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No princípio era Portugal

26.09.2012
José Luís Fiori
O sistema mundial em que vivemos - interestatal e capitalista - surgiu na Europa, e só na Europa,
entre 1150 e 1450, de um longo conflito sistêmico entre "feudos" e "centros imperiais" de poder,
que conseguiram transformar suas "economias naturais" em economias capitalistas mais poderosas
do que a dos seus rivais. Nesse período, a Península Ibérica cumpriu um papel decisivo na formação
do próprio sistema e no início da sua expansão para fora da Europa. Os reinos de Castela, Leon e
Aragão, que se transformaram no núcleo político do Império Habsburgo, que dominou a Europa,
durante o século XVI, sob a batuta de Carlos V e Felipe II. Mas antes dos espanhóis, foi o reino de
Portugal que se estruturou primeiro, como Estado nacional, e foi ele também que liderou o primeiro
século da expansão mundial da Europa, depois da sua conquista de Ceuta, em 1415.
Portugal nasceu de um pequeno "feudo" - situado entre os rios Minho e Douro - que se rebelou
contra Leon e Castela em 1143, e depois travou uma guerra expansionista de mais de dois séculos
em duas frentes: contra os muçulmanos, ao sul, e contra os espanhóis, ao leste. Foi nesse período de
guerra quase contínua com os "mouros" e os "castelhanos" que se formou o Estado português,
depois da "reconquista" de Lisboa, em 1147, e da expulsão definitiva dos árabes, do Algarve, em
1249; e depois da assinatura do Tratado de Paz, de 1432, referendando a separação e o
reconhecimento mútuo entre Portugal e Castela, algumas décadas após a Revolução de Avis, de
1385. Mas foi só no século seguinte à expulsão muçulmana de 1249 que Portugal criou as estruturas
legais, tributárias e administrativas do seu Estado moderno.
O mesmo Estado que seguiu se expandindo durante mais um século e meio depois da paz com os
castelhanos até construir o primeiro grande império marítimo da história moderna. O impulso inicial
dessa expansão "para fora" não parece ter tido um objetivo nem um sucesso mercantil imediato, e
só promoveu a ocupação e a colonização dos territórios conquistados depois de 1450 na Ilha da
Madeira. Além disso, o empreendimento português contou com ajuda externa, mas se financiou
sobretudo por meio da capacidade tributária do novo Estado, e da riqueza de suas Ordens Militares
religiosas - em particular, os Templários - que forjaram em conjunto uma verdadeira máquina de
guerra, conquista e tributação.
Península Ibérica cumpriu um papel decisivo na formação do sistema interestatal capitalista na
Europa
Na altura de 1147, a economia portuguesa era local, e o seu comércio era feito em espécie. Mas
depois de 1249, houve um aumento constante da circulação nacional de mercadorias, a partir da
reforma monetária e do tabelamento de preços, promovido por D. Afonso III, na década de 1250.
Em 1293, D. Diniz criou a primeira Bolsa de Mercadorias do país, com um sistema de seguros para
os navios e cargas portuguesas, e durante toda a segunda metade do século XIII foram criadas mais
de 40 feiras comerciais, responsáveis pela ativação de um incipiente mercado nacional.
Até o século XVI, o Estado português foi o maior proprietário de terras do país, e atuou como uma
espécie de "banco de financiamento" das atividades econômicas públicas e privadas. Foi só em
1500 que o governo português conseguiu criar o seu sistema de títulos da dívida pública
consolidada, e só foi depois de 1540 que esta espécie primitiva de "capitalismo de Estado" foi
cedendo lugar ao desenvolvimento de um capitalismo privado de grandes companhias mercantis.
Entretanto, esse processo foi interrompido em 1580, pela incorporação de Portugal pelo império
espanhol de Felipe II e, depois, pela submissão comercial definitiva de Portugal, à Holanda e à
Inglaterra, a partir de 1640.
Esta história pioneira de Portugal deixou algumas lições sobre a formação do sistema interestatal e
do próprio capitalismo:
1) O primeiro Estado nacional europeu já nasceu dentro de um sistema de poderes competitivos;
2) Suas fronteiras territoriais, sua unidade política e sua identidade nacional foram construídas por
duas guerras que duraram mais de 200 anos;
3) Essas guerras "nacionais" se prolongaram imediatamente, num movimento de expansão "para
fora", na direção da África, Ásia e América, que durou ainda mais um século e meio;
4) Essas guerras e conquistas não tiveram inicialmente um objetivo prioritariamente mercantil, mas
assim mesmo, no longo prazo, tiveram um papel decisivo na criação e expansão de uma economia
de mercado e de um capitalismo nacional incipiente;
5) Nesse período, essa economia nacional de forte cunho estatal não alcançou a se "privatizar", nem
chegou a criar um sistema nacional de bancos e crédito capaz de mobilizar o capital financeiro
português, o segredo do sucesso posterior da Holanda e da Inglaterra;
6) Por fim, se pode dizer que Portugal teve um papel decisivo no "big-bang" do "sistema interestatal
capitalista", que está vivendo uma nova explosão expansionista neste início do século XXI.

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