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ANO X No 145 – www.portalespacodosaber.com.br ANO X No 147 – www.portalespacodosaber.com.

br

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GENUINAMENTE
BRASILEIRA
A herança europeia e o desafio da
construção de uma Filosofia nacional

GUINADA PROGRESSISTA ALIMENTAÇÃO DE IDEIAS


A doutrina social da Igreja Conheça as correntes filosóficas
e seus novos fundamentos que apoiam o veganismo
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DE CIÊNCI
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CI AIS & EDUCAÇÃ
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CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO: O DIREITO À CIDADE • HUMANIDADES NO


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O ENEM NO NOVO GOVERNO • PROFESSOR EDUCADOR OU LIBERTADOR? (EM NIETZSCHE E STIRNER)
HUM ANIDAD DOR?
OU LIBERTA
EDUCADOR NER)
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(EM NIETZS
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EDITORIAL

A herança
ou o exotismo
P
or que não temos uma Filosofia genuinamente
brasileira? O que significou para o país, ao longo
de toda a sua existência, conviver com ideias
provenientes de um legado colonial, Filosofia escri-
ta e pensada a partir da realidade europeia? Por que outros
países também colonizados produziram sistemas filosóficos
que se tornaram tradição de pensamento? Eis as perguntas
que o artigo de capa desta edição, de autoria de João de
Fernandes Teixeira, também colunista assíduo de Filosofia,
tenta responder.
Teixeira aborda, sem meias-palavras ou ilusões, o desafio
da construção de um pensamento genuinamente brasileiro,
considerando também o risco da formulação de sistemas
tão exóticos, quanto insignificantes para além dos olhos de

SHUTTERSTOCK
seus idealizadores. Para o autor, buscar uma filosofia espe-
cificamente brasileira ou sistemas filosóficos canibais, como
fez o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, citado no
artigo, pode ser interessante para a Antropologia, mas não
para a Filosofia.
“Uma filosofia especificamente brasileira, com a pretensão de expressar nossa
identidade nacional através do pensamento corre o risco de produzir um sistema de
ideias exóticas, ou seja, de produzir algo interessante apenas do ponto de vista de
nossos ‘descobridores’ e ‘colonizadores’”, escreve Teixeira. “Seria algo comparável a
um passeio de jipe na favela da Rocinha, algo para que os europeus se divertissem,
ou se penalizassem. Uma espécie de filosofia-suvenir, uma filosofia jabuticaba” – diz
o autor, sendo esta última expressão parte do título de seu texto neste número da
revista.
Para Teixeira, uma “filosofia monumental brasileira” seria um paradoxo. Ao passo
que uma formação sem a presença de autores e filósofos brasileiros, em suas tentati-
vas de construir algo que tenha uma exclusiva identidade nacional, também não seria
nada saudável. Engolir um “entulho religioso” e autoritário, cada vez mais mesclado
na política, segundo Teixeira, seria um dos grandes riscos da manutenção dessa práxis
no ensino. Assim como a tradição contrária ao conservadorismo também não tem
ajudado muito a Filosofia a se desenvolver no País. Para mais detalhes da abordagem
desses temas, corra os dedos pelas páginas a seguir e boa leitura!

Da Redação

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 3
SUMÁRIO ANO X No 145 – www.portalespacodosaber.com.br

ER DA
O POD TIRA,

POR
MEN
REN
ATO
ANO X No 147 – www.portalespacodosaber.com.br

RIBEIRO
JANINE

número 147
GENUINAMENTE
BRASILEIRA
A herança europeia e o desafio da
construção de uma Filosofia nacional

GUINADA PROGRESSISTA ALIMENTAÇÃO DE IDEIAS

IMAGENS:
A doutrina social da Igreja Conheça as correntes filosóficas
e seus novos fundamentos que apoiam o veganismo
DE CIÊNCIAS
CADERNO
EDUCAÇÃO
SOCIAIS &

SHUTTERSTOCK HUMANIDADES

PROFESSOR
DIREITO À

NO ENEM

EDUCADOR
(EM NIETZSCHE
CIDADE

NO NOVO
GOVERNO

OU LIBERTADOR?
E STIRNER)
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO: O DIREITO À CIDADE • HUMANIDADES NO
ENEM NO NOVO GOVERNO • PROFESSOR EDUCADOR OU LIBERTADOR? (EM NIETZSCHE E STIRNER)

6 54
ENTREVISTA FILO ORIENTAL
Para Alonso Bezerra Dignidade e paciência em Confúcio,
de Carvalho, docente na coluna de André Bueno
da Unesp, a Filosofia é campo

56
de estudo e de reflexão
BRASIL/
com contribuições das mais
CAPA
relevantes para a história da
Como o
humanidade
Brasil, com um passado
marcado pela ignorância,

10
poderia produzir pensamento
filosófico? Será que isso nos
atrela, definitivamente, ao
passado filosófico dos países
HOMENAGEM
colonizadores?
Obra de Ivo Assad Ibri, regada
ao pragmatismo peirceano,

67
é tema de livro organizado PARA REFLETIR
com a participação de Literatura, Artes Visuais e
diversos autores Filosofia da Mente nos espaços
comandados por Ana Haddad, Walter Cezar Addeo

20
e João de Fernandes Teixeira
RELIGIÃO
O momento

74
em que
a Igreja passou a intervir
formalmente nas questões
sociais e econômicas, em seus ATUALIDADE
erros e acertos Brasil é pioneiro em educação
vegana no ensino básico, com

30
base na Filosofia e mesclada a
MESOLOGIA
diversas disciplinas
Uma discussão acerca das teorias
(e dos teóricos) geocentristas, por

82
Rodrigo Petronio OLHO GREGO
O poder da mentira, na política e na
vida social, por Renato Janine Ribeiro
CADERNO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS & EDUCAÇÃO
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


• O direito à cidade
DIREITO À CIDADE

HUMANIDADES NO ENEM NO NOVO GOVERNO

PROFESSOR EDUCADOR OU LIBERTADOR?


(EM NIETZSCHE E STIRNER)

CO M
• Humanidades no Enem no novo governo P RO P O
STA
D IDÁT IC
A

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS • ciência&vida • 33


• Professor educador ou libertador? (Em Nietzsche e Stirner)
MOMENTO DO LIVRO

A arma secreta de Hitler


e Poder e queda da Gestapo
A Gestapo (ou Polícia Secreta do Es- favor do sistema e do nazismo.
tado) se dedicava a manter o regime na- A Editora Escala traz nestes livros ins-
cional socialista da Alemanha, e cabia a pirados nos arquivos da própria Gestapo,
ela investigar e anular os inimigos de Hi- informações de testemunhas, o desen-
tler. Tinha o claro objetivo de espalhar o YROYLPHQWRGDRUJDQL]DomRVXDVÀJXUDV
medo, com os aperfeiçoados requintes chaves, como Reinhard Heydrich e Hein-
de perversidade num Estado totalitário. rich Muller, seus métodos brutais e como
Era especialmente a máquina predisposta a Gestapo lidou com a segurança interna,
para forjar terror e ódio na mente huma- incluindo as diversas tentativas malsuce-
na contra povos, raças e religiões, tudo a didas de assassinar Aldolf Hitler.
Volume 1 Volume 2

Livro: A arma secreta de Hitler, Poder e queda da Gestapo


Número de páginas: 103 e 191
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ENTREVISTA Alonso Bezerra de Carvalho

Essencial e
necessária
Para docente da Unesp, a
Filosofia é campo de estudo
e de reflexão com contribuições
das mais relevantes para
a história da humanidade
Por Fábio Antonio Gabriel

O
entrevistado desta edição é graduado em
Filosofia (1986), em Ciências Sociais (1992) e
mestre em Educação (1997) pela Faculdade de
Filosofia e Ciências da Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Campus de Marília. Doutor
em Filosofia da Educação (2002) pela Faculdade de Educa-
ção da Universidade de São Paulo (USP). Livre-Docente
(2013) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Em
2007 fez pós-doutorado em Ciências da Educação na
Universidade Charles de Gaulle, Lille, França. Atualmen-
te é professor adjunto no Departamento de Educação da
UNESP, Campus de Assis e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da UNESP, Campus de Marília. Conver- como Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás
sa com os leitores da Revista Ciência e Vida sobre Filosofia de Aquino, Maquiavel, Descartes, John Lo-
da Educação e ética na educação. cke, Hume, Hobbes, Rousseau, Kant, He-
gel, Marx, Comte, John Dewey, Nietzsche,
FILOSOFIA • Prezado Alonso, você como estudioso da Filo- Heidegger, Sartre, Adorno, Horkheimer,
sofia da Educação poderia nos falar sobre alguns filósofos Foucault, Habermas, entre outros, foram
que demarcam relevância na história da filosofia? de fundamental importância na construção
??????????

ALONSO DE CARVALHO • Sempre considerei que a Filosofia e consolidação do pensamento humano no


é um campo de estudo e de reflexão que tem dado gran- Ocidente. Com eles, a política, a educação,
IMAGEM: ACERTO PESSOAL

des contribuições para a história da humanidade. Filósofos a ciência, a ética, a estética e muitos outros
campos do saber e da ação humana sofrem
as suas influências, no sentido de transfor-
Doutorando em educação com bolsa de doutorado concedida no âmbito
CAPES/Fundação Araucária, organizador de diversos livros na área de mar nossas concepções e atitudes no mundo
filosofia & educação: www.fabioantoniogabriel.com e na sociedade.

6 • ciência&vida
FILOSOFIA • Descartes é um filósofo que marca Para Kant, a disciplina
o início da modernidade. Como você entende a
contribuição de Descartes para pensar a educação? é um momento
ALONSO DE CARVALHO • Como sabemos, a moder-
nidade é o período do predomínio da ideia de que fundamental no
a ciência e a técnica podem desvelar toda a realida-
de, e que a razão humana cumpre uma função fun-
processo de formação
damental. É Descartes quem mostra que por meio do homem. Ela dá a
de um método de pensamento seríamos capazes de
chegar a um conhecimento certo e indubitável, sub- oportunidade para que
metendo os dados da natureza, por exemplo, a um
procedimento de análise, de tal maneira que todo o
ele, o homem, saia do
observável, tratado como objeto, seja reduzido aos seu estado de selvageria,
seus elementos mais simples. Embora não fosse in-
tenção de Descartes fornecer contribuições efetivas elemento comum a
para a educação, a forma pela qual pautou a sua vida
e o relato dos exercícios que praticou para alcançar
todos os animais, em
algo de seguro e fixo para chegar às ciências, apon- direção ao cultivo de
ta um percurso que podemos utilizar para pensar e
compreender as questões educacionais, sobretudo se suas sementes de
considerarmos a educação também como uma ciên-
cia ou, pelo menos, como um processo que adota humanidade
procedimentos próprios da atividade científica.

FILOSOFIA • Kant é um pensador importante na


história da filosofia. Quais as principais contribui-
ções de Kant para a educação sobretudo na obra
“Sobre a pedagogia”? Kant dá um destaque para a
importância da disciplina no processo educacional.
Como você percebe a importância de estudos sobre
a disciplina e indisciplina no campo educacional?
ALONSO DE CARVALHO • No seu texto, Kant é ca-
tegórico em dizer que “o homem é a única criatura
que precisa ser educada”. Segundo ele, esse proces-
so educativo se compõe desde os cuidados com a
infância (a nutrição, por exemplo) até chegar à ins-
trução propriamente dita, que vai garantir à espécie
humana o cumprimento de sua finalidade, que é
chegar a um estado melhor no futuro. Tudo isso sem
desconsiderar a disciplina. Para Kant, a disciplina é
um momento fundamental no processo de formação
do homem. Ela dá a oportunidade para que ele, o
homem, saia do seu estado de selvageria, elemento
comum a todos os animais, em direção ao cultivo de
SHUTTERSTOCK

suas sementes de humanidade. Portanto, estudar e


pensar hoje o tema da disciplina é importante para
construirmos um processo pedagógico que supere a Immanuel Kant

ciência&vida • 7
ENTREVISTA Alonso Bezerra de Carvalho

esteve baseada nessa ideia teleológica de felicidade.


Em Ética a Nicômaco isso fica bem claro: “o homem
feliz vive bem e age bem; pois definimos a felicidade
como uma espécie de boa vida e boa ação”. Sem
sombra de dúvida, essa proposta aristotélica é bas-
tante atual, inclusive para o campo da educação.

FILOSOFIA • Quais filósofos contemporâneos, na


sua opinião, podem contribuir para se pensar a
educação na atualidade?
ALONSO DE CARVALHO • Nos tempos mais recen-
tes há profundas mudanças nos paradigmas e con-
cepções filosóficas que orientam o pensamento e as
ações humanas. Se por muito tempo predominou a
noção de que existiam parâmetros universais, abso-
lutos e metafísicos que davam sentido à vida e ação
humana, filósofos como Foucault, Richard Rorty, De-
leuze, Guattari, Levinas, Axel Honneth, entre outros,
ao tratar de temas como filosofia da diferença, plura-
lidade, alteridade, reconhecimento etc., problemati-
zam essa visão, abrindo um campo de reflexão para
a área da educação de maneira extraordinária. Como
dizia já o velho Nietzsche, retomado por grande par-
te desses pensadores, o que marcou a história da fi-
losofia foi acreditar que por meio da razão seríamos
capaz de conhecer e dominar o mundo, as coisas e os
Aristóteles homens de maneira total, porém o que vemos hoje é
uma pluralidade de situações e de subjetividades que
sua animalidade. Educar é algo trabalhoso, o que exi- escapam a qualquer uniformidade. Isso é fundamen-
ge do educador uma firmeza e um rigor com o edu- tal para a educação contemporânea e, sobretudo, em
cando, de maneira a transformá-lo e tirá-lo de sua uma sala de aula. Esses autores nos inspira a pensar
conduta agressiva, egoísta, violenta e irresponsável.

FILOSOFIA • Você também tem se dedicado


Aristóteles foi
a estudar as relações entre ética e educação. professor e fundador
Pensando na Grécia, como poderíamos perceber
a contribuição de Aristóteles na obra Ética à Nicô- de uma escola, e
maco para pensar a educação?
ALONSO DE CARVALHO • Considero Aristóteles um
sua preocupação
dos filósofos que têm dado uma grande contribuição e contribuição
para se pensar a educação e a ética. Quando investiga
sobre qual é a melhor forma de viver ele procura sa- pedagógica sempre
ber qual a maneira mais adequada para o homem ser
feliz na sua relação consigo mesmo e com os outros.
esteve baseada nessa
Além de filósofo e fundador de numerosas ciências, ideia teleológica de
SHUTTERSTOCK

Aristóteles foi professor e fundador de uma escola, e


sua preocupação e contribuição pedagógica sempre felicidade
8 • ciência&vida
o processo educativo como um cultivo dos seres hu- Além das questões
manos em direção à sua emancipação e ao reconhe-
cimento do outro em sua singularidade. de investimentos
FILOSOFIA • Como filósofo como você pensa nas condições de
que poderíamos melhorar as condições educa-
cionais no Brasil? Você possui um livro “A relação
trabalho, sobretudo
professor e aluno: paixão, ética e amizade na sala na valorização da
de aula” que busca contribuir com um ambiente
mais humanizado no âmbito escolar. Poderia nos profissão docente, é
falar sobre os resultados de pesquisas apresenta-
dos neste livro?
preciso olhar com mais
ALONSO DE CARVALHO • Além das questões de in- cuidado e atenção
vestimentos nas condições de trabalho, sobretudo na
valorização da profissão docente, é preciso olhar com para a sala de aula
mais cuidado e atenção para a sala de aula. Por mais
que os professores estejam preparados epistemologi- no ensino médio. Uma boa Filosofia da educação,
camente para enfrentar os desafios do ambiente es- na minha opinião, só se sustenta quando ela está
colar, creio que ele poderia ampliar os seus horizon- em permanente diálogo com o mundo da vida e
tes e perceber que ali se encontra(m) seres humanos, dos homens, tal como faziam os gregos, que não se
com seus valores, suas angústias, suas alegrias e suas furtavam de ir às ruas para debater os problemas
expectativas, enfim, seres éticos e não apenas seres que, de alguma maneira, os afligiam.
epistêmicos. Para além dos conteúdos que aí circu-
lam, é possível, e até mesmo desejável, que a comu-
nidade escolar, sobretudo professores e alunos, crie e
invente ocasiões para experimentar novos diálogos e
novas relações. A sala de aula tornando-se um espaço
revolucionário, plural, de descoberta de si mesmo e
de conversações com o mundo e com os outros. Ao
longo do livro, eu trato praticamente dessas questões.

FILOSOFIA • Para quem deseja aprofundar seus


conhecimentos sobre Filosofia e educação quais
referenciais bibliográficos você indicaria? Na
sua visão, qual a contribuição da disciplina filo-
sofia no ensino médio para a formação das futu-
ras gerações?
ALONSO DE C ARVALHO • Felizmente, hoje há uma
produção bastante consistente acerca do diálogo
entre a filosofia e a educação. Uma busca cuidado-
sa na internet, utilizando os dois descritores (filoso-
fia e educação), podemos encontrar um conjunto
de textos (periódicos, coletâneas e livros) de boa
qualidade que abordam e articulam as duas áre-
as. Muitos desses textos são oriundos de pesquisas
não apenas teóricas, mas da própria experiência
do ensino da filosofia nas escolas, especialmente

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HOMENAGEM

Sementes de
PRAGMATISMO na
Contemporaneidade
Obra ressalta, em vida, o trabalho do brasileiro
Ivo Assad Ibri, que reflete sobre Charles S. Peirce

IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

10 • ciência&vida
Monica Aiub – Doutora
em Filosofia pela PUC-SP,
dirige o Interseção –
Instituto de Filosofia
Clínica de São Paulo.

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HOMENAGEM

S
ementes de Pragmatismo HOMENAGEAR FILÓSOFOS
na Contemporaneidade
(FiloCzar, 2018) é o títu-
VIVOS, ESTUDAR SUA OBRA,
lo da coletânea organi- SUAS CONTRIBUIÇÕES É, ALÉM DE UM
zada em homenagem a Ivo Assad
Ibri, filósofo brasileiro, referên-
RECONHECIMENTO EM VIDA, UMA
cia nos estudos sobre Pragma- FORMA DE DIVULGAR IMPORTANTES
tismo no Brasil e internacio-
nalmente, membro da Charles
REFLEXÕES E PESQUISAS QUE TRATAM
S. Peirce Society (EUA) – tendo DE QUESTÕES RELEVANTES DA
presidido esta sociedade no ano
de 2015. Ibri é fundador do Cen-
CONTEMPORANEIDADE
tro de Estudos de Pragmatismo
(PUC-SP), coordena os Encon- este brevíssimo recorte de seu
tros Internacionais sobre Prag- currículo mostra, trata-se de um
matismo (EIP) desde 1998 e é um pesquisador dedicado; mas quem
dos fundadores do grupo de tra- lê sua obra, assiste suas aulas ou
balho (GT) Semiótica e Pragma- conversa com ele sobre os desdo-
tismo da Associação Nacional de bramentos do Pragmatismo na
Pós-graduação em Filosofia (AN- contemporaneidade encontra um
POF). Integra o corpo de consul- fi lósofo inspirador, apaixonado
tores do Peirce Edition Project, da pela fi losofia, pela beleza de um
Universidade de Indiana (EUA), raciocínio correto, mas também
que edita a obra cronológica de pela beleza de uma composição
Charles S. Peirce e é editor das musical, de uma ação ética ou de
revistas Cognitio – Revista de Fi- uma ponte bem construída.
losofia e Cognitio-Estudos. Como Pela seriedade e fecundidade

ED FIGUEIREDO
de seu trabalho, pelo constante
diálogo com pesquisadores no
Brasil e no exterior, pela contínua
inspiração e orientação a pesqui- Ivo Assad Ibri, em encontro sobre
Pragmatismo
sadores interessados em questões
sobre o Pragmatismo, esta home-
nagem contou com a participação autores, cinco revisores, dois tra-
de muitos – e com o lamento de dutores e sete conselheiros edito-
tantos outros que não puderam riais envolvidos, além daqueles
participar neste momento, mas que participaram da homena-
que também o homenageariam gem de outras maneiras.
e homenageiam de outras ma- A proposta inicial foi feita
neiras, principalmente, desen- pelas professoras Maria Euni-
volvendo suas pesquisas e con- ce Quilici Gonzalez e Mariana
tribuindo para a construção do Broens, da UNESP de Marília.
conhecimento na área. Não foi nossa primeira coletâ-
Foi, portanto, um trabalho nea em homenagem a um filó-
colaborativo da comunidade sofo brasileiro e vivo. Em 2015
Capa do livro que homenageia o filósofo peirciana do Brasil e do exterior. organizamos o livro Filosofia
brasileiro Ivo Assad Ibri Somos seis organizadores, trinta da Mente, Ciência Cognitiva e o

12 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS
pós-humano: Para onde vamos? dução de obras desta natureza: não houve indicação ou escolhas
(FiloCzar), em homenagem a merecidas homenagens. temáticas por parte dos organi-
João de Fernandes Teixeira, pio- O convite delas para a orga- zadores, sendo o livro o resulta-
neiro nos estudos em Filosofia nização da coletânea também foi do dos temas destacados espon-
da Mente no Brasil. Homenagear endereçado a Eluíza Bortolotto taneamente pelos autores. Com
filósofos vivos, estudar sua obra, Ghizzi, Lucia Ferraz Nogueira de os capítulos em mãos, pensamos
suas contribuições é, além de um Souza Dantas e Marcelo S. Ma- e ponderamos as melhores for-
reconhecimento ao trabalho do deira, que participam ativamen- mas para organizá-los.
pesquisador em vida, uma forma te da organização dos Encontros Seguindo a tradição do Centro
de divulgar importantes refle- Internacionais sobre Pragmatis- de Estudos de Pragmatismo, dos
xões e pesquisas que tratam de mo. É preciso destacar que mui- Encontros Internacionais sobre
questões relevantes da contem- tos autores, além da contribuição Pragmatismo e da Cognitio – Re-
poraneidade. Maria Eunice e com seus textos, enviaram exce- vista de Filosofia, o livro contém
Mariana têm se dedicado, além lentes sugestões para a composi- textos em português e em inglês.
de suas importantes pesquisas ção da obra. A apresentação do livro é bilín-
em Filosofia da Mente, Filosofia Cada autor escolheu a forma gue e foi escrita a muitas mãos.
da Informação, Filosofia Ecoló- que considerou mais adequada Os capítulos foram agrupados
gica, entre outros campos, à pro- para expressar sua homenagem, em partes por afi nidades temáti-

MUITOS AUTORES, ALÉM DA CONTRIBUIÇÃO


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

COM SEUS TEXTOS, ENVIARAM SUGESTÕES


PARA A COMPOSIÇÃO DO LIVRO
QUE ENALTECE O TRABALHO DE IBRI
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HOMENAGEM

cas, indicando uma entre tantas


possibilidades de articulação en-
tre eles nas complexas redes que
compõem o Pragmatismo.
Dividido em seis partes, o li-
vro ressalta o caráter interdisci-
plinar dos estudos na área, mas
também explicita o equilíbrio
entre o rigor do texto acadêmi-
co e a experiência do viver dos
autores em suas relações com o
mundo, com a vida, evidencian-
do a compreensão peirciana da
filosofia como “aquele depar-
tamento da Ciência Positiva,
ou Ciência do Fato, que não se
ocupa em reunir fatos, mas sim-
plesmente com aprender o que
pode ser aprendido com essa ex- quais todos temos a agradecer Robert E. Innis (University
periência que nos acossa a cada nosso homenageado. of Massachusetts Lowell) pros-
um de nós diariamente e a todo Iniciam-se, então, os capítu- segue com Peirce’s Aesthetics and
momento” (CP, 5.120) e a má- los, nas partes expostas a seguir. the “Way of Beauty” [A Estética
xima do Pragmatismo: “Consi- de Peirce e o “Caminho da Bele-
dere-se quais efeitos que con- SOBRE A DIMENSÃO za”], apontando para uma pos-
cebivelmente teriam atuações ESTÉTICA DA sível leitura técnica e poética da
práticas, os quais imaginamos OBRA PEIRCIANA metafísica de Peirce e sugerindo
que o objeto de nossa concepção A primeira parte do livro um paralelismo desta com o ca-
possua. Então, nossa concep- reúne capítulos que abordam a minho taoísta da beleza.
ção desses efeitos é o conjunto dimensão estética da obra peir- Em Thinking Poetically with
de nossa concepção do objeto.” ciana. Iniciando com Nathan Peirce [Pensando Poeticamen-
(CP, 5.402). Houser (Indiana University) te com Peirce], Doug Anderson
O livro é aberto com o belo e Ibri’s Peirce: Poetry and Play in (University of North Texas)
poético texto do professor Lau- the Life of the Mind [O Peirce de destaca que Peirce, talvez o me-
ro Frederico Barbosa da Silveira, Ibri: Poesia e Devaneio na Vida nos poético entre os primeiros
que foi orientador de Ibri, intitu- da Mente] que apresenta o papel pragmatistas, explorou a rela-
lado De Coração a Coração. Com do sentimento na filosofia da ção entre filosofia e poesia. Re-
um breve comentário à releitura mente como um primeiro aspec- conhecendo a plausibilidade da
de Kósmos Noétos, livro de Ibri, to da dimensão estética da leitu- hipótese de Ibri sobre o pensa-
Silveira destaca pontos pelos ra que Ibri faz da obra de Peirce. mento de Peirce ter uma fonte

NEUROCIÊNCIAS, ARTE E SEMIÓTICA,


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

EM UMA PERSPECTIVA ÉTICO-ESTÉTICA,


INTEGRARAM AS REFLEXÕES CONTIDAS
SOBRE A OBRA DE IBRI E DE PEIRCE
14 • ciência&vida
PARA DISCUTIR UMA DAS HIPÓTESES DE

ED FIGUEIREDO
IVO ASSAD IBRI, AUTORAS CONSIDERAM
UM CONJUNTO DE OBRAS DO PINTOR
NGLÊS LUCIAN FREUD – TANTO
NO QUE SE REFERE AO CONJUNTO DAS
OBRAS, COMO ÀS RELAÇÕES ENTRE ELAS
E O AMBIENTE ATELIÊ, ESTABELECENDO
RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E ARTE

poética, discorre sobre o papel periência estética. Poderiam as Ibri, no lançamento do livro: lisonja e
do pensamento poético na filo- analogias musicais ou a com- disposição para discutir ideias acerca do
Pragmatismo peirceano
sofia contemporânea. preensão dos efeitos da música
Antonio Valverde (PUC-SP) nos agentes ampliar nossa com-
escreve o capítulo Giambattista preensão sobre os estados men- obras e o ambiente do ateliê – e
Vico: Filosofia e Sabedoria Poéti- tais e sobre as melhores formas estabelecem relações entre filo-
ca, a partir de um apontamento para tornar melhor o mundo que sofia e arte.
de Peirce (1839-1914) sobre uma coabitamos?
passagem da obra Ciência Nova, Lucia Ferraz Nogueira de CONTRIBUIÇÕES
de Giambattista Vico (1668-1744). Souza Dantas (Faculdade São PARA AS
Lucia Santaella (PUC-SP) e Bento – SP) e Eluiza Bortolotto INTERPRETAÇÕES DE
Aline Antunes de Souza (Uni- Ghizzi (UFMS) fecham a pri- ALGUNS TEXTOS DE
versidade Nove de Julho-SP), em meira parte com Experiência CHARLES S. PEIRCE
Por uma Estética Semiótica, pro- Estética e Continuidade na Obra A segunda parte, Contribui-
põem a relação entre estética e de Arte: A Pintura de Lucian ções para as Interpretações de Al-
lógica, assim como a elaboração Freud à Luz do “Hiato no Tem- guns Textos de Charles S. Peirce,
de uma estética de cunho semió- po” e das “Coisas sem Nome” de começa com O Enigma das Doze
tico, fundamental para a consti- Ivo Ibri. A partir de ref lexões Tinturas nos Prolegômenos de
tuição de uma semiótica da arte. sobre percepção, presentes no 1906, de Winfried Nöth (PUC-
Mente e Música: Algumas manuscrito Thelepathy and Per- -SP/Universidade de Kassel) e
Hipóteses Rumo ao Admirável, ception (1903), de Peirce, e da Juliana Rocha Franco (UEMG),
é minha contribuição (Monica hipótese de Ibri sobre uma pos- que desenvolvem um estudo so-
Aiub – Instituto Interseção – sível filosofia da arte peirciana, bre o artigo “Prolegômenos para
SP). Partindo de analogias musi- nomeada por Ibri de “Sementes uma apologia ao pragmaticismo”
cais, estabeleço um diálogo entre peircianas para uma filosofia (PAP), o terceiro da série de ar-
a obra de Ibri, de Peirce e de neu- da arte”, as autoras consideram tigos de Peirce sobre o seu prag-
rocientistas, músicos e filósofos um conjunto de obras do pintor matismo, escritos para a revista
contemporâneos. “Afinação” e inglês Lucian Freud – com des- The Monist entre 1905 e 1906.
“admirável” são conceitos-cha- taque para a especial continui- Sara Barrena e Jaime Nu-
ve, e a hipótese central diz res- dade nas relações entre as qua- biola (ambos da Universidad de
peito à afirmação de Ibri, sobre lidades da parte e do todo, tanto Navarra), em Translating Char-
a possibilidade de vivenciarmos no que se refere ao conjunto das les S. Peirce’s Letters: A Creative
o “admirável” no interior da ex- obras, como às relações entre as and Cooperative Experience [A

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HOMENAGEM

State University), em The Expe-


rience of Friendship and Being
Given the Gift of One’s Experien-
ce: A Personal and Philosophi-
cal Fragment [A Experiência da
Amizade e a Dádiva da Experi-
ência de Alguém: Um Fragmento
Pessoal e Filosófico], refletindo
sobre sua convivência com Ivo
Ibri, aponta para seu modo de
abordar a obra peirciana e pen-

ED FIGUEIREDO
sar com e através do outro. O po-
ético, o filosófico e o pedagógico
das falas de Ibri inter-relacionam
Ibri, no lançamento do livro: lisonja e disposição para discutir ideias acerca do Pragmatismo peirceano pensamento e poesia no texto
peirciano e estimulam o olhar
Tradução das Cartas de Charles Em The Continuity of the para a complexidade presente na
S. Peirce: Uma experiência Cria- Infinite Semiosis and the Falli- obra de Peirce.
tiva e Cooperativa], descrevem a bilism of Inquiry in C. S. Peirce
experiência de tradução e estu- [A Continuidade da Semiose In- SOBRE O CONCEITO
do de textos de Peirce, realizada finita e o Falibilismo da Investi- DE VERDADE
pelo Grupo de Estudos de Peir- gação em C. S. Peirce], Rossella A quarta parte do livro é
ce da Universidade de Navarra. Fabbrichesi (Universitá di Mi- composta por dois capítulos. So-
Trata-se do estudo das “Cartas lano) destaca a importância da bre a Concepção de Verdade de
Europeias”, escritas por Peirce, continuidade entre a lógica e a A. Tarski, de Edelcio Gonçalves
principalmente durante suas metafísica na filosofia de Peir- de Souza (USP), apresenta os ob-
viagens à Europa (entre 1870 e ce, apontando para os riscos jetivos da concepção tarskiana e
1883) e estabelecendo sua comu- em seccioná-las. Neste sentido, sugere que o critério de adequa-
nicação com cientistas e intelec- as contribuições de Ibri para a ção material qualificaria uma
tuais europeus. compreensão da importância definição de verdade em confor-
do conceito de continuidade midade com a concepção clássica
APORTES PARA em Peirce são fundamentais de verdade. Em seguida, partin-
ABORDAGENS para que este equívoco possa do de uma análise do paradoxo
DA OBRA DE ser evitado. do mentiroso, mostra que lin-
CHARLES S. PEIRCE Finalizando esta parte, Vin- guagens naturais não possuem
Iniciando esta parte, José cent Colapietro (Pennsylvania definição de verdade capaz de
Luiz Zanette (PUC-SP), em So-
bre a Atualidade do Conceito
do Idealismo Objetivo de Peirce,
apresenta dois modos de fazer
CAPÍTULO COM ANÁLISE DO PARADOXO
a leitura da filosofia de Peirce: DO MENTIROSO MOSTRA QUE
de um lado a leitura Thomas L.
Short, numa vertente analítica,
LINGUAGENS NATURAIS NÃO
e de outro, a de David Dilworth, POSSUEM DEFINIÇÃO DE VERDADE
hermenêutico-pragmática, apro-
CAPAZ DE CUMPRIR O CRITÉRIO
ximando esta última da leitura
feita por Ibri. DE ADEQUAÇÃO MATERIAL
16 • ciência&vida
ALGUNS TIPOS DE AÇÃO PARECEM ULTRAPASSAR
O ESCOPO DA ÉTICA TRADICIONAL, PODENDO
CARACTERIZAR A ÉTICA INFORMACIONAL COMO
UMA EXTENSÃO DE PRINCÍPIOS TRADICIONAIS

cumprir o critério de adequação EXPLORANDO da ciência e a posição coerentista


material, e que Tarski é levado IMPLICAÇÕES defendida fora da academia, no
a considerar as linguagens for- ENTRE LÓGICA E contexto da investigação Lava-
malizadas do discurso científico ÉTICA EM TEMAS -Jato da Polícia Federal brasilei-
e a introduzir a distinção entre CONTEMPORÂNEOS ra, pelo promotor brasileiro Del-
linguagem-objeto e metalingua- Esta parte é iniciada com o tan Dalagnol, de que “se nossas
gem para que seu projeto possa capítulo de Cassiano Terra Ro- crenças formam um conjunto
se realizar. drigues (ITA): Explicações, Ab- coerente, então estão justifica-
Marcelo S. Madeira (PUC- dução e Raciocínio Fingido: Uma das, e isso basta para garantir
-SP), em Charles S. Peirce: Re- Tentativa de Filosofar a Partir de sua verdade para nós”.
alismo e Conhecimento Falível, uma Folclórica Experiência Bra- Em Admirabilidade e Ação
estuda as contribuições do rea- sileira. Após apresentar o que Autônoma: Uma Reflexão Fi-
lismo peirciano para a teoria do considera um equívoco: a identi- losófica na Era dos Big Data,
conhecimento e para a questão ficação entre o conceito peircia- Maria Eunice Quilici Gonza-
“O que podemos estabelecer no de abdução e uma inferência lez (UNESP), Renata Silva Sou-
como verdadeiro em matéria de para a melhor explicação, o autor za (UNESP) e Lauro Frederico
conhecimento?”. O texto con- expõe e discute a distinção entre Barbosa da Silveira (UNESP)
sidera o falibilismo concebido as condições de verdade segundo refletem sobre a influência de
por Peirce. a filosofia pragmatista peirciana tecnologias de informação digi-
tal, mais especificamente dos Big
Data, sobre as interações agente-
-ambiente em sociedades indus-
trializadas, a partir do conceito
peirciano de admirável, os mé-
todos de fixação de crenças, pro-
postos por Peirce, e os sentimen-
tos na concepção estética de Ibri.
Juliana Moroni (UNESP) e
Mariana C. Broens (UNESP),
em Impactos dos Big Data na
Ação Humana: Um Estudo Prag-
maticista, pesquisam as impli-
cações do uso de Big Data sobre
hábitos e habilidades sociais
humanas. A partir do conceito
de hábito em Peirce e do papel
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

que a informação ecológica de-


sempenha na constituição de
hábitos sociais, as autoras apre-
sentam o conceito de Big Data,

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 17
HOMENAGEM

destacando sua possível inf lu-


ência no processo de geração de
habilidades de ação autônoma.
Vinicius Romanini (USP), em
A Retórica Segundo Peirce, apre-
senta as contribuições da retóri-
ca para o estudo da comunicação
e de seus papéis para a formação
da opinião pública, da constru-
ção das identidades culturais, da

ED FIGUEIREDO
comunicação estética e das dis-
cussões sobre a ética da atuação
política de partidos políticos e
movimentos sociais. Conjunto de autores de “Sementes” em torno do homenageado: diferentes pontos de vista e o
objetivo comum de dar destaque ao trabalho de Ibri
Finalizando esta parte, em
On Informational Ethics [Sobre
a Ética Informacional], João An- TRAÇANDO Fabbrichesi, intitulada “As raízes
tonio de Moraes (FAJOPA) e Íta- RELAÇÕES ENTRE gregas do Pragmatismo: um novo
la Maria Loffredo D’Ottaviano CHARLES S. nome para um antigo modo de
(UNICAMP) analisam a ética PEIRCE E OUTROS pensar” . Nesta conferência, Ros-
informacional, observando as PENSADORES sella Fabbrichesi defende, a par-
razões de sua aparição e os pro- A última parte desta home- tir da análise da sociedade grega
blemas que compõem sua agen- nagem inicia-se com o capítulo retratada na Ilíada, que a noção
da de pesquisa. Diante da cres- Peirce e Uexküll Sobre Semiose e de verdade pautada na ideia de
cente integração das tecnologias Rede da Vida, de Arthur Arau- poder operativo, capaz de pro-
digitais na vida cotidiana, novas jo (UFES). As noções de rede duzir bons resultados, é ineren-
possibilidades de (inter)ação no da vida e de regra comum do te tanto à cultura grega antiga
meio ambiente se dão, entre elas significado de Uexküll e o pro- quanto ao Pragmatismo, pois
ações de caráter moral. Alguns cesso de semiose de Peirce são em ambos os casos, a verdade é
tipos de ação parecem ultrapas- colocados lado a lado, sugerindo derivada de resoluções observa-
sar o escopo da ética tradicional, que para ambos os autores a vida das para determiná-la e medida
podendo caracterizar a ética in- pode ser vista como um proces- através das consequências que
formacional como uma extensão so contínuo de significação ou produz. Perine considera as raí-
de um subsistema de princípios semiose. As relações entre essas zes gregas do Pragmatismo, pro-
morais de sistemas éticos tradi- noções são analisadas segundo postas por Rossella Fabbrichesi
cionais, tornando necessária a uma visão processualista. e aborda a questão no campo da
inclusão de outros sistemas que Marcelo Perine (PUC-SP), em ética, diferentemente da autora
permitam a avaliação moral dos Pragmatismo e Virtude, comen- que aborda a perspectiva epis-
novos tipos de ação. ta uma conferência de Rossella temológica. Destacando alguns

AUTORES ABORDAM A ÉTICA INFORMACIONAL,


OBSERVANDO AS RAZÕES DE SUA
APARIÇÃO E OS PROBLEMAS QUE
COMPÕEM SUA AGENDA DE PESQUISA
18 • ciência&vida
conceitos centrais da filosofia ABORDAGEM DE RORTY INCLUI AS RAZÕES
prática de Aristóteles, no que se
refere às concepções de bem e de PELAS QUAIS A FILOSOFIA ANALÍTICA
virtude, Perine amplia a reflexão ANGLO-AMERICANA PRIVILEGIA PEIRCE
proposta por Fabbrichesi, uma
vez que ela delimitou sua refle- EM DETRIMENTO DE JAMES E DEWEY
xão à sociedade grega arcaica.
Finalizando a coletânea, o SEMENTES DE Neste artigo Ibri apresenta algu-
capítulo Peirce’s Commitment to PRAGMATISMO mas destas “sementes”. Da mes-
“Improving Kantian Philosophy”: A expressão “Sementes de ma forma que a obra de Peirce
Perspectives on Continuity and Di- Pragmatismo” é inspirada no ar- aponta “Sementes para uma Fi-
fference from Transcendentalism tigo de Ibri “Sementes Peircianas losofia da Arte”, a obra de Ibri e
[O Compromisso de Peirce para para uma Filosofia da Arte” , no sua influência em pensadores da
“Aperfeiçoar a Filosofia Kantia- qual Ibri observa que apesar de contemporaneidade – algumas
na”: Perspectivas sobre Continui- Peirce não ter formulado uma delas apresentadas neste livro –
dade e Diferença do Transcenden- Filosofia da Arte, a leitura sistê- lança “Sementes de Pragmatismo
talismo], de Rosa M. Calcaterra mica de sua obra permite pensar na Contemporaneidade”. Fica o
(Università di Roma) apresenta a uma Filosofia da Arte a partir convite à leitura e à pesquisa das
abordagem interpretativa de Ror- de “sementes” por ele deixadas. “sementes” lançadas.
ty sobre a herança dos clássicos do
Pragmatismo. Segundo a autora, a
abordagem de Rorty inclui as ra- GHIZZI, Eluíza Bortolotto et. al. Sementes de Pragmatismo na Contemporaneidade:
REFERÊNCIAS

Homenagem a Ivo Assad Ibri. São Paulo: FiloCzar, 2018.


zões pelas quais a fi losofia analí-
IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: A arquitetura da metafísica em Charles Sanders Peirce.
tica anglo-americana privilegia São Paulo: Paulus, 2015.
Peirce em detrimento de James e
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

IBRI, Ivo Assad. “Sementes Peircianas para uma Filosofia da Arte” In: Cognitio: Revista de
Filosofia. São Paulo, v. 12, n. 2, 2011. pp. 205-219.
Dewey. Contudo, segundo ela, há,
FABBRICHESI, Rossella. “As raízes gregas do Pragmatismo: um novo nome para um antigo
na interpretação de Rorty, decla- modo de pensar” In: Cognitio: Revista de Filosofia. Vol. 9 n, 2, 2008. pp. 205-221.
rações muito controversas sobre PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. (CP). CD-ROM past
cada um desses autores. masters. Charlotterville: Intelex Corporation, 1992.

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RELIGIÃO

DOUTRINA
SOCIAL
DA IGREJA:
uma guinada
progressista
Um recorte das obras dos Papas
Leão XIII, João XXIII e Paulo VI

20 • ciência&vida
Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia
pelo PPGF-UFRJ /
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

Coordenador do Curso
de Administração da
FACC-UFRJ. E-mail:
renatonunesbittencourt@
gmail.com

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RELIGIÃO

A
Igreja Católica sofreu duros reveses JAMAIS O CATOLICISMO SE
com a consolidação da Modernidade.
Perda de poder político, desprestígio EXPRESSOU DE MANEIRA
ideológico, concorrência com as seitas TÃO CONTUNDENTE
protestantes. Sua demora em responder aos pro-
blemas candentes da época custaram-lhe a con- SOBRE QUESTÕES DO
testação de sua hegemonia na formação religiosa CAPITALISMO COMO A
da sociedade ocidental. O Oitocentismo foi um
período marcado por incontáveis inovações téc- PARTIR DA CONSOLIDAÇÃO
nicas, por transformações políticas radicais e pela DOS DOCUMENTOS QUE
formulação de concepções sociais que se contrapu-
nham aos paradigmas tradicionais da velha orde-
FAZEM PARTE DA CHAMADA
nação teológica e metafísica da civilização cristã. DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
O positivismo, o darwinismo, a laicização cultural,
o aburguesamento social, a efervescência dos mo- do debate sobre a justa ordenação social. Contudo,
vimentos revolucionários, são alguns dos agentes jamais ela se expressou de maneira tão contundente
que sacudiram as bases axiológicas da cultura oci- como a partir da consolidação dos documentos que
dental. Novas forças surgem para se tentar resolver fazem parte da chamada Doutrina Social da Igreja.
problemas até então insolúveis. Não é nossa pretensão, no presente texto, abordar
Um desses problemas se dá na chamada questão todos esses documentos, o que demandaria muito
social e a situação dos trabalhadores explorados mais espaço. Faremos então um recorte das obras
pelas agruras de um sistema capitalista desregula- dos Papas Leão XIII, João XXIII e Paulo VI, enfa-
do, injusto e opressor. Isso não significa que a Igre- tizando alguns dos seus aspectos éticos, políticos e
ja Católica houvesse até então se mantido afastada econômicos na tentativa de se estabelecer uma so-
ciedade de conciliação, justa e bem-ordenada con-
forme os princípios cristãos.
Os desdobramentos das revoluções industriais
reconfiguraram o sistema produtivo da humani-
dade mediante inovações técnicas que transforma-
ram para sempre o modo de vida da sociedade mo-
derna, que adentrava em um regime de afluência
material, de rápida urbanização e de idolatria pelo
novo. Contudo, nem todos os segmentos sociais
se beneficiaram dessas mudanças substanciais. As
bases materiais para essas inovações, os trabalha-
dores das indústrias, os mineiros, os camponeses,
viviam em condições precárias, em uma luta diária
por sobrevivência, e pouca simpatia despertavam
nos assépticos membros da burguesia e da aristo-
cracia. As massas trabalhadoras encontraram nos
socialismos e nos anarquismos discursos e práti-
cas que incentivaram sua contraposição violenta
ao sistema opressivo do patronato capitalista, não
apenas através de greves, mas também de revoltas
e revoluções. A classe trabalhadora, desprovida de
SHUTTERSTOCK

sólido substrato jurídico para reivindicar melhores


condições de vida, encontrou-se na necessidade de

22 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
apelar para meios extremos. Quando os trabalha-
dores se rebelam e chacoalham a ordem pública,
os poderes estabelecidos se agitam e se unem para
debelar essas ousadias.
A técnica usual é a repressão, mas métodos su-
tis também são utilizados para que se estabeleça o
consenso social, papel muito bem desempenhado
pela Igreja Católica nesse momento de crise geral.
A Igreja Católica é refratária em relação aos méto-
dos revolucionários e seus inerentes extremismos.
O caminho conveniente para a transformação da
sociedade é o reformismo, e para tanto a Igreja Ca-
tólica se coloca como a mãe e mestra da verdade
que auxilia o Estado a organizar as classes sociais
em convergência de ideais, mantendo assim a paz
pública. O grande desafio é realizar na prática esse
projeto, pois as paixões e demandas egoístas, em
especial das classes dominantes, são poderosas e
constantemente instrumentalizaram o poder do
Estado para que a balança jurídica favorecesse o
seu lado. Por isso, a Doutrina Social da Igreja exige
que o poder do Estado seja exercido por pessoas
moralmente qualificadas, capacitadas a governar Papa Leão XIII
pelo bem comum e não apenas para satisfação dos
grupos mais abastados, evitando-se assim a discór- exatamente proporcionado e que se poderá chamar
dia social. Trabalhadores e patrões não são inimi- simétrico, assim também, na sociedade, as duas
gos, mas irmãos componentes de um organismo classes estão destinadas pela natureza a unirem-se
cujas partes são interdependentes. harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente
O Papa Leão XIII, na Carta Encíclica Rerum No- em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessi-
varum (publicada em 15.5.1891), apresenta a tese dade uma da outra: não pode haver capital sem tra-
de que o erro capital é crer que as duas classes são balho, nem trabalho sem capital. Quanto aos ricos
inimigas natas uma da outra, como se a natureza ti- e aos patrões, não devem tratar o operário como
vesse armado os ricos e os pobres para se combate- escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem,
rem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do cor-
aberração tal, que é necessário colocar a verdade po, pelo testemunho comum da razão e da filosofia
numa doutrina contrariamente oposta, porque, as- cristã, longe de ser um objeto de vergonha, honra
sim como no corpo humano os membros, apesar o homem, porque lhe fornece um nobre meio de
da sua diversidade, se adaptam maravilhosamen- sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desu-
te uns aos outros, de modo que formam um todo mano é usar dos homens como de vis instrumentos

IGREJA CATÓLICA SE COLOCA COMO A MÃE


E MESTRA DA VERDADE QUE AUXILIA O
ESTADO A ORGANIZAR AS CLASSES SOCIAIS EM
CONVERGÊNCIA DE IDEAIS E DA PAZ PÚBLICA
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 23
RELIGIÃO

dência dos trabalhadores, que em geral pertencem à


classe pobre. (LEÃO XIII, Rerum Novarum, p. 445).

A Doutrina Social da Igreja é constantemente


renovada mediante os acontecimentos sociopolíti-
cos e as urgências do tempo histórico. O pontifica-
do de João XXIII ocorre no auge da Guerra Fria e
o risco de uma destruição mutuamente assegurada.
João XXIII teve um papel fundamental no apa-
ziguamento dos ânimos na Crise dos Mísseis
de Cuba (1962), propondo o diálogo pela
paz entre os EUA e a URSS. Todas as nações
aspiram ao bem e juntas podem cooperar
pelo progresso da humanidade, ainda que
apresentem divergências acerca de ideo-
logias políticas. João XXIII, na Carta En-
cíclica Mater e Magistra (publicada em
15.5.1961) apresenta a importância do
Estado como a estrutura dotada de legi-
timidade moral e jurídica para regular a
ordem econômica, evitando-se as injusti-
ças de um sistema regido pelo lucro absoluto
e por uma competitividade doentia que torna
o homem inimigo do próprio homem. Conforme
João XXIII, a remuneração pelo trabalho não pode
de lucro, e não os estimar senão na proporção do ficar à mercê do jogo automático das leis do mer-
vigor dos seus braços. O Cristianismo, além disso, cado; pelo contrário, deve ser estabelecida segundo
prescreve que se tenham em consideração os inte- as normas da justiça e da equidade. O discurso de
resses espirituais do operário e o bem da sua alma. João XXIII certamente desagrada aos defensores
Conforme Leão XIII, cabe ao Estado atuar como do liberalismo econômico e sua prédica da não-
a autoridade que estabelece a justiça contra toda -interferência do Estado nos negócios:
forma de degradação dos pobres:
O Estado, cuja razão de ser é a realização do
A classe rica faz das suas riquezas uma espécie de bem comum na ordem temporal, não pode manter-
baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. -se ausente do mundo econômico; deve intervir com
A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que o fim de promover a produção de uma abundância
a ponham a coberto das injustiças, conta principal- suficiente de bens materiais, cujo uso é necessário
mente com a proteção do Estado. Que o Estado se para o exercício da virtude, e também para prote-
faça, pois, sob um particularíssimo título, a provi- ger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo dos

O TRABALHO DO CORPO, PELO TESTEMUNHO


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

COMUM DA RAZÃO E DA FILOSOFIA CRISTÃ, LONGE


DE SER UM OBJETO DE VERGONHA, HONRA O
HOMEM. UM NOBRE MEIO DE SUSTENTO DE VIDA
24 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS
CONFORME JOÃO XXIII,
A REMUNERAÇÃO PELO
TRABALHO NÃO PODE
FICAR À MERCÊ DO
JOGO AUTOMÁTICO
DAS LEIS DO MERCADO;
PELO CONTRÁRIO,
DEVE SER ESTABELECIDA
SEGUNDO AS NORMAS DA
JUSTIÇA E DA EQUIDADE
mais fracos, como são os operários, as mulheres e
as crianças de igual modo, é dever seu indeclinável
contribuir para melhorar as condições de vida dos
operários. [...] Compete ainda ao Estado velar para
que as relações de trabalho sejam reguladas segun-
do a justiça e a equidade, e para que nos ambientes
de trabalho não seja lesada, nem no corpo nem na
alma, a dignidade da pessoa humana (JOÃO XXIII, Papa João XXIII
Mater e Magistra, p. 149-150).
quer interferência governamental no sistema eco-
Segundo a exortação de João XXIII, operários nômico é capaz de gerar o bem-comum se revela
e empresários devem regular as relações mútuas, um engano terrível, pois a motivação para o óti-
inspirando-se no princípio da solidariedade huma- mo de riqueza e abundância é o egoísmo, isto é,
na e da fraternidade cristã, pois tanto a concorrên- um vício. Trata-se de um princípio inegociável. O
cia de tipo liberal como a luta de classes no sentido Bem nunca pode nascer do Mal. A concepção de
marxista são contrárias à natureza e à concepção que a economia se autorregula e que as distorções
cristã da vida. O que é surpreendente nessa con- materiais são corrigidas pela dita mão invisível do
cepção é que os dois grandes espectros da econo- mercado não se aplica na realidade. Em uma so-
mia política são criticados, não apenas o socialis- ciedade desprovida de controle político dos meios
mo revolucionário, como se poderia acreditar. O de produção em prol de uma justa ordenação de
liberalismo econômico é também, nessa perspecti- sua organização material, a tendência é que o dese-
va, moralmente improcedente. quilíbrio permaneça cada vez maior, aumentando-
Muitos católicos (não podemos afirmar se por -se assim o hiato entre os poucos ricos e os muitos
ignorância ou por escolha tendenciosa), se aferram pobres. No lugar do egoísmo e da competitividade
apenas na esconjura eclesiástica ao socialismo/co- insana que fundamentam o espírito liberal, a ética
munismo/anarquismo, mas vivem tranquilamente cristã pressupõe como valor absoluto o altruísmo e
sob o crivo do liberalismo econômico, também a cooperação entre as pessoas.
condenável moralmente pela Doutrina Social da Outro erro cometido por católicos reside em
Igreja, pois os seus fundamentos axiológicos são sua adesão ao discurso liberal de redução do papel
incompatíveis com a ética cristã. O laissez-faire, do Estado na organização da vida política da so-
enraizado no postulado de que a ausência de qual- ciedade, o malfadado Estado Mínimo. A questão é

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RELIGIÃO

teológica: se toda autoridade governamental ema- ERRO COMETIDO POR


na de Deus, se todo poder político participa do po-
der divino e contribui para a manutenção da boa CATÓLICOS RESIDE EM
ordem e da justiça, não é apenas insensatez, mas SUA ADESÃO AO DISCURSO
improbidade moral a defesa do enfraquecimento
do papel do Estado na organização política. Isso LIBERAL DE REDUÇÃO DO
não significa que o Estado deve se imiscuir na vida PAPEL DO ESTADO NA
privada de cada cidadão e interferir em suas de-
cisões, o que violaria seu livre-arbítrio e faria da ORGANIZAÇÃO DA VIDA
pessoa um joguete do poder governamental, desti- POLÍTICA DA SOCIEDADE,
tuindo o ser humano de sua dignidade inalienável.
Contudo, uma vez que o fundamento da vida polí- O MALFADADO ESTADO
tica é a realização do bem comum na ordem tem-
poral, cabe ao Estado, através do serviço dos seus membros é afetada pela rapacidade dos poderosos.
operadores, isto é, os governantes, os legisladores, A ética cristã e o liberalismo econômico, em suas
os magistrados e os funcionários dedicarem seus mais diversas vertentes, são assim incompatíveis.
esforços para a realização de uma gestão pública Quando desponta um político demagogo de-
comprometida com a probidade e com a defesa dos fendendo um moralismo hipócrita cristão atrela-
interesses coletivos. do a um modus operandi agressivo, truculento e
Dessa maneira, o Estado não pode declinar de autoritário e flexibilização do sistema econômico
sua responsabilidade política de regular e intervir encontramos a expressão mais nítida da corrupção
na estrutura econômica quando situações injus- moral do poder governamental, pois essa figura se
tas impedem que o bem-estar de alguns dos seus aproveita da demanda humana por pureza e hones-
tidade para impor sua pauta reacionária contrária
aos objetivos sociais autênticos, a promoção da
PUBLIC DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS

justiça econômica, em favor de um empresariado


soberbo e egoísta. Podemos afirmar que toda crise
econômica é de base moral, pois se houvesse maior
desprendimento dos detentores dos meios de pro-
dução em relação ao seu ímpeto de gozo, maior ca-
pacidade de frugalidade, maior senso de distribui-
ção e mesmo de doação, mais boa vontade em suas
disposições pessoais, a sociedade encontraria uma
capacidade maior de reorganização de sua base
produtiva, vencendo assim recessões e problemas
estruturais de maneira muito mais eficiente e har-
moniosa. Contudo, a cantilena ultraliberal apenas
exige perda de direitos e corte na própria carne do
lado mais fraco do sistema capitalista, os pobres,
os trabalhadores, pois a proeminência do proces-
so é outorgada aos detentores dos meios de pro-
dução. A ausência de um Estado intervencionista
e de governantes capacitados a exercer esse dever
público é a causa da degradação da sociedade, sub-
jugada aos interesses dos detentores dos meios de
produção, que não hesitam em estabelecer relações
Papa Paulo VI promíscuas com os poderes estabelecidos para que

26 • ciência&vida
possam perpetuar legalmente os seus privilégios. querda, mas de qualquer mentalidade sociopolíti-
O Papa Paulo VI, na Carta Encíclica Popolurum ca dotada de decência e senso de responsabilidade
Progressio (publicada em 26.5.1967), demonstra a econômica:
total conexão da Igreja Católica com os problemas
candentes da época, o subdesenvolvimento social, O bem comum exige por vezes a expropriação,
os efeitos deletérios do imperialismo e a aviltante se certos domínios foram obstáculos à prosperidade
convivência entre o esplendor da riqueza e a po- coletiva, pelo fato de sua extensão, da sua explora-
breza nas cidades (resultado do egoísmo das classes ção fraca ou nula, da miséria que daí resulta para
dominantes, alheias ao sofrimento das massas). O as populações, do prejuízo considerável causado aos
progresso material da civilização humana é plena- interesses do país (PAULO VI, Populorum Progres-
mente adequado ao Plano Divino, mas não pode sio, p. 121).
ser dissociado do progresso espiritual, isto é, a re-
alização da caridade, da solidariedade, da justiça, A denúncia dos abusos do capitalismo também
da comunhão entre os povos. Algumas das suas não pode ser escamoteada. Em nome dos seus fun-
colocações chocariam as consciências mais desavi- damentos o ser humano usualmente se desperso-
sadas, tal como a defesa da reforma agrária, que de naliza e se afasta dos mandamentos divinos, tor-
maneira nenhuma é uma demanda exclusiva da es- nando-se frio, calculista, desprovido de amor ao

A CANTILENA ULTRALIBERAL APENAS EXIGE


PERDA DE DIREITOS E CORTE NA PRÓPRIA
SHUTTERSTOCK

CARNE DO LADO MAIS FRACO DO SISTEMA


CAPITALISTA: OS POBRES E OS TRABALHADORES
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 27
RELIGIÃO

próximo. Mesmo a propriedade privada, direito criativa que são geradas pela concorrência eco-
legítimo para a dignidade da pessoa humana, não nômica, de nada adianta se essa prática é gera-
pode ser imputada de maneira absoluta em caso de da apenas com o fito egoísta de sucesso material
prejuízo para o bem comum: em detrimento dos demais, pois a tônica desse
empreendimento enaltece o individualismo e su-
Infelizmente, sobre estas novas condições da so- prime a lógica da colaboração mútua. Podemos
ciedade, construiu-se um sistema que considerava inclusive fazer aqui uma crítica ao discurso do
o lucro como motor essencial do progresso econômi- empreendedorismo empresarial, pois no fundo o
co, a concorrência como lei suprema da economia, que se encontra por trás dessa reconfiguração do
a propriedade privada dos bens de produção como espírito capitalista é uma nova técnica de geração
direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais de mais-valia, onde o sujeito é valorizado por suas
correspondentes (PAULO VI, Populorum Progres- capacidades de inovação e recriação pessoal no
sio p. 122) mercado para que em verdade amplifique o índice
de lucro dos detentores dos meios de produção. O
Encontramos no texto de Paulo VI também empreendedorismo e a competição só encontram
uma objeção ao espírito concorrencial inerente real dignidade econômica em uma gestão produ-
ao liberalismo. Apesar da proatividade e da força tiva orientada para a satisfação horizontal e co-

A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA É UMA DINÂMICA


TEOLÓGICA E FILOSÓFICA, E RECEBEU MUITAS
OUTRAS CONTRIBUIÇÕES FUNDAMENTAIS QUE
NÃO FORAM CONTEMPLADAS NO PRESENTE TEXTO
28 • ciência&vida
O PAPA PAULO VI,
NA CARTA ENCÍCLICA
POPOLORUM PROGRESSIO
(DE 1967), DEMONSTRA A
TOTAL CONEXÃO DA IGREJA
CATÓLICA COM OS
PROBLEMAS CANDENTES
DA ÉPOCA E EFEITOS
DELETÉRIOS DO IMPERIALISMO
letiva das demandas materiais dos sujeitos, como
fim é o bem-estar social e não o bem-estar auto-
centrado de um grupo de indivíduos.

Só a iniciativa individual e o simples jogo da con-


corrência não bastam para assegurar o êxito do de-
senvolvimento. Não é lícito aumentar a riqueza dos
ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos
pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos
(PAULO VI, Populorum Progressio, p. 126).
convém, digamos, que o cristão reclame por pagar
A exortação a seguir evidencia a total incompa- impostos, mas ele pode, no entanto, exigir do Esta-
tibilidade entre a ética cristã e a defesa liberal da do compromisso ético com o uso desse montante.
diminuição da carga tributária dos cidadãos (mui- A Doutrina Social da Igreja é uma dinâmica
tas vezes motivada pelo egoísmo): teológica e filosófica, e recebeu muitas outras
contribuições fundamentais que não foram con-
Compete a cada um examinar a própria cons- templadas no presente texto, o que poderá nos es-
ciência, que agora fala com voz nova para a nos- timular para continuarmos esse debate no futuro.
sa época. Estará o rico pronto a dar o seu dinheiro, Trata-se de uma questão muito pertinente para
para sustentar as obras e missões organizadas em os estudos organizacionais, para a reflexão ética,
favor dos mais pobres? Estará disposto a pagar mais para a administração pública, pois a Igreja Cató-
impostos, para que os poderes públicos intensifi- lica é uma instituição que, na atual conjuntura do
quem os esforços pelo desenvolvimento? (PAULO VI, mundo, apresenta uma voz poderosa para a tenta-
Populorum Progressio p. 134). tiva de resolução dos problemas que perpassam a
ordem global.
Não se pode negar que o pagamento de impos-
tos talvez incomode todo contribuinte, em especial
LEÃO XIII. “Rerum Novarum: sobre a condição dos operários”. In:
quando não percebemos a aplicação convenien-
REFERÊNCIAS

Documentos. Trad. de Honório Dalbosco e Lourenço Costa. São


te desses recursos na estrutura social. Contudo,
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

Paulo: Paulus, 2005, p. 417-461.


quando a gestão pública utiliza de maneira con- JOÃO XXIII. “Mater e Magistra: evolução da Questão Social à luz da
Doutrina Cristã” In: Documentos. Trad. Tipografia Poliglota Vaticana.
veniente esse erário e investe nos setores basilares São Paulo: Paulus, 1998, p. 144-219.
da organização social, o dinheiro dos impostos PAULO VI. “Populorum Progressio”. In Documentos. Trad. Lourenço
Costa. São Paulo: Paulus, 1997, p.109-153.
encontra sua canalização justa e conveniente. Não

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MESOLOGIA por rodrigo petronio

A revolução dos
geocentristas

O
leitor deve ter visto e se as especificidades, os axiomas estão de com hipóteses. Por exemplo,
divertido recentemente para a filosofia como as evidências como o heliocentrismo, a teoria da
com um vídeo no qual estão para a ciência experimental. gravitação universal transcorreu de
Olavo de Carvalho nega Pois bem. O sistema heliocêntrico Newton a Einstein sendo colocada à
o heliocentrismo, o sistema segundo não pode ser refutado porque não é prova. Recentemente a aferição de
o qual a Terra gira em torno do sol. apenas uma hipótese ou um axioma. ondas gravitacionais corroborou a
Não satisfeito, também nega Einstein. Ele é uma evidência. E só pode teoria de Einstein. Por isso é uma lei,
Como você viu, eu disse nega. Não ser refutado por outras evidências, não uma hipótese.
disse refuta. Qualquer um pode ne- levantadas e comprovadas ao longo A teoria da seleção natural de
gar qualquer coisa. A refutação não de um lento percurso e de milhares Darwin tampouco é uma hipótese.
se restringe a negar. Consiste em de- de experimentações cotidianas le- É uma evidência que vem sendo
sarticular o cerne de uma teoria. vadas a cabo por milhares de cien- confirmada há quase dois século por
Em filosofia, a refutação demanda tistas ao redor do mundo. Esse é o experimentos. Ao passo que o cria-
a desarticulação do axioma, o centro percurso da refutabilidade, descrito cionismo é uma hipótese que tem
lógico de um sistema. Nas ciências por Popper. dez mil anos de existência e nunca
experimentais, a refutação exige uma Por esse motivo, evidências não foi comprovada, pois o termo-Deus,
invalidação das evidências. Malgrado podem ser colocadas em igualda- cerne de seu postulado, não é pas-
sível de verificação empírica. Equi-
valer darwinismo e criacionismo
O UNIVERSO É FORMADO POR conduz a outros dois ismos: obscu-
BILHÕES DE GALÁXIAS E TRILHÕES rantismo e charlatanismo.

DE ESTRELAS. SE O UNIVERSO Em outras palavras, a diferença


entre uma hipótese e uma evidên-
TIVER UM CENTRO, HIPÓTESE QUE cia é que a evidência é uma hipóte-
PODERIA SER LEVANTADA, ESSE se que foi confirmada por centenas
de cientistas ao longo de séculos de
CENTRO DEVERIA ENVOLVER ESSA debates e de experimentações. As
MULTIDIMENSIONALIDADE DE evidências desmentem pragmatica-
mente as hipóteses anteriores. As
BILHÕES E BILHÕES DE GALÁXIAS evidências são passíveis de variações

30 • ciência&vida
locais, não de refutação global. E apenas na Terra e propôs um sistema heliocêntri-
podem ser substituídas por outras evidên- co. Eratóstenes de Cirene fez experimen-
cias. Quem diz refutar globalmente uma tos a partir da luz deduziu a curvatura da
evidência querendo reduzi-la a uma hi- Terra em relação ao sol. Sua pesquisa tam-
pótese é um charlatão. Um obscurantista. bém deu ensejo a especulações heliocên-
Um completo picareta. Simples assim. tricas. O Corpus Hermeticum, texto-base
O nome sofisticado par quem nega da religião solar da Antiguidade conheci-
evidências é negacionista. Na historiogra- da como hermetismo, tem uma descrição
fia, por exemplo, apesar das esmagado- minuciosa do sistema heliocêntrico. Os
Rodrigo Petronio nasceu
ras evidências, os negacionistas negam o Satapatha Brahmana, compilação de tex- em 1975, em São Paulo.
Holocausto e o genocídio do povo judeu tos sagrados do hinduísmo, descrevem Escritor e filósofo,
pelos nazistas. Os racistas são negacio- uma cosmologia heliocêntrica. atua na fronteira entre
nistas das evidências da escravidão e da Na modernidade, Giordano Bruno foi literatura, semiologia,
paridade genética entre as diversas raças. queimado em uma fogueira pela Inquisi- narratividade e Filosofia.
Professor titular da Faap.
Os negacionistas do patriarcado negam as ção, formada pelos olavistas do século XVI Desenvolve pós-doutorado
infinitas evidências da violência e assime- (nada de novo sob o sol), por defender o no Centro de Tecnologias
tria entre homens e mulheres. heliocentrismo e a pluralidade dos mun- da Inteligência e Design
Olavo de Carvalho e os olavistas con- dos. Copérnico defendeu o heliocentris- Digital [TIDD/PUC-SP]
mo, mas denegou-o, com medo de ter o sobre a obra de Alfred
seguem a proeza de serem negacionistas
North Whitehead e as
de quase todas as evidências do século mesmo destino. Galileu teve que abjurar ontologias e cosmologias
XX. Diferente do que o Olavo de Car- (negar suas crenças) diante da Igreja por- contemporâneas. Autor,
valho afirma em sua aula-piada, o helio- que demonstrou empiricamente o helio- organizador e editor de
IMAGENS: SHUTTERSTOCK/ARQUIVO PESSOAL

centrismo e o geocentrismo não são duas centrismo. Seria queimado também se diversas obras. Publicou
mais de duas centenas de
hipóteses equivalentes. O geocentrismo é não o fizesse. Toda cosmologia desde o
artigos, resenhas e ensaios
uma hipótese que foi descartada e com- século XVI e XVII é heliocêntrica: Kepler, em alguns dos principais
pletamente refutada pelo heliocentrismo. Leibniz, Newton, Descares, Hume, Lo- veículos da imprensa
E isso vem desde a Antiguidade. cke, Kant, Humboldt, Gödel, Dirac, Plan- brasileira. Recebeu prêmios
O grego Aristarco de Samos descreveu ck, Böhr, Poincaré, Whitehead e Einstein. nacionais e internacionais
nas categorias poesia,
e defendeu um sistema heliocêntrico. Era- Depois de ter o vídeo desmentido por
prosa de ficção e ensaio.
clides de Ponto mediu as variantes da luz cientistas em uma reportagem da Folha

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de S.Paulo, Olavo de Carvalho en- ENQUANTO SE DEBATE SOBRE
viou um assecla para defendê-lo. A
emenda saiu pior do que o soneto. PLURIVERSOS, EMARANHAMENTO
O iluminado mentecapto defendeu o QUÂNTICO, TEORIA DAS CORDAS,
guru dizendo que o guru estava ques-
tionado o conceito de centro do uni-
UNIVERSOS ALTERNATIVOS,
verso. Não se a órbita era geocêntrica OS DOENTES MENTAIS QUE
ou heliocêntrica.
Mas quem está falando em centro
GOVERNAM O BRASIL ESTÃO
do universo? O heliocentrismo postu- PREOCUPADOS EM SABER QUAL
la o sol como centro do sistema solar.
Por isso o sistema se chama sistema
BOLINHA GIRA EM TORNO DE QUAL
solar. As estrelas são as usinas do uni-
verso. Por causa da energia e da den- problema político. É uma demência de fome. Cientistas que trabalham
sidade, exercem força gravitacional coletiva normatizada. Fingem refutar para difundir ideias absolutamente
sobre os demais astros ao redor. teorias quando na verdade apenas aceitas em todas as democracias li-
O universo é formado por bilhões defendem superstições e o mais tri- berais e em todos os países capita-
de galáxias e trilhões de estrelas. Se vial senso comum. E negam os fatos listas do mundo.
o universo tiver um centro, hipóte- e as evidências como se estivessem Enquanto esses países enri-
se que poderia ser levantada, esse produzindo teoria. O desserviço des- quecem com ciência e tecnologia.
centro deveria envolver essa multidi- sa inversão é gigantesco. Imaginem Enquanto debatem pluriversos, ema-
mensionalidade de bilhões e bilhões milhares de pessoas, das mais varia- ranhamento quântico, teoria das
de galáxias. Isso não invalida em ab- das crenças, classes sociais, ideologias cordas, universos alternativos, cos-
solutamente nada a lei da gravitação e graus de instrução sendo lobotomi- mologias paraconsistentes e ontolo-
restrita de corpos celestes e astros ao zadas por esses farsantes de internet. gias pluralistas, os doentes mentais
redor da estrela-sol. Essa atitude é uma violência que governam o Brasil estão preocu-
O desastre de pessoas como Ola- contra os milhares de professores pados em saber qual bolinha gira em
SHUTTERSTOCK

vo de Carvalho e seus seguidores e cientistas brasileiros. Muitos de- torno de qual. Se o sol orbita a Terra
no poder é inclassificável e inquali- les anônimos, ganhando a vida aos ou se a Terra o sol. O próximo passo
ficável. Não consiste apenas em um trancos e barrancos com salários será a defesa da Terra Plana.

32 • ciência&vida
CADERNO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS & EDUCAÇÃO

DIREITO À CIDADE

HUMANIDADES NO ENEM NO NOVO GOVERNO

PROFESSOR EDUCADOR OU LIBERTADOR?


(EM NIETZSCHE E STIRNER)

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS • ciência&vida • 33


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DIREITO À CIDADE
A segregação e o crime na cidade de São Paulo

A
realidade das grandes cidades é uma como campo de pesquisa o bairro da Mooca.
paisagem repleta de muros que sepa- No livro ela diz:
ram seres humanos e individualizam
os mundos. A fala do crime- ou seja, todos os tipos de conversas,
Cada condomínio possui um mundo a comentários, narrativas, piadas, debates e brincadei-
parte do externo, um lugar onde pessoas se ras que têm o crime e o medo como tema- é contagian-
isolam atrás de enclaves fortificados e a partir te. Quando se conta um caso, muito provavelmente
daí estabelecem outros tipos de relações socio- vários outros se seguem; e é raro um comentário ficar
espaciais, mantendo-se seguras de toda a sem resposta. (...) O medo e a fala do crime não apenas
SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL DO AUTOR

Victor Santana de
Araújo é graduando violência que as amedronta e as mantém tran- produzem certos tipos de interpretações e explicações,
em Sociologia cadas atrás de grandes muros. como também organizam a paisagem urbana e o
e Política pela A professora titular do Department of espaço público, moldando o cenário para as interações
Fundação Escola de City and Regional Planning da Universidade sociais que adquirem novo sentido numa cidade que
Sociologia e Política da Califórnia, Teresa Pires do Rio Caldei- progressivamente vai se cercando de muros.1
de São Paulo (FESPSP). ra, em seu livro “Cidade de Muros”, fez um
1
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime,
estudo entre os anos 1988 e 1998 sobre as
segregação e cidadania na cidade de São Paulo; tradução de Frank
mudanças na cidade de São Paulo a partir dos de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Editora 34;
discursos crescentes sobre violência, tendo Edusp, 2011. p. 27.

34 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


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A PARTIR DA EXPANSÃO DESSE MODO


DE PRODUÇÃO EXPLORATÓRIO CRIOU-SE
UM NOVO MODELO DE CIDADE, POIS O
CAPITAL, PARA SE REPRODUZIR, NECESSITA
INCESSANTEMENTE DE EXPANSÃO E BUSCA DE
NOVOS MERCADOS, E COM ISSO, O MODELO
DE CIDADE ONDE POSSA GIRAR O CAPITAL
-se a divisão social do trabalho e o defini-la. Ainda que a urbanização e a
aumento da produção da mais valia, problemática do urbano figurem entre os
conceito criado por Karl Marx que efeitos induzidos e não entre as causas e
revela o caráter exploratório do modo as razões indutoras, as preocupações que
de produção, como sendo uma espé- essas palavras indicam se acentuam de
cie de tempo de trabalho não pago, tal modo que se pode definir como socie-
aumento da carga de trabalho e da dade urbana a realidade social que nasce
produtividade. 2 à nossa volta. Esta definição contém
A partir da expansão desse modo uma característica que se torna de capi-
de produção, criou-se um novo tal importância. 3
modelo de cidade, pois o capital, para
se reproduzir, necessita incessante- O Direito à Cidade se constitui a
mente de expansão e busca de novos partir da crítica que se faz ao capital
mercados, e com isso, o modelo de e as modificações no cotidiano dos
cidade onde possa girar o capital. indivíduos, no que tange a moradia,
o acesso à cultura, ao lazer e ao espa-
A industrialização caracteriza a ço urbano em geral. Pois ao mesmo
sociedade moderna. O que não tem por tempo que a urbanização produz
consequência, inevitavelmente, o termo riquezas e dinamiza o comércio e a
Segundo a autora, a fala do crime “sociedade industrial”, se quisermos circulação de capital, ela promove
representa a proliferação de discursos
sobre a criminalidade que mudam 2
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia 3
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São
diretamente no comportamento dos política. São Paulo: Boitempo, 2013. Paulo: Centauro. 2001. p. 11.
cidadãos e, consequentemente, a
paisagem urbana, alterando, dessa
forma, todas as relações sociais.
Para trazer à luz a discussão sobre
a produção do espaço e todos os seus
efeitos na sociedade, se faz necessá-
rio, antes de mais nada, recorrer a
uma discussão iniciada em meados
dos anos 1960, por Henri Lefebvre,
que é o Direito à Cidade, um direito
de reordenar a vida na cidade visando
os indivíduos sujeitos aos processos de
urbanização.

O DIREITO À CIDADE
O Direito à Cidade é uma teoria
que nasce a partir dos processos de
urbanização e de propagação do
capitalismo.
A partir da dinamização da
indústria e dos comércios, aumenta-

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 35


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DE ACORDO COM ANA FANI ALESSANDRI Assim diz a autora:


Essas afirmações apontam a neces-
CARLOS, A CIDADE É PENSADA SOB sidade da produção de um conhecimen-
to que dê conta da construção de uma
DOIS ASPECTOS: SOB UM QUADRO FÍSICO, teoria da prática sócio espacial que se
UM MAPA ABERTO NUMA PRANCHETA; realiza na cidade, expressando o desa-
fio de desvendar a realidade urbana
E COMO O MEIO AMBIENTE URBANO; em sua totalidade, bem como as possi-
bilidades que se desenham no horizonte
E EM AMBOS OS CASOS É IGNORADO para a vida cotidiana na cidade. Tal
O ASPECTO SOCIAL, SENDO QUE É O perspectiva ilumina a armadilha da
redução do sentido da cidade àquela de
QUE LHE DÁ FORMA E CONTEÚDO condição da reprodução do capital ou
da dominação do Estado, ambas esva-
a segregação do espaço, levando os o processo de precarização da vida ziadas do sentido da vida humana.
indivíduos para os arredores da cida- urbana, de alienação, e de uma alta Assim, à necessidade de desvendamen-
de, e em muitos casos, próximos aos valorização do mercado de trabalho. to dos processos constitutivos do espaço
locais de trabalho, limitando o seu De acordo com Ana Fani Ales- social adiciona-se a construção de uma
acesso aos espaços produzidos na sandri Carlos, a cidade é pensada teoria sobre a cidade.5
cidade. Assim analisa David Harvey: apenas sob dois aspectos: sob um
quadro físico, um mapa aberto numa A ideia central da autora é desen-
O capitalismo luta perpetuamen- prancheta; e como o meio ambiente volver uma teoria que aborde a cida-
te, portanto, por criar uma paisagem urbano; e em ambos os casos é igno- de na sua totalidade, que discorra
social e física a sua própria imagem, e rado o aspecto social, sendo que este não apenas sobre o espaço público
indispensável para suas necessidades em é o que lhe dá forma e conteúdo. em si, mas a produção social que
determinado ponto do tempo, simples- (CARLOS, 2007, p. 19). ele proporciona e como ambos são
mente para, com igual certeza, minar, Numa cidade onde o nível de produzidos de acordo com o modo
desintegrar e até destruir essa paisagem, segregação e de alterações no cotidia- de produção, pois este último que
num ponto posterior do tempo.4 no aumenta na mesma proporção que determina o modo de organização da
o da urbanização, as discussões sobre vida social.
Para Harvey, o capitalismo cria o espaço urbano devem contemplar 5
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço ur-
determinações, e a partir delas, dois aspectos fundamentais: o espaço bano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo.
gera contradições que se expressam físico e a produção social. FFLCH, 2007. p. 19.
também na sua organização espa-
cial, formando inúmeros ambientes
segregados, através da gentrificação,
símbolo de toda a segregação urbana.
O processo de urbanização foi
fundamental na absorção de exce-
dentes de capital, mas com ela, vem
o processo de precarização da vida
urbana, de alienação, e de uma alta
valorização do mercado de trabalho.
Ainda em Harvey, um espa-
ço comum é aquele onde pessoas se
reúnem para expor também as suas
reivindicações políticas, como no
caso das manifestações de junho de
2013, e sua produção deve fugir da
sua característica mercantil.
O processo de urbanização foi
fundamental na absorção de exce-
dentes de capital, mas com ela, vem

4
HARVEY, David. A produção capitalista do es-
paço. Annablume, 2005. p. 150.

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Do ponto de vista da reprodução


do modo de produção, ou seja, o capi-
tal, este é o modo pelo qual a cidade
é projetada e, nas palavras de Ana
Fani A. Carlos, sendo transformada
na “cidade dos negócios” (CARLOS,
2007, p.65).
Um dos fatores fundamentais
para se compreender a formação
urbana da cidade de São Paulo,
na sua produção socioespacial, é o
processo de gentrificação.
A gentrificação é um termo cria-
do pelo geógrafo Neil Smith, cuja
fi nalidade é dar nome ao proces-
so de substituição de uma parcela
da população por outra com maior
poder aquisitivo em determinada
região. No caso da cidade de São
Paulo, esse processo ocorre primei-
ramente no centro da cidade, em que
pessoas com menor poder aquisitivo
NO CASO DA CIDADE DE SÃO PAULO,
foram, ao longo dos anos, empurra- PROCESSO DE GENTRIFICAÇÃO OCORRE
das para as regiões mais afastadas,
onde a infraestrutura é inferior e os PRIMEIRAMENTE NO CENTRO, EM QUE
serviços básicos (como saúde, educa-
ção, transporte, saneamento básico,
PESSOAS COM MENOR PODER AQUISITIVO
esporte lazer, etc.) são mais escassos. FORAM EMPURRADAS PARA AS
Em poucas palavras, a gentrifi-
cação pode ser entendida como um REGIÕES MAIS AFASTADAS, ONDE A
processo histórico de segregação
socioespacial, tendo em vista que
INFRAESTRUTURA É INFERIOR E OS
apenas pessoas socialmente selecio- SERVIÇOS BÁSICOS SÃO MAIS ESCASSOS
nadas podem ter acesso a moradia
em determinadas regiões. tribunais serem a parte do código Para David Harvey, o Direito à
A população mais pobre, empur- civil, a cidade como um todo acaba Cidade deve ser encarado como um
rada para os cantos mais afastados do por sofrer as consequências do direito, mas faz em seu livro “Cidades
centro, no entanto, devem ter o míni- aumento do tráfico, e consequen- Rebeldes” uma crítica aos Direitos
mo de mobilidade para se deslocar até temente, o aumento dos índices de Humanos, que na maioria dos casos
o centro, e então, vender sua mão de violência. assume um caráter individualista de
obra para os habitantes e empreende- Embora o crime violento seja propriedade, assim diz Harvey:
dores das regiões centrais. Isso quan- de uma imensa complexidade que
do há serviços, o que em muitos casos abrange os aspectos sociais, psicoló- O direito à cidade é, portanto,
não acontece, criando a necessidade gicos e econômicos, não se pode estu- muito mais do que um direito de acesso
de renda e novas formas de obtê-la. dá-lo sem considerar a influência do individual ou grupal aos recursos que
Com essa segregação, a cida- aspecto socioespacial nesse processo. a cidade incorpora: é um direito de
de sofre como consequência uma É nesse cenário que é necessário mudar e reinventar a cidade de acordo
explosão do número de favelas, que reivindicar o Direito à Cidade, pois com os nossos mais profundos desejos.
acabam se tornando cidades dentro da os processos de urbanização desigual Além disso, é um direito mais coletivo
própria cidade, e com isso, as ativida- criam na cidade um modelo que não do que individual, uma vez que rein-
des ilegais acabam fazendo parte da atende as necessidades da população, ventar a cidade depende inevitavel-
economia local, como por exemplo o mas sim os lucros de seus investido- mente do exercício de um poder coletivo
tráfico, que fornece serviços à popula- res, pois o espaço é pensado somente sobre o processo de urbanização.6
ção que o estado se ausenta. pela oferta de serviços e consumo, e 6
HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito
Com essa nova formação social transforma o cidadão de direitos e à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins
dentro das favelas, além de as leis e deveres em mero consumidor. Fontes, 2014. p. 28.

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para obter bens materiais era a única


opção possível, ele não deveria trilhar
esse caminho, pois outros iguais a
ele preferem, por exemplo, recolher
material reciclável na rua.
É muito comum, nas sociedades
complexas, analisar a realidade alheia
partindo de uma outra completamente
diferente, e é exatamente nesse ponto
que a ideologia da subjetividade domi-
na as mentes dos telespectadores que
só possuem aquelas horas de televi-
são, sem ter tido a mínima condição
de olhar para a sociedade como um
todo, um problema que vai da educa-
ção à economia, pois uma sociedade
sem educação crítica é a condição da
perpetuidade de uma ideologia que em
O DIREITO À CIDADE É, PORTANTO, si não fornece as respostas necessárias
para uma vida em sociedade mais justa.
UM DIREITO COLETIVO PRINCIPALMENTE Mas além da violência subjetiva,
há outras duas defi nições de violên-
DOS CIDADÃOS MENOS FAVORECIDOS cia, elaboradas pelo fi lósofo esloveno
NO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO, Slavoj Zizek: a violência sistêmica e
a de linguagem. Uma introdução à
E SEM ESSE DIREITO, SERÁ IMPOSSÍVEL violência sistêmica pode ser encon-
trada nessa passagem:
CONTER O AVANÇO DE ALGUNS DOS
PROBLEMAS MAIS GRAVES DA CIDADE, É aí que reside a violência sistêmi-
ca fundamental do capitalismo, muito
COMO É O CASO DO CRIME VIOLENTO mais estranhamente inquietante do que
qualquer forma pré-capitalista direta de
As palavras do autor caminham vérsia é: o que é a violência? De onde violência social e ideológica: essa violên-
para uma crítica aos direitos huma- ela começa? Se trata de uma escolha cia não pode ser atribuída a indivíduos
nos vigentes sem atacá-los, pois, na individual ou é sistemática? concretos e às suas ‘más’ intenções, mas é
medida em que são fundamentais Nos programas televisivos, dos puramente ‘objetiva’, sistêmica, anôni-
para o controle do poder do estado, mais sensacionalistas aos mais sutis, ma. Encontramos aqui a diferença laca-
eles vão na direção dos direitos indi- um dos temas de maior apelação é o niana entre a realidade e o Real: a ‘reali-
viduais, enquanto os direitos coleti- da violência subjetiva, aquela em que dade’ é a realidade social dos indivíduos
vos são deixados de lado e, portanto, os meios de comunicação insistem em efetivos implicados em interações e nos
faz-se aí uma dura crítica ao capita- reforçar que se trata de um problema processos produtivos, enquanto o Real é a
lismo liberal e neoliberal. de caráter, de forma a tornar super- inexorável e ‘abstrata’ lógica espectral do
O Direito à cidade é, portanto, ficial um tema de grande complexi- capital que determina o que se passa na
um direito coletivo principalmen- dade, transferindo unicamente ao realidade social. Podemos experimentar
te dos cidadãos menos favorecidos indivíduo a responsabilidade de seus tangivelmente o fosso entre uma e outro
no processo de urbanização, e sem atos e reforçando no imaginário da quando visitamos um país visivelmente
esse direito, será impossível conter o sociedade uma visão, como diz Jessé caótico.  Vemos uma enorme degrada-
avanço de alguns dos problemas mais Souza, novelizada da vida. ção ecológica e muita miséria humana.
graves da cidade, como é o caso do Para o público, influenciado pela Entretanto, o relatório econômico que
crime violento. mídia hegemônica, a grande proble- depois lemos nos informa que a situa-
mática da violência se reduz a uma ção econômica do país é ‘financeiramente
SEGREGAÇÃO E VIOLÊNCIA mera questão de escolha do indivíduo. sólida’: a realidade não conta, o que conta
Uma das problemáticas mais discu- Ou seja, não importa o quão possam é a situação do capital.7
tidas nas ciências sociais é a violência. ser desumanas as condições de vida 7
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais.
E uma pergunta que, por mais simples do indivíduo, tampouco importa Tradução Miguel Serras Pereira. -1 ed. - São
que possa parecer, causa muita contro- se no inconsciente dele a violência Paulo: Boitempo, 2014. p. 26

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A violência sistêmica, de acordo A CANÇÃO DE LÚCIO diz um cidadão, “criança de pé no chão


com o autor, não decorre de meras aqui não pode estudar” .8
escolhas individuais, como o próprio BARBOSA NARRA
sistema se beneficia com essa visão A segregação e a violência
(quando ele mesmo não reforça por A HISTÓRIA DE linguística estão diretamente liga-
meio de seus meios de comunica- UM PEDREIRO DA das a essa canção composta por
ção), mas é resultante de uma varia- Lúcio Barbosa, divulgada sob a
da gama de catástrofes ambientais e REGIÃO NORTE QUE interpretação de Zé Geraldo. O
sociais, em nome de uma economia compositor narra a história de um
numericamente sólida, enquanto a CONSTRÓI PRÉDIOS pedreiro, oriundo da região norte
realidade material é o sufocamento NOS QUAIS NÃO do Brasil, que constrói prédios nos
das classes subalternas em benefí- quais não pode entrar após a inau-
cio dos lucros das classes dominan- PODE ENTRAR APÓS guração, e escolas em que a fi lha não
tes. Em outras palavras, a ideologia tem o direito de estudar.
domina a economia de modo a ser A INAUGURAÇÃO, Utilizando elementos fornecidos
considerada apenas as telas de cres- E ESCOLAS EM QUE A pela psicanálise, Zizek discorre da
cimento das ações, e não no bem- seguinte maneira:
-estar de seus indivíduos. FILHA NÃO TEM O Muito bem, mas e se os humanos
Trazendo esse conceito para o superassem os animais em sua capaci-
tema deste artigo, a violência sistê- DIREITO DE ESTUDAR, dade de violência precisamente porque
mica está sob o domínio de dois DEMONSTRANDO falam? [18] Como Hegel já sabia,
setores da sociedade: o estado e há algo de violento no próprio ato de
a economia. E a segregação (ou a A SEGREGAÇÃO simbolização de uma coisa, equivalen-
gentrificação) é parte do sufoca- do à sua mortificação. Uma vez que
mento das camadas mais baixas na E A VIOLÊNCIA o Próximo é originariamente (como
hierarquia social, que necessitam LINGUÍSTICAS Freud suspeitou há muito tempo) uma
das mais desesperadas fontes de coisa, um intruso traumático, alguém
renda para poder sobreviver nessa cujo modo de vida diferente (ou, antes,
espécie de seleção natural. me chega um cidadão. E me diz descon- cujo modo de jouissance diferente,
Quando se segrega parte da fiado, tu tá aí admirado, ou tá queren- materializado em suas práticas e ritos
sociedade, seja no âmbito econô- do roubar? (...) Tá vendo aquele colégio sociais) nos perturba, abala o equi-
mico ou no espacial, os mais preju- moço? Eu também trabalhei lá. Lá eu líbrio dos trilhos sobre os quais nossa
dicados nesse darwinismo social quase me arrebento, pus a massa, fiz vida corre, quando chega perto demais,
buscam as mais variadas formas de cimento, ajudei a rebocar. Minha filha esse fato pode também dar origem a
se adaptar ao ambiente, e com isso inocente, vem pra mim toda conten-
a irracionalidade ganha mais espaço te, “pai vou me matricular”. Mas me 8
GERALDO, Zé. Cidadão. Veleiro: São Paulo, 1986.
na estrutura da vida social.
Além da violência sistêmica,
existe a violência de linguagem,
essa um tanto mais abstrata e difí-
cil de ser não apenas observada, mas
também desvelada, e Zizek dá em
seu livro um caminho para analisar
essa outra forma de violência.
Sob uma simples linguagem, um
diálogo com essa formulação elabo-
rada por Zizek, na canção “Cida-
dão”, composta por Lúcio Barbosa
e interpretada por Zé Geraldo pode
ser observada nos seguintes trechos:

Tá vendo aquele edifício moço?


Ajudei a levantar. Foi um tempo de
aflição, eram quatro condução, duas
pra ir, duas pra voltar. Hoje depois dele
pronto, olho pra cima e fico tonto, mas

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como intrusos no ambiente, e repro-


duzem, tornando cíclica, a segrega-
ção produzida pelas relações sociais.
Conclui-se que a violência subje-
tiva é apenas uma das muitas formas
de violência presentes na socieda-
de. A linguagem é a expressão das
relações de dominação, de modo a
informar como de estabelecem as
relações sociais.
E se a segregação espacial é
uma relação de dominação, então
a cultura é essa relação produzida
pela linguagem, que separa indi-
víduos de acordo com sua condi-
ção social e sua cor, estabelecendo
então uma clara diferenciação, que
precisa ser exposta.
Seja nos elevadores, nos enclaves
fortificados, ou na linguagem em
si, a segregação espacial produz a
violência da exclusão, que se mate-
uma reação agressiva visando afastar o apenas para a utilização dos condô- rializa no espaço, se metamorfoseia
intruso incômodo. Nos termos de Peter minos e pessoas que estão a trabalho, nas palavras, se expressa nas ideias
Sloterdijk: “Mais comunicação signi- mas como uma forte ferramenta de e, se sublima na cultura.
fica em um primeiro momento, acima diferenciação social, a ponto de ser Se o Direito à Cidade é a mani-
de tudo, mais conflito” [14]. É por obrigatório colocar uma placa que festação das mais significativas
isso que Sloterdijk tem razão quando contenha a lei de nº 11.995/1996, mudanças na formação socioespacial
afirma que a atitude de “compreen- que estabelece que: da cidade, portanto, é uma reivin-
são mútua” deve ser completada pela dicação que mira também a solução
atitude de “não ficarmos no caminho Art. 1º- Fica vedada qualquer do problema da segregação, e conse-
uns dos outros”, mantendo uma distân- forma de discriminação em virtude de quentemente de uma sociedade mais
cia apropriada e elaborando um novo raça, sexo, cor, origem, condição social, justa e de maior bem-estar para seus
“código de discrição”.9 idade, porte ou presença de deficiência cidadãos, e essa é uma maneira legí-
e doença não contagiosa por contato tima de se combater todos os tipos
A defi nição de violência da social no acesso aos elevadores de todos de violência.
linguagem, proposta pelo autor os edifícios públicos municipais ou
nos leva a refletir se o homem é particulares, comerciais, industriais e CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de
REFERÊNCIAS

mais violento que os outros animais residenciais multifamiliares existentes muros: crime, segregação e cidadania na
cidade de São Paulo; tradução de Frank de
porque fala. É por meio de um no Município de São Paulo. Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo:
simples questionamento, aparen- Art. 3º § 2º- Fica o responsável Editora 34; Edusp, 2011.
temente duvidoso, que podemos pelo edifício, administrador ou síndico, CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço
de fato nos questionar seriamente conforme for o caso, obrigado no prazo urbano: novos escritos sobre a cidade. São
acerca da violência cometida entre de 60 (sessenta) dias a partir da publi- Paulo. FFLCH, 2007.
os seres humanos. Pois a linguagem cação desta Lei, a colocar na entrada do HARVEY, David. A produção capitalista do
possui uma relação dialética com edifício e de forma bem visível o aviso espaço. Annablume, 2005. p. 150.
a cultura e estabelece, então, uma de que trata o “caput” deste artigo.10 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia
relação de dominação. política. São Paulo: Boitempo, 2013
A violência da linguagem está E mesmo com as exigências LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São
intimamente ligada à violência da lei, não apenas os condomínios Paulo: Centauro. 2001. p. 11.
sistêmica, e um exemplo pode ser desrespeitam as normas previstas, SANTOS, Milton. A urbanização desigual:
observado nos condomínios, cujos mas os próprios trabalhadores desses a especificidade do fenômeno urbano em
países subdesenvolvidos. São Paulo: Editora da
elevadores e portarias não servem condomínios enxergam a si mesmos Universidade de São Paulo, 2012.
9
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 10
São Paulo. Lei nº 11.995, de 16 de janeiro de ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais.
Tradução Miguel Serras Pereira. 1 ed. São Paulo: 1996. Disponível em: http://legislacao.prefeitura. Tradução Miguel Serras Pereira. 1. ed. São
Boitempo, 2014. pp. 58-59. sp.gov.br/leis/lei-11995-de-16-de-janeiro-de-1996 Paulo: Boitempo, 2014.

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O ENEM E A
BATALHA CULTUR AL
Ciências Sociais e Humanidades no ENEM do
Governo Bolsonaro: perspectivas e parâmetros

O
Dr. Alessandro capitão da reserva e ex-deputa- por temas alinhados à tradição Liberal Clássi-
Farage é Cientista do federal Jair Messias Bolsonaro ca. O patriotismo, os direitos civis, a democra-
Político, Jurista, (PSL) abriu seu caminho em dire- cia liberal e a economia de livre-mercado, com
Sociólogo e ção à presidência da República com discurso todas as suas bases humanistas e sociológicas,
Demógrafo. Pós- antiesquerdista. Desde cedo, prometeu trans- terão lugar no ENEM em 2019.
Doutorado pela formar seu governo em promotor dos valores e Sabemos que não há consensos imutáveis
University of ideais nacionalistas, contra a dissolução moral nas Ciências Sociais, e por isso é razoável con-
Denver. Diretor das esquerdas e a cultura antirrepublicana do cluir que as questões elaboradas para o ENEM
Acadêmico patrimonialismo1. são fruto de opções teóricas relativamente ar-
da Riotech e É nesse sentido que o Exame Nacional do bitrárias. No campo aberto do arbítrio, as con-
Coordenador no Ensino Médio (ENEM) merece nossa atenção. vicções dominantes no interior do Instituto
Colégio Objetivo. Seu conteúdo de Ciências Humanas é compos- Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
E-mail: alefarage@ to por conhecimentos básicos da área. Contu- Anísio Teixeira (INEP) podem influenciar de-
gmail.com do, o “básico” é largamente determinado a par- cisivamente a elaboração das questões e mesmo
tir das referências intelectuais dos responsáveis do tema indicado para a redação. Por alcançar
Rafael Valladão pela organização do exame. Assim no governo milhões de estudantes, o ENEM é um instru-
é Licenciando em Bolsonaro as questões de Ciências Sociais e mento de luta na guerra cultural que Bolsonaro
Ciências Sociais Humanidades serão provavelmente marcadas declarou contra o “socialismo”.
pela Universidade pelas Escolas Conservadoras e Liberais. As
Federal Fluminense temáticas associadas à esquerda, tais como o A GUERRA CONTRA
e Professor de Marxismo e a Terceira Via, serão substituídas O MARXISMO CULTURAL
Sociologia em curso Se o novo governo está empenhado em
pré-vestibular 1
O patrimonialismo é a característica de um determinada sociedade despetizar a administração, como declarou o
desde 2014. que não possui distinções entre o patrimônio público e o privado. ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni

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trimonialismo em favor de uma Edu- mo não teria saído vitorioso das urnas
cação Cívico-Patriótica. Entende-se se a academia e os grandes meios de
que a educação forma a mentalidade comunicação não fizessem a cabeça
dominante e pode ser instrumentali- dos brasileiros no sentido de torná-los
zada nesse sentido. simpáticos às pautas esquerdistas. Eis
Pela educação porque, segundo a estratégia gramsciana.3
Olavo de Carvalho, a política não é A revolução silenciosa do grams-
meramente decidida na disputa de in- cismo começaria pelo recrutamento
teresses entre os poderosos. Ela é pro- de docentes no ensino básico e no
duto da cultura dominante no país, isto nível superior, passando pela sedu-
é, da espessa nuvem de ideias, crenças ção ideológica de artistas e profissio-
e costumes que encobre a vida em so- nais da comunicação. Nas palavras
VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL
ciedade. Os burocratas e políticos de de Olavo de Carvalho, “a pessoa se
Brasília são, antes de tudo, formados torna socialista sem nem perceber”,
pelas ideias e crenças preponderantes logo ela aprende a raciocinar em
em seu meio de origem. O filósofo é termos ideologizados como luta de
adepto da abordagem psicológica da classes. A contaminação ideológica
cultura e acredita na prevalência do seria fruto do marxismo cultural, isto
mental sobre o material. é, a inoculação sistemática de ideias
O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni Bolsonaro não poderia, portanto, e ideais marxistas na mentalidade
eliminar o patrimonialismo sem des- dos brasileiros.
(DEM), então é lógico que a equipe truir as bases culturais do lulopetis- O presidente está pessoalmente
de Bolsonaro vai se preocupar com mo. Uma dessas bases é o conteúdo comprometido com a missão de ex-
órgãos federais estratégicos no con- prático-pedagógico disseminado na tirpar os elementos ideológicos do
fronto com o esquerdismo. Entre eles, educação pública. Logo, reformular o gramscismo, supostamente difusos
o Ministério da Educação ocupa posi- ENEM significa ganhar uma batalha na prática institucional do governo.
ção de destaque. Não por acaso, o novo na guerra cultural. Segundo Olavo Portanto, a mudança da cultura acadê-
ministro é Ricardo Vélez Rodriguez, de Carvalho, o PT chegou ao poder mica do MEC nos convida a refletir
intelectual alinhado ao Liberalismo baseado na hegemonia cultural de sobre as possíveis mudanças nos temas
Clássico2. Em seu discurso de posse, esquerda, lentamente construída por usualmente abordados pelo ENEM.
Vélez afirmou que irá “combater com jornalistas e intelectuais marxistas Se as edições anteriores do exame
denodo o marxismo cultural” e que desde fins do regime militar. O petis- trouxeram questões de corte progres-
haverá viés “liberal-conservador nas sista, devemos esperar em 2019 um
políticas educacionais”. Para o chefe
do MEC, o lulopetismo é essencial-
UMA DAS BASES exame marcado pelo conservadorismo
moral e liberalismo econômico.
mente patrimonialista. CULTURAIS DO Além da oposição cerrada às
O tema da guerra cultural foi po- pautas progressistas, deve haver um
pularizado no Brasil por Olavo de LULOPETISMO ousado revisionismo de questões his-
Carvalho, filósofo que foi adotado
como ideólogo pelo bolsonarismo. O
SERIA O CONTEÚDO tóricas bastante sensíveis à nossa his-
toriografia. Para os adeptos do bol-
filósofo é influente no governo e indi- PRÁTICO- sonarismo, os temas históricos foram
cou os nomes de Vélez Rodriguez ao interpretados segundo os padrões
MEC e do diplomata Ernesto Araújo -PEDAGÓGICO éticos e metodológicos da esquerda.
ao Itamaraty. A atmosfera ideológica
do governo é formada por dois ele-
DISSEMINADO Interessa agora ao MEC a substitui-
ção da narrativa histórica, sempre su-
mentos principais: o antiesquerdismo, NA EDUCAÇÃO pondo que exista uma distinção entre
estendido às esquerdas de maneira ge- a veracidade objetiva da História e a
ral e ao lulopetismo em particular; e PÚBLICA. LOGO, interpretação mentirosa da esquerda,
um sincretismo político de correntes
conservadoras e liberais. Um desejo
REFORMULAR O pelo que devemos esperar mudanças
na bibliografia do exame. Podemos
dominante entre ministros e secretá- ENEM SIGNIFICA mapear algumas chaves temáticas
rios do governo é a extirpação do pa- que devem sofrer alterações nos pres-
GANHAR UMA supostos das questões. Do ponto de
2
O Liberalismo Clássico é uma filosofia política
e econômica cuja principal característica é a de- BATALHA NA 3
O gramscismo prega a mudança da cultura na
fesa da Liberdade Individual, com limitação do sociedade em direção ao socialismo ao invés do
poder do Estado e respeito aos Direitos Civis. GUERRA CULTURAL conflito político direto.

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vista metodológico, a perspectiva AO CONTRÁRIO gosto público uma das formas mais an-
histórico-crítica, inspirada no mar- tigas do saber humano.
xismo, deve dar lugar ao positivismo- DAS ESCOLAS Ao contrário das escolas materialis-
-funcionalista4. tas da filosofia moderna, os bolsonaristas
MATERIALISTAS são adeptos de abordagens idealistas e
LINGUAGENS DA FILOSOFIA especulativas como a metafísica aristo-
Em questões de linguagens, é espe- télica ou a ética kantiana. Provavelmente
rado que o Marxismo e a Filosofia da MODERNA, OS a ética de Aristóteles apareça com maior
Linguagem de Mikhail Bakhtin5 ceda frequência, em função da perspectiva
lugar à filosofia de Gottlob Frege6 e
BOLSONARISTAS integracionista do filósofo de Estagira.
suas categorias analíticas de sentido e SÃO ADEPTOS DE Obras clássicas como a Ética a Nicômaco
referência. Não devemos esperar abor- e a Política sugerem o senso de pertenci-
dagens do idioma como criação coleti- ABORDAGENS mento à pólis como o ajustamento ético
va e dinâmica. Por isso, as questões de do indivíduo à comunidade, diferente-
linguagens devem entender a língua
IDEALISTAS E mente da perspectiva de colisão entre
como o código rígido de signos a ser ESPECULATIVAS classes adotada pela filosofia política de
assimilado por todos os brasileiros de- linhagem rousseauniana-marxista.
vidamente alfabetizados. COMO A Devemos esperar também questões
Uma consequência dessa opção que associem Platão a Agostinho, Aris-
metodológica é o abandono da análise
METAFÍSICA tóteles a Tomás de Aquino, comparan-
da realidade social por meio da inter- ARISTOTÉLICA OU do-se o medievo à idade antiga. Olavo
pretação textual. Se o ENEM de 2017 de Carvalho é um defensor da Filosofia
trouxe letras dos Racionais MC’s, com A ÉTICA KANTIANA Clássica no sentido amplo e seus segui-
o objetivo de incentivar o aluno a as- dores são geralmente católicos aprecia-
sociar a linguagem artística com a vida que talvez apareça em Literatura é José dores da escolástica. Antipático ao ilu-
suburbana descrita pelo rap, o mesmo Guilherme Merquior8. minismo francês que teria depreciado
não deve ocorrer no próximo exame. o cristianismo, Olavo rechaça nomes
Na última edição, criou-se polêmica FILOSOFIA como Voltaire e Diderot, que devem
sobre uma questão que tratou da língua Se o mentor intelectual do gover- ser retirados do exame. Quanto à filo-
pajubá, código interno da comunidade no Bolsonaro é um filósofo, é previsível sofia moderna do Estado, autores libe-
LGBT. Jair Bolsonaro, então candidato o peso atribuído à Filosofia pela nova rais como Locke e Montesquieu devem
à presidência da República, repudiou gestão do MEC. Disciplina obrigatória ofuscar Hobbes e Rousseau. Já a cidada-
publicamente a questão e afirmou que, em todas as escolas desde 2008, junta- nia, entendida como a participação po-
em seu governo, iria ler as provas antes mente com a Sociologia, a Filosofia é lítica dos indivíduos que compartilham
de sua aplicação aos estudantes. infelizmente depreciada como disciplina a vida em sociedade, deve ser abordada
Quanto à Literatura, é possível que secundária. Seu tratamento no ENEM com o Alexis de Tocqueville em sua De-
Otto Maria Carpeaux7 apareça em é importante porque pode reabilitar no mocracia na América.
questões sobre a história das letras no Outro tema caro à filosofia política
Brasil e no mundo. Carpeaux é autor do 8
Sociólogo e crítico literário. Autor de O Libera- moderna é o jusnaturalismo. O Direito
monumental livro História da Literatu- lismo antigo e moderno, entre outras obras. Natural é o fundamento das políticas de
ra Ocidental, recentemente reeditado. Direitos Humanos no mundo contem-
Outro nome à direita da crítica literária porâneo. Inicialmente concebido como
um esquema geral de direitos inaliená-
4
Para o positivismo-funcionalista as coisas veis de todo homem, a pauta dos Di-
que existem, como todos os fenômenos sociais, reitos Humanos teria sido sequestrada
apresentam uma função específica, um lugar pela esquerda identitária que estimulou
em uma ordem, de maneira que os fenômenos
um Direito Positivo para grupos mino-
socias são factuais. Essa corrente é marcada por
forte cientificismo. ritários supostamente ameaçados pela
maioria. Na visão liberal-conservadora,
5
Pensador russo marxista e filósofo da lin-
guagem. Segundo ele, as palavras são “signos a pauta deixou de se referir à humanida-
ideológicos”. de em geral e passou a privilegiar grupos
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

6
Matemático e filósofo alemão. Sua filosofia da
menores cooptados por partidos de es-
linguagem privilegia a precisão lógica dos discursos. querda. Autores como Thomas Sowell9
7
Polímata austro-brasileiro. Autor da co-
letânea Ensaios Reunidos, organizada por 9
Economista, crítico social e filósofo norte-
Olavo de Carvalho. Gottlob Frege, pensador alemão (1848-1924) -americano. Autor de Intelectuais e Sociedade.

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e Roger Scruton10 pregam o retorno à fator aglutinador da vida em sociedade, explicar por que o Brasil seria um país
universalidade do direito para prevenir e não como um mero código arbitrário subdesenvolvido. Esses autores devem
a tirania estatal e coibir a mobilização e coercivo de normas, pode aproximar o ser aproveitados tanto em relação à in-
autoritária de minorias. sociólogo da pretensão bolsonarista de terpretação sociológica do Brasil quanto
moralizar o ENEM. Os vestígios posi- sobre questões como o patrimonialismo
SOCIOLOGIA tivistas no pensamento de Durkheim o e a corrupção.
Entre os três autores clássicos da aproximam da mentalidade militar posi- Quanto à sociologia brasileira, de-
Sociologia, pode parecer evidente que tivista brasileira. vemos considerar o retorno de autores
Karl Marx será evitado. No entanto, é Quem deve aparecer mais forte- clássicos que foram paulatinamente
possível que seus textos menos pan- mente é o alemão Max Weber. As mar- retirados das bibliografias acadêmicas
fletários sejam tomados para análise a cantes diferenças teórico-metodológicas e do rol de referências do ENEM. É o
partir de questões temáticas, evitando entre Weber e Marx garantem ao pri- caso dos nacionalistas autoritários Oli-
que o panfletário comunista ofusque o meiro a posição privilegiada de autor veira Vianna e Alberto Torres, além do
filósofo e economista. O tema da re- individualista, em oposição ao coleti- ideólogo da democracia racial Gilberto
volução, por exemplo, aparece no texto vista. O individualismo metodológico Freyre. Os dois primeiros pertenceram
18 de Brumário de Luís Bonaparte, cujo de Weber toma a individualidade como à lavra de autores que colocaram o
foco analítico é mais histórico e menos a esfera primeira da ação social. Dado problema nacional em perspectiva au-
partidário. É possível que o texto seja que uma crítica recorrente ao marxismo toritária na primeira metade do século
comparado ao O antigo regime e a revo- consiste na suposta supremacia do co- XX. Já Gilberto Freyre ocupa posição
lução, de Tocqueville. letivo, é de se esperar que a abordagem privilegiada na galeria intelectual do
Já Émile Durkheim foi bastante vi- weberiana do indivíduo seja privilegiada. Brasil. Não há quem negue a relevância
sitado nas edições anteriores do ENEM. O ENEM deve retomar sua explicação e a originalidade de suas ideias quan-
O fundador da ciência dos fatos sociais da economia de mercado, exposta no to à relação interracial no país. Pela
recebeu tamanha atenção pelo fato de clássico A ética protestante e o espírito magnitude de sua obra, Freyre pode
ter reunido esforços no sentido de sis- do capitalismo. Weber oferece uma visão ser lido de diferentes perspectivas, in-
tematizar a Sociologia e instituciona- alternativa à tese marxista da posse au- clusive do ponto de vista conservador.
lizar o ensino e a pesquisa da ciência tocentrada dos meios de produção pela Segundo a leitura conservadora de
nascente. Suas noções de consciência classe burguesa. Freyre, ocorreu um ajustamento es-
coletiva, sua tipologia da solidariedade Além disso, o autor privilegia a cul- pontâneo entre as raças envolvidas na
humana, sua definição categórica sobre tura como o foco analítico de sua obra, escravatura, apesar do antagonismo
os fatos sociais, todo o edifício teórico opondo-se ao determinismo econômico entre senhores e escravos.
de Durkheim recebeu a atenção devida da obra de Marx. O tipo culturalista é
pelo INEP e deve marcar presença no a base de vários intelectuais brasileiros. HISTÓRIA E GEOGRAFIA
ENEM em 2019. É o caso de Raimundo Faoro e seu cé- A historiografia talvez seja o campo
As ideias de Durkheim não se filiam lebre Os donos do poder, uma explicação de batalha mais frequentado em qual-
diretamente a partidos políticos, tam- culturalista do problema brasileiro com quer guerra cultural, afinal revisar o pas-
pouco sua Sociologia está em oposição a elite no poder. Além dele, Roberto sado é um caminho para interpretar o
aos princípios morais enaltecidos pelo Damatta e Meira Penna11 também se presente. Ricardo Vélez já afirmou que
governo. Ao contrário, a tentativa do apropriaram do método culturalista para a nova geração de liberais havia se can-
autor em focalizar a Moral como um sado da “vulgata marxista”, isto é, da his-
11
José Osvaldo de Meira Penna, diplomata e en-
saísta. Publicou livros de psicologia social e história
tória contada nas escolas e reproduzida à
10
Filósofo conservador inglês. Autor de vários livros das ideias como Psicologia do Subdesenvolvimento, O exaustão nos livros didáticos.
sobre filosofia, política, estética e ambientalismo. espírito das revoluções e A ideologia do século XX. Quanto à história recente, temas
importantes como as manifestações de
2013, o impedimento de Dilma Rous-
seff, o Mensalão e a Lava Jato podem
ser abordados. Os escândalos de cor-
rupção revelados durante o governo
Lula e em meio à operação Lava Jato
são marcadores do debate historiográ-
fico. Logo, não há dúvida que tal tema,
assim como os protestos de 2013, me-
rece a atenção da academia e do INEP.
Podemos esperar uma abordagem da
corrupção com o viés liberal da crítica
ao patrimonialismo.

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O próprio ministro Ricardo Vélez


publicou livros sobre o assunto e co-
laborou em outras obras que trataram
das relações promíscuas entre agentes
públicos e privados. Publicado em
2016, o livro A grande mentira – Lula e
o patrimonialismo petista traz um sub-
título sugestivo. No livro, o ministro da
Educação afirmou que o lulopetismo
não cumpriu sua promessa de supe-
rar a cultura patrimonialista e realizar
suas metas de justiça social. O men-
salão mostrou que o PT jamais este-
ve comprometido com a moralização
da República e caminhou na mesma
trilha patrimonialista percorrida por
nossos governantes desde D. João VI.
Outro aspecto polêmico de Jair
Bolsonaro é a defesa de nosso governo
militar positivista (1964-1985). Con-
fiante na reserva moral das Forças Ar-
madas contra a corrupção galopante de
CONFIANTE NA mor12. Na esteira antissoviética também
podemos esperar questões sobre o na-
Brasília, Bolsonaro ganhou a atenção RESERVA MORAL cionalismo antissoviético e antinazista
nacional. Em seus discursos na Câmara no leste europeu, a Primavera de Praga,
dos Deputados ou em eventos públicos, DAS FORÇAS Revolução de Veludo, Revolução Hún-
a defesa do regime vinha sempre acom-
panhada da crítica à historiografia que
ARMADAS CONTRA gara de 1956, Solidariedade na Polônia, a
Queda do Muro de Berlim, além.
teria demonizado os militares. Segundo A CORRUPÇÃO, Sobre o período de 1945 a 1964, po-
o presidente, a história escrita pela es- demos esperar dois temas. O primeiro é
querda caracterizou João Goulart como BOLSONARO a exploração do tipo ditatorial de Getú-
a vítima indefesa de homens maus. Mas
os militares teriam apenas impedido
DEFENDE O lio Vargas e o segundo é a relação entre
populismo, aumento dos gastos públicos,
a tomada do poder pelos comunistas, GOVERNO MILITAR dívida externa e crise econômica. Vargas
acobertados por Goulart. A liderança deve ser abordado em suas facetas auto-
populista e carismática de Jango teria E GANHA, COM ritárias e em seu perfil populista. Nesse
ocultado a esquerda revolucionária, fi-
nalmente desarmada em abril de 1964.
ISSO, A ATENÇÃO quadro, Carlos Lacerda aparece como o
crítico do getulismo eventualmente per-
Assim os militares seriam heróis nacio- NACIONAL seguido pelo ditador e vítima de atenta-
nais. Em A verdade sufocada – a histó- do na Rua Tonelero. Deve haver ques-
ria que a esquerda não quer que o Brasil Milton Santos pela Geografia Econô- tões sobre o agigantamento do Estado,
conheça, o coronel Brilhante Ustra rea- mica. Sobre a Segunda Guerra Mun- na esteira da crítica liberal ao estatismo.
firma a tese do contragolpe anticomu- dial, prevemos questões sobre o pacto Juscelino Kubitschek pode ser retrata-
nista. Além dele, o livro Camaradas: de não-agressão entre a Alemanha Na- do como o presidente que aumentou a
nos arquivos de Moscou, do jornalista e zista e a União Soviética. O tema serve dívida externa para executar o projeto
sociólogo Wiliam Waack deve aparecer de contra-narrativa à historiografia que faraônico da construção de Brasília, no
com as evidências do plano soviético de considera a URSS uma força antina- conjunto do ambicioso plano de metas.
instaurar o socialismo no Brasil. zista na luta contra o Eixo. Também Outro tema candente nos círcu-
Quanto à Guerra Fria, o advento do é previsível a inserção de questões que los conservadores é o revisionismo do
regime militar positivista de 1964 será explorem o imperialismo soviético nos Império. Segundo os simpatizantes
encaixado na divisão internacional de Balcãs e na Ásia. da Coroa, a historiografia esquerdista
domínios entre as potências dos EUA A questão palestina também deve ser
e da União Soviética. É previsível uma revista com um posicionamento oficial 12
Holodomor ou “Holocausto Ucraniano” (Grande
abordagem antissoviética nas questões pró Israel, com questões como a Guerra Fome na Ucrânia) é o nome atribuído à fome de
SHUTTERSTOCK

carácter genocidário causado por Josef Stalin, no


sobre o tema. A análise do loteamento dos Seis Dias e a perseguição soviética comando da União Soviética, que devastou princi-
global entre EUA e URSS deve subs- aos judeus. Também podemos aguardar palmente o território da Ucrânia, durante os anos
tituir a famosa geografia marxista de questões sobre o Holocausto e Holodo- de 1932 - 1933.

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denegriu a imagem dos imperadores e OS TEMAS DE economia capitalista: Marx apegado


colou na monarquia a pecha de obscu- ao historicismo e Polanyi mais sensível
rantismo e de servidão ao capital estran- REDAÇÃO TERÃO às sutilezas sociológicas da industria-
geiro. Os monarcas seriam humildes de- lização. Sendo possível que o clássico
legados da burguesia inglesa. Os novos RAIZ LIBERAL- A riqueza das nações, do escocês Adam
monarquistas querem o desagravo do CONSERVADORA, Smith, seja tomado como referência
período imperial. Pretendem caracteri- histórico-sociológica da questão sobre
zar o Império como herdeiro da cultura SINTONIZADOS o desenvolvimento industrial.
ocidental e como respeitável potência do Além disso, podemos concluir que
século XIX. Para tanto, é provável que o COM AS DEMANDAS o tema selecionado para a redação do
período seja analisado a partir da obra ECONÔMICAS ENEM é geralmente influenciada pe-
maior do historiador João Camilo de las questões de Ciências Humanas. O
Oliveira Torres13, A Democracia coroada. E SOCIAIS tema escolhido será sintonizado com
Além disso, é provável que o tema as demandas econômicas e sociais e as
do fim da escravidão seja revisto em fun- VOCALIZADAS pautas vocalizadas pelo governo Bolso-
ção do protagonismo da princesa Isabel PELO GOVERNO naro. Onde esses dois vetores se encon-
na promoção da causa abolicionista. É tram é que podemos sondar o prová-
possível que a Guerra do Paraguai tam- BOLSONARO vel tema escolhido para a redação. As
bém seja analisada em perspectiva críti- possibilidades: pode-se discutir a rela-
ca à megalomania de Solano López que considerar as raízes históricas e cul- ção desastrosa entre aumento na carga
teria atraído contra si a fúria de Brasil, turais do povo francês. Sobre a Revo- tributária e sufocamento do empreen-
Uruguai e Argentina. lução Industrial, é possível que a obra dedorismo; pode-se discutir como o
Quanto à história geral, as revolu- maior de Karl Polanyi, A grande trans- sentimento de impunidade encoraja
ções francesa e russa devem ser aborda- formação, seja comparada a O Capital, a ação criminosa. Os temas terão raiz
das em perspectiva crítica, considerando de Marx. Ambos os livros tratam da liberal-conservadora e podem suscitar
os morticínios operados por jacobinos e formação e do desenvolvimento da discussões em nível nacional.
bolcheviques, revolucionários radicais.
Ao contrário do que aconteceu na Fran- BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo. Hucitec, 1988.
REFERÊNCIAS

ça e na Rússia, as revoluções gloriosa e


BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. Campinas. Vide. 2017.
americana não derramaram sangue na
mesma escala monstruosa. Ainda em CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. São Paulo. LeYa. 2017.
linha comparativa, é provável que as re- FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Porto Alegre. Globo, 4ª ed. 1977.
voluções de ingleses e americanos sejam FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. São Paulo. Global. 2012.
consideradas conservadoras. O conceito
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo. Boitempo. 2015.
de revolução conservadora se explica. As
. O Capital. São Paulo. Boitempo. 2015.
revoluções do Atlântico Norte visavam
libertar a sociedade civil do despotismo POLANYI, Karl. A grande transformação. São Paulo. Edições 70. 2012.
de Estado, destituir o governante e ins- RODRIGUEZ, Ricardo Vélez. A grande mentira: Lula e o patrimonialismo petista. Campinas. Vide. 2015.
tituir um novo modelo de governo, limi- SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo. Abril Cultural. 1983.
tado à proteção dos direitos individuais
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo, EDUSP. 1998.
como a propriedade privada e a liberdade
de expressão, não queriam transforma- . O Antigo Regime e a Revolução. Brasília. Editora da UnB. 1979.
ções radicais. Nessas questões, devemos TORRES, João Camilo de. A democracia coroada. Brasília. Edições Câmara.2017
ver autores como Locke e Tocqueville, USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada. Editora Ser. 16ª ed. 2014. WAACK, William.
fontes do liberalismo anglo-americano. Camaradas: nos arquivos de Moscou. São Paulo. Companhia das Letras. 1993.
Podemos esperar questões que WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo. Companhia das Letras. 2004.
tratem do pensamento de Edmund
• Bolsonaro critica questão do ENEM e diz que em 2019 vai ‘tomar conhecimento da prova antes’. G1.
Burke. Político e filósofo irlandês, Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/11/09/bolsonaro-critica-questao-do-enem-2018-e-
Burke escreveu as Reflexões sobre a diz-que-em-2019-vai-tomar-conhecimento-da-prova-antes.ghtml
revolução na França, texto fundador • Bolsonaro volta a criticar ENEM: ‘não devemos fabricar militantes’. Veja online. Disponível em https://
do conservadorismo moderno, onde veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-volta-a-criticar-enem-nao-devemos-fabricar-militantes/?fbclid=IwAR3-
AlrZ20HSfAI094evQ-_szvIgtBhokBCGhXqbkrLEBIaQ_EerGgnauiE
expôs suas críticas à tentativa jacobina
• Vélez exalta igreja e família e diz que MEC vai combater marxismo cultural. Folha de S. Paulo online.
de transformar a realidade social sem Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/01/velez-exalta-igreja-e-familia-e-diz-que-mec-
vai-combater-marxismo-cultural.shtml
13
Historiador mineiro, autor de vários livros so- • Entrevista com Ricardo Vélez Rodriguez. Podcast do Instituto Mises Brasil. Disponível em https://www.
bre história das ideias, história nacional e mineira. youtube.com/watch?v=UCg5chrSivw

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PROFESSOR DE
FILOSOFIA: EDUCADOR
OU LIBERTADOR?
Uma reflexão a partir da aproximação entre os
pensamentos de Max Stirner e Friedrich Nietzsche

A
tarefa de educar, em um tempo não o que vemos é uma sociedade individualista,
muito distante, era vista tanto por competitiva e agressiva.
professores e alunos, como algo de O filósofo-educador, assim como os profes-
pleno sentido. Muitos acreditam que foi sores de outras áreas, precisa enfrentar o desafio
assim ontem e continuará sendo para todo o de um mundo apressado, onde impera a into-
sempre. Estes são os que creem que a educa- lerância quase que absoluta entre as pessoas,
SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL DO AUTOR

ção é o melhor e principal instrumento para instalando-se na prática docente uma perspec-
que as pessoas possam se preparar para uma tiva incerta e por vezes desanimadora. É visto a
Leonor Gularte Soler/ vida plena, uma cidadania participativa e uma mínima importância que as famílias dão a educa-
PPGE-UFPel é aluna convivência um pouco menos conf lituosa. ção, usando as escolas como albergues, casas de
regular de Mestrado Ninguém diz que a educação é inútil. Porém, correção para aqueles que não conseguem ou
do Programa de Pós há uma proliferação de alguns, que asse- não sabem educar, como também, servindo de
Graduação em Educação guram que em meio a tanto desemprego e depósito de crianças enquanto os pais vão para
da Universidade Federal desigualdades, seria incoerente educar para o trabalho, em contrapartida o pouco ou quase
de Pelotas a convivência, visto que em torno da escola nenhum reconhecimento da profissão docente.

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DESDE O SÉCULO XVII ATÉ NOSSOS DIAS, como um paciente que recebe os conheci-
mentos conteúdos-acumulados pelo sujei-
O QUE SE OBSERVA É UMA SUCESSÃO DE to que sabe e que são a mim transferidos.
Nesta forma de compreender e de viver o
MÉTODOS DE ENSINO COM A PREOCUPAÇÃO processo formador, eu, objeto agora, terei
DE ATINGIR A MÁXIMA DE EFICIÊNCIA E a possibilidade, amanhã, de me tornar o
falso sujeito da formação do futuro obje-
CONSTRUIR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA to de meu ato formador” (FREIRE,
2002,p.12).
A PARTIR DA IGUALDADE DE INTELIGÊNCIAS
Desde o século XVII até nossos
Nesse cenário caótico onde de um lado minados pelas instituições habilita- dias, o que se observa é uma suces-
vivemos um tempo de possibilida- das para isso. Sendo assim, o sentido são de métodos de ensino, todos com
des e conquistas na área da educação, de ensinar filosofia, redefine-se pelo a preocupação de atingir a máxima de
porém, de outro instala-se uma crise sentido institucional que se outorga a eficiência. A ideia comum que envol-
em diferentes dimensões. Consequen- esse ensino (p.13). veu a escola pública foi de construir
temente, a organização escolar é convi- A reflexão filosófica, sobre o senti- uma sociedade democrática a partir
dada a se ressignificar para que possa do da filosofia torna-se abreviada em da igualdade de inteligências. Siste-
enfrentar as barreiras impostas pela favor da introdução dos conteúdos ma esse, que segundo Gallo (2014), se
contemporaneidade. específicos. A questão o que se ensina? baseou na lógica da explicação de que
Há ainda aqueles que acreditam e como se ensina? muitas vezes conduz “alguém que não sabe só pode aprender
que para se instituir uma nova orga- o professor a uma espécie de senso quando outra pessoa, que sabe, expli-
nização social é necessária uma nova comum que se constitui em torno do ca,” o que contribui para manter a desi-
mentalidade, uma nova forma de vida, ensinar filosofia muito frequentemen- gualdade, afastando a possibilidade da
o que só é possível através da educa- te apenas na transmissão de qualquer emancipação intelectual. É preciso
ção. Essas ideias marcaram o princípio conhecimento. O que foi brilhante- “haver uma relação de igualdade entre
pedagógico da educação libertaria nos mente caracterizado por Paulo Freire quem ensina e quem aprende sem
séculos XIX e XX, delineados pela (1921-1997) em sua concepção bancá- submissão ou assimetria, uma relação
defesa da autonomia. ria de educação: na qual o aprendizado é uma conquis-
O propósito deste artigo é pensar a ta e uma realização de uma inteligên-
relação discente-docente no ensino de “(..) que se, na experiência de minha cia que é capaz por si mesma tendo no
filosofia a partir do pensamento de dois formação, que deve ser permanen- outro um parceiro e nunca um guia,
filósofos, embora de correntes opostas, te, começo por aceitar que formador é o ou uma muleta”(p.87). O processo de
com pensamentos tão próximos e tão sujeito em relação a quem me considero o aprendizagem vai muito além da assi-
atuais, Max Stirner e Friedrich Niet- objeto, que ele é o sujeito que me forma e milação de conteúdos. Aprendemos
zsche. A proposta inspira para que eu, o objeto por ele formado, me considero quando algo nos chama a atenção, nos
além da reflexão sejamos capazes de
nos deixar educar por eles no senti-
do de tomá-los como um exemplo e,
a partir dessa concepção repensar o
trabalho do professor de filosofia como
uma possibilidade constante de auto-
formação e transformação de si.
A filosofia, a partir da modernida-
de e da institucionalização do ensino,
passa a integrar os sistemas educativos,
ocupando um lugar de maior ou menor
importância, nos programas oficiais,
ou seja, o ensino de filosofia passa a ter
um caráter estatal. Segundo Cerletti
(2009), os mestres ou professores já
não transmitem uma filosofia, ou sua
filosofia, mas sim, embora tenham
um grau de liberdade para exercer essa
atividade, ensinam Filosofia confor-
me os conteúdos e os critérios deter-

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desperta o desejo, o encantamento, a


admiração e o espanto nos envolvendo
em sua rede de sentidos.
O método, conforme Gallo (2014),
é um instrumento de controle, de
regulação do que se sabe e de como se
sabe, de definir aquilo que é possível
que cada um saiba. O aprender escapa
a qualquer método. O aprendiz pensa,
produz, aprende para além de qualquer
método. Alguém que aprende a nadar
precisa entrar em contato com a água,
para somente depois disso, conse-
guir produzir o resultado desejado. A
função do mestre é lançar-se na água
com ele, construindo a sua própria
relação com o signo. Não aprende-
mos por imitação. Além de aprender O APRENDER ESCAPA A QUALQUER
a pensar, um professor de filosofia,
precisa criar sua própria maneira de se
MÉTODO. O APRENDIZ PENSA, PRODUZ,
relacionar com os signos do pensamen- APRENDE PARA ALÉM DE QUALQUER
to. (p.88) Uma aula de filosofia, para
Gallo, é uma oficina de conceitos. Os MÉTODO. ALGUÉM QUE APRENDE A
alunos não podem ser meros expecta-
dores, mas ativos, criadores, produto-
NADAR PRECISA ENTRAR EM CONTATO
res, precisam ser filósofos construindo COM A ÁGUA, PARA DEPOIS, CONSEGUIR
e criando conceitos, e mais importante
ainda, segundo ele, é o momento onde PRODUZIR O RESULTADO DESEJADO
eles possam ter o contato com o senti-
mento da ignorância. que a educação deveria estar fundada no caráter. Talvez esse seja um dos
Conforme aponta Cerletti, (2009) no estudo das línguas antigas e dos motivos que torna Stirner o primeiro
o ensino de filosofia é uma constru- clássicos; à outra ele apresenta como pensador libertário da história.
ção subjetiva, apoiada em uma série realista, pois defende um ensino cien- Ferrer (2001) afirma que para
de elementos objetivos e conjunturais. tífico e tecnológico, que se volta para Stirner a educação é nutrição do espí-
Um bom professor de filosofia é aquele a formação profissional. Para Stirner rito, é um modo de personalização do
que pode levar adiante de forma ativa ambas eram equivocadas, pois resulta- saber, é um meio para a formação do
e criativa essa construção, ensinar em vam em submissão do indivíduo esco- caráter. “Quando o saber é pensado
condições diversas não só por terem larizado, sem a menor possibilidade de como matéria prima a ser transmutada
que criar estratégias didáticas alterna- autonomia (p.172). em vontade, entendemos que a essência
tivas, mas também porque deverão ser A fi losofia de Stirner foi desen- do conhecimento consiste em favorecer
capazes de repensar, no dia a dia, os volvida mais amplamente na obra O as metamorfoses do Ser. Para Stirner o
próprios conhecimentos e a sua relação Único e sua propriedade (1844) onde ser humano é uma crisálida perpétua”
com a filosofia. (p.9) ele defende a personalidade humana (p.19). Stirner foi um dos primeiros
confrontada à sociedade e ao Esta- pensadores a declarar que a substân-
MAX STIRNER: O QUERER do. Para ele, a missão de uma pessoa cia a ser objeto de um pensamento
NASCIDO DO SABER consiste em chegar a ser ela mesma. pedagógico era a própria existência, a
Para Gallo (2014), a busca do exer- A única propriedade verdadeira de vida, e que para isso, não é necessário
cício da criatividade na construção e uma pessoa é ela mesma, porém para somente a liberdade de expressão, mas
na afirmação de si mesmo surge em que possa ser de maneira autêntica, também a liberdade de personalidade.
um artigo publicado por Max Stir- precisa tomar posse de si mesma. É a É necessário que o saber, dos humanis-
ner (1806-1856), O falso princípio de partir dessa descoberta que o homem tas e dos realistas morra para renascer
nossa educação (1842). Ele identifi- vincula-se livremente com a socie- como vontade. Se o Saber é um Bem,
ca na educação alemã do período em dade, para ele, o Estado é rival do uma posse que nos empanturra, esta-
que viveu duas tendências distintas e homem, é anti-individualista, contrá- mos mal preparados para vida. Sendo
também antagônicas. Uma ele quali- rio a vontade pessoal. Sendo assim, a assim, o saber precisa incorporar-se à
fica de humanista, porque defendia autonomia habita na personalidade, personalidade, o principal objetivo da

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analisa os motivos principais afirman-


do que duas correntes opostas e nefas-
tas em seus efeitos e unidas nos seus
resultados dominam os estabelecimen-
tos de ensino, de um lado a tendência
de ampliar a cultura ao máximo e de
outro, submeter a cultura ao Estado,
o que poderia enfraquecê-la, já que
subtrairia suas pretensões.
Para Nietzsche (2011), é impossí-
vel separar a cultura da educação. As
escolas alemãs, com sua concepção
historicista, originaram uma pseudo-
cultura, ou seja, uma cultura aparente
falsa. O filósofo acredita que “o Estado
é o grande responsável por enfraque-
cer a cultura quando associa o máximo
de cultura ao máximo de produção,
visando assim o lucro e o maior ganho
educação, para Stirner, não é mais o preciosas seivas uma nova liberdade, de dinheiro possível” (p.72). Segundo
saber, e sim o querer nascido do saber, a liberdade de querer” (STIRNER, Barrué (2001), Nietzsche não pode
só assim forma-se o homem livre. Stir- 2001,p.72) ser considerado como um continuador
ner afirma que das ideias de Stirner. A semelhança e a
A escola, no pensamento de Stir- concordância em alguns temas funda-
“(..) só os filósofos sabem morrer e ner, não fabrica homens de verdade, mentais é o que nos faz estabelecer
encontrar na morte seu verdadeiro Eu. se eles existem, não é pela escola, esta relações entre os dois.
Com eles acaba a era da Reforma, a sufoca a liberdade. Ele acusa a escola de Em Consideração Intempes-
era do Saber. Sim, em verdade, o Saber se utilizar do velho princípio da saber tiva – Schopenhauer Educador
também deve morrer para, na morte, sem vontade. “Não há porque estabe- (2011), Nietzsche critica fortemente
reflorescer em Vontade. As liberdades lecer um acordo entre a escola e a vida: a educação e ainda, indiretamente
de pensamento, de crença e de consciên- a escola deve ser a vida” (BARRUÉ, problematiza todo projeto pedagó-
cia, essas flores maravilhosas que são a 2001.p.30). A lei, para Stirner, não gico da modernidade (p.51). Escla-
obra de três séculos, se fecharão no seio pode ser imposta do exterior, ela deve rece que o Estado abusa da cultura
da terra para nutrir com suas mais responder à natureza própria de cada e a reduz à servidão e quando faz
aluno. A priori, Stirner defende a auto- algo a favor da cultura é sempre com
nomia do aluno. uma segunda intenção. O Estado
PROPOSTA FRIEDRICH NIETZSCHE:
promove uma igualdade dos fracos;
a ciência é sinônimo de único
DIDÁTICA TEU EDUCADOR
É TEU LIBERTADOR
conhecimento válido e a cultura é
resultado do progresso científico.
Aproveite o ensejo do texto, educado- Friedrich Nietzsche (1844-1900) Nietzsche, acrescenta também que
ra ou educador, para que suas alunas jovem, com apenas 28 anos, atuante a cultura jornalística, aos poucos,
e alunos reflitam sobre o processo de como professor na Escola Secundária substitui a cultura verdadeira. O
aprendizagem. Após a leitura deste ar-
da Universidade de Basiléia, e envol- jornalista é um miserável escravo
vido profundamente com as questões dos três “emes”: o momento presen-
tigo, e de trechos ou obras selecionados
educacionais do seu tempo, em suas te, as maneiras de pensar e a moda,
da bibliografia ao seu final, pergunte a
conferências sobre educação: Sobre o portanto Nietzsche (2008) entende
eles o que esse processo significa para
futuro dos nossos estabelecimentos que “ser culto significa agora não
cada um? O que puderam absorver do de ensino (1872) e III Consideração deixar ver até que ponto se é mise-
pensamento de Nietzsche e Stirner so- Intempestiva: Schopenhauer educador rável e mau, feroz na ambição, insa-
bre a questão? Principalmente, como (1874), estava preocupado em denun- ciável no lucro, egoísta e desavergo-
veem os professores que já passaram por ciar o sistema educacional vigente na nhado no prazer”(p.75).
sua vida acadêmica: foram educadores, Alemanha de sua época. Assim como A educação na Alemanha coloca
libertadores ou neutros em seu processo Stirner, Nietzsche identifica com todos os indivíduos em uma mesma
de crescimento e aprendizagem? precisão e clareza os problemas da base, padroniza e não deixa que
educação e da cultura de sua época. E ninguém se destaque, não existe um

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tornar-se o que se é1, um cultivo de si


porque a autonomia está concentrada
A EDUCAÇÃO ACONTECE QUANDO SE
apenas na razão. No lugar da padro- DÁ O DESPERTAR DAS ENERGIAS DE CADA
nização, Nietzsche propõe destacar
os indivíduos mais talentosos. O INDIVÍDUO, PRESENTES E SUFOCADAS PELO
papel da educação para Nietzsche
está em promover o homem superior,
SISTEMA. A VERDADEIRA EMANCIPAÇÃO
aquele que não se deixa dominar por SURGE DO CRESCIMENTO, DA LIBERDADE
nenhuma força externa a sua vonta-
de. A educação começa com hábito e E DA VONTADE DE POTÊNCIA
obediência, ou seja, com disciplina.
A função do mestre aqui é ajudar o do; teus educadores nada podem fazer por de (p.39). Nietzsche (2008) acrescenta
aluno a construir determinados princí- ti, a não ser tornar-se teus libertadores. E ainda que, “teus verdadeiros educado-
pios a partir dos quais ele possa crescer esse é o segredo de toda a formação; ela não res, aqueles que te formarão, te revela-
por si mesmo, dominar seu idioma e consiste em nos dar membros artificiais (..) rão o que são verdadeiramente o sentido
construir uma língua artística, que é mas ela é libertação, extirpação das ervas original e a substância fundamental da
o caminho para restituir a educação daninhas, dos escombros, (..) é efusão de tua essência”, algo que para ele, “resiste
e a cultura, sem acomodação, mas luz e de calor, murmúrio amigo da chuva absolutamente a qualquer educação e a
com uma formação diferenciada, com noturna;(..) é o complemento da nature- qualquer formação, qualquer coisa em
expansão e desdobramento. A educa- za, previne contra os acessos implacáveis todo caso de difícil acesso, como um
ção acontece quando se dá o despertar e cruéis que ela sabe transformar para o feixe compacto e rígido: teus educa-
das energias de cada indivíduo, presen- bem, lançando um véu sobre os casos em dores não podem ser outra coisa senão
tes e sufocadas pelo sistema. Portanto, que essa natureza se mostra madrasta e teus libertadores” (p.165). Sobrinho
a verdadeira emancipação surge do manifesta sua triste inteligência (NIET- (2012) reconhece que, para Nietzsche,
crescimento, da liberdade e da vontade ZSCHE, 2008, p.19). o meio indispensável para a formação
de potência. Tanto Nietzsche, quanto dos grandes homens é a filosofia, pois é
Stirner, defendiam a afirmação de si e Para Nietzsche (2008), o verdadeiro ela que liga a ciência à arte (p.38).
a liberdade de cada individuo. Nietzs- professor é aquele comprometido com Gusdorf (1963) em sua obra
che nos alerta que uma educação não somente pelos livros, Professores para quê? esclarece que a
mas também pela vida cotidiana, por relação professor-aluno é essencial no
(..) de fato, teu verdadeiro ser não está seus gestos, expressões e atitudes, seus processo de ensino-aprendizagem. O
oculto no mais profundo de ti; está coloca- hábitos e costumes (p.31). Sobrinho saber epistemológico só acontece na
do infinitamente acima de ti, pelo menos (2012) entende que o educador, para interação de uns com os outros e nesse
acima daquilo que tomas comumente como Nietzsche, deve ser ao mesmo tempo processo é fundamental a mediação
teu eu. Teus verdadeiros educadores, aque- “asas” e “freio” para os seus discípu- do professor que prepara os aprendi-
les que vão te formar, vão te revelar aquilo los, dando condições para que eles se zes para enfrentar a vida. “Para além
que realmente é o sentido original e a subs- elevem, mas também que dominem de todas as lições ensinadas e apren-
tância fundamental de teu ser, aquilo que seus ímpetos e arroubos da imaturida- didas, o melhor ensino que o mestre
resiste a toda educação como a toda forma-
ção e, em todo caso, uma realidade dificil-
mente acessível, um feixe amarrado e rígi-
1
O “como se chega a ser o que se é”, subtítulo de
Ecce Homo é a transformação em forma interroga-
tiva do lema de Píndaro que está na forma impera-
tiva: “transforma-te no que és!” A frase aparece nos
escritos nietzschianos, pela primeira vez em um
trabalho juvenil sobre Teógnis. É um dos lemas
da terceira extemporânea (Schopenhauer como
educador) e aparece, com certas modificações em
Humano, demasiado humano, Gaia Ciência, nas pas-
sagens de Assim falava Zaratustra “O convalescente
e a oferenda do mel”, além de ser tema de várias
cartas, sem citar suas inúmeras variações. O “tornar-
se o que se é” nada mais seria do que permitir que
uma configuração de impulsos atinja sem quantum
máximo de potência – esse conjunto de impulsos
apresenta-se como a relação entre as condições fi-
siológicas e as condições culturais e/ou educativas.
(cfe. Frezzatti, Ijuí: Unijuí, 2008. p.63)

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pode dar é o ensino da própria quali- lições enriquecedoras. Stirner acredita


dade de mestre”. E ainda, “o verda- que a mais elevada missão do homem
deiro mestre reconhece-se a si próprio não é cultivar-se, civilizar-se, mas
como servidor e discípulo da verdade, tender ao seu próprio desenvolvimen-
convida os seus alunos a procurá- to, tão logo isso aconteça, ele esforça-se
-la pelo seu lado e segundo os seus para por fim a sua ignorância, porque
próprios meios”. (p.192) ela cria um obstáculo ao conhecimen-
O mestre não se torna mestre to de si. Para ele tudo que se ensina
porque os outros esperam dele a verda- deve referir-se a vida prática. Porém,
de. Ser mestre é fundamentalmen- a prática mais elevada é aquela que
te uma forma de relação com outra permite a um homem livre revelar-se a
pessoa. A maior parte dos professo- si mesmo e o saber que sabe morrer é a
res, segundo Gusdorf (1963), não são liberdade que dá a vida.
mestres. Dão aulas como bons funcio- Nietzsche considera que a arte além
nários, redistribuem os conhecimentos de acolher, ajuda o homem a superar os
que acumularam, mas nunca pensaram sofrimentos e dá sentido ao seu viver.
que muito antes da ideia professada, se Para isso, é preciso resgatar o homem
afirma a exigência de uma verdade mais superior que existe dentro de cada um,
alta, que o homem digno desse nome produzir movimentos mais criativos,
é responsável. Como exemplo, ele cita proveito através dos diversos meios unir as potencialidades do espírito,
a importância de Schopenhauer como disponibilizados (p.21). ousar sem medo, sabendo que a desor-
educador para Nietzsche, que mesmo Em síntese, uma educação para dem e o caos são forças que nos movem
não o tendo conhecido, reconhece o pensar preocupa-se e ocupa-se da tanto quanto a estrutura e a ordem.
que “para o homem de valor à procu- reconstrução do conhecimento, uma Buscar na arte da educação, a arte de
ra de si próprio, o mestre é, portanto nova produção em cada aluno, fazendo tornar-se o que se é. Eis o grande desa-
o intercessor necessário dos anos de com que eles se reproduzam, se redes- fio dos professores - encontrar o tesou-
aprendizagem. O seu papel parece cubram e se reconstruam. E é nesse ro oculto e esquecido nas entranhas
imenso, mas limitado; ele é um meio, processo, ao operar com ideias, que o de cada aluno. O mundo é um ciclo
e não um fim” (p.195). aluno tem um duplo aprendizado: o ininterrupto, um eterno devir e não
dos conteúdos de ensino e o de como existe um caminho, um método que
CONSIDER AÇÕES FINAIS aprender por si mesmo. seja igual para todos. É preciso perse-
Acredito na escola transforma- Os autores em questão no texto, guir um caminho singular e único, que
dora, e essa mudança pode começar foram nossos mestres, nos guiaram cada um deve traçar e percorrer por si
pelo professor, dentro das escolas em para pensar a questão da autoforma- mesmo em uma aventura audaciosa,
que atuam, abandonando os concei- ção, e como todo mestre, nos deixaram incerta e fugaz.
tos prontos, para junto com os alunos
participarem desse processo de cons-
BARRUÉ, J. Da educação. In: O falso princípio da nossa educação: São Paulo: Ed. Imaginário,2001.
trução de conceitos e saberes. É claro,
REFERÊNCIAS

sabemos que esta não é uma tarefa fácil, CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009.
muitos professores de filosofia não tem ENGUITA, M.F. Educar em tempos incertos. São Paulo: Ed. Artmed, 2004.
nenhum interesse em deixar a comodi- FERRER, C. Max Stirner, autor de um único livro. In: O falso princípio da nossa educação. São Paulo: Ed.
dade dos conceitos prontos, para refle- Imaginário, 2001.
tirem sobre os temas que vão trabalhar. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia.São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2002
Para Enguita (2004) é muito comum
GALLO, S. Anarquismo e educação: os desafios para uma pedagogia libertária hoje. Política & trabalho:
encontrarmos professores epimetéicos2, Revista de Ciências Sociais, n. 36, p.169-186,2012.
que só olham para trás, seja na forma
GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia. São Paulo: Ed. Papirus, 2012.
de reação hostil, de falta de apoio ou de
GURSDORF, G. Professores, para quê? Santos: Ed. Martins Fontes, 1963.
simples indiferença que se chocam de
imediato com seu colega prometéico, NIETZSCHE, Friedrich N. Schopenhauer Educador, Terceira Consideração Intempestiva. São Paulo: Ed.
Escala, 2008.
que olha para frente, acompanhando
o ritmo da mudança, antecipando-se a . Escritos sobre educação: Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. 5ª
edição. São Paulo: Ed. Loyola, 2011.
ela no sentido de prevê-la e tirar melhor
. Ecce Homo: De como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre. Ed. L&PM, 2012.
2
Os adjetivos prometéico e epimetéico fazem
STIRNER, M. O falso princípio da nossa educação. São Paulo: Ed. Imaginário, 2001.
referencia aos personagens mitológicos Prometeu
(aquele que pensa antes) e seu irmão Epimeteu SOBRINHO, Noéli C.M. Escritos sobre educação: Friedrich Nietzsche. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Puc-Rio;
(aquele que pensa depois). São Paulo: Ed. Loyola, 2012.

52 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


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Dignidade
e paciência
O pior erro é não corrigir seus pró- sas atrozes de maneira inexpug- bedoria”. Ambos os trechos mos-
prios erros. (Confúcio) nável; de outras, revoltou-se de tram que o exercício da paciência
imediato com certos acontecimen- e da dignidade são práticas cons-

C
onfúcio levanta um tos. Há um padrão para lidar com tantes, e seu domínio procede de
problema sério para os problemas sem perder o contro- uma intensa, profunda e dedicada
qualquer buscador da le? E se existe, qual é? atenção. Elas procedem do desejo
sabedoria: quais os limi- Nas Conversas [Lunyu] de Con- de não buscar o conflito desneces-
tes da dignidade e da paciência? O fúcio está escrito: “Os discípulos de sário, de atentar ao conjunto das
mestre, por vezes, suportou ofen- Zixia perguntaram a Zizhang sobre possibilidades de resolução, e de
as relações sociais. Zizhang disse: ponderar corretamente, sem fazer
“O que Zixia vos disse?” Eles res- concessões levianas ou abandonar
ponderam: “Zixia disse: ‘Associai- o que é correto.
-vos ao tipo certo de pessoas; evitai Porém, em situações extremas
aquelas que não são do tipo certo’”. não há nada o que fazer para al-
Zizhang disse: “Ensinaram-me algo terar o curso das coisas: pior, man-
um pouco diferente: um cavalheiro ter-se numa determinada posição
respeita os sábios e tolera os medí- pode mesmo significar um envol-
ocres, louva os bons e tem compai- vimento – ou compromisso – com
xão pelos incapazes. Se tenho uma a causa dos problemas. Nestas si-
vasta sabedoria, quem eu não tole- tuações, é melhor das às costas ao
raria? Se não tenho uma vasta sabe- mundo e seguir adiante. Se não se
doria, as pessoas me evitarão; com pode combater o problema frontal-
base em que deveria eu evitá-las?”. mente, e se a arte do indireto não
No livro Zhong Yong [A Justa Me- serve para a elucidação daqueles
dida] também se diz: “se alguém envolvidos no erro, então, pôr-se a
faz dez vezes o que outros fa- caminho não é covardia ou medo
zem um; se faz cem o que – é apenas a constatação de que
outros fazem dez; se faz mil nada pode ser feito, e a dignidade
o que outros fazem cem; é real consiste em conter-se e ausen-
esta atitude que leva a sa- tar-se do contexto em erro.

54 • ciência&vida
“AO FUGIR DE UM PAÍS PARA OUTRO,
CONFÚCIO E SEUS DISCÍPULOS PASSARAM
FOME E SEDE. ZILU, REVOLTADO,
PERGUNTOU A CONFÚCIO: ‘MESTRE,
UM CAVALHEIRO TEM QUE PASSAR POR
ESSAS INDIGNIDADES?’. CONFÚCIO
André Bueno é professor
RESPONDEU: ‘O QUE TORNA ALGUÉM UM adjunto na UERJ. Atua nos
temas: Pensamento chinês,
CAVALHEIRO É O MODO DIGNO COM QUE Confucionismo, História e
Filosofia antiga, diálogos
ELE ENCARA AS INDIGNIDADES’.” (CONFÚCIO) e interações culturais
Oriente-Ocidente. É
No hexagrama 61 do Yijing [Tratado excelência. A covardia só existe quan- membro da Ass. Europeia
das Mutações], analisa-se a “verdade do alguém pode, de fato, resolver uma de Estudos Chineses
interior”, a autenticidade realizante, questão mas se ausenta, seja por medo e da Ass. Europeia de
derivada da centralidade do indivíduo. ou por compromisso. Quando alguém Filosofia Chinesa; membro
do grupo Leitorado
A sexta linha, que é nove e conclui o desconhece a própria força, deve cui-
Antiguo [UPE]; membro
hexagrama, traz um comentário inte- dar-se para não confundir humilda- do Alaada; membro da
ressante: “o galo canta para o céu, mas de com indulgência perante os erros. Rede Iberoamericana
não voa”, o que significa; podemos A autoridade moral para enfrentar as de Sinologia [Ribsi];
IMAGENS: SHUTTERSTOCK/ARQUIVO PESSOAL

denunciar os crimes, mas se não po- indignidades é difícil de se obter, e a membro da International
Confucian Association;
demos voar, se não tivermos o poder paciência é confundida com covardia,
membro do
e a autoridade para corrigi-los, aca- mas o buscador da sabedoria deve ter Laphis/Unespar.
baremos só criando mais problemas. um compromisso, antes de tudo, com
Portanto, nestas horas, por mais certos o que é apropriado e consigo mesmo,
que estivermos, precisamos nos conter não temendo a reprovação alheia.
e praticar a paciência com dignidade. “Sem princípios comuns é inútil
Tolerar é uma virtude: comedir-se, uma discutir.” (Confúcio)

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 55
EXISTÊNCIA/CAPA
BRASIL/CAPA

Nossa
FILOSOFIA
jabuticaba
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

Como um país como o Brasil, com um passado


marcado pela ignorância, poderia produzir pensamento
filosófico? Será que isso nos atrela, definitivamente,
ao passado filosófico dos países colonizadores?

56 • ciência&vida
João de Fernandes
Teixeira é paulistano,
formado em Filosofia
na USP. Viveu e
estudou na França,
na Inglaterra e
nos Estados Unidos.
Escreveu mais de uma
dezena de livros sobre
Filosofia da Mente e
Tecnologia. Lecionou
na Unesp, na UFSCar
e na PUC-SP.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 57
BRASIL/CAPA

Q uando Charles Darwin


desceu a costa brasi-
leira a bordo do me-
morável Beagle, ficou
extasiado com a exuberância da
fauna e da flora nativas. Em várias
OS PRÉ-SOCRÁTICOS, PLATÃO E
ARISTÓTELES ERAM A EXPRESSÃO
DA CULTURA GREGA. FAZEMOS O
MESMO COM A CULTURA INGLESA
passagens do seu diário, ele se AO IDENTIFICÁ-LA COM ALGUNS
referiu ao Brasil como o paraíso
dos naturalistas. Em outras, ele FILÓSOFOS COMO JOHN LOCKE E
não se conformava com o fato DAVID HUME. QUANDO SE FALA DA
de que “aqui todos são suborná-
veis”. Com um pouco de dinhei-
FILOSOFIA FRANCESA IMEDIATAMENTE
ro, qualquer um podia se livrar NOS LEMBRAMOS DO ILUMINISMO DO
de uma acusação. Tampouco ele
se conformava com o fato de que
SÉCULO XVIII, DE GRANDES FIGURAS
havia pessoas que não compre- COMO ROUSSEAU E OS ENCICLOPEDISTAS
endiam como a lei poderia valer
para todos, independentemente les eram a expressão da cultura talvez, dos Estados Unidos, com
de serem ricas e respeitáveis. grega. Fazemos o mesmo com a seus defensores da democracia
Darwin não entendia como o cultura inglesa ao identificá-la como Alexis de Tocqueville e,
Brasil não poderia ser uma gran- com alguns filósofos como John no fim do século XIX, os filóso-
de nação, com tantas riquezas e Locke e David Hume. Quando fos pragmatistas como Charles S.
com uma abundância capaz de se fala da filosofia francesa ime- Peirce e William James.
encher os olhos de qualquer via- diatamente nos lembramos do Certamente, esses filósofos
jante europeu. Ele atribuía esse Iluminismo do século XVIII, de que citei – e tenho certeza de ter
desequilíbrio à inexistência de grandes figuras como Rousseau e deixado muitos outros de fora
um sistema educacional. O “em- os enciclopedistas. – destacaram-se por sua capaci-
bargo da educação” mantinha o Os países colonizados não ti- dade de criar tradições no pensa-
Brasil uma nação secundária, veram essa sorte, com exceção, mento. Eles criaram paradigmas
periférica. Darwin não sabia que para o pensamento. A história
nossos colonizadores, nos impe- da filosofia que aprendemos na
COMMONS

diram, até 1808, de montar uma escola secundária e nos nossos


tipografia. A escravidão e a ig- cursos de graduação em filosofia
J. CAMERON/WIKIMEDIA

norância, em um lugar no qual a é a história de como esses para-


natureza tinha sido tão generosa, digmas se sucederam. Os países
transformava o Brasil em um pa- que criaram paradigmas de pen-
raíso da tristeza. samento reivindicam para si uma
Como imaginar, então, que história grandiosa e monumen-
um país no qual a cultura era tal, tanto na filosofia como nas ci-
praticamente inexistente pode- ências, marcada por grandes cien-
ria, em algum momento, pro- tistas e grandes pensadores. Em
duzir pensamento filosófico? geral, são países que colonizaram
Quando pensamos em filoso- outros, na Ásia, na África e na
fia, implicitamente imaginamos América do Sul. Mas será que pa-
um pensamento que exprima a íses colonizados poderiam tam-
Charles Darwin: inconformismo diante da
identidade de um povo. Os pré- condição brasileira, mesmo com tantas bém produzir novos paradigmas
-socráticos, Platão e Aristóte- riquezas e abundância no país e revolucionar o pensamento?

58 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
Não há dúvida de que ler as
histórias da filosofia tradicio-
nais, organizadas pelos crité-
rios de monumentalidade é um
grande prazer. Ler os textos dos
grandes filósofos também é um
grande prazer. Isso não seria
um problema se, ao fazê-lo, não
estivéssemos excluindo outras
possibilidades excluídas pela ide-
ologia da monumentalidade. A
ideologia da monumentalidade
exclui da história da filosofia as
ex-colônias e até países da pró-
pria Europa. Em países como
o Canadá, a Austrália e a Nova
Zelândia há produção filosófica,
embora eles, até agora, não te-
nham gerado novos paradigmas
na história do pensamento.
O eurocentrismo tem sido
fortemente abalado nos últimos
anos. Cada vez mais se confirma
que a razão e os problemas filosó- Tobias Barreto: clássico brasileiro pouco lido, assim como pensadores nacionais da Filosofia
ficos não têm nacionalidade. Já se
reconhece a existência de filosofia cujo único objetivo é aplainar as A cosmopolitização trouxe
nas ex-colônias, em geral traduzi- diferenças para compor um con- novos agentes para a história da
da para o inglês. A internet pro- sumidor-padrão, adaptado para filosofia que antes eram margi-
duziu muitos males, mas, um de desejar os mesmos produtos em nalizados. O estudo da filosofia
seus subprodutos altamente posi- toda parte do mundo. oriental, em especial na Índia
tivos é a cosmopolitização. A cosmopolitização significa e na China deixou de ser uma
A cosmopolitização não é a aprender que o mundo e as pes- mera incursão exótica no pen-
globalização. Globalizar signifi- soas são inevitavelmente diferen- samento do Oriente e há uma
ca impor os mesmos padrões e tes. Ela significa também perceber tendência para que eles sejam
os mesmos valores para todos, que os países se encontram em incluídos nos cursos de gradua-
um projeto que nunca poderia momentos diferentes da história e ção em filosofia na Europa e nos
dar certo. Sob a globalização se que não é possível sincronizá-los Estados Unidos. O mesmo está
oculta o projeto de padroniza- em um presente único que deve- acontecendo com a literatura e
ção e de pasteurização cultural, ria ser compartilhado por todos. com a filosofia africanas.

O “EMBARGO DA EDUCAÇÃO” MANTINHA O BRASIL


UMA NAÇÃO SECUNDÁRIA, PERIFÉRICA. DARWIN
NÃO SABIA QUE NOSSOS COLONIZADORES, NOS
IMPEDIRAM, ATÉ 1808, DE MONTAR UMA TIPOGRAFIA
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 59
BRASIL/CAPA

O Brasil é um país cosmopo-


litizado. Deveríamos esperar que
esse mesmo movimento também

DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS
acontecesse com nossa maneira
de estudar a história da filosofia.
No entanto, existem circunstân-
cias históricas e políticas espe-
cíficas que ainda impedem o
desenvolvimento da reflexão fi-

BENEDITO CALIXTO (1903) /PUBLIC


losófica autônoma no Brasil. Falo
de filosofia no Brasil e não filoso-
fia do Brasil ou filosofia brasilei-
ra. A filosofia pode se desenvol-
ver no Brasil da mesma maneira
que frutifica no Canadá ou na
Austrália, ou seja, sem precisar

BY
de inventar nenhum paradigma

BRÁS CUBAS
específico que qualifique uma
filosofia como sendo brasileira.
Falar de uma filosofia especifica- Brás Cubas: estudantes brasileiros não leem autores nacionais
mente brasileira e lamentar que
ainda não a temos é um equívo- nas do ponto de vista de nossos cunaíma de Mário de Andrade.
co. Não precisamos participar da “descobridores” e colonizadores. É difícil imaginar Macunaíma
história monumental das ideias Seria algo comparável a um pas- fazendo algo sério, muito menos
para desenvolvermos pensamen- seio de jipe na favela da Rocinha, escrevendo sistemas filosóficos.
to filosófico. algo para que os europeus se di- Ansiamos por um país monu-
Buscar uma filosofia especi- vertissem, ou se penalizassem. mental que tenha uma filosofia
ficamente brasileira ou sistemas Uma espécie de filosofia-suvenir, monumental. Grande parte da
filosóficos canibais, como fez o uma filosofia jabuticaba. população acredita que se ainda
antropólogo Eduardo Viveiros Uma filosofia monumental não somos um grande país, isso
de Castro, pode ser interessante brasileira seria um paradoxo. Em se deve à mediocridade de nossos
para a antropologia, mas não para um país com um passado de es- governantes, que não souberam
a filosofia. Uma filosofia especifi- cravidão, ignorância e opressão, até agora tirar proveito de nossa
camente brasileira, com a preten- seus heróis teriam de ser anti- exuberância tropical e não inves-
são de expressar nossa identidade -heróis. O anti-herói é o palhaço tiram adequadamente em educa-
nacional através do pensamento triste, é o deboche da pretensa ção e saúde. Em outras palavras,
corre o risco de produzir um sis- sociedade institucional que se se existe pobreza, desigualdade
tema de ideias exóticas, ou seja, instaurou nas colônias. Em pou- extrema, e se somos um país in-
de produzir algo interessante ape- cas palavras, ele é como o Ma- capaz de pensar a si mesmo e de

O EUROCENTRISMO TEM SIDO FORTEMENTE


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

ABALADO NOS ÚLTIMOS ANOS. CADA VEZ MAIS


SE CONFIRMA QUE A RAZÃO E OS PROBLEMAS
FILOSÓFICOS NÃO TÊM NACIONALIDADE.
60 • ciência&vida
A COSMOPOLITIZAÇÃO
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS

SIGNIFICA APRENDER
QUE O MUNDO
E AS PESSOAS SÃO
INEVITAVELMENTE
DIFERENTES. ELA
SIGNIFICA TAMBÉM
PERCEBER QUE
OS PAÍSES SE
ENCONTRAM
EM MOMENTOS
DIFERENTES
DA HISTÓRIA
cultura colonialista que ainda
predomina na área de ciências
humanas. Nas culturas pós-colo-
niais, há uma forte autocensura
que é inversamente proporcional
à criatividade. Para tudo que se
afirma na periferia é preciso que
exista o aval dos mestres que es-
tão nos centros. Essa situação afe-
ta o próprio perfil psicológico do
professor universitário na área de
ciências humanas, que nunca está
definir seu destino histórico, isso mito da invenção de um paradig- à vontade.
não se deve à nossa própria inca- ma filosófico inteiramente novo O caso da filosofia é estudado
pacidade, mas à corrupção e à má que teria o papel de expressar pelo professor Paulo Arantes no
administração do país, ao “embar- nossa identidade nacional. É o seu livro Um departamento fran-
go à educação”. Essa maneira de mito da filosofia brasileira. cês de ultramar. Ele assinala: “A
pensar não mudou muito em rela- colonialidade pode ser entendida
ção ao que Darwin escreveu sobre CULTURA como a continuação das relações
o Brasil há quase 200 anos. COLONIALISTA coloniais após o fim do colonialis-
Essa crença talvez explique Mas se não teremos um Des- mo através das relações de poder
a grande sedução que a política cartes ou um Hegel, por que até e econômicas que mantém a sub-
exerce sobre a maioria dos in- agora não temos um Dennett, um jugação dos povos colonizados,
telectuais brasileiros. Faz par- Agamben ou um Alan Badiou? pois o subdesenvolvido e subal-
te dessa crença a grande aposta Uma das razões, talvez a prin- terno continua coincidindo com
no futuro de que falava Stefan cipal, se deve ao fato de estarmos o ‘outro lado da linha’: o lado do
Zweig. Com ela, vem também o mentalmente confinados a uma colonizado”. A colonialidade ou

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 61
BRASIL/CAPA

As ideias conservadoras, dis-


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O aristotelismo tomista, que


desembarcou neste país junta- farçadas de doutrina religiosa e
mente com os primeiros colo- política são um entulho autoritá-
nizadores catequistas, deixou rio que inibe o desenvolvimento
como marca o estudo dos tex- da reflexão no Brasil. No entanto,
tos escolásticos clássicos, a ratio a tradição contrária ao conser-
studiorum, por meio dos quais vadorismo também não tem aju-
a teologia era apresentada como dado a filosofia a se desenvolver.
filosofia. Estimulava-se a exege- A tradição marxista também é
se dos textos e a obediência às autoritária. Ela tem privilegiado
ideias dos grandes pensadores a história da filosofia, focalizan-
que nunca podiam ser contesta- do, sobretudo, em filósofos que
dos. Essa forma de filosofia ain- se ocuparam principalmente da
da viceja no Brasil. política, como Hobbes, Spinoza,
Schopenhauer: pensamento do filósofo
alemão é mais conhecido dos pós- Ela é bem-vinda em uma Rousseau, Marx e, mais recente-
graduandos do que a obra de qualquer época na qual atravessamos a mente, os teóricos da Escola de
pensador nacional
reinstalação de um Estado que Frankfurt. Em um primeiro mo-
a pós-colonialidade se instaura defende abertamente ideias con- mento, a ênfase na história da fi-
quando não apenas se reconhe- servadoras, para quem a filoso- losofia esteve ligada, nos departa-
ce uma relação de poder assi- fia é uma velha xereta que ousa mentos universitários brasileiros,
métrica, mas também quando o desafiar a ordem estabelecida, com a defesa da própria sobrevi-
colonizado é convencido de que uma atividade exótica ou politi- vência da filosofia institucional
sua razão é inferior à do coloni- camente subversiva. no Brasil. Em tempos de ditadura,
zador. Esse caso é muito claro na Em tempos de fim da demo- a ênfase na história da filosofia
filosofia. Nossos professores se cracia, quase todos os países de- foi uma estratégia para que esses
dedicam quase integralmente a mocráticos estão polarizados. O departamentos não fossem engo-
estudar e elogiar as filosofias mo- discurso do ódio, da intolerância, lidos por outros, como, por exem-
numentais do hemisfério norte. dificilmente desaparecerá. Conti- plo, os de letras. No entanto, ao
Nossos professores de filosofia nuará valendo o famoso “vence, longo das décadas, a necessidade
são especialistas em Hume, em mas não convence”. E, quando não de colocar-se ao lado da história
Kant, em Rousseau, em Hegel e se convence, o autoritarismo, la- como suprema ciência, uma po-
assim por diante. São conhecidos mentavelmente, predomina. sição que coincidia com uma das
pelos autores em cuja obra se es-
pecializaram e não pela discussão
dos problemas filosóficos que es- UMA FILOSOFIA ESPECIFICAMENTE
ses autores levantaram.
Uma das heranças mais ne-
BRASILEIRA, COM A PRETENSÃO
fastas do colonialismo é o autori- DE EXPRESSAR NOSSA IDENTIDADE
tarismo. E este parece ser um dos
principais motivos pelos quais a
NACIONAL ATRAVÉS DO PENSAMENTO
filosofia não viceja neste país. O CORRE O RISCO DE PRODUZIR UM
ensino de filosofia no Brasil é au-
toritário. Ainda não conseguimos
SISTEMA DE IDEIAS EXÓTICAS, OU SEJA,
nos livrar do entulho autoritário, DE PRODUZIR ALGO INTERESSANTE
seja na forma do aristotelismo to-
mista ou na forma do pensamen-
APENAS DO PONTO DE VISTA DE NOSSOS
to marxista. “DESCOBRIDORES” E COLONIZADORES
62 • ciência&vida
A COLONIALIDADE SE INSTAURA QUANDO SE RECONHECE
UMA RELAÇÃO DE PODER ASSIMÉTRICA, MAS TAMBÉM
QUANDO O COLONIZADO É CONVENCIDO DE
QUE SUA RAZÃO É INFERIOR À DO COLONIZADOR
teses principais do marxismo, foi em filosofia no Brasil se os brasi- precisa ter. Ficam faltando os ou-
se tornando um freio para o de- leiros não leem os brasileiros? tros 50%, ou seja, a capacidade
senvolvimento da pesquisa e das Nossos estudantes de filosofia de refletir e de debater sobre os
atividades intelectuais inovado- tampouco leem os clássicos bra- problemas da filosofia, a capa-
ras. Nada poderia superar o que sileiros. Ninguém lê Tobias Bar- cidade de desenvolver posições
já tinha sido pensado. reto, Brás Cubas, Mário Ferreira próprias, mesmo que não sejam
O passado se tornou uma ca- dos Santos. Só recentemente a originais.
misa de força que bloqueou a re- obra de Vilém Flusser começa A falta de convivência com o
flexão. Em nome da preservação a receber alguma atenção. Esses debate cria um perfil estranho
do patrimônio filosófico da hu- autores não estão nos círculos para o filósofo brasileiro: ele se
manidade, os comentaristas trans- intelectuais e só são estudados tornou uma figura dogmática.
formam a filosofia uma língua que como uma disciplina específica, O filósofo brasileiro não con-
não se fala mais, que não se inven- o “pensamento brasileiro”. Ora, segue conversar com ninguém
ta mais, que não quer ser contami- não deveria ser o contrário? Não sem a interposição ou a ajuda de
nada por outras, tornando-se, as- deveriam ser os estrangeiros o um texto clássico da filosofia. O
sim, uma língua morta. A filosofia objeto de disciplinas específicas? equilíbrio necessário entre o filo-
pode se dar ao luxo de ser inútil, Não deveríamos começar a estu- sofar e fazer história da filosofia
mas, quando transformada apenas dar o positivismo lendo, primei- perdeu-se há muito tempo. Pior
em comentário, torna-se estéril. ramente, Sílvio Romero? Mas não ainda: o filósofo devoto do texto
A veneração pela história se é isso que ocorre. Somos exóticos não correlaciona seus textos com
tornou uma forma de desistir de para nós mesmos, pois nossa re- a contemporaneidade. Com isso,
pensar. Quando a interpretação dos ferência é a história da filosofia a filosofia morre. O licenciado
textos clássicos se torna uma meta monumental, da qual não parti- em filosofia torna-se incompe-
em si mesma, a filosofia se torna cipamos. Como afirmou Sérgio tente para lecionar no segundo
apenas uma técnica de interpreta- Buarque de Holanda, “somos uns grau, onde os adolescentes estão
ção, ou seja, se transforma em uma desterrados em nossa terra”. preocupados com temas atuais e
tecnofilosofia, uma forma emo- O ensino de filosofia no Bra- não propriamente com a influên-
liente de filosofar que isenta seus sil ainda anda de lado. Um aluno cia do pensamento de Schelling
defensores de se confrontar com os de nossas melhores pós-gradua- sobre Schopenhauer. Quando
problemas contemporâneos. ções saberá de cor e salteado os deixaremos de ser tão positivis-
A tecnofilosofia gerou um fe- textos de Malebranche e talvez tas a ponto de acreditar que a fi-
nômeno paradoxal: aqueles que possa dissertar por horas sobre losofia acabou e que dela só resta
nos ensinam a nos resignar ao pa- a influência do pensamento de sua história?
pel de comentadores são aqueles Schelling sobre Schopenhauer Tanto o pensamento conser-
que nos dizem para sempre en- e assim por diante, mas talvez vador quanto o marxista esti-
frentar os textos dos filósofos, de não esteja ainda apto a enfrentar mularam um ensino técnico da
preferência na sua língua original e um debate no bar da esquina. Na filosofia no qual a relação que
não dar importância aos comenta- maioria das vezes, nossos cursos se estabeleceria com os filóso-
dores. Para que serve, então, fazer de graduação fornecem apenas fos não deveria ser de refutação.
um mestrado ou um doutorado 50% da formação que um aluno Eles geraram um sentimento de

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 63
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
BRASIL/CAPA

Uma família brasileira no Rio de Janeiro, obra de Jean Baptiste Debret, 1839.

incapacidade que bloqueou a ou- dialética do iluminismo de Max Com a tradição marxista veio
sadia filosófica. O pano de fundo Horkheimer. Paradoxalmente, o também o sentimento de que
continua sendo o autoritarismo. marxismo seguiu o movimento da gostaríamos de ser colonizados
Como se fossem pacotes ide- razão que, inicialmente como luz, pelos franceses, criar uma França
ológicos importados, a filosofia foi se tornando, aos poucos, uma tropical, quando o francês já es-
colonialista e neocolonialista, racionalidade esclerosada, em um tava se tornando apenas a língua
tanto nas suas vertentes tomis- movimento que a razão faz contra utilizada pelos correios. Como
tas como marxistas se transfor- si mesma, que impediu o desen- diz Antonio Trajano Arruda, na
mou em dogma, não em luz. A volvimento de uma reflexão filo- missão francesa que veio ao Bra-
história da filosofia brasileira, sófica que não estivesse atrelada a sil nos anos 1930 e fundaram a
nas últimas décadas, ilustra a um academicismo sufocante. USP, não vieram filósofos para

VIVEMOS UM MOMENTO DELICADO NA AMÉRICA


DO SUL. É FÁCIL PARA O FILÓSOFO SUCUMBIR À
TENTAÇÃO DO ENTULHO AUTORITÁRIO RELIGIOSO,
CADA VEZ MAIS MISTURADO COM A POLÍTICA
64 • ciência&vida
SEJA QUAL FOR O FUTURO
QUE NOS ESTEJA RESERVADO,
A FILOSOFIA PRECISA PROCURAR
SEUS CAMINHOS. MAS, PARA QUE
A FILOSOFIA FLORESÇA, PRECISAMOS
DESCARTAR, DEFINITIVAMENTE,
O SONHO QUE, PARADOXALMENTE,
NOS IMPEDE DE PENSAR
que sabe quando está nu”. Olhei É preciso buscar outras cla-
para ela, atônito, pois me lembrei reiras, mesmo sabendo que isso
imediatamente da carta de Pero será difícil, pois nós, os profes-
Vaz de Caminha ao rei de Por- sores de filosofia, ao contrário
O pensamento filosófico brasileiro
tugal, na qual ele relatava que os das aparências, somos uma clas-
alimenta como premissa as formas de
comparações obrigatórias índios viviam quase nus, ou até se muito conservadora, ou seja,
completamente nus. Será que os muito resistente a qualquer tipo
índios sabiam disso? Como, se de mudança. Precisamos nos des-
instaurar a investigação temáti- nunca andaram vestidos? Será fazer do entulho autoritário. Pre-
ca e original. Vieram apenas co- que esse espanto, essa coisa es- cisamos nos desfazer da ideologia
mentadores que formaram outros quisita da “razão europeia” pode do monumentalismo, que apenas
comentadores e assim por diante, ser dita em nosso país? E ensina- nos humilha e impede que se de-
um fato que também foi registrado da em nossos cursos de filosofia? senvolva a reflexão filosófica. Essa
pelo professor Paulo Arantes, que Aprendi muito com essa profes- ideologia, associada ao entulho
advertiu: “o pensamento filosófico sora e sou grato a ela até hoje. autoritário que algema a reflexão,
no Brasil alimenta-se preferen- não pode ser combatida enquanto
cialmente de sua própria tradição, HISTÓRIA DA acalentarmos a ideia de que um
a qual fornece os termos de com- FILOSOFIA dia triunfaremos propondo uma
paração obrigatórios”. Tradição, Não nego a importância do filosofia jabuticaba, uma filosofia
sim, da Europa e, mais especifi- estudo da história da filosofia. voltada para “os temas brasilei-
camente, da França. “Éramos, diz Se não a estudarmos, corremos ros”, o pensamento grandioso le-
ele, para ser só um departamento o risco de arrombar portas aber- gitimamente nacional. E que até lá
francês de ultramar”. tas. O que me inquieta é imagi- teremos de nos resignar a ser me-
Um dos eventos mais pica- nar que se uma situação seme- ros historiadores e comentadores
rescos que ilustra o papel do lhante à da filosofia no Brasil da grande filosofia europeia. Não
colonialismo no pensamento e tivesse ocorrido na literatura, podemos nos subestimar e, em
a grande vontade de ser francês teríamos apenas especialistas nome de um ideal inatingível,
ocorreu-me quando era ainda em Eça de Queiroz, em Camilo ou seja, da lamentação de nunca
estudante de graduação de filoso- Castelo Branco ou em Fernando termos sido uma França, nos re-
fia. Uma professora de filosofia, Pessoa. Nunca teríamos tido um signarmos a ser apenas especia-
grande entusiasta do marxismo, Guimarães Rosa, um Graciliano listas em determinados autores
mencionou Merleau-Ponty em Ramos. Nunca teríamos nem consagrados pela tradição. Essa
uma de suas aulas, citando uma mesmo um Machado de Assis, e é a armadilha do autoritarismo.
de suas sentenças mais conheci- apenas comentadores dos poetas O monumentalismo e o autorita-
das: “o homem é o único animal e escritores portugueses. rismo na forma de veneração do

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BRASIL/CAPA

PUBLIC DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS


passado europeu tem uma triste sonho de que um dia nossa filo-
consequência: o subdesenvolvi- sofia será a expressão de nossa
mento da reflexão filosófica. identidade nacional. O sonho de
Uma filosofia no Brasil não uma filosofia grandiosa, de um
precisa ser filosofia criada do pensamento monumental. Nun-
nada, uma filosofia ex nihilo. Isso ca fomos uma nação grandiosa,
não ocorre mais em nenhuma nem tampouco monumental. A
parte do mundo. Desenvolvendo ideia de que somos um grande
as suas ramificações já existentes, país é uma ilusão produzida pela
como a lógica, a filosofia da ciên- continuidade linguística e pelo
cia, a filosofia da mente e a filoso- olhar dos colonizadores que tem
fia política a Europa e os Estados impedido de reconhecer que te-
Unidos foram capazes de produ- mos diferenças regionais profun-
zir pensadores como Agamben e das, talvez insuperáveis.
Dennett e outros filósofos con- Penso que a pior consequência
temporâneos que se destacam no do autoritarismo será tornar a fi-
cenário internacional. Eles nunca Charles S. Peirce losofia feita no Brasil um exercício
pretenderam escrever uma filo- monotemático. Por um lado, a filo-
sofia monumental. Mas nem por polarizada, que nunca serviu para sofia reduzida à política, a alguns
isso deixaram de produzir uma acalentar ideais, uma nação que refrãos de resistência ao discurso
reflexão filosófica original. Pre- agora se reconfigura em uma nova de uma elite política desprepara-
cisamos, como já ocorreu nesses geopolítica de extremos. da. Ou ao comentarismo históri-
países, desenvolver uma filosofia Após a superação do clima co, ou seja, a filosofia que desistiu
cosmopolitizada, uma filosofia sufocante da ditadura militar, de pensar. Por outro lado, a filoso-
que insira o Brasil e seus filósofos instaurou-se no Brasil um so- fia que corre o risco de se tornar
nos debates que ocorrem no mun- cialismo de Estado, as vezes uma mera complementação da
do. Isso é muito mais do que nos progressivo, as vezes regressivo. religião e do moralismo religioso.
filiarmos a associações interna- Ingressamos agora em uma ter- São dois tipos de indigência temá-
cionais para o estudo de autores ceira etapa, que corresponde à tica que sufocam uma disciplina
clássicos da filosofia ou trocar ex- falência do projeto de estado do cuja característica é não ter obje-
periências acadêmicas no estudo bem-estar-social brasileiro. Ele tos específicos ou uma agenda de
da história da filosofia. sucumbiu ao próprio peso. Sua temas permanentes.
Vivemos um momento histó- extensão demasiada e a necessi-
rico delicado na América do Sul. dade crescente de mecanismos de ARANTES, PAULO. Um departamento
REFERÊNCIAS

francês de ultramar. São Paulo, Paz e


É fácil para o filósofo acadêmico controle fez com que o sistema se Terra, 1994.
sucumbir à tentação do entulho desintegrasse devido a seu custo ARRUDA, ANTONIO TRAJANO –
autoritário religioso, cada vez e sua extensão. É difícil prever Entrevista com o Prof. Dr. Antonio
Trajano Menezes Arruda. Revista
mais misturado com a política. qual será a próxima etapa, pois a Kínesis, Vol. V, n° 09 (Edição Especial),
Ou simplesmente continuar res- crise se tornou o modo de ser das Julho 2013, p. 1-20. Entrevista a João
Antonio de Moraes e Marcio Tadeu
trito ao autoritarismo marxista, ao sociedades contemporâneas. Girotti.
autoritarismo do passado, daquilo Seja qual for o futuro que DARWIN, CHARLES. A viagem do
que Comte chamava de capacida- nos esteja reservado, a filosofia Beagle. Curitiba: Editora da UFPR,
2008.
de dos mortos de governarem os precisa procurar seus caminhos. HORKHEIMER, M. Dialética do
vivos. E, junto com esse autorita- Mas, para que a filosofia floresça, iluminismo. Rio de Janeiro, Zahar,
1985.
rismo, sucumbir à autocensura. precisamos descartar, definitiva-
VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas
São opções relaxantes e conve- mente, o sonho que, paradoxal- canibais. São Paulo: Cosac & Naify,
nientes em uma nação cindida, mente, nos impede de pensar: o 2015.

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Húmus
Autor: Raul Brandão
Editora: Relógio D’água
192 páginas

Para a eternidade:
Húmus
FILOSOFIA, LITERATURA E ESTÉTICA
O que é um clássico? Estrita- vadores para dar conta das grandes no sentido restrito, enfim, é uma
mente uma obra que resiste ao transformações da época. Ou seja, obra literária. Mas uma obra di-
tempo. Resiste aos pretensos de- precisava, em especial na literatura, ferente. Que se quer diferente tal
terminismos históricos e a tantos fazer jus a uma era que apontava qual a liberdade conquistada (assim
outros dos quais não podemos para as velocidades em grande es- como a autonomia) de um escritor
escapar. Mas as grandes obras ul- cala e a necessidade imediata de que consegue enxergar, de longe e
trapassam todos os limiares e cami- novas formas de escrever, respirar, de perto, as aberturas, as linhas de
nham com altivez pelas memórias dar vazão a gritos sufocados, entre fuga, por uma vez mais lembrar de
de cada etapa da humanidade. outras coisas, pelas academias em nosso sublime Deleuze.
Referimo-nos à grandiosidade toda sua extensão. Ao ler Húmus, pensa-se, num
de Húmus do escritor português A obra em questão seria, num primeiro momento, estar-se diante
Raul Brandão, editora Relógio primeiro momento, integrante de um diário. Há datações como se,
D’Água, Lisboa, Portugal. Obra ino- daquelas que não possuem uma realmente, fosse um diário. Mas não
vadora quando lançada pela pri- classificação tradicional. Não se é. Nas palavras do autor: “As paixões
meira vez em 1917. Um período encaixa em nenhuma tipologia por dormem, o riso postiço criou cama,
em que o mundo precisava, acima lembrar de nosso lúcido Blanchot. as mãos habituaram-se a fazer todos
de qualquer coisa, de sopros reno- Não é um romance, não é poesia os dias os mesmos gestos. A mesma
teia pegajosa envolve e neutraliza, e
só um ruído sobreleva, o da morte,
AO LER HÚMUS PENSA-SE, NUM PRIMEIRO que tem diante de si o tempo ilimi-
MOMENTO, ESTAR-SE DIANTE DE UM tado para roer. Há aqui ódios que
minam e contaminam, mas como
DIÁRIO. HÁ DATAÇÕES COMO SE, o tempo chega para tudo, cada ano
REALMENTE FOSSE, MAS NÃO É. VEMO-NOS minam um palmo. A paciência é
infinita e mete espigões pela terra
DIANTE DE UM ESCRITOR, COM VOZ dentro: adquiriu a cor da pedra e
UNIVERSAL, QUE QUESTIONA, DE FORMA todos os dias cresce uma polegada.
A ambição não avança um pé sem
IMPIEDOSA, OS VAZIOS DA EXISTÊNCIA ter o outro assente, a manha anda

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PARA REFLETIR

e desanda, e, por mais que se escu- QUALQUER nos proporcionar. Somos seres in-
te, não se lhe ouvem os passos. Na sondáveis. Sujeitos a perplexidades
aparência é a insignificância a lei da PREVISÃO ACERCA de que jamais, muitas vezes, nos
vida; é a insignificância que governa DE NÓS MESMOS damos conta. “Todos nós somos ár-
a vila”. Estas e outras reflexões presi- vores. Há tempos que deitamos flor
dem a obra que mostra, entre tantas SERIA MERA pelo lado de dentro. Fomos sempre
outras coisas, a finitude, a mesmice,
o tédio. Tudo numa atmosfera em
FUTUROLOGIA. construções vivas, árvores estranhas
que bracejavam para o interior do
que os intervalos e espaços poéticos SOMOS SERES tronco, ramos e tinta, mais ramos
dão uma exatidão e precisão sem
precedentes. Vemo-nos diante de
IMPREVISÍVEIS. desmedidos e tinta, revestidos de
casca pelo lado de fora. Foi por
um escritor, com voz universal, que TODOS NÓS. UMA dentro que crescemos, e só por
questiona, de forma impiedosa, os dentro nos era lícito crescer, cada
vazios da existência, sem deixar de
CONDENAÇÃO, vez mais alto até a morte intervir”.
lado um doloroso exercício de pen- PARA O BEM E PARA O fragmento exposto, seguramen-
samento que conduz às mais diver- te, metaforiza, a unidade recorren-
sas misérias humanas. Aquelas que
O MAL, HUMANA. te deste belo livro. Belo porque
insistimos (e muitas vezes resistimos) PURAMENTE profundo. Belo porque expõe, sem
em não enxergar e que, no entanto, pena, a fragilidade humana. Eter-
se mostram a todo mundo. Em nos- HUMANA. AS na. Sempre surpreendendo. Existe
so universo, seja ele qual for. A es- AFLIÇÕES DA uma vida oculta dentro de nós a
pacialidade neste livro não está em que jamais teremos acesso. Mui-
jogo. Está em jogo, seguramente, a LUCIDEZ tas vezes tal vida oculta se mostra
miséria humana desaguando para a plena de realizações, sonhos e pro-
incrível insignificância humana. tou pronto!”. Observe-se as lentes jetos. Em outros momentos vazia,
Mas a obra não dá fôlego, como lúcidas do escritor ao colocar que provisória e apontando rumo, sem
toda obra que se pretende uma somos plurais. Ao colocar que nun- piedade, à incontornável finitude.
verdadeira literatura. Nessa medi- ca estamos no mesmo estado de Desta não há ser vivo que escape
da, transbordam diálogos em busca espírito por lembrar de Bergson. Ao impune. O que somos? O que fo-
de estratos profundos de interiori- mesmo tempo o recado metafórico mos? O que seremos?
dade: “Há em mim várias figuras. do autor: o quanto somos vários. E
Quando uma fala a outra está cala- mal damos conta de tal processo.
da. Era suportável. Mas agora não: Não há linearidade ao tratarmos
agora põem-se a falar ao mesmo do ser. Além disso, qualquer pre-
tempo. Sentiste-o avançar, pouco e visão acerca de nós mesmos seria
pouco, no silêncio? Sentiste o teu futurologia. Somos seres imprevisí-
pensamento disforme avançar mais veis. Todos nós. Uma condenação,
um passo no silêncio? É porventu- para o bem e para o mal, humana.
ra possível que o que se passa no Puramente humana. As aflições da
mais recôndido do teu ser, alguém lucidez. As amarguras concedidas
o pressinta e ouça avançar no si- a quem realmente precisa explo-
lêncio? Perpétuo combate a quem rar interioridades, subjetividades.
quero pôr termo e que só tem um Lembrando que tais explorações
IMAGENS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL

termo - a cova. Eu e o outro - eu conduzem, a nós leitores, a exa- Ana Maria Haddad Baptista
e o outro...E o outro arrasta-me, mes profundas acerca de nosso eu. (A. M. H. B.) é mestra e doutora
leva-me, aturde-me. Perpétuo de- Exames interiores que nos afetam e em Comunicação e Semiótica.
bate a que não consigo fugir, e de podem nos mudar, transformar, e, Pós-doutora em História
que saímos ambos esfarrapados, à acima de tudo, olhar para dentro da Ciência. Pesquisadora e
espera que recomece - agora, logo, de nossa subjetividade com mais professora da Universidade
daqui a bocado - porque só essa clareza. A clareza cristal que so- Nove de Julho. Escreve sobre
luta me interessa até ao âmago...Es- mente os signos artísticos podem Literatura nestas páginas.

68 • ciência&vida
Pontilhismo,
pixel, e quantum
ARTES VISUAIS
Após a batalha dos impres- Essa ideia seria levada às suas últi- -se, inclusive, o índice ASA que
sionistas que desferiu o primeiro mas consequências pelo pontilhis- media a sensibilidade do filme
golpe contra a arte acadêmica e mo que se seguiria a este primeiro à luz. Quanto maior este índice,
seus cânones, seguida mais tarde impressionismo. A radicalização mais sensível o filme seria à luz que
pela grande revolução moderna pontilhista iria trabalhar a tela incidisse sobre ele. Na fotografia
nas artes, colocando definitiva- com pequenos pontos de cores digital, esta escala de sensibilida-
mente o academicismo como justapostos. De certo modo, eles de passou a ser chamada de ISO,
uma página virada na história estão colocando “grãos” de cores substituindo a terminologia ASA,
da arte (sem anular seus grandes para obter suas imagens à maneira mas trata-se da mesma escala de
méritos) seria interessante revisi- que a fotografia analógica coloca- sensibilidade da fotografia tradi-
tar um desdobramento peculiar ria grãos de luz nos negativos. Eles cional, embora as câmeras digitais
do impressionismo que, geral- inauguram um mundo pictórico respondam de modo diferente da
mente, é catalogado como um com a qual a fotografia já estava a película fotográfica analógica, uma
“pós-impressionismo”. Estamos trabalhar por seus próprios meios. vez que não trabalha mais com um
falando do movimento pontilhis- O princípio das duas técnicas, negativo fotoquímico sensível à
ta, classificado também como na verdade, é muito semelhante. luz, mas sim com PIXELS a partir
“impressionismo científico”, que Ambas estão a serviço de uma de um chip próprio. O termo pixel
radicalizou as propostas dos pri- imagem granulada. refere-se ao menor ponto que for-
meiros impressionistas. E o que O grão ou granulação de um ma uma imagem digital.
interessaria nessa reconsideração filme fotográfico é próprio da solu- Na verdade estamos falando o
do pontilhismo? ção fotoquímica dos negativos em tempo todo de granulação. O que
Sem dúvida, justamente, esse preto e branco. Cristais de prata nos leva das aventuras óticas do
seu caráter intitulado de “cientí- são expostos à luz por uma peque- pontilhismo, passando pela granu-
fico”. Desde o primeiro impres- na fração de tempo e são sensibi- lação fotográfica analógica e dos
sionismo já ficara evidente que lizados por ela. Para interromper pixels das imagens digitais para a
esses pintores estavam preocu- essa reação, o negativo precisa ser questão de que a matriz da reali-
pados com a questão da luz e fixado, quando então essa reação dade seja, ela mesma, granulada.
da cor. Uma fisiologia da visão já fotoquímica é anulada. Nos tem- Sim, estamos aqui no domínio da
estava implícita nas experiências pos da fotografia analógica criou- física quântica. Desde que o físico
impressionistas desde o início ao
perceberem que contrastes de luz
e sombra eram melhores obtidos, DEVEMOS RENDER NOSSAS
não pela mistura das tintas previa-
mente na paleta do pintor, mas HOMENAGENS À AVENTURA PONTILHISTA
deveriam ser aplicadas puras e se-
paradas em pequenas pinceladas
QUE, NA HISTÓRIA DA ARTE, FOI A
nas telas. Com isso, deixavam por PRIMEIRA A TER A INTUIÇÃO DE
conta do olho do observador que
se misturassem de acordo com as
UMA REALIDADE IMAGÉTICA PRODUZIDA
leis das cores complementares. A PARTIR DE PONTOS DISCRETOS
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PARA REFLETIR

TODA ARTE SEMPRE PRESSUPÔS A partir disso, criamos mundos


virtuais e competimos com a re-
UM MUNDO VIRTUAL A SER CONHECIDO alidade. Exatamente como a arte
E CONQUISTADO. FOI O PRIMEIRO sempre fez desde que os huma-
nos a criaram. Toda arte sempre
“GAME” INVENTADO, COLOCADO pressupôs um mundo virtual a ser
À DISPOSIÇÃO DO PÚBLICO conhecido e conquistado. Foi o
primeiro “game” inventado, co-
Max Plank (prêmio Nobel de Físi- Devemos render nossas ho- locado à disposição do público.
ca de 1918) estabeleceu o menor menagens à aventura pontilhista A arte sempre foi uma realidade
ponto de energia possível (que ele que, na História da Arte, foi a ampliada. Um jogo intelectual e
chamou de “quantum”), este nú- primeira a ter a intuição de uma afetivo ao mesmo tempo. Daí o
mero, menor do que a dimensão realidade imagética produzida a seu eterno fascínio.
dos quarks que formam os áto- partir de pontos discretos. Sem
mos, passou a ser conhecido nos saberem, os artistas do ponti-
meios científicos como “número lhismo estavam na direção certa
de Plank” ou “escala de Plank”. A para algo que excedia o terreno
grande novidade introduzida por da arte, mas que apontava de
ARQUIVO PESSOAL E SHUTTERSTOCK

Planck foi, portanto, a constata- maneira oblíqua para a estranha


ção de que a energia não era um textura do tecido do Universo.
fluxo contínuo como pensado na Para terminar, é bom lembrarmos
física clássica, mas que ela libera- que todas as imagens digitais atu-
-se em pacotes discretos e des- ais repousam sobre uma rede de
contínuos. Este quantum mínimo dígitos binários, mais conhecidos
de energia é uma das constantes como algoritmos. Ou seja, toda a
universais da física. Esta energia Internet onde navegamos e nos Walter Cezar Addeo (W. C. A.)
quantizável, calculada por Planck, informamos é. no fundo, ponti- é mestre em Filosofia pela
sugere que todo o Universo seja, lhista. Pontos de energia aplica- Universidade de São Paulo (USP)
por sua vez, igualmente granulado dos nos disco rígidos em escala e membro da Associação Paulista
de Críticos de Arte (APCA),
através desses “pacotes” mínimos nano definem se a direção ele- escritor e roteirista. Escreve
de energia, incluindo aí um espa- tromagnética das moléculas assim sobre Artes Visuais nestas
ço-tempo quantizado. alteradas é um bit zero ou um. páginas. waddeo@uol.com.br

70 • ciência&vida www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 70


O avesso da tecnologia
FILOSOFIA DA MENTE
Recentemente, li uma entre-
vista de Tim Berners-Lee, criador
da internet e considerado um dos
maiores gênios da computação do
século XX, na qual ele declarou
que a internet precisa ser refor-
mada. Berners-Lee ressalta que
um dos problemas é o excesso
de informação que, atualmente,
impede as pessoas de se comuni-
carem. Todos falam, mas ninguém
ouve. Descartamos, sem ler, uma
grande quantidade de informação
que nos chega pelo WhatsApp e
pelas redes sociais, sem nos dar-
mos sequer ao trabalho de lermos UMA MANEIRA DE DIMINUIR
suas primeiras linhas. Como re-
sultado, muitas vezes as pessoas O CONSUMO DE ELETRICIDADE
se comportam, nas conversas, NECESSÁRIO PARA MANTER OS
como se fossem surdas e pergun-
tam pela mesma informação em SERVIDORES EM FUNCIONAMENTO
vários momentos, apesar de a ter-
mos repetido várias vezes. O ex-
SERIA LIMITAR O NÚMERO DE
cesso de informação compromete IMAGENS TRANSMITIDAS NA REDE
a atenção e cria uma barreira que,
muitas vezes, impede as pessoas tes, a escolha de filmes ou músi- social que não se limitaria apenas
de selecionarem as informações cas nos serviços de streaming e as ao hackeamento de contas ban-
mais importantes, que são des- compras feitas online são revela- cárias, mas também de dados ins-
cartadas, de forma despercebida doras do perfil de qualquer usuá- titucionais e governamentais que
em meio a um fluxo incessante. rio da internet. Como alternativa, passariam a circular livremente.
Mas será esse o único problema Berners-Lee está desenvolvendo o Seria a guerra de todos contra to-
a ser enfrentado por uma reforma SOLID, um dispositivo que arma- dos e as sociedades humanas di-
da internet? zenará essas informações e garan- ficilmente se recomporiam de um
Um de seus pontos mais vul- tirá que elas se mantenham sob o desastre dessas proporções. Os
neráveis é a perda do controle controle de quem as produz. gigantes das redes sociais e do ar-
sobre informações privadas que O derramamento de informa- mazenamento de dados como o
são apropriadas por grandes em- ções pessoais como resultado do Facebook e o Instagram e outras
presas a partir dos rastros digitais ataque de hackers seria um gran- empresas bilionárias passariam
involuntariamente deixados pelos de desastre ecológico. Ele causa- por uma crise de confiança irre-
internautas. A simples visita a si- ria uma enorme desorganização versível que derrubaria, dramati-

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PARA REFLETIR

camente, seu valor nas Bolsas de mantidos ocultos nos seus bas- o equivalente à iluminação de
Valores, arrastando muitas outras tidores. Um deles é a crescente uma cidade como Los Angeles.
e criando um caos econômico. O necessidade energética criada Recentemente, esses servidores
problema não é apenas de segu- pela expansão da internet. Pou- foram acomodados no fundo do
rança nacional, mas de seguran- cos de nós sabemos que a neces- oceano, como uma tentativa de
ça financeira internacional. Uma sidade de recarregar as baterias diminuir os custos de refrigera-
amostra do que pode ocorrer foi de um único smartphone con- ção e aumentar sua segurança.
o episódio das fake news na últi- some, anualmente, o equivalen- A chegada da IoT ou internet
ma eleição presidencial nos Esta- te em eletricidade para manter das coisas vai exigir uma nova
dos Unidos. duas grandes geladeiras domés- expansão da internet e mais gas-
Essas empresas enfrentam ticas permanentemente ligadas. tos com eletricidade, que levará
uma série de problemas que, Manter os servidores da Google a um aumento da emissão de di-
até agora, têm sido habilmente ligados e resfriados consome óxido de carbono na atmosfera,

72 • ciência&vida
na rede. Mas ninguém está dis- MUITAS PESSOAS
posto a estabelecer esse tipo de
restrição, sobretudo depois que ESTÃO,
se descobriu o papel fundamen- VOLUNTARIAMENTE,
tal das imagens na propaganda.
As imag ens também induzem ABANDONANDO
o fanatismo político e religioso AS REDES SOCIAIS
com mais facilidade. O resultado
de uma web cada vez mais ima- E PROCURANDO
gética é a enxurrada de poluição
mental, a nova invenção do sécu-
NOVAS FORMAS DE
lo XXI. Mas, haverá como rever- AGRUPAMENTO
ter essa situação?
O primeiro passo consiste em
E DE CONVIVÊNCIA.
percebermos que não depende- ISSO INCLUI
mos inteiramente dessas tecno-
logias. Elas são importantes, mas
A RETOMADA
talvez não sejam prioritárias para DA LEITURA,
a organização das sociedades. Em
outras palavras, a vida é possível
DO SILÊNCIO E
sem elas. Da mesma forma que já DA SOLIDÃO,
ocorreu na indústria alimentar, é
possível traçar caminhos alternati- ATUALMENTE
vos. Nas últimas décadas, muitas ABANDONADOS
pessoas se inclinaram a rejeitar
a comida industrializada e opta- PELA NECESSIDADE
ram pela volta dos alimentos or- DE RESPONDER A
gânicos. É possível que o mesmo
ocorra com as tecnologias digitais ESTÍMULOS DIGITAIS
e, novas formas de organização
das sociedades e das comunica-
INCESSANTES
ções, menos totalizantes, come-
cem, pouco a pouco, a substituir
o império da digitalização.
Muitas pessoas estão, volunta-
riamente, abandonando as redes
ARQUIVO PESSOAL E SHUTTERSTOCK

sociais e procurando novas formas


de agrupamento e de convivência.
contribuindo para o aquecimento Isso inclui a retomada da leitura,
global e o descontrole do clima. do silêncio e da solidão, atual-
Atualmente a emissão de dióxido mente abandonados pela neces-
de carbono que resulta do uso e sidade de responder a estímulos
manutenção dos dispositivos di- digitais incessantes.
João de Fernandes Teixeira
gitais equivale à emissão produ- Da mesma forma que é possí- é paulistano, formado em
zida pela aviação comercial no vel balancear a alimentação orgâ- Filosofia na USP. Viveu
mundo inteiro. nica com a industrializada, pode- e estudou na França, na
Uma maneira de diminuir o remos, nos próximos anos, buscar Inglaterra e nos Estados
consumo de eletricidade neces- uma relação com as tecnologias Unidos. Escreveu mais
de uma dezena de livros
sário para manter os servidores digitais que não nos torne mais sobre Filosofia da Mente
em funcionamento seria limitar o refém delas. Precisamos voltar a e Tecnologia. Lecionou na
número de imagens transmitidas ditar o ritmo de nossas vidas. Unesp, na UFSCar e na PUC-SP.

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ATUALIDADE

A educação
VEGANA
O pioneirismo das
escolas brasileiras
em trabalhar o tema
“veganismo”, com
base em Filosofia,
e as vertentes
por detrás desse
Leon Denis é formado
movimento
em Filosofia, membro
pesquisador do
Laboratório Ousia do
IFCS-UFRJ. Pioneiro no
ensino de Direitos Animais,
Ética Animal e Veganismo
em escolas públicas no
Brasil. Membro fundador
da Sociedade Vegana no
Brasil, da Liga Animalista
e da EBRAV – Educadores
Brasileiros Abolicionistas
Veganos.

74 • ciência&vida
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

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ATUALIDADE

D
efinimos no Brasil Machines” de 1964, os membros

FRONTEIRAS DO PENSAMENTO/WIKIMEDIA COMMONS


a educação vegana do Grupo de Oxford começam a
como uma ação dire- editar argumentos filosóficos em
ta pedagógica crítica defesa da expansão do círculo mo-
e autocrítica, cuja missão é levar a ral para além da espécie humana.
teoria dos direitos animais e todo As obras pioneiras foram, do
o debate ético animalista, assim casal Stanley e Rosalind Godlovi-
como sua aplicação, prática, o tch e John Harris, chamada Ani-
modo de vida vegano ao conheci- mals, men, and Morals (1971); de
mento de toda a população. Rosalind Godlovitch, Animals
Para entendermos essa ques- and Morals (1971); de Peter Sin-
tão, é preciso dizer que tudo isso ger, Animal Liberation (1973); de
teve início em 1944, em Londres, Richard Ryder, Victims of Scien-
quando um grupo de dissidentes ce (1975); de Tom Regan, “The
da Vegetarian Society, funda a Ve- moral basis of vegetarianism” (é
gan Society e cunha o termo “ve- um ensaio, 1975); de Andrew
gan” para se referir à pessoa que Linzey, Animals Rights: a chris- Peter Singer, um dos expoentes pioneiros
do veganismo
busca no seu dia a dia abolir tudo tian perspective (1976); de Tom
que advém do uso e da exploração Regan e Peter Singer, Animal versas correntes éticas tivemos o
dos animais não humanos. Essa Rights and Human Obligations surgimento de filósofos escreven-
ideologia passou a se chamar “ve- (1976); de Stephen Clark, The do defesas da ampliação do círculo
ganism” (veganismo). moral status of animals (1977); de moral para incluir os animais não
Nesses 75 anos de existência, Michael Fox e Richard Knowles, humanos, como pessoas, como su-
o veganismo adquiriu uma solida On the fifth day: animal Rights jeitos de suas vidas, como indiví-
fundamentação filosófica. As ba- and human ethics (1978); de Pe- duos conscientes de seus prazeres
ses teóricas desse modo de vida ter Singer, Practical Ethics (1979); e sofrimentos. Filósofos utilitaris-
tiveram seu início – poderíamos de David Paterson e Richard Ry- tas, neokantianos, eticistas das vir-
dizer – com o surgimento do Gru- der, Animals Rights: a symposium tudes neoaristotélicos, eticistas do
po de Oxford. Assim foi chamado, (1979). Nesse mesmo período, cuidado, entre outras vertentes.
informalmente, o grupo de estu- importantes revistas acadêmicas Diferentemente do que ocorre
diosos de diversos campos que dedicaram edições à questão do nos EUA e na Europa, onde a edu-
levantaram, na década de 1970, na status moral dos animais não hu- cação vegana é apenas uma frase
Inglaterra, uma série de questiona- manos: Ethics (jan/1978), Philo- dita em panfletos de ativistas vega-
mentos críticos aos mais diversos sophy (out/1978), Inquiry (verão nos, no Brasil, de modo pioneiro,
usos que os humanos fazem dos de 1979) e Etyka (1980). a educação vegana foi aplicada em
animais não humanos, em especial A partir daí, durante as décadas diversas escolas. O Brasil é o único
para experimentação científica e de 1980 e 1990, a literatura sobre país do mundo onde professores
para alimentação. Inspirados na essa temática aumentou assusta- de Filosofia, Biologia, Educação
obra de Ruth Harrison, “Animal doramente. Dentro das mais di- Física, Física, Matemática, Socio-

O BRASIL É O ÚNICO PAÍS DO MUNDO


ONDE PROFESSORES DE VÁRIAS DISCIPLINAS
INTRODUZIRAM QUESTÕES ÉTICAS LEVANTADAS
PELOS FILÓSOFOS ANIMALISTAS
76 • ciência&vida
Aquino, Descartes e Kant, serão
A EDUCAÇÃO VEGANA DEMONSTRARÁ contrapostas por vozes dissidentes
QUE A TRADICIONAL VISÃO DE do mesmo período. Por exemplo,
o especismo da teoria cartesiana
QUE O HUMANO É O ÚNICO do “animal machine”, será con-
ANIMAL QUE PENSA, QUE RACIOCINA, traposta pela belíssima defesa da
senciência animal na “Apologia de
QUE TEM LINGUAGEM ARTICULADA,
Raymond Sebond” de Montaigne
NÃO SE SUSTENTA MAIS e pelas repostas de Voltaire a Des-
cartes no Dicionário Filosófico e
logia introduziram em sala de aula (em ordem cronológica ou não) e, no Filósofo Ignorante.
as questões éticas levantadas pelos terceira, por autores (escolhendo Se o professor de filosofia ou
filósofos animalistas. Porém, são quais pensadores apresentar). educador vegano escolher minis-
nas aulas de Filosofia, nas quais a A educação vegana demons- trar suas aulas pela via temática/
temática é mais desenvolvida, de- trará que a tradicional visão de conceitual, podemos usar como
vido ao fato de terem sido os filó- que o humano é o único animal exemplo, a questão da senciência.
sofos que a elaboraram. Isso faci- que pensa, que raciocina, que tem A senciência é o critério moral que
lita ao professor de filosofia, pois linguagem articulada, que usa ins- iguala todos os animais. Para os
tanto no currículo escolar oriundo trumentos para modificar seu am- animais que ainda não temos certe-
dos PCNs quanto no livro didáti- biente, que tem alma, que tem sen- za se são sencientes, concedemos-
co, ele encontra os principais tópi- so de justiça, que produz cultura; -lhe o benefício da dúvida. Negar
cos que levam a esse debate ético não se sustenta mais. Não só pelo que os animais não humanos têm
contemporâneo. recurso aos avançados estudos da consciência da dor e do prazer, é
Nas aulas de Filosofia no en- Etologia Cognitiva pós-darwinia- negar a animalidade que nos confi-
sino médio brasileiro, nas escolas na, mas pelo debate ético realizado gura. Em sala de aula, a senciência
onde a temática foi trabalhada, o na Historia da Filosofia desde os pode ser discutida a partir de vários
professor de Filosofia, ou “educa- gregos. As teses especistas, ou seja, filósofos e cientistas como: Pitágo-
dor vegano” como também é cha- as teses advindas da ideologia que ras, Teofrasto, Plutarco, Montaigne,
mado, pode desenvolver os deba- defende a suposta superioridade Voltaire, Primatt, Bentham, Nietzs-
tes no campo ético por três vias: dos animais humanos sobre os che, Darwin, Peter Singer, Tom Re-
primeira, por temas (conceitos); não humanos, comum em pensa- gan, Bernard Rollin, Steve Sapont-
segunda, pela História da Filosofia dores como Aristóteles, Tomás de zis, Evelyn Pluhar, James Rachel e
Antônio Damásio.
Se a forma da aula for escolhi-
da pela via da História da Filosofia,
sabemos que em todo livro didáti-
co de filosofia, temos um capítulo
dedicado à Filosofia da Ciência.
A partir da perspectiva da educa-
ção vegana, a problemática da ex-
perimentação animal é colocada
tendo como objetivo refletir sobre
os alcances e limites das ciências.
Aristóteles herdou do pai que era
médico na corte macedônica o fas-
SHUTTERSTOCK

cínio pelas pesquisas zoológicas.


O educador vegano não ignora

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www.por ciência&vida • 77
ATUALIDADE

o fato de que o Estagirita era um é o documentário chamado “Não que não podem ser citados, indi-
vivissector e anatomista, foto com- matarás: os homens e os animais cados como leitura extraclasse. A
provado pelos detalhes com que nos bastidores da ciência”, que escolha normalmente é feita tendo
descreve as composições dos ani- conta com a participação de dois em mente os filósofos da chamada
mais em seus tratados biológicos. importantes filósofos dos direitos Ética Animal ou dos Direitos Ani-
Em seu longo tratado, Historia animais: a brasileira Sônia Felipe e mais. Por exemplo, Peter Singer,
Animalium, encontramos as bases o estadunidense Tom Regan. autor de duas obras fundamentais
do que denominamos hoje de Psi- A educação vegana pode ser dentro da perspectiva utilitarista,
cologia Comparada, assim como, desenvolvida nas aulas de filosofia que são: Libertação Animal e Éti-
da Etologia Cognitiva. E como fa- pela terceira via, a apresentação de ca Prática. Singer desenvolveu o
lar da experimentação animal sem alguns filósofos. Devido ao pouco
passar pelo “pai” da filosofia mo- tempo de aula de filosofia nas es-
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
derna: René Descartes? As aulas colas, infelizmente, a escolha acaba
podem ser ilustradas com um óti- privilegiando uns e deixando ou-
mo recurso cinematográfico que tros de fora, o que não quer dizer

EDUCAÇÃO VEGANA É UM OUTRO


OLHAR SOBRE NOSSAS RELAÇÕES
COM OS ANIMAIS NÃO HUMANOS
E COM O MEIO AMBIENTE QUE
NOS CIRCUNDA, CUJA BASE É O
DIÁLOGO CRÍTICO COM TODA A
Richard Ryder , psicólogo britânico que
MILENAR HISTÓRIA DA FILOSOFIA cunhou o termo “especismo”

78 • ciência&vida
OS PENSADORES NEOARISTOTÉLICOS TAMBÉM
PODEM SER USADOS PARA QUE OS ALUNOS VEJAM
A AMPLITUDE DE PERSPECTIVAS EM DEFESA DA
EXPANSÃO DO CÍRCULO MORAL HUMANO

“principio da igual consideração


de interesses semelhantes”, cuja
base é o critério da senciência. Se
um animal não humano tem os
mesmos interesses básicos que o
animal humano, esses interesses
não podem ser negligenciados
apenas por que ele não pertencer
a minha espécie. Isso seria espe-
cismo, um preconceito baseado
na formatação biológica do indivi-
duo, como é o caso do racismo e
do sexismo.
Ainda nessa terceira via, a edu-
cação vegana pode ser trabalhada
pela perspectiva dos direitos. Nes- Martha Nussbaum, Daniel Dom- ponsabilidade e compaixão, devem
se caso, o filósofo mais conhecido browski e Bernard Rollin. Esses ser introduzidas e trabalhadas.
é Tom Regan. Regan é um conhe- pensadores vão resgatar conceitos Educação vegana é um outro
cido deontologista neokantiano, e aristotélicos como eudaimonia, olhar sobre nossas relações com
a sua teoria dos direitos animais aretê e telos. A educação vegana a os animais não humanos e com o
foi estruturada em sua obra mag- partir dessa perspectiva tem como meio ambiente que nos circunda,
na: The Case for Animal Rights. Re- foco a formação do caráter moral cuja base, é o diálogo crítico com
gan se funda em Kant e na Decla- humano. Mesmo que nas escolas, toda a milenar História da Filo-
ração dos Direitos Humanos para contraditoriamente, encontramos sofia. Educação vegana é a práti-
propor que todos os animais sen- uma barreira à formação de uma ca da criticidade que caracteriza
cientes devem ter direitos morais segunda natureza moralmente ex- a Filosofia.
básicos. Devem ser reconhecidos celente, ou seja, um habitus que
como pessoas que são sujeitos-de- nos possibilite buscar a realização DENIS, Leon. Educação vegana: tópicos
REFERÊNCIAS

de direitos animais no ensino médio.


-suas-vidas e devem ser respeita- de nosso telos eudaimônico sem São Paulo: Libratrês, 2012.
dos por isso. com isso, impedir que o mesmo (org.). Educação & Direitos
E por fim, ainda nessa terceira seja alcançado pelas outras espé- Animais. São Paulo: Libratrês, 2014.
(org.). Educação vegana:
via, os pensadores neoaristotélicos cies animais; é nesse ambiente que perspectivas no ensino de direitos
também podem ser usados para a educação vegana acredita, atra- animais. São Paulo: FiloCzar, 2017.
que os alunos vejam a amplitude vés de uma ação direta pedagógi- FELIPE. S. Por uma questão de
princípios. Florianópolis: Fundação
de perspectivas em defesa da ex- ca, que as virtudes fundamentais Boiteux, 2003.
pansão do círculo moral humano. para o viver uma vida boa, como: RYDER, R. Animal revolution. Oxford:
Os filósofos mais conhecidos nes- prudência, temperança, coragem, Basil Blacwell, 1989.
SHUTTERSTOCK

. The political animal.


sa linha de pensamento são: Ste- justiça, fidelidade, veracidade, Jeferson, N.C.: McFarland and Company,
phen Clark, Rosalind Hursthouse, amabilidade, simplicidade, res- 1998.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 79
FILO NA WEB

O poder
e a autoridade
Existe poder sem autoridade? Aprenda o que os prin-
cipais pensadores escreveram sobre o tema nas dicas do
Plantão Enem. O assunto pode estar na sua prova de filo-
sofia. O Plantão Enem é uma iniciativa da Secretaria de
Estado de Educação de Minas Gerais e da Rede Minas de
Televisão. Para saber mais, visite o site.
http://www.plantaoenem.com.br

De Platão
a Judith Butler
A empresa especializada em educação onli-
ne Macat produziu uma série de animações
curtas sobre as principais teorias relacionadas a
pensadores da humanidade. Ao todo, são 136
vídeos, com duração de aproximadamente três
minutos cada. Todos eles foram disponibilizados
gratuitamente no canal da instituição no Youtu-
be. Os temas abordados são bem amplos,
contemplando desde Filosofia clássica, com
os pensamentos de Platão e Aristóteles, até a
Filosofia moderna, de Michel Foucault e Judith
Butler. As animações abordam, ainda, os prin-
cipais pensamentos de Charles Darwin, em A
Origem das Espécies; Sun Tzu, Arte da Guer-
ra; Aristóteles, Política; Henry David Thore- Aulas
au, A Desobediência Civil; Sigmund Freud, A
Interpretação dos Sonhos; Virginia Woolf, Um
selecionadas
Teto Todo Seu; Max Weber, A Política como Vídeo Curso de Filosofia apresenta aulas seleciona-
Vocação; Thomas Hobbes, Leviatã; Immanuel das, destacando conteúdos relevantes para a matéria de
Kant, Crítica da Razão Pura; Friedrich Hegel, Filosofia e Sociologia dirigidos ao Ensino Médio. A ideia é
Fenomenologia do Espírito; Levy Strauss, Antro- preparar para provas, exames e concursos. A matéria de
pologia Estrutural; Karl Marx, O Capital; Frie- Filosofia é muito importante para os estudantes em fase de
drich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal; Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de vestibular e
Hannah Arendt, A condição humana; Simone concursos. Cada vez mais as provas e exames estão exigin-
de Beauvoir, O Segundo Sexo; entre outros. Os do conteúdos e matérias relacionados à Filosofia. Portan-
vídeos estão disponíveis em inglês, mas é possí- to, é importante usar a internet para ficar por dentro da
vel acionar o serviço de legendas automáticas disciplina que provoca reflexões e desperta conhecimento
IMAGENS: DIVULGAÇÃO

do Youtube, que pode ser ativado no canto sobre o amor pela sabedoria, segundo Pitágoras.
inferior direito da tela de reprodução. https://vestibular1.com.br/video-aulas/video-cursos/
https://www.youtube.com/channel/UCIdMu- curso-filosofia/
FFD42OKezEDsxzYqcA

80 • ciência&vida
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_ Empresa Brasil de Revistas Ltda. ISSN 1809-9238. A publicação
não se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados
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tamente quando mais precisamos de nossos laços huma- Dias – Paraná: YouNeed, Paulo Roberto Cardoso – Rio de Janeiro:
Marca XXI, Carla Torres, Marta Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares
nos. Difícil de ser detectado, desmascarado e enfrentado – Regional Brasília: Solução Publicidade, Beth Araújo.
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em sua forma atual, é quase impossível resistir ao mal, já
que ele nos seduz pelo seu caráter corriqueiro e então se COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
retira sem avisar, de maneira aparentemente aleatória. O resultado é um mundo GERENTE: Paulo Sapata
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social parecido com um campo minado: sabemos que está cheio de explosivos e
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OLHO GREGO por renato janine ribeiro

O poder
da mentira
S
aímos de um processo qualquer absurdo, desde que ele,
eleitoral fortemente de alguma forma, pareça conver-
marcado pelas fake gir com seus preconceitos. Um
news, que não são ódio cresceu, tão grande, que ele
nada mais que mentiras. O então avaliza tudo o que possa ser dito
presidente do Tribunal Superior sobre um inimigo. Sim, porque
Eleitoral chegou a dizer que can- dessa forma o divergente é con-
didatos eleitos com base nelas vertido em inimigo. Repetindo o
teriam o mandato cassado, ame- básico da vida social: só temos morada, gente que é a negação
aça ou alerta que resultou em inimigos na guerra. Na política e de nossa suposta simpatia – para
nada. Um resultado claro disso na vida social, temos adversários, que possamos dar certo.
é a decisão do deputado Jean divergentes, pessoas que não Há algo terrível ni sso. No fun-
Wyllys de se exilar do país, de- pensam como nós – e a quem do, acreditamos bem pouco em
pois de ter sua vida infernizada respeitamos, com quem dialo- nós, naquilo que alguns chama-
por mentiras deslavadas, como gamos. Na hora em que cessa o ram de “civilização brasileira”.
a de que defenderia a pedofilia. respeito, o diálogo, acabou a paz, Nos momentos difíceis, recorre-
Como esse é um dos crimes mais a vida social. Estamos em guerra. mos a todos os meios da guer-
odiosos aos olhos da opinião pú- O que levou o país a essa ra. Ora, se uma coisa podemos
blica, associar – ainda que falsa- guerra verbal, ainda que não ar- afirmar, é que isso não dá, não
mente – um parlamentar a ele é mada? Por que um país célebre dará certo. Ou aprendemos a
incitar seu assassinato. pelos afetos, pela cordialidade, dialogar, a não mentir, a ser ci-
O que levou tantas pessoas pela amizade, está-se tornando a vilizados, ou não teremos futuro.
a mentir de forma tão vil e ou- pátria do ódio? Acreditar que a mentira, a fake
tras, a acreditar em mentiras tão Sugiro uma hipótese. O Brasil news, a destruição do outro nos
sórdidas? Gente com alguma so- se gaba de ser um país do cora- farão bem é a maior das ilusões.
lidez intelectual ou moral teria ção. Contudo, ao mesmo tempo, Sair dessa não ai ser fácil. Mas
duvidas, antes de dar crédito a tem uma forte convicção de que não há outra saída. Precisamos
algo tão chocante – e imprová- deu errado. Assim como na peça reaprender a dialogar, o que sig-
vel. Porque pode alguém imagi- de Brecht A alma boa de Setsuã, nifica: a escutar.
nar que um candidato vá defen- em que uma patroa boa tem que
der o abuso sexual de menores? se alternar com um capataz cruel
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

Precisa ser muito ingênuo ou para que funcionem as coisas, é


tolo quem dá crédito a isso. até como se precisássemos comple-
porque, hoje, na própria Inter- mentar nossa simpatia proverbial
net, há inúmeras formas de che- com o apelo a gente dura, severa,
car a veracidade ou falsidade de - como se precisássemos sair da
afirmações desse quilate. lei para entrar no estado de ex- Renato Janine Ribeiro, ex-ministro
da Educação, é professor titular
A triste conclusão é que uma ceção – como se precisássemos
de Ética e Filosofia Política na
parte razoável da população sair da bondade para eleger, de Universidade de São Paulo (USP).
brasileira está disposta a aceitar quando em vez, gente mal hu- www.renatojanine.pro.br

82 • ciência&vida
Um Diário que era
como sua melhor amiga...

Anne Frank registrou em


seu diário o que acontecia
no esconderijo onde viveu
com a família durante a
Segunda Guerra Mundial.
Nele, escrevia cartas à sua
melhor amiga, Kitty.
Anne relata não somente
os momentos de tensão e
estresse, mas também de
solidariedade e ternura.

JÁ NAS BANCAS E LIVRARIAS!

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Um Estudo
em Vermelho

ARTHUR CONAN DOYLE


Assassinato, traição, vingança, romance e mistério com-
põem o pano de fundo para Um Estudo em Vermelho, que
marca a estreia da parceria entre o detetive mais famoso do
mundo, Sherlock Holmes, e o médico John Watson. A par-
tir desse encontro, estará selado um pacto entre ambos: “Na
meada incolor da vida, corre o fio vermelho do crime, e o
nosso dever consiste em desenredá-lo, isolá-lo e expô-lo em
toda a sua extensão”.

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