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O CONCEITO DE REPRESENTACAO SOCIAL: A QUESTAO DO INDIVIDUO EA NEGACAO DO OUTRO José Leon Crochik Instituto de Psicologia - USP O objetivo deste ensaio & 0 de refletir sobre 0 conceito de representagéio social e seu objeto, apontando que, na mudanga da relagao episte- molégica sustentada pelo termo, a prépria concepgdo de individuo se modifica. A base para esta reflexao é dada pela contraposi¢do entre 0 ‘ideal liberal de individuo e os seus limites apontados por Marx Freud. ‘Conclutse que a tentativa de se entender um objeto, produto de duas es- eras distintas, com um iinico conceito, retira as peculiaridades desta ‘dupla mediagao que o constitu Descritores: Representagdo social. Subjetividade. Consciéncia. Psi- cologia Social. Filosofia. Oz" de representago social vem se desenvolvendo e ampli- ‘ando o seu espago dentro da Psicologia Social, mas no somente nela. Neste sentido pareceu-nos oportuno tecer consideragdes sobre este conceito e sobre 0 seu objeto, no intuito de contribuir com aquele desenvolvimento e, consequentemente, com a sua critica, Para tanto, utilizaremos principalmente os capitulos que se referem diretamente & conceituagao teérica de representagao social do livro de Moscovici (1978), A Representagéo Social da Psicandilise, sem desconhecermos algumas das contribuigdes posteriores, que estdo refletidas e sintetiza- das em livros mais recentes (ver Spink, 1993). Esta estratégia delimita Psicologia USP, S.Paulo,5(1/2), p.173- 195, 1994, 173 José Leon Crochik a intengdo deste ensaio, mas pensamos que preserva a preciso do que inicialmente pretendeu-se na definig2o do conceito. Em um primeiro momento, faremos consideragdes sobre a noglio li- beral de individuo para, a seguir, pensarmos sobre as condigfes da auto- rnomia da consciéncia, que se funda na distinglo Eu-Mundo. Na terceira parte, estes elementos serdo utilizados como base da reflexo sobre o conceito misto que pretende ser a representagao social, por sua sobre- posigo das fronteiras entre 0 psiquico e o social. Sobre a nogdo de individuo Certamente uma das tarefas da Psicologia Social ¢ a de procurar entender a relago entre a constitui¢ao individual e a constituigdo da socie- dade, considerando que a auséncia de individuos marcados pela auto- nomia do pensamento e pela esfera da intimidade tornaria a sociedade estatica e calcada em uma reprodugo organica, e que a sociedade é a condigao necesséria para converter o substrato biolégico em um ser que pensa e sente, Mas a nogdo de individuo, dotado de autonomia de pensamento capaz de expressar a sua subjetividade através da apreensio dos uni- versais — formas de pensamento e de linguagem — e passivel de ser responsabilizado por seus atos, remonta ao periodo moderno (Cf. Horkheimer & Adorno, 1978b): Esta predicaco, que explora o singular ¢ o particular, converte-se-é de~ ‘ois, com Duns Escoto, nos primérdios da Grande Escoléstica, quando os estados nacionais comegam se afirmando contra 0 universalismo medic- val, na “Haccoeitas”, no principio de individuagdo, modiante 0 qual Esco- to procurou mediar a natureza humana geral, a “essentia communis, com 1 pessoa individual, o “homo singular (p.46). © que nao significa que no passado a expresso da subjetividade no existisse; basta pensar na Grécia Clissica e na sua produgdo técnica, artistica ¢ filosbfica para desmentir tal significado. Que aquela nogao 174 O Conceito de Representagdo Social: a Questo do Individuo.. de individuo seja recente na histéria da civilizagdo ocidental nfio deve implicar também que 0 substrato do conceito individuo nao existisse, pois os relatos de Homero sobre o seu personagem Ulisses jé indica- vam 0 surgimento do “eu burgués” (Cf. Adorno & Horkheimer, 1985). Contudo, diferentemente da antigiidade, o periodo modemno trazia 0 conceito de individuo como atomo social dotado de uma explicagio propria sobre a sua constituigo, ou seja, apontava para 0 espaco psiquico tal como podemos compreendé-lo atualmente. Tal nogio de individuo, embora estabelecesse um espago de in- terioridade, pressupunha a sua verdade em um fator incondicional: para Leibniz (1979), a ménada perfeita, para Kant (1991) a esfera transcen- dental, de forma que se a variabilidade individual expressava o particu- lar, este apontava para um mediador universal. Com o surgimento da esfera privada dé-se a contraposi¢o com © mundo piblico. Esta distingdo entre as duas esferas tem como base a formulagdo da nogo da liberdade, que deveria ser articulada & nog&o de autoridade. Como mostra Marcuse (1972), a submisso & autorida- de implicava 0 consentimento dado por uma subjetividade que deveria ser livre, isto é, com uma verdade que se distinguia do mundo no qual a autoridade reinava: deve-se ser livre para se submeter; no era a li- berdade que deveria surgir da submissio, mas o contririo, Nao se deve esquecer que a luta, na época, era contra os dogmas religiosos feudais, que exigiam a submissio imediata, ou seja, sem adesio livre, e que, a0 ‘mesmo tempo, © surgimento da nova ordem econémica precisava de esteios seguros para se manter. Se as explicagdes religiosas garantiam © poder de mando 4 linhagem feudal, tendo os dogmas como a garantia de sua reprodugo, era necessiria a luta contra eles através de uma outra forma de dominagao: a da consciéncia. Ou seja, 0 movimento que pretendia libertar e afirmar a liberdade da consciéncia individual como um dado a priori do homem aprisiona-o no momento em que 0 priva de objetividade. O sujeito expresso na subjetividade da consciéncia de si, para ser livre, deve libertar-se do mundo externo, entendido como empirico, contingencial, mas nesta libertago, a verdadeira opresso da consciéncia expressa pela nova forma de dominagdo é ne- gada. E esta negagao a base do surgimento do individuo moderno, que 175

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