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OLODUM, AFOXÉ E OUTROS AXÉS: MÚSICA BAIANA E MILITÂNCIA NEGRA

Wesley Simão Bezerra1

Introdução

A partir de meados da década de oitenta, o carnaval de Salvador passou a apresentar sons e imagens
até então pouco presentes nessa folia. Eram os blocos afros que possuíam fortes características da cultura
negra, como cabelos rastafáris, predominância da música percussiva e o uso de elementos religiosos de
matriz africana, como colares e símbolos que remetem aos orixás. Mediante essa forte representação cultural,
esses blocos tentavam mostrar que ser negro é ter atitude, é possuir uma identidade diferenciada, é lutar pela
conquista de seu espaço e reconhecimento da sociedade.
Segundo Guerreiro (2000, p.26), “Nos anos 80 a produção musical somada a uma estética afro,
tornou-se uma forma de militância que buscava um padrão de negritude que fosse uma referência para o
grande contingente negro de Salvador”. Risério (1981) denomina esse momento de “reafricanização” do
carnaval soteropolitano, uma vez que foi marcado pelo surgimento de blocos afro e dos afoxés. Conforme
Miguez (2008, p.104), essa reafricanização,

caracterizou-se pelo ressurgimento dos Afoxés e, particularmente, pela emergência dos


Blocos Afro – estes, uma nova forma de participação organizada da juventude negromestiça
no carnaval e que experimentava, na altura, o impacto das profundas transformações do
mundo da cultura e da informação então em curso e das consequências da reconfiguração
produtiva da economia do Estado. Assim como o surgimento do Trio Elétrico, em 1950,
veio evolucionar e particularizar o carnaval da Bahia, o processo de “reafricanização”,
especialmente com a entrada em cena dos “blocos afro”, transforma radicalmente a trama
carnavalesca baiana.

A junção da sonoridade com a simbologia religiosa de matriz africana e a força sonora dos trios
elétricos formaram a identidade musical soteropolitana, a qual passou a ser conhecida como axé music. Mas
além de elementos próprios das práticas culturais baianas, esse novo gênero musical recebeu também forte
influência da música de outras regiões, como o reggae da Jamaica, o merengue e a salsa da região do Caribe,
sons eletrônicos, como os sintetizadores e as baterias Simmons, entre outros, que a população local foi
assimilando e ressignificando.
Diante deste cenário, o presente trabalho propõe investigar as origens da música baiana, com o
objetivo de levantar o percurso histórico do surgimento de seus principais subgêneros, analisar e comparar
seus diversos elementos musicais e, sobretudo, levantar a relação entre as manifestações culturais e
organizações sociais da população negra de Salvador e sua influência na consolidação do axé music,
especialmente, a música carnavalesca.
Além de sua importância musicológica, pelo levantamento da história da chamada música baiana e
análise das raízes dos elementos musicais formadoras de seus subgêneros, esse trabalho justifica-se também
por sua relevância na área das ciências humanas, uma vez que analisa como a militância negra, ao buscar a
afirmação de sua identidade cultural contribuiu para a formação de um gênero musical.

Metodologia
O trabalho ora apresentado é uma pesquisa de caráter bibliográfico e comparativo (SEVERINO,
2007; MARCONI e LAKATOS, 2011), na qual se utilizou como estratégia para a geração de dados a análise
documental, análises de partituras e audições musicais.

1
Licenciando em música do Instituto Federal de Pernambuco – IFPE; *drumswesley@hotmail.com
A princípio realizou-se a revisão de literatura em referências bibliográficas visando investigar a
presença de elementos musicais oriundos das práticas litúrgicas de matriz africana na música baiana, além de
examinar os principais subgêneros desse estilo musical. Para o levantamento desses dados efetuou-se leituras
e fichamentos de textos de pesquisadores que abordaram o assunto anteriormente, tais como Risério (1981),
Guerreiro (2000) e Moura (2011), entre outros. Em um segundo momento executou-se também análises de
partituras e audições musicais, afim de comprovar a presença de elementos musicais típicos de músicas de
matriz africana, bem como de outras culturas.

Resultados e discussões
A partir das fontes pesquisadas foi possível constatar que a música baiana se consolidou, em parte,
através das várias manifestações dos blocos afro de Salvador que, pouco a pouco, foi chamando a atenção
dos foliões e consequentemente da mídia. O carnaval baiano tornou-se um evento oportuno para que as
organizações formadas pela população negra pudessem denunciar o preconceito e a desigualdade. A música
era a principal “arma” utilizada pelos blocos afro para reivindicar seus direitos e chamar a atenção da
sociedade. Por outro lado, os empresários do ramo musical viram aí uma oportunidade de atrair a atenção do
folião e do turista, já que a festa de momo soteropolitana começava a apresentar elementos “novos”,
interrompendo a hegemonia dos frevos e das marchas consolidadas juntamente com o “trio elétrico” surgido
nos anos cinquenta.
Dentre os vários elementos utilizados pelos blocos, os tambores percussivos logra(ra)m destaque,
uma vez que suscita(ra)m as atenções da população soteropolitana, de outras partes do país e do mundo,
sobretudo, na época do carnaval, já que são instrumentos essenciais no fazer musical da música baiana.
Nesse sentido,

a música percussiva produzida pelos blocos afro, [...] cujas letras celebravam o universo
negro, saía das periferias da cidade para ocupar um lugar de destaque na cena musical
baiana e não tardaria a aparecer nos cadernos de cultura do país como um criativo pólo do
mundo da música no Brasil (GUERREIRO, 2000, p. 15).

Seduzidos pela energia contagiante proporcionada pelos afoxés, cantores baianos decidiram inserir
essa música nos seus repertórios não só na época do carnaval, mas também em outras apresentações
ocorridas durante o ano. De acordo com Moura (2011, p 113),

essa vereda seria percorrida por inúmeros artistas a partir dos últimos anos 70. A referência
a ícones do afro acontece continuamente a partir daí. Moraes Moreira, em parceria com
Antônio Risério e Fausto Nilo, levou o ritmo ijexá para cima do trio, inaugurando uma
configuração singular de ritmos e estilos no carnaval de Salvador.

Ainda de acordo com os referenciais teóricos investigados, aquilo que hoje costuma-se denominar de
música baiana é, na verdade, uma síntese musical, com influências africanas, caribenhas, jamaicanas e da
música eletrônica, entre outras. Além disso, é necessário esclarecer que música baiana ou axé music é um
termo guarda-chuva que comporta uma variedade de outros subgêneros, tais como, o ijexá, e o samba-
reggae.
O ijexá, praticado sobretudo pelos blocos de afoxés, é um dos subgêneros do axé music que mantém
estreitas relações com as práticas religiosas de matriz africana. Conforme Gomes (2008, p. 79), “é certo que
o ijexá é um ritmo praticado nos terreiros de candomblé e que os blocos de afoxé estão intimamente ligados a
eles. De certa forma esses blocos levam o “axé” do candomblé para a rua, para todos”. A análise da partitura
musical exposta abaixo confirma essa observação. Na ilustração constata-se que a organização rítmica do
ijexá é composta a partir dos vários instrumentos usados em cerimônias religiosas de origem negra. Esta foi a
base musical utilizada em músicas como É d’oxum, de Gerônimo e Eu Sou o Carnaval de Moraes Moreira,
para citar apenas dois exemplos.

FIGURA 01: grade rítmica do ijexá

Assim como o Ijexá, o samba-reggae também é um subgênero da música baiana que usa
predominantemente elementos das práticas musicais africanas em suas composições. Exemplo disso é a
presença de vários tambores graves, sendo que cada um assume uma função específica dentro do grupo. Não
obstante, há outros tambores com sonoridades diversas, como o repinique e a caixa. Essa marca percussiva,
além de ser visível em partituras musicais é também perceptível a partir de audições sonoras de músicas de
grupos como o Olodum, bloco soteropolitano cujo repertório constitui-se predominantemente de samba-
reggae.
Além das influências advindas dos movimentos populares geridos pela população negra da cidade de
Salvador, há de se destacar também que a música baiana se utilizou de elementos de outras culturas musicais
como a música cubana, por exemplo. Nesse seguimento, o cantor Gerônimo novamente se destaca como o
principal precursor. Conforme Moura (2011, p 116), o cantor “insiste na junção do ijexá – o afro, falando em
termos gerais, com os ritmos de relevância caribenha, sobretudo a salsa”.
Apresentamos a seguir um elemento rítmico fundamental da música cubana: a clave 2. É possível
perceber a presença da clave em vários subgêneros musicais que formam a axé music. Ela pode ser
facilmente encontrada em músicas que se enquadram principalmente no que se convencionou chamar de
Olodum e/ou Samba Reggae, como por exemplo, Sorri prá Vida Olodum de Edil Pacheco e Paulo César
Pinheiro, gravada por Roberto Ribeiro e depois por Margareth Menezes, e Faraó do grupo Olodum.

Figura 02: clave de rumba: elemento norteador da música cubana que aparece com frequência na música baiana.

2
As claves de som e de rumba são fundamentais para ajudar os músicos e dançarinos a sustentar a rítmo e o pulso da
salsa. Geralmente serve como uma introdução as músicas, especialmente ao vivo que marca o pulso e se destaca entre
os montunos e os coros. (AGUAYO, 2012, P. 72).
Conclusões
Mediante a pesquisa em material bibliográfico constatou-se que a chamada música baiana ou axé
music é uma síntese musical, com influências africanas, caribenhas, jamaicanas e da música eletrônica, entre
outras. Trata-se de um estilo musical surgido na década de 80, a partir de vários grupos e movimentos
musicais afro de Salvador, que se consolidou a partir da junção do trio elétrico, passando a conduzir os
rumos da música baiana, tornando-a conhecida em todo Brasil, e até internacionalmente, principalmente na
época do carnaval.
Através da análise de partituras e audições musicais, confirmou-se que grande parte dos elementos
presentes nos subgêneros do axé music são típicos de manifestações culturais de matriz africana. Além do
uso de instrumentos musicais próprios de práticas religiosas afro-brasileiras, tais como o agogô, o atabaque,
o lê, o rumpi, e o rum, a música baiana também incorpora elementos advindos de culturas negras praticadas
em outros países, agregando traços de gêneros afro como o reggae da Jamaica e a salsa cubana.
Confirma-se, assim, que além das indumentárias, dos adereços, e das letras das músicas que exaltam
às tradições de origem africana, as relações entre música baiana e militância negra estende-se também às
composições musicológicas, mediante o uso de elementos típicos dessas práticas culturais. Através da
exposição do fazer musical própria dos guetos soteropolitanos no carnaval baiano, os blocos afro
conseguiram afirmar e valorizar sua identidade cultural perante o Brasil e o mundo.

Referências
AGUAYO, José Javier Peña. La música en Puerto Rico: la salsa y Robierto Sierra. Edita: Sociedad Latina
de de Comunicación Social - Edición no venal - La Laguna (Tenerife), 2012 - Creative Commons.

CASTRO, Armando A. Axé music: mitos, gestão e world music. In: MOURA, M. (org) A larga barra da
baía: essa província no contexto do mundo. - Salvador: EDUFBA, 2011.

GOMES, Sérgio. Novos Caminhos da Bateria Brasileira. São Paulo: Irmãos Vitale, 2008

GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Ed. 34, 2000.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia científica. – 6. Ed. – São Paulo:
Atlas, 2011.

MIGUEZ, Paulo. A emergência do carnaval afroelétrico empresarial. In: IX Congresso Internacional da


Brasa. New Orleans: Brazilian Studies Association Tulane University. p. 96-111. Mar. 2008. Disponível em:
< http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Paulo-Miguez.pdf> Acesso 09 Out. 2017.

MOURA, Milton. O oriente é aqui: o cortejo de referências fantásticas de outros mundos no carnaval de
Salvador. In: MOURA, M. (org) A larga barra da baía: essa província no contexto do mundo. - Salvador:
EDUFBA, 2011.

PEREIRA, Ianá Souza. Axé, Axé: o mega fenômeno baiano. Revista África e africanidades. - ano 2 - nº 8,
fev. 2010. Disponível em: <http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/Axeaxe_megafenomeno_b
aiano.pdf.> Acesso em: 18. Dez.2016.

RISÉRIO, Antônio. Carnaval ijexá; notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval afrobaiano.
Salvador: Corrupio, 1981. 156p.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. – 23. Ed. rev. e atual. – São Paulo:
Cortez, 2007.

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