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A morfologia da ópera italiana1

Fabrizio Della Seta

Na história de um género artístico de vida plurisecular, como a ópera,


continuidade e descontinuidade sobrepõem-se como as camadas de uma estrutura
tectónica: nas profundezas a longa duração de uma sistema produtivo que se modifica
com extrema lentidão, à superfície as mudanças de gosto e de estilo que se dão com
uma periodicidade de trinta ou quarenta anos [...]. Há depois um estrato intermédio que
liga diversas das fases mais breves conferindo-lhes um certo carácter de unidade, o dos
sistemas de formas literárias e musicais: a ópera setecentista é dominada pelo tipo
formal da ária Da Capo, cuja popularidade se estende por cerca de um século a partir de
1680; o tipo de “finale” que caracteriza a ópera buffa na segunda metade do século
XVIII tem consequências que duram até depois de meados do século seguinte. A ópera
italiana do século XIX é governada por um conjunto de convenções formais que se
formou na primeira década do século, em boa parte como uma evolução dos modelos
setecentistas, encontrou em Rossini o seu codificador e continuou a ser
substancialmente válido para os compositores que se lhe seguiram, até ao Verdi da Aida
(1871).
“Convenção” é uma palavra chave. No decorrer do século XIX ela assumiu uma
conotação negativa nas polémicas de compositores e críticos que tinham em mente uma
renovação do teatro musical em nome da liberdade expressiva, do anti-academismo, da
superação da “ópera” pelo “drama musical”. Não devemos contudo esconder que a
convenção, no verdadeiro sentido de acordo, é o pressuposto de qualquer forma de
comunicação, e ainda mais o é numa arte eminentemente social como o teatro, fundada
na relação directa entre quem produz a obra e quem a frui: convenção é o próprio facto
da representação cénica; são convenções as regras aristotélicas do teatro clássico mas
também as anti-regras do teatro romântico, convenções o falar em verso e o recitar
cantando. Assim também as formas do teatro musical são um aspecto de um código
linguístico tacitamente partilhado por autores, executantes e público, sem o qual não se
podem compreender plenamente o sentido e a estrutura global de uma ópera.
A percepção das convenções formais que governam a ópera oitocentista tornou-
se mais débil depois do aparecimento de novas linguagens, como a do drama
wagneriano e da ópera verista, e isto também é válido para óperas que continuaram a
gozar de uma grande popularidade. Nos últimos anos, sobretudo na sequência do
renovado interesse pela ópera rossiniana, os estudiosos começaram a reapropriar-se
destes códigos, cuja consciência pode e deve ser partilhada com o público mais vasto.
Dado que estes são, como dissemos, o fundamento da composição operática até cerca de
1870, vamos ilustrar os pontos essenciais utilizando uma ópera que se posiciona
exactamente a meio do período considerado e da qual podemos presumir um
conhecimento alargado: a Lucia di Lammermoor (1835) de Gaetano Donizetti (a
exemplificação refere-se aos modelos prevalentes, mas deve-se ter presente que,
sobretudo no género buffo, foram empregues outros tipos de estrutura que não podem
ser aqui discutidos).
As convenções formais de que falamos determinam seja a organização total da
obra, seja a estrutura interna das diferentes partes. As grandes divisões formais são
quase sempre reconhecíveis a partir da leitura do libreto, antes ainda de se examinar a
partitura; tal não significa uma proeminência do aspecto literário sobre o musical, mas
1
Excerto de FABRIZIO DELLA SETA, Storia della Musica (a cura della Società Italiana di Musicologia),
vol.9, Italia e Francia nell’Ottocento, Turim, EDT, 1993, pp. 68-75.
antes que o libreto era concebido, em particular nas suas estruturas métricas, em função
da realização musical. Como no século XVIII, a ópera é dividida em “números”
definidos pela quantidade de cantores que neles tomam parte (árias, duetos, tercetos e
assim por diante); já à primeira vista é possível distinguir no libreto as secções
cantabile, realizadas em diversos tipos de versos organizados em estruturas estróficas
(“versi lirici”), daquelas que serão compostas em estilo de recitativo, para as quais é
utilizada uma alternância livre de endecassílabos e septenários (“versi sciolti”). A ópera
séria de finais do século XVIII tinha já começado a reduzir o número de trechos
solísticos para multiplicar, com base no exemplo da ópera buffa, os de conjunto; os
compositores oitocentistas prosseguem este caminho reduzindo a quantidade de
números, e também abolindo rapidamente os recitativos simples (acompanhados ao
cravo, hoje conhecidos como “recitativos secos”, aos quais Rossini, seguindo um uso já
em voga em Nápoles, renuncia para as suas óperas sérias desde 1815), a favor dos
recitativos com acompanhamento de orquestra. A Lucia é constituída por onze números:
cinco árias, três duetos, dois coros e um final (o leitor que tem na frente a partitura para
canto e piano deve ter em conta que, por motivos comerciais, na edição os números
mais longos eram posteriormente divididos).
A distribuição dos números na ópera é determinada em parte, como no século
XVIII, pelas “conveniências”, quer dizer pela relativa importância das personagens, isto
é dos cantores que as interpretavam. Na Lucia (que está dividida numa Primeira parte
com um acto único e uma Segunda com dois actos) a heroína tem duas grandes árias
dispostas simetricamente, no segundo quadro da Primeira parte e no penúltimo quadro
do último Acto. Edgardo, que é um protagonista quase da mesma importância, tem
apenas uma mas colocada estrategicamente no fim da ópera. O seu antagonista Enrico
tem também uma mas no início, depois do Prelúdio e do Coro d’introduzione (esta
posição era menos vantajosa porque o público ainda não estava concentrado). Uma ária
numa posição de transição, no primeiro Acto, tem por fim o preceptor Raimondo: no
século XVIII chamava-se a esta “aria di sorbeto”,2 e de facto a ária é frequentemente
cortada sem prejuízo para a acção (mas Raimondo tem também um solo de relevo na
narração do homicídio, que é formalmente parte de um Coro). Os comprimários
Normanno, Alisa e Arturo não têm nenhuma ária.
O respeito das conveniências não significa necessariamente sacrifício da lógica
dramática. As árias solísticas assumem a tarefa de apresentar as personagens ou de nos
mostrar a sua catástrofe; os três duetos são distribuídos de modo a satisfazer seja a
necessidade musical de disfrutar as diversas combinações possíveis dos registos vocais
seja a necessidade dramática de apresentar os confrontos directos entre as principais
personagens: entre Lucia e Edgardo, entre Lucia e Enrico, entre Edgardo e Enrico. O
remate da construção operática é porém constituído pelo Finale, um vasto complexo
cénico-musical no qual tomam parte todas as personagens da ópera e ainda o coro. Este
coloca-se sempre no ponto culminante da acção: na Lucia encontramo-lo no fim do
primeiro Acto da Segunda parte, a partir do coro “Per te d’immenso giubilo”. O Finale
“central” é a maior herança transmitida ao século XIX pela ópera buffa setecentista; é a
verdadeira peça de resistência da ópera, e pode-se dizer que toda a estrutura do libreto
foi pensada em função dele.
Cada um destes números é constituído por diversas secções bastante
diferenciadas entre si não apenas pelo andamento e a tonalidade, mas também pelo
emprego de diferentes meios estilísticos: recitativo accompagnato, canto parlante sobre
um motivo orquestral contínuo, cantabile vocal lento ou rápido; estas secções sucedem-
se de acordo com um esquema constante. Observemos três exemplos.
2
Porque o público aproveitava esta ocasião para ir, por exemplo, comer um sorvete (nota do tradutor).
A Scena e cavatina de Lucia na Primeira parte (com intervenção da comprimária
Alisa) é constituída pelas seguintes secções:

1) Scena: “Ancor non giunse” (Prelúdio, com solo concertante da harpa, e recitativo; em
versos soltos);
2) Cantabile: “Regnava nel silenzio” (Larghetto; duas estrofes em septenário cantadas
sobre a mesma melodia)
3) Tempo di mezzo: “Chiari o Dio! Bem chiari e tristi” (Allegro; octonário)
4) Cabaletta: “Quando rapito in estasi” (Moderato; duas quartinas em septenário
repetidas depois de um breve interlúdio [prevê-se também que o cantor varie a repetição
com ornamentação belcantística])

Note-se que termos como “cantabile” (muitas vezes também “primo tempo”),
“tempo di mezzo” e “cabaletta” não se encontram na partitura, mas faziam parte da gíria
operática; e que “cavatina” designa nesta época a ária com a qual uma personagem se
apresenta pela primeira vez em cena, sem implicar uma configuração formal específica
(quando porém, caso não pouco frequente, as secções se reduzem apenas às primeiras
duas, usa-se a denominação Romanza). Mais do que tudo é importante notar que as
quatro secções musicais delineiam outras tantas fases na evolução da situação
dramática: 1) preocupação de Lucia pelo atraso de Edgardo; 2) recordação angustiada
com presságios funestos; 3) retorno à realidade através de uma chamada de atenção de
Alisa; 4) reafirmação decisiva da vontade de amar de Lucia.
Se a ária solística é normalmente a expressão de um itinerário interior à
personagem, os duetos apresentam habitualmente uma situação mais complexa: o
esquema formal alarga-se para seguir a sucessão dos momentos nos quais a acção
prossegue com a troca de diálogo e daqueles nos quais ela pára na contemplação dos
sentimentos suscitados de quando em quando. Dos três duetos da Lucia aquele entre a
protagonista e Enrico (Parte II, Acto I) exemplifica de modo quase perfeito a “norma”
rossiniana. No esquema seguinte recordamos também brevemente os principais
acontecimentos da acção:

1) Preludio e Scena: “Lucia fra poco a te verrà”. Normanno informa Enrico da situação,
entrada de Lucia (recitativo depois entremeado com um Larghetto com melodia do
oboé; versos soltos);

2) Tempo d’attacco (denominação que se verifica uma única vez e que se assume aqui
por comodidade): “Il pallor funesto, orrendo”. Lucia e Enrico acusam-se reciprocamente
(em duas estrofes paralelas cantadas sobre a mesma melodia) de crueldade e obstinação;
no fim Enrico mostra a falsa carta de Edgardo (Moderato; estilo misto de parlante e
cantabile sobre um intenso movimento da orquestra; octonário)

3) Cantabile: “Soffriva nel pianto”. Lucia chora a sua própria desgraça, Enrico
aproveita-se do seu estado de abatimento (Larghetto; uma estrofe em senário para cada
uma das personagens, que cantam melodias diferentes mas no fim unem-se num canto a
dois);

4) Tempo di mezzo: “Che fia? Suonar di giubilo”. Sons festivos anunciam a chegada de
Arturo, Enrico revela a Lucia o perigo em que se encontra (Vivace; estilo parlante sobre
figurações orquestrais, rasgos de recitativo; septenário);

5) Cabaletta: “Se tradirmi tu potrai”. Enrico exerce chantagem moral sobre Lucia, a
qual desesperada se abandona ao seu destino (Allegro; duas estrofes em octonário para
cada personagem sobre a mesma melodia, interlúdio e repetição abreviada).
O mais complexo de todos naturalmente é o Finale, que ocupa sozinho metade
do primeiro Acto da Segunda parte. Fornecemos em seguida um esquema essencial, que
permite reconhecer os elementos fundamentais que já identificamos:

1) Coro introdutório: “Per te d’immenso giubilo”. Entrada de Arturo que tem um breve
solo (Moderato mosso; septenário)

2) Tempo d’attacco: “Dov’è Lucia?”. Diálogo Arturo-Enrico; entrada de Lucia e


assinatura do contrato; entrada de Edgardo (diferentes andamentos sempre com grande
actividade na orquestra; septenário);

3) Pezzo concertato (equivalente ao cantabile da ária ou do dueto): “Chi mi frena in tal


momento” (impropriamente conhecido como sexteto ou quarteto). Estupefacção geral,
sentimentos contrastantes das várias personagens (Larghetto; octonário);

4) Tempo di mezzo: “T’allontana sciagurato”. Troca de provocações, intervenção


pacificadora de Raimondo, Edgardo descobre o contrato e amaldiçoa Lucia
(andamentos diversos, com repetição de temas da secção 2; octonário);

5) Stretta (equivalente à cabaletta): “Esci, fuggi, il furor che m’accende”. Confusão


geral, fúria e desespero (Vivace; endecassílabo).

Um trecho como este distingue-se do grande Finale da ópera buffa setecentista,


do qual, como já se disse, herda a função, pelo facto que aquele tendia a desenvolver-se
de modo contínuo, sem grandes pausas contemplativas até à stretta. O afastamento do
modelo deve-se provavelmente ao exemplo do opéra comique revolucionário, onde
abundam os ensembles contemplativos; o elemento característico do finale oitocentista é
de facto o imobilizar da acção em “quadros vivos”, nos quais o tempo é como que
suspenso, o instante de um pensamento desmesuradamente dilatado. Com outros
conteúdos, este procedimento descontínuo foi amplamente aplicado na ópera buffa do
início do século XIX, por exemplo no primeiro Finale do Barbiere di Siviglia, também
ele construído por uma série de andamentos “de acção” que conduzem primeiro a um
prolongado momento de estupefacção (“Freddo ed immobile”), depois de confusão
geral (“Mi par d’esser com la testa”).
Que avaliação devemos fazer deste conjunto de processos, que nunca foram
completamente codificados mas cuja difusão universal foi assegurada por transmissão
oral e através do exemplo? Por volta de 1850 começou-se a mostrar impaciência pelo
uso já então repetitivo de tais esquemas, começou-se a falar de “solita forma”, de
“lugares comuns”, de “fórmulas”, mas isto não nos deve impedir de reconhecer as
vantagens trazidas pela sua adopção no início do século. Na ópera séria setecentista
vigorava o princípio da separação entre o avançar da acção, que ocorria nos recitativos,
e a expressão dos afectos, reservada às árias; também a introdução, baseada no modelo
da ópera buffa, de árias de acção e de números de conjunto não o alterou
verdadeiramente porque, excluindo os finais, cada número continuava a ser sempre
dedicado à apresentação de um determinado “momento” da situação dramática. Na
tipologia formal dominante no século XIX a aproximação de mais andamentos
diferenciados num único número favorece a integração entre acção e reflexão, que se
seguem de modo muito mais fluido, como causa e efeito uma da outra. Nos três duetos
da Lucia a acção prossegue de modo substancial, e as próprias árias, eminentemente
destinadas ao desabafo sentimental, podem apresentar importantes eventos cénicos: a
segunda ária de Lucia constitui a famosa “cena da loucura”, e a ária final de Edgardo
contém nada menos do que o suicídio do protagonista. A verdadeira ária, isto é o
momento de pura cantabilità, mantém toda a sua importância, mas integra-se num
conjunto mais vasto cénico-musical que é a verdadeira unidade de medida da acção;
também por isso a ária solística tende a ser cada vez mais enriquecida com a
intervenção de personagens secundárias e do coro.
Além disso o rápido desaparecimento do recitativo simples e a transferência de
grande parte da acção para os “tempi d’attacco” e os “tempi di mezzo” geram uma
continuidade musical no conjunto da ópera. Não se fala aqui da continuidade dramática
a que aspirarão outros tipos de ópera, como a do Verdi maduro, ou o drama musical
wagneriano: na ópera rossiniana e nos seus derivados cada trecho conclui-se com uma
cadência de carácter decisivo que dá o sinal para que se desencadeiem os aplausos.
Fala-se por outro lado do facto de que tudo, acção e reflexão, é posto em música, que já
não há zonas musicalmente inertes nas quais a atenção deve ser mantida pela qualidade
literária do texto. Por isso os recitativos simples resistiram durante mais tempo na ópera
buffa, onde podiam ainda ser veículo de sábias invenções linguísticas e de um vivaz
jogo cénico.
Enfim, a lógica que presidia às estruturas melodramáticas era muito menos
rígida do que pareceu aos seus detractores. Não por acaso, mais do que de formas,
falamos de tipos ou modelos formais. Os compositores tinham à sua disposição um
modelo cujo eixo era a sucessão lento-rápido do cantabile e da cabaletta, susceptível
contudo de variações por elisão, por síntese, por expansão, por deslocação do peso
expressivo de um para outro andamento. Mesmo o facto de tal esquema ser uma
convenção linguística permitia jogar com a expectativa do público, que esperava um
determinado acontecimento num momento bem preciso; neste jogo entre a convenção e
a sua manipulação reside em boa medida a arte dos maiores compositores italianos do
século XIX.

(trad. Luísa Cymbron)


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Assunto:
Autor: Luisa Cymbron
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