esquecimento. Editora Unicamp.
Campinas, SP. 2007.
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria Queer. Autêntica Editora, Belo Horizonte:
2012.
SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Ed.
Mauad X, Rio de Janeiro: 2012.

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