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A institucionalização das

Ciências Sociais no Brasil:


percalços e conquistas
The institutionalization of Social Sciences in Brazil:
achievements and setbacks

Resumo A partir da adoção da obrigatoriedade da disciplina de So-


ciologia no ensino médio por toda a rede de educação básica do país
(2009), faz-se necessário discutir o processo de institucionalização e
consolidação da análise sociológica. A institucionalização das Ciên-
cias Sociais no Brasil deu-se de maneira particular, sendo iniciada por
“intérpretes do Brasil” – médicos, engenheiros e juristas, sendo, pos-
teriormente, consolidada como disciplina científica. Dessa forma, no
presente artigo realiza-se uma revisão bibliográfica fundamentada
em autores clássicos e contemporâneos da Sociologia. Destaca-se,
ainda, a experiência de São Paulo e Rio de Janeiro na consolidação da
disciplina. As reflexões desenvolvidas enfatizam que as explicações Cinthia Lopes da Silva
gerais sobre os problemas sociais, os ensaios e a produção científi- Universidade Metodista de
ca sistemática foram elementos significativos na consolidação das Piracicaba (UNIMEP)
Ciências Sociais no País. A discussão visa alicerçar a formação dos cinthialsilva@uol.com.br
professores e pesquisadores de Sociologia, assim como profissionais
de outras áreas do conhecimento que partem de um referencial so- Rogério de Souza Silva
ciológico para investigar os problemas sociais da realidade nacional. Universidade de Sorocaba
Palavras-chave sociologia; ciências sociais; institucionalização; (UNISO)
intérpretes do Brasil. professorrogerio@uol.com.br

Abstract With the adoption of the mandatory discipline of sociol-


ogy in high schools throughout the basic education network in the
country (2009), the process of institutionalization and consolidation
of sociological analysis must be discussed. The institutionalization
of the social sciences in the country occurred in a particular way,
being initiated by “interpreters of Brazil” – doctors, engineers and
lawyers –, and was subsequently consolidated as a scientific disci-
pline. Thus, this paper brings a literature review based on classical
and contemporary authors of Sociology. It is noteworthy, though,
the experience of São Paulo and Rio de Janeiro in the consolidation
of the discipline. The reflections emphasize that the general explana-
tions on social problems, essays and systematic scientific production
were significant elements in the consolidation of the Social Sciences
in the country. The discussion aims to establish a foundation for so-
ciology teachers and researchers as well as for professionals from
other fields of knowledge that use sociology as a reference to inves-
tigate the country’s current social problems.
Keywords sociology; social sciences; institutionalization; inter-
preters of Brazil.
Introdução

A
disciplina Sociologia voltou a ser obri- aulas de Educação Física na escola e às mani-
gatória no ensino médio (antigo se- festações corporais, fazendo um contraponto
gundo grau) em 2009 por força da às influências das Ciências Naturais, historica-
Lei Federal nº 11.684/08,1 sancionada pelo mente predominantes nesse campo.
vice-presidente da República no exercício da A institucionalização das Ciências Sociais
presidência, José Alencar, em 2 de junho de no Brasil ocorreu em períodos distintos e teve
2008.2 A nova legislação alterou a Lei Federal em seu processo um primeiro grupo de inte-
9.394/96 – que estabeleceu as diretrizes e ba- lectuais que ocuparam o lugar de intérpretes
ses para a educação nacional – e determinou do Brasil, configurando certo modo de pensar
a obrigatoriedade da disciplina em todas as e analisar os problemas sociais do País. Esses
séries do ensino médio, tanto nas escolas da autores (juristas, engenheiros e médicos) fo-
rede pública como da rede privada.3 ram atuantes entre os anos de 1870 a 1930.
Diante dessa nova realidade de obri- Suas reflexões eram fundamentadas por fato-
gatoriedade da Sociologia no ensino médio, res biológicos e no referencial evolucionista.
torna-se urgente discutir e rediscutir o pro- Os anos de 1930 a 1940 podem ser identi-
cesso de institucionalização e consolidação ficados como um período transitório, em que
da análise sociológica no Brasil, ressaltando o processo de modernização do País estava
seus primeiros percalços e conquistas. Dessa em seu início. As análises de Gilberto Freyre,
maneira, o presente artigo realiza uma revi- Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr.
são bibliográfica sobre os primeiros passos da destacaram-se nesse período, principalmente
sociologia na terra de Vera Cruz. pelo fato de discutir temas a partir de concei-
A presente discussão, também, é um tos e autores que renovam as interpretações
contributo para as produções científicas de sobre o papel das etnias constitutivas, da mes-
outras áreas do conhecimento, como a Edu- tiçagem, da escravidão, da família patriarcal,
cação Física, considerando que, desde final do mandonismo, das variações regionais etc.
da década de 1970, um grupo de pesquisa- Um segundo período, que caracterizou
dores dessa área tem se apoiado em refe- a análise científica da sociedade no Brasil, foi
renciais das Ciências Sociais e Humanas para após os anos 1940. O País passava por um pro-
compreender os problemas relacionados às cesso acelerado de modernização, sobretudo
após 1945. Nesse momento, duas experiên-
1
Na mesma lei, a disciplina de Filosofia também se cias foram fundamentais – a de São Paulo e a
tornou obrigatória no ensino médio. do Rio de Janeiro. A vinda de pesquisadores
2
A medida torna obrigatória a inclusão da disciplina de
Sociologia no currículo do ensino médio em todo o estrangeiros e a constituição de um padrão
país, ampliando o que já era praticado em 17 estados. de trabalho científico para o desenvolvimen-
3
Projeto semelhante foi apresentado pela primeira to da pesquisa, liderado por Florestan Fernan-
vez pelo ex-deputado Padre Roque em 1997 e vetado des, marcou o percurso vivido pelo grupo de
pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2001.
Em 2003, o senador Ribamar Alves reapresentou o pesquisadores paulistas.
projeto, com modificações, ao Congresso Nacional. A experiência do Rio de Janeiro tem
Depois de cinco anos tramitando pelo Senado, foi também sua singularidade. Formada por um
aprovado, revogando o inciso III do § 1º do art. 36 da grupo de intelectuais que ocupavam certas
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB,
Lei 9.394, de 1996). Onde antes se lia que ao final posições políticas, a análise sociológica de-
do ensino médio, o educando deveria demonstrar senvolvida na então capital do Brasil favore-
“domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia ceu-se da criação de institutos que se consti-
necessários ao exercício da cidadania” agora se lê: tuíram como referência para esse período.
“IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como
disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino A seguir, desenvolvem-se reflexões so-
médio”. Ver: Brasil (2008); MEC (2006) e MEC (2009). bre esses momentos fundamentais para o

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surgimento, institucionalização e consolida- (Ibid., p. 27), ou seja, no primeiro quarto do
ção das Ciências Sociais4 no Brasil. Além disso, século XX, “a interpretação do presente se as-
realizam-se apontamentos sobre as diferen- socia a disposições de intervenção racional no
ças e semelhanças entre as experiências pau- processo social” (Ibid., p. 27). A terceira épo-
lista e carioca. ca caracterizava-se “pela preocupação domi-
nante de subordinar o labor intelectual, no es-
A análise científica da sociedade no Brasil tudo dos fenômenos sociais, aos padrões do
A análise científica da sociedade no Bra- trabalho científico sistemático” (Ibid., p. 28).
sil, segundo Antônio Candido5 (2006), passou No primeiro período, a influência do
por dois períodos distintos: de 1870/80 a 1930 evolucionismo contribuiu para que a explica-
e após 1940, com um período intermediário ção dos problemas sociais se desenvolvesse
entre 1930 e 1940. a partir da análise biológica (especialmente
No primeiro período, de 1870/80 a 1930, na utilização do conceito de raça), da preocu-
encontram-se intelectuais não especializados pação com as etapas históricas e as grandes
e com forte preocupação em interpretar de sínteses explicativas.
forma global a sociedade brasileira. Além dis-
so, não desenvolveram ensino nem pesquisa A sociologia brasileira formou-
empírica na área sociológica. Dessa forma, -se, portanto, sob a égide do
neste momento, os porta-vozes da visão so- evolucionismo e recebeu dele
cial do Brasil eram, sobretudo, os juristas, os as preocupações e orientações
médicos e os engenheiros, formando, assim, fundamentais, que ainda hoje
“a tríade da inteligência brasileira”. “O jurista marcam vários de seus aspec-
foi o intérprete por excelência da sociedade, tos. Dele recebeu a obsessão
que o requeria a cada passo, e sobre a qual com os fatores naturais, nota-
estendeu o seu prestígio e maneira de ver as damente o biológico (raça); a
coisas” (CANDIDO, 2006, p. 272). preocupação com etapas his-
Florestan Fernandes (1980), discutindo tóricas; o gosto pelos estudos
a constituição e consolidação da explicação demasiados gerais e as grandes
sociológica no Brasil, chega a conclusões se- sínteses explicativas. Daí a pre-
melhantes. O autor de A revolução burguesa dominância do critério evoluti-
no Brasil fala em “três épocas de desenvolvi- vo e a preferência pela história
mento da reflexão sociológica na sociedade social, ou a reconstrução histó-
brasileira”: a primeira época caracterizava-se rica, que ainda hoje marcam os
pelo fato dominante de ser a sociologia ex- nossos sociólogos e os tornam
plorada como um recurso parcial e uma pers- continuadores lógicos da linha
pectiva dependente de interpretação. “A in- de intérpretes global do Brasil,
tenção não é de fazer, propriamente, obra de herdada dos “juristas filósofos”
investigação sociológica, mas de esclarecer (para falar como Clóvis Bevila-
certas relações, mediante a consideração dos qua) do século passado [XX].
fatores sociais” (FERNANDES, 1980, p. 27). A (CANDIDO, 2006, p. 272).
segunda época caracterizava-se “pelo uso do
pensamento racional como forma de consci-
Um dos grandes representantes desse
ência e de explicação das condições histórico-
período foi o crítico literário Sílvio Romero,
-sociais de existência na sociedade brasileira”
que em sua obra Introdução à história da lite-
4
O curso de Ciências Sociais tem como áreas principais ratura brasileira (2002 [1ª ed. 1882]) trazia uma
as disciplinas de Sociologia, Antropologia e Ciência
Política. explicação fundamentada nos fatores natu-
5
Artigo publicado, pela primeira vez, em 1959. rais do meio e da raça. Outro exemplo são os

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escritos do engenheiro e jornalista Euclides pelas conseqüências intelectu-
da Cunha, que buscou, na obra Os sertões ais da própria desagregação da
(2000 [1ª ed. 1902]), “explicação rigorosa no ordem estabelecida. (FERNAN-
determinismo naturalista, representado pelas DES, 1980, p. 34).
forças do meio físico e da constituição racial
[…]”(CANDIDO, 2006, p. 277),6 mas a proxi- No final desse primeiro período (1870/80-
midade com o referencial evolucionista não 1930) surgem os trabalhos com forte preocupa-
retira o brilhantismo do livro de Cunha: ção em elaborar uma “teoria geral do Brasil”,
com destaque para os aspectos políticos. Bus-
Os Sertões (1902) constituem um cavam, no limite, apontar remédios de ordem
marco: a partir daí os estudiosos político-administrativa para o País, como de-
seriam levados irresistivelmente monstram os trabalhos de Manoel Bonfim (A
a intensificar o estudo da nossa América Latina, 1993 [1ª ed. 1905]), Alberto Tôr-
sociedade de um ponto de vista res (A organização nacional, 1982 [1ª ed. 1914]) e
sistemático, superando tanto as Oliveira Viana (Instituições políticas brasileiras,
preocupações de ordem estrita- 1999 [1ª ed. 1949]). Este último, inspirado pe-
mente jurídica como as especu- las indicações de Sílvio Romero quanto à teoria
lações demasiado acadêmicas. sociológica da escola de Le Play (Pierre-Guillau-
Euclides da Cunha impusera de- me-Frédéric Le Play) e da antropossociologia
finitivamente a “realidade brasi- de Otto Ammon e Gilles Lapouge, dedicou-se
leira”. (CANDIDO, 2006, p. 278). ao estudo da formação social e buscou nela a
origem para a doutrinação teórica no terreno
Sobre esse momento inicial, Fernandes da política e da administração.
(1980) destaca as condições histórico-cultu- Nessa fase inicial da análise científica da
rais e sociais que viabilizaram o surgimento da sociedade brasileira, também tiveram desta-
elucidação científica da realidade social nacio- que alguns autores atuantes em um período
nal, principalmente o solapamento e a desa- denominado intermezzo, ou seja, entre os
gregação do regime escravocrata e senhorial: autores da geração de 1870 e a eclosão do
movimento modernista de 1922. Esse grupo,
O processo de desagregação que se utiliza de conceitos propriamente so-
da sociedade escravocrata e se- ciológicos, é constituído, segundo Sérgio Mi-
nhorial se refletiu de duas ma- celi (2001), por Humberto de Campos Véras,
neiras sobre o desenvolvimen- Afonso Henriques de Lima Barreto, Jônatas
to da sociologia no Brasil. De Archanjo da Silveira Serrano, Hermes Floro
um lado, mediante a influência Bartolomeu Martins de Araújo Fontes, Vivaldo
dos movimentos abolicionis- Coaracy, Manuel Carneiro de Souza Bandeira,
tas na formação do horizonte Paulo Setúbal, Gilberto de Lima Azevedo Sou-
intelectual e médio. De outro, za Ferreira Amado de Faria e José Maria Bello.
De acordo com as análises de Miceli
Candido destaca ainda os trabalhos de Tobias Barreto,
6
(2001), os autores acima mencionados con-
Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações
anti-sociológicas (1884) – primeiro escrito teórico de tribuíram para o desenvolvimento de uma es-
cunho sociológico, contesta a validade e autonomia pécie de esboço de um campo cultural que,
da sociologia; Fausto Cardoso, autor de A ciência da posteriormente, reforçará a atuação do soci-
história (1895), Estudos de taxionomia social (1898)
ólogo e sua explicação singular da realidade
e Concepção monística do universo (1894) – um dos
primeiros sistematizadores da sociologia biológica no social. Miceli ressalta ainda que esses escri-
Brasil; Lívio de Castro, A mulher e a sociogenia (1887); tores são portadores de uma história de vida
e Paulo Egídio, Estudos de sociologia criminal (1900) favorável à profissionalização do trabalho
(CANDIDO, 2006).
intelectual. Um elemento que contribui para

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esse entendimento é o fato de eles serem ori- ed. 1933]), Gilberto Freyre, a partir da leitura
ginários de famílias oligárquicas com capital de autores como Franz Boas, Clark Wissler,
financeiro em declínio e de seu único vínculo Pitirim Sorokin e Emory Bogardus, inovará no
com as frações dirigentes ser de parentesco sentido de propor uma análise que considera
ou compadrio. O sociólogo afirma ainda que conceitos modernos de cultura, adaptação,
na biografia desses autores podem ser iden- contato racial e cultural, distância social e mo-
tificadas duas séries de determinações, uma bilidade. Dessa forma, o ex-morador de Api-
positiva e outra negativa. pucos contribuirá para a renovação da análise
sociológica, fazendo apontamentos sobre o
o ingresso nas carreiras intelec- papel das etnias constitutivas, mestiçagem,
tuais associa-se, de um lado, à escravidão, família patriarcal, mandonismo,
posse de trunfos que resultam variações regionais etc.
da posição na fratria ou na li- Outros autores que fizeram parte des-
nhagem (como, por exemplo, se período de renovação da análise dos pro-
o fato de ser filho único, de ser blemas sociais no Brasil foram: Sérgio Buar-
o primogênito, de ser o único que de Holanda (Raízes do Brasil, 1993 [1ª ed.
filho homem etc.) e, de outro, 1936]) e Caio Prado Jr. (Evolução política do
aos efeitos que provocam han- Brasil, 1993 [1ª ed. 1933]). Nota-se, pelo pró-
dicaps sociais (tais como a mor- prio título de suas obras, o novo estilo de apli-
te do pai, a falência material cação do ponto de vista sociológico, em que
da família etc.), biológicos (em a análise histórico-sociológica da realidade
especial, nos casos de tubercu- brasileira é transformada em investigação po-
lose), ou, então, estigmas cor- sitiva. Segundo Fernandes (1980), isto marca
porais (como, por exemplo, a a primeira transição importante no desenvol-
surdez, a gagueira etc.). (MICE- vimento da Sociologia no Brasil, assinalando
LI, 2001, p. 22). um período de produção de interpretações
propriamente científicas.
Em outras palavras, a leitura proposta Na década de 1930 também houve um
por Miceli (2001) sugere que o fato de esses fator importante a se considerar na institu-
novos agentes culturais serem parte da oligar- cionalização da Sociologia, que foi sua emer-
quia decadente e os vínculos que mantinham gência no ensino básico e superior. As refor-
com as frações dirigentes foram fatores de- mas capitaneadas por Fernando de Azevedo
terminantes para que esses autores tivessem no Distrito Federal e em São Paulo (1927;
preparação para assumir a posição de profis- 1933), incluindo a Sociologia no currículo das
sionais intelectuais. escolas normais e cursos de aperfeiçoamen-
O período posterior aos anos 1930 é to e a reforma federal de Francisco Campos
marcado por um processo de institucionali- (1931), nos cursos complementares, contri-
zação e consolidação da Sociologia no Brasil. buíram para a consolidação da explicação
Trata-se de um momento transitório entre os sociológica no imaginário brasileiro. Nessa
anos 1930 e após 1940. Nesse período, a Socio- década também foram fundados os primei-
logia já tinha consciência dos fatos essenciais ros cursos superiores de Ciências Sociais na
da realidade brasileira, faltava-lhe fazer parte Escola Livre de Sociologia e Política (1933),
da vida intelectual, ou seja, precisava ocorrer na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
a modernização da teoria, principalmente da USP (1934) – ambas em São Paulo –, e na
pela opção por métodos diretos de pesquisa Faculdade de Filosofia da Universidade do
empírica da realidade. Autores como Gilberto Distrito Federal (1935). Não por acaso, Candi-
Freyre e Arthur Ramos terão destaque nesse do adverte que “os primeiros brasileiros de
período. Em Casa grande e senzala (1990 [1ª formação universitária sociológica adquirida

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no próprio país formam-se em 1936” (CANDI- mento em que, podemos dizer, a produção
DO, 2006, p. 271). científica deu-se de modo mais intenso e em
A década de 1930 também foi carac- que a Sociologia constituiu-se como atividade
terizada por transformações significativas ampla, reconhecida e produtiva. A consolida-
nas condições política, econômica e social. A ção da Sociologia como ciência e profissão
Revolução de 1930 acabou com a política do demarca, também, um modo de fazer análise,
café-com-leite e alijou os políticos paulistas do constituindo-se, cada vez mais, em estudos
poder. A crise da bolsa de Nova York (1929) empíricos metodologicamente conduzidos
provocou uma profunda transformação na ou teorias empiricamente fundamentadas.
economia, com destaque para o processo de Dentre os pesquisadores brasileiros, os
industrialização do País. O crescimento urba- trabalhos de Florestan Fernandes ganham
no criou um aglomerado populacional jamais destaque e vão ao encontro do modelo de so-
registrado no Brasil. ciedade que se encontra em processo de mo-
Portanto, o momento era favorável ao dernização, sendo uma importante referência
conhecimento da realidade social brasileira, no processo de institucionalização da Sociolo-
que estava se modernizando, e dos proble- gia no Brasil. Suas primeiras obras demarcam
mas decorrentes desse processo. Segundo a ênfase no conhecimento sistemático e no
Candido (2006), a condição em que se en- método estrutural-funcionalista.
contrava o País foi, também, um momento
oportuno e decisivo para a constituição da pri- O autor funda-se na análise da con-
meira equipe, no Brasil, de estudiosos prepa- tribuição de três estudiosos que
rados para as análises sociológicas e antropo- lhe parecem representar, a títulos
lógicas. Essa confraria foi formada pelo grupo diversos, a orientação estudada:
denominado “missão estrangeira”: Durkheim, Radcliffe-Brown, Mer-
ton. Coloca-se, porém, numa atitu-
Neste processo, foram parte mag- de genérica em face da explicação
na, podemos dizer decisiva, os pro- sociológica, mas num ponto de
fessores universitários, estrangei- vista delimitado, procurando de-
ros e naturalizados, que constituem terminar posições adequadas ao
a primeira equipe, no Brasil, de tratamento de situações empíricas
estudiosos especialmente prepara- definidas. (CANDIDO, 2006, p. 294).
dos para os estudos sociológicos e
antropológicos: Horace Davies, Sa- No artigo Desenvolvimento histórico-
muel Lowrie, Claude Levi-Strauss, -social da sociologia no Brasil, de 1957 [1980],
Paul Arbousse Bastide, Emilio Wil- Fernandes faz apontamentos no sentido de
lems, Herbert Baldus, Jacques Lam- instituir um padrão de trabalho científico para
bert, Roger Bastide, Donald Pierson os sociólogos brasileiros. Afirma que os novos
– americanos, franceses, alemães intérpretes da realidade social deveriam ado-
que nos vieram trazer a cultura uni- tar três exigências:
versitária no setor das ciências so-
ciais. (CANDIDO, 2006, p. 285). a ênfase nos fins empíricos da in-
vestigação permite atender a um
O período após 1940, segundo momen- requisito básico da explicação nas
to decisivo no processo de institucionalização ciências sociais, que exige a recons-
das Ciências Sociais no Brasil, foi marcado trução empírica dos fenômenos
pelos estudos sociológicos monográficos, ou totalidades investigados […]. A
produzidos e incentivados pelo grupo de pes- ênfase nos alvos teóricos gerais da
quisadores acima mencionado. Esse é o mo- investigação relaciona-se, primaria-

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mente, com a obrigação intelectual suma, o sociólogo paulista rompeu
específica do sociólogo, que consis- com a forma polida de construção
te em contribuir para o progresso das idéias, com o modo cultivada-
do pensamento científico na socio- mente poético da exposição, uma
logia. A ênfase nas possibilidades vez que não recebera herança fa-
práticas da investigação poderia miliar cultivada, tornando-o, entre
parecer de interesse meramente todos, mais permeável à absorção
utilitário. Graças a ela, os resultados da linguagem intratável da Ciência.
da pesquisa sociológica seriam con- (ARRUDA, 2001, p. 223).
vertidos em conhecimentos e orien-
tações assimiláveis pelos leigos ou Dessa forma, verifica-se que a Sociologia
pelas instituições dedicadas ao pla- ganhou amplo espaço na passagem do século
nejamento e aos serviços sociais. XIX e primeira parte do século XX, consolidan-
(FERNANDES, 1980, p. 74). do-se como explicação científica da realidade
social brasileira.
Fernandes ainda menciona dois outros
esforços necessários para o estabelecimen- As experiências paulista e carioca
to do padrão de trabalho científico: 1) tentar Não é possível entender a instituciona-
conseguir recursos financeiros para a forma- lização da Sociologia na cidade de São Paulo
ção e treinamento profissional dos sociólo- se não consideramos a derrota paulista na
gos, bem como para projetos mais complexos Revolução de 1930, alijando a elite cafeeira
da pesquisa sociológica; e 2) colaborar para do poder federal, e a guerra civil denominada
a expansão da pesquisa empírica sistemática Revolução Constitucionalista de 1932, conflito
nos diferentes campos da Sociologia.7 entre São Paulo e a União.
Outra característica da produção de Derrotado duas vezes, o governo ban-
Fernandes, que deixará marcas profundas na deirante encontrava-se de braços atados.
consolidação e explicação sociológica no Bra- Dessa forma, algumas famílias paulistas tra-
sil, é a linguagem. De acordo com Maria Ar- çam uma estratégia para retomar o contro-
minda Nascimento de Arruda (2001), o estilo le político do Brasil por meio da capacidade
se distingue da linguagem literária dos autores técnica e domínio científico. Para isso, grupos
intérpretes do Brasil, como Gilberto Freyre e econômicos não vinculados necessariamen-
Sérgio Buarque de Holanda. Ou seja, a lingua- te ao governo criam as primeiras faculdades.
gem de Fernandes expressa certa visão de ci- Chama atenção o fato de, desde o início, a
ência e da investigação empírico-indutiva. produção de conhecimento na cidade de São
Paulo ter a particularidade de não se manter
Distante encontra-se, por certo, na dependência de recursos do Estado. Mi-
dos chamados intérpretes do Bra- celi (1987) explica que tanto a Escola Livre de
sil, como Gilberto Freyre e Sérgio Sociologia e Política (1933) como a Faculdade
Buarque de Holanda. O estilo leve de Filosofia, Ciências e Letras da Universida-
e literário desses últimos seduz o de de São Paulo (1934) eram subsidiadas por
leitor logo nas primeiras frases. Em recursos financeiros do setor privado. “Tanto
O período após 1940 é também o momento em que
7 a Escola Livre de Sociologia e Política como
a cidade de São Paulo se moderniza. Dessa forma, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
Fernandes investiu na possibilidade de realizar um da Universidade de São Paulo se destinavam
projeto científico voltado à reflexão da modernidade em princípio à formação de pessoal técnico
brasileira. Por isso, seus estudos concluídos do final de
1940 até o final de 1950, sem considerar os trabalhos
altamente qualificado, ambas amparadas por
etnológicos, apresentavam seu investimento na recursos mobilizados pelo setor privado” (MI-
mudança social (ARRUDA, 2001). CELI, 1987, p. 12).

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Com a inclusão da Sociologia no currícu- Brasileiro de Economia, Sociologia e Política
lo dos institutos de ensino básico e superior (IBESP) (1953), Instituto Superior de Estudos
mencionados e a criação das Faculdades, ou- Brasileiros (ISEB) (1955), Seção de Estudos
tro fator que contribuiu para a consolidação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) (1955),
da explicação científica da sociedade em São Centro Latino-Americano de Pesquisas de Ci-
Paulo foi a criação de periódicos específicos. ências Sociais (CLAPCS) (1957).
De 1930 a 1960, os cientistas sociais publica- Percebe-se, na então capital federal,
ram seus trabalhos em revistas acadêmicas uma preocupação em desenvolver uma for-
como: Sociologia (1934); Revista de Antropolo- mação técnica e sofisticada para enfrentar a
gia (1954); Clima (1941 – criada pelos primeiros nova realidade brasileira. No entanto, a ex-
alunos formados na USP); Anhembi (1950) e periência de institucionalização das Ciências
Revista Brasiliense (1955). Sociais no Rio de Janeiro ocorreu de maneira
Nas décadas de 1950 e 1960 foi, enfim, distinta de São Paulo. A universidade pública,
consolidada uma maneira de investigação em terras fluminenses, foi caracterizada pela
social da realidade nacional. De acordo com centralização, predominando o projeto de pe-
Elide Rugai Bastos (2002), o padrão teórico- quena autonomia e exacerbada regulamenta-
-metodológico do grupo de pesquisadores de ção, controle governamental e uniformidade
São Paulo, dentre os quais Florestan Fernan- institucional (cf. ALMEIDA, 1989). Com isso,
des era a figura principal, configurava uma os grupos atuantes tiveram como estratégia
nova forma de investigação dos problemas manter conexões com o sistema político e
sociais do Brasil, de modo a rever a visão dua- com as agências governamentais. Ou seja, a
lista que, até então, era uma explicação dada atividade de produção científica mantinha-se
pelos intérpretes do País (sobretudo aqueles na dependência das relações com o sistema
estudos influenciados pela tese desenvolvida político. Isso gera susceptibilidade à universi-
por Jacques Lambert). Na concepção dos au- dade, já que se mantém na dependência dos
tores intérpretes, os problemas da sociedade políticos que estão no poder.
brasileira poderiam ser explicados pela visão Outro elemento que foi fundamental
linear de sociedade, a partir da consideração na institucionalização das Ciências Sociais no
de que existiam dois Brasis – o antigo e o Rio de Janeiro foi a influência do grupo de ca-
moderno, do campo e da cidade, da agricul- tólicos, que passou a se responsabilizar pela
tura e da indústria etc. Os pesquisadores de formação superior. O ICES era exemplo disso;
São Paulo vão negar essa visão e defender a tinha, como pretensão, integrar o movimento
premissa de que a sociedade brasileira é mais internacional do renascimento filosófico ca-
complexa de que esse modelo. Em outras pa- tólico e servir de modelo para a organização
lavras, os cientistas da terra da garoa afirma- universitária do Brasil (ALMEIDA, 1989).
vam que antigo e moderno, cidade e campo, Nota-se que, diferentemente da expe-
agricultura e indústria se complementam. riência de São Paulo, em que a pesquisa em
No Rio de Janeiro, as décadas de 1930 e Ciências Sociais tinha como lócus a universi-
1950 foram períodos importantes, demarcan- dade, no Rio de Janeiro a produção deu-se a
do a produção mais intensiva de instituições. partir dos institutos. Com isso, muitas dessas
Alguns institutos foram fundados nesse pe- instituições não perduraram, porque sem ter
ríodo: Instituto Católico de Ensino Superior uma base sólida, não tinham recursos que as
(ICES) (1932), Faculdade Nacional de Filosofia sustentasse, tendo em vista a dependência e
(FNFi) (1939) – ligada à Universidade do Rio forte influência da política e da Igreja.
de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia A dissociação da formação escolar de
e Estatística (IBGE) (1938), Instituto Nacio- novos cientistas e a produção em ciências
nal de Ensino e Pesquisa (INEP) (1937), Fun- sociais foi outro aspecto da experiência do
dação Getúlio Vargas (FGV) (1944), Instituto Rio de Janeiro. Segundo Maria Hermínia Ta-

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vares de Almeida (1989), a formação escolar
realizada nas universidades cariocas limitou- Considerações finais
-se ao estágio de graduação. Muitos profes- A partir da revisão da bibliografia indica-
sores não tinham formação específica em Ci- da, foi possível apresentar as primeiras análi-
ências Sociais, mas em outras disciplinas nas ses dos problemas sociais brasileiros, assim
quais a Sociologia e a Política constituíam-se como a institucionalização e consolidação das
Ciências Sociais no Brasil. Nesse percurso, hou-
em subáreas, como a Sociologia do Direito,
ve um movimento de modernização do País
Ciências Jurídicas e Políticas. A dissociação que influenciou os rumos da compreensão
entre ensino e pesquisa e o fato de estarem sociológica e o interesse político em constituir
locados em instituições que se mantinham uma elite que desse conta das explicações dos
vulneráveis às circunstâncias políticas são problemas brasileiros. Nesse sentido, as expe-
aspectos da diferença com relação à experi- riências paulista e carioca foram fundamentais
ência de São Paulo. para as conquistas dessa nova ciência.
Portanto, a institucionalização das Ci- No limite, acredita-se que a compreen-
ências Sociais no Brasil, em especial da So- são do surgimento, institucionalização e con-
ciologia, esteve vinculada a um projeto de solidação das Ciências Sociais em terras além-
formação de novas elites, que dariam conta -mar é fundamental para o profissional que,
de assumir a construção política, econômica a partir da obrigatoriedade da disciplina de
e social da nação moderna. Nesse sentido, a Sociologia na rede básica de ensino de todo
o País (2009), terá a árdua e prazerosa tarefa
particularidade das experiências paulista e
de explorar e explicar cientificamente a reali-
carioca foram determinantes nesse processo.
dade social brasileira para seus alunos.

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Dados dos autores

Cinthia Lopes da Silva


(UNIMEP)
Doutora em Educação Física

Rogério de Souza Silva


(UNISO)
Doutor em Sociologia

Recebido: 24/10/2011
Aprovado: 09/10/2012

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