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Comentário ao prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura (1787)

David Velanes

É inconteste que o “idealismo crítico” de Kant constitui um divisor de águas na


filosofia. Sua importância reside no fato de ele ter mudado profundamente os conceitos e as
perspectivas do pensamento filosófico. Segundo Lebrun, Kant modificou o modo de se
colocar problemas e tornou enigmático todo o campo que se acreditava bem conhecido na
filosofia. Kant criou a base do “idealismo alemão” e criou conceitos dos quais todos os
autores posteriores precisaram tomar posições.
Na época de Kant predominava o idealismo de Descartes, Leibniz e Wolff, que são
criticados pelo autor como filósofos dogmáticos. Também era forte o ceticismo,
especialmente o do empirista Hume, que terá, segundo o próprio autor, o despertado de seu
sono dogmático. Se por um lado as ideias dos céticos tendiam a pôr fim nas investigações
metafísicas, por outro, a reação dos filósofos racionalistas recaiam no dogmatismo. Essa
disputa resultou em um indiferentismo, que fez emergir a necessidade para que a razão
pudesse se submeter a um tribunal, pelo qual pudesse julgar suas próprias capacidades. Esse
tribunal é a própria crítica da razão pura, que é uma preparação para um organon da razão
pura.
Convém notar que a época de Kant foi um período efervescente nas ciências, de modo
que a mecânica de Newton, ofereceu a Kant o modelo para edificar seu idealismo
transcendental. Na introdução, Kant diz que transcendental é o conhecimento que em geral se
ocupa mais pelos modos de conhecer, à medida que este é possível a priori, do que com seus
objetos. Na introdução, Kant prefere usar o termo crítica transcendental, visto concebe sua
crítica ainda não se constitui uma ciência transcendental, mas ideia dessa filosofia.
Na segunda edição da Crítica, Kant elabora diversas alterações no texto, no sentido de
tornar as suas ideias mais claras. Uma dessas modificações é ampliação do texto “Refutação
do Idealismo”, em B 275, e que o autor pede modificação em uma nota de rodapé presente no
prefácio. Este também se apresenta em uma versão nova e ampliada em relação ao da
primeira edição da obra. Kant viu a necessidade de explicitar mais detalhadamente seu projeto
filosófico, uma vez que as ideias centrais de seu empreendimento crítico não foram bem
compreendidas na primeira edição da Crítica, publicada em 1781.
No prefácio da segunda edição, Kant explica que a tarefa de uma crítica à razão
especulativa é modificar o método até então adotado pela Metafísica. Método que se baseia
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nos exemplos dos geômetras e dos físicos. Também explica que a Crítica da razão pura é um
tratado do método, que deve delimitar os contornos e a estrutura interna da ciência. Com
efeito, a proposta kantiana é tornar a Metafísica um saber completo, não contraditório e bem
delimitado em seus princípios, para que ela possa adentrar no caminho seguro das ciências.
Kant começa o prefácio da segunda edição com os seguintes questionamentos: os
conhecimentos que são elaborados nos domínios próprios da razão seguem uma via segura da
ciência? O saber que pertence ao campo da Metafísica e que tem como instrumento a razão
pura se encontra em um caminho seguro e rigoroso? A partir de tais questões Kant parte de
uma perspectiva do progresso do saber científico para depois procurar, segundo sua
concepção de ciência, a determinação da Metafísica enquanto tal. Ele parte da situação da
Lógica, da Matemática e da Física para comparar, em seguida, com a situação da Metafísica.
Segundo Kant, desde Aristóteles, a Lógica tem trilhado o caminho seguro da ciência
sem sequer ter dado um passo para trás e nem ter avançado. Kant considera a Lógica como
um saber concluído e acabado, pois ela é uma ciência que apresenta e prova as regras formais
de todo pensar. Seu êxito se encontra no fato de ela abstrair todos os objetos e se ocupar
somente com o entendimento. A Lógica é uma propedêutica da qual as ciências necessitam
para julgar seus conhecimentos.
Feitas essas considerações sobre a Lógica, Kant começa a demarcar sua concepção de
ciência, ao explicar que a razão se encontra presente no saber científico. Algo nas ciências
pode ser conhecido a priori. Esse conhecimento a priori pode estar relacionado a seu objeto
de dois modos distintos, a saber, de um modo teórico ou de um modo prático. No primeiro, a
razão determina o seu objeto e seu conceito, e, no segundo, ela o torna real. A Matemática e a
Física são conhecimentos teóricos da razão, na medida em que determinam seus objetos a
priori. A primeira de modo inteiramente puro, e a segunda pelo menos em parte.
Segundo Kant, a priori são os conhecimentos que são absolutamente independentes da
experiência, que se distingue do empírico, que tem origem na experiência, e são, portanto a
posteriori. Entre os conhecimentos a priori, são puros os que não possuem nada de empírico.
Os juízos puros a priori são necessários e universais. Os juízos sintéticos são particulares e
contingentes.
Se as ciências trabalham com juízos, então qual tipo de juízos fundamentam estas
ciências para que elas tenham encontrado o caminho sólido? Na introdução, Kant vai analisar
a teoria dos juízos, onde destaca três tipos de juízos, a saber quais sejam:
O juízo analítico, que é um juízo que formulamos a priori, sem necessidade de
recorrer à experiência, uma vez que, com ele, expressamos de modo diferente o mesmo
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conceito que expressamos no sujeito. É universal e necessário, mas não amplia o


conhecimento. Eles são fundados em princípios lógicos de identidade e contradição.
O juízo sintético que, ao contrário, amplia sempre o conhecimento, na medida em que
diz algo de novo do sujeito, que não estava contido implicitamente nele. Os juízos sintéticos
são sempre experimentais, a posteriori, portanto são contingentes e particulares. A base destes
juízos estão na percepção. No sujeito pode estar ligado um predicado que não está contido
nele. Assim é possível dizer, por exemplo, que "todo corpo é negro", porque a percepção nos
dá a corpo e a cor negra. Eles são juízos que ampliam nosso conhecimento.
Por fim, os juízos sintéticos a priori, que é a descoberta de Kant, que são os que
fundamentam as ciências. Eles são necessários e universais, como os analíticos, e, ao mesmo
tempo, ampliam nossos conhecimentos, como os sintéticos. Esses juízos não podem se basear
nos princípios da identidade e da contradição, porque aqui não há identidade entre sujeito e
predicado; e, além disso, o seu fundamento não pode ser a experiência, percepção, porque
envolve julgamentos a priori, independente da experiência. O problema fundamental da crítica
da razão pura é o de saber como são possíveis os juízos sintéticos a priori.
No prefácio, Kant explica que a Matemática entrou no caminho seguro da ciência na
antiguidade junto ao povo grego por meio de uma revolução no modo de pensar a partir de
Tales, que demonstrou a figura do triângulo isósceles. Ficou sabido que uma figura
geométrica se poderia apresentar por construção, por meio de conceitos a priori, isto é,
independente da experiência. Portanto, poderia conhecer as propriedades da figura sem
recorrer ao uso da experiência. É essa parte a priori que é imposta pela razão ao determinar
seu objeto. Na introdução, Kant destaca que matemática trabalha com juízos sintéticos a
priori. O autor oferece o exemplo da aritmética 7 + 5 = 12 e observa que o conceito da soma
de sete e cinco não contém o resultado doze. 7 + 5 diz que somente que em 7 se deve agregar
mais 5 unidades, e isto é tudo o que a análise encontrar. Somente mediante a operação de
síntese que se pode chegar a 12. Ainda no domínio da matemática, mas agora na geometria,
Kant oferece um segundo exemplo. A linha reta é a mais curta entre dois pontos. Não há
dúvida de que se trata de ser um juízo a priori, analítico. Mas também é sintético, pois o
conceito de mais curta não está contido no sujeito linha reta. O predicado só se extrai
sinteticamente.
No prefácio, ainda no sentido de clarificar sua concepção de ciência, tal como de sua
metodologia, como exemplo de revolução na maneira de pensar, Kant apresenta a Física
(ciência da natureza). Segundo ele, foi a partir de Galileu, Torricelli e Stahl, com seus
experimentos, que se compreendeu que a razão só entende aquilo que ela mesma produz. Ela
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se coloca na frente da natureza com seus princípios. Assim, a razão pode forçar a natureza a
responder suas perguntas em vez de se deixar guiar por ela. As experimentações devem ser
realizadas por meio de um projeto racional prévio. Com efeito, a razão pode procurar na
natureza aquilo que nela pôs, e assim, aprender com a mesma o que ela não pode aprender por
si só. A natureza, que não é vista por Kant como um livro aberto a ser lido, pode ser
interrogada segundo as exigências da razão. Na introdução, Kant destaca que a física também
trabalha com juízos sintéticos a priori. O autor oferece o exemplo da proposição da física, em
todas as transformações do mundo corporal a quantidade de matéria permanece inalterada. É
um juízo necessário, porque a física parte do princípio de conservação da matéria e sem ele
não poderia funcionar. Dessa forma é um juízo a priori, não se funda na experiência, mas é o
fundamento desta. Mas segundo Kant, se trata também de um juízo sintético, uma vez que no
conceito de matéria não está implícito o conceito de permanência. No sujeito, apenas a ideia
de matéria é contida como o que preenche o espaço, mas não que seja permanente ou não;
portanto, este é um juízo sintético.
Por que a Metafísica não se encontra na mesma situação que essas ciências? São
possíveis juízos sintéticos a priori na metafísica? Segundo Kant, no prefácio, a Metafísica,
desde sua origem, permaneceu sem se importar com o ensinamento da experiência. Ela se
ateve meramente ao conhecimento especulativo da razão por meio de conceitos, sem os
aplicar na experiência, diferente, portanto, da Matemática e da Física. Por isso, o saber
metafísico tem sido um tatear às cegas por meio de conceitos puros. Sem o tribunal da
experiência, toda construção metafísica poderia se pretender verdadeira, visto que nenhum de
seus conhecimentos pode ser confirmado ou desmentido, o que acarreta em contradições.
Assim, a Metafísica, não pôde adentrar no caminho seguro da ciência, ela tem sido uma
ilusão. Nela, não se alcança um saber objetivo e não se estabelece um acordo entre seus
diversos autores. As noções metafísicas são somente a priori e, dessa forma, conduzem a
contradições. Na introdução, Kant diz que os juízos da metafísica - como, por exemplo, "Deus
existe" - terão de ser juízos a priori, já que a metafísica tenta precisamente saber o que vai
além da experiência. Além disso, terão de ser juízos sintéticos, já que "não se trata apenas de
analisar e assim explicar analiticamente os conceitos que fazemos a priori" de Deus e mundo,
por exemplo. Aqui reside a grande dificuldade da metafísica.
No prefácio, Kant pergunta: o que é possível fazer para que se tenha mais sorte em uma nova
tentativa para pôr a Metafísica no caminho seguro da ciência? Ou será tal tarefa impossível?
A proposta de Kant é tomar a Física e a Matemática como exemplos, para por meio de
analogia e imitação do procedimento metodológico dessas ciências, verificar se é possível
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mais êxito no campo da Metafísica. Kant vê, a partir do método dessas ciências, a necessidade
de mudança na relação entre sujeito e objeto do conhecimento na Metafísica. Ele propõe que
se assuma que os objetos sejam regulados por nosso conhecimento, subvertendo, portanto, a
relação sujeito-objeto. Nessa parte do prefácio, em B XVII, encontra-se a analogia com a
revolução estabelecida por Copérnico, que deu enfoque ao espectador e deixou os astros em
repouso. Esse método aplicado à Metafísica diz respeito em tratar seus objetos por meio de
regras a priori que fundamentam e ao mesmo tempo limitam o conhecimento.
Em nota, Kant diz que sua proposta em seguir o modelo copernicano em fazer uma
reforma no modo de pensar é apresentada no prefácio como uma hipótese, mas que é tratada
seriamente na Crítica e provada apoditicamente, a partir das formas a priori da sensibilidade
e do entendimento. As formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo, que são
modos pelos quais o espírito percebe as coisas. O espaço é a forma do sentido externo, e o
tempo, a forma do sentido interno. As formas a priori do entendimento são as categorias, que
são maneiras próprias do espírito regular as coisas. As categorias são maneiras de ligar, elas
não oferecem nada a conhecer. Somente as intuições sensíveis podem lhes dar um conteúdo,
uma multiplicidade a ser ligada. Conhecer, para Kant, é ligar em conceitos a multiplicidade da
intuição sensível.
Na Introdução, Kant diz que todo conhecimento começa pela experiência, porém nem
todo ele se deriva dela. Os objetos que afetam nossos sentidos se transformam em
representações. Estas serão comparadas, ligadas ou separadas pela faculdade do
entendimento, e assim, transformadas em conhecimento.
Segundo Kant, que é possível representar a possibilidade de um conhecimento a priori
do objeto se este puder ser regulado mediante a faculdade da intuição (sensibilidade). Assim,
uma vez representados por esta faculdade, os objetos da experiência são pensados mediante
outra faculdade, que é espontânea, isto é, a faculdade do entendimento, por meio de seus
conceitos a priori. Isso implica em uma correlação direta entre objeto e conhecimento. É o
conhecimento que constrói o objeto.
Acerca de seu “método modificado da forma de pensar”, Kant diz que é preciso
procurar na razão pura aquilo que possa ser confirmado ou refutado pela experiência.
Diferentemente do que ocorre na Física, as proposições da Metafísica quando ultrapassam os
limites de toda experiência possível, não permitem que se faça qualquer experimento com
seus objetos. Assim, na aplicação do “método modificado” decorrem dois resultados, quais
sejam: que a primeira parte da Metafísica deve se ocupar dos conceitos a priori que cujos
objetos correspondentes podem ser encontrados na experiência em conformidade com esses
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conceitos, e que na segunda parte da Metafísica, a que se ocupa das coisas suprassensíveis,
isto é, que ultrapassam todos os limites da experiência possível, como Deus, imortalidade da
alma e liberdade, deve ficar excluída a possibilidade de conhecer algo que não possa ser dado
na experiência.
Para Kant, esse último resultado é estranho e aparentemente prejudicial. É apenas
aparente porque limitar o conhecimento da razão especulativa a toda experiência possível não
implica em negação, mas na modificação no modo de uso que a razão faz acerca dos objetos
que transcendem a experiência. O problema que emerge é o de encontrar o método que possa
harmonizar as duas partes da Metafísica, sem que se exclua os princípios da primeira e sem
negar os interesses da segunda. Isso quer dizer que as duas partes da Metafísica devem ser
pensadas como uma unidade sistemática.
O primeiro resultado da avaliação do conhecimento a priori da razão é um resultado
negativo, pois implica que só se poderá trabalhar com conceitos e princípios a priori na
medida em que eles sejam estruturados de modo que possam ser dados na experiência os
objetos correspondentes. Como visto, esse resultado implica em consequências para a
segunda parte Metafísica, que é aquela que busca o incondicionado, e assim ultrapassa os
limites de toda experiência possível. Desse resultado, implica que só podemos conhecer
fenômenos e não as coisas em si. Os fenômenos são as coisas tal como as conhecemos, e as
coisas em si são as coisas que não estão submetidas às condições das faculdades do
conhecimento. Embora as cosais em si sejam reais, somente podem ser pensadas.
Segundo Kant, é o incondicionado que nos impulsiona a ir além dos limites de toda
experiência possível. Em direção ao incondicionado, a razão busca unificar os conhecimentos
dispersos do entendimento, que são todos condicionados. A razão busca oferecer uma unidade
total à série de condições. Kant diz que se supormos que nosso conhecimento seja regulado
pelas coisas em si mesmas, então o incondicionado só pode ser pensado em contradição. Mas
se supormos que os fenômenos sejam regulados pelo nosso modo de representação, então não
pode haver contradição. A conclusão de Kant é de que o incondicionado precisa ser buscado
não nos fenômenos, mas nas coisas em si mesmas.
Kant destacada duas utilidades pertinentes à crítica da razão especulativa. A primeira
diz respeito a uma utilidade negativa, pois se refere àquele resultado que limita a segunda
parte da Metafísica para que não ultrapasse os limites de toda experiência possível. Mas,
segundo Kant, essa negatividade logo se torna positiva, que é a segunda utilidade, na medida
em que a razão, ao deixar de se arriscar com seus princípios para além da experiência, evita a
desvalorização e a redução de seu uso no campo prático. Para Kant, há um uso prático
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necessário da razão pura, que é o campo da moral, ao qual a razão pode se estender para além
dos limites da experiência. A razão prática terá como objeto não mais os conceitos, mas as
ideias apresentadas pela razão. Na busca pelo incondicionado, a razão localiza três ideias
absolutas, quais sejam, as ideias de alma, mundo e Deus. Kant considera uma “ilusão
transcendental” quando a razão busca atribuir realidade objetiva a essas ideias, uma vez que
delas nada podemos conhecer.
No prefácio, Kant deixa claro que é preciso primeiro demonstrar que existe uma
vontade livre para que depois se possa estabelecer uma discussão acerca das ideias de Deus e
alma. Acerca do conceito de liberdade é preciso que haja uma relação não excludente entre a
causalidade presente na natureza e a liberdade da vontade. Daí, Kant passa a discutir a questão
da liberdade, a partir dois pontos de vistas antes estabelecidos acerca do objeto, isto é, a
distinção entre objetos da experiência (fenômenos) e coisas em si.
Segundo Kant, se não fosse instituída tal distinção, o princípio de causalidade valeria
para todas as coisas em geral, e teria, como resultado, uma contradição, o que significaria, por
exemplo, que seria contraditório afirmar que a alma humana é livre, e afirmar, ao mesmo
tempo, que ela é determinada pelo mecanismo natural, ou seja, não livre. Kant explica que a
contradição resulta no fato de que o conceito de alma foi tomado pelo mesmo significado em
duas proposições diferentes.
Os dois pontos de vistas, estabelecidos pela crítica, mostram que o objeto deve ser
tomado em dois significados, isto é, como fenômenos e coisa em si. Desta forma, o princípio
de causalidade pode se aplicar aos fenômenos, como causalidade natural, e às coisas em si,
como causalidade inteligível. Em suma, os fenômenos podem ser pensados como não livres,
como objetos subordinados ao mecanismo da natureza, e as coisas em si como livres, como
objetos que não se encontram submetidos à causalidade natural, e assim evita-se a
contradição.
Assim, Kant apresenta um domínio da natureza e um da liberdade que são
independentes entre si. Isso quer dizer que a liberdade não é contraditória. Ela não se opõe ao
mecanismo natural. A liberdade pode ser pensada, sem contradição, como coisa em si,
embora não possa ser conhecida como fenômeno, pois ela é um conceito para o qual não
existe um objeto sensível correspondente.
Segundo Kant, se a moral pressupõe a liberdade, e se a razão especulativa tivesse
provado que não podemos pensá-la, então a moral seria impossível e deveria ceder lugar ao
mecanismo natural. Entretanto, com a distinção feita entre fenômenos e coisas em si, a moral
e a natureza encontram seus lugares. Kant informa que a mesma elucidação acerca do
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conceito de liberdade se aplica para as ideias de Deus e alma, que são apenas mencionadas no
prefácio. Essas ideias só podem ser supostas ao uso prático da razão depois de uma
modificação tanto na forma de acesso como no campo do conhecimento que elas têm
ocupado, e na medida em que a razão especulativa reconheça seu limite ao acesso a elas.
Convém notar que tal restrição do uso da razão especulativa (utilidade negativa) acerca dessas
ideias amplia o seu uso prático (utilidade positiva).
É nesse impasse entre o uso da razão especulativa e o uso da razão prática que faz
sentido a conhecida frase de Kant: “tive que suprimir o saber para ceder lugar à fé”, isto é,
suprimir o saber confuso e tateante da razão teórica acerca das coisas em si para que estas
possam ser pensadas pela razão prática, no campo da moral.
Segundo Kant, o dogmatismo da metafísica era fonte de incredulidades, portanto hostil
para a moralidade. As pretensões do pensamento dogmático se encontravam no monopólio
das Escolas, onde os filósofos procediam em suas ideias sem uso da crítica da razão. É assim
que, conforme Kant, a limitação que a razão especulativa encontrou mediante a crítica apenas
deve atingir o monopólio das escolas e não o interesse geral dos homens, os quais possuem
um interesse natural em resolver as questões referentes à condição humana. Como é aos
filósofos dogmáticos que a crítica da razão é destinada, e ela é constituída por argumentos
finamente construídos, o tratado não poderá se tornar popular.
Kant afirma que a crítica não se opõe ao procedimento dogmático da razão como
ciência, mas ao dogmatismo, pois este se apoia em conhecimentos para os quais não são
informados como foram alcançados, ou seja, o dogmatismo é o conhecimento da razão
especulativa sem uma crítica da sua capacidade para conhecer. A crítica da razão pura é
necessária para o estabelecimento de uma Metafísica rigorosa, isto é, fundada como ciência,
que deve se desenvolver, dessa forma, sistematicamente pelo procedimento dogmático da
razão, uma vez que ela é um saber totalmente a priori. Para Kant, foi Wolff quem mais se
aproximou do modelo sistemático rigoroso da metafísica, mas sua falta foi não ter preparado
o terreno da crítica da razão, falta esta que era uma característica de sua época de pensamento.
Na última parte do prefácio, Kant ressalta sobre a importância de seu projeto crítico e
sobre as dificuldades de compreensão que o mesmo oferece. Ele reconhece a complexidade
dos argumentos e temas expostos no tratado, mas não deixa de criticar o público, que poderia
se ocupar do pensamento crítico e contribuir para pôr a Metafísica no caminho seguro da
ciência. O público, em geral, possui uma tendência ao comodismo no modo de pensar, pelo
qual estariam acostumados a pensar dogmaticamente sobre as coisas que não podem entender.
Também há uma preocupação de Kant acerca das intepretações de sua obra, e por isso ele
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enfatiza sobre as alterações e melhoramentos realizados no texto, que, segundo ele, nada foi
modificado nos sentidos das argumentações, mas apenas em algumas apresentações, para
tornar suas ideias mais compreensíveis.
A segunda edição da Crítica traz consigo a ampliação do texto “Refutação do
Idealismo” na “Dialética transcendental”, que é informado pelo autor, em nota de rodapé,
entre os últimos parágrafos do prefácio. A nota diz respeito à refutação do idealismo
dogmático, pelo qual se oferece uma prova da existência das coisas exteriores, e que Kant
solicita uma modificação. Julgamos que o argumento em si é de difícil compreensão, que
impõe a necessidade de ler o texto em B 275. É esclarecedor o artigo de Pedro Costa Rego
intitulado “Idealismo e refutação do idealismo na filosofia crítica de Kant”, publicado na
revista Kritérion. De acordo com o autor, o argumento de Kant diz que: a) pela consciência
que tenho das minhas experiências internas, posso as identificar como ocupando posições
temporais determinadas, que fazem da “consciência empírica da minha representação” uma
“consciência empírica da minha existência”; b) as posições temporais das minhas experiências
internas, e com elas a minha existência, apenas podem ser determinadas por algo permanente;
c) esse algo permanente não pode se encontrar em mim, pois as representações que tenho
podem ser variáveis, até aquelas referentes à matéria; d) a representação “Eu sou”, é
permanente, mas não é intuitiva, e por isso não pode determinar as posições temporais das
minhas experiências internas. Assim, a representação “Eu sou” não pode representar o Eu
permanente como determinado na existência; e) logo, a consciência que tenho das
representações do meu sentido interno somente é possível pela existência de algo que seja
permanente externo e que não seja representação.
Por fim, Kant ressalta que sua obra se encontra realizada sistematicamente, como um
órgão no qual todos os elementos estruturais se relacionam entre si, onde o todo existe para
cada parte e cada parte para o todo. Embora Kant reconheça que todo sistema filosófico
contém em si pontos fracos, uma vez que não são iguais às exposições matemáticas, ele diz
que espera que seu sistema deva se manter imutável até o futuro.

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