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Ambos os contos apresentam um caráter que possa ser encarado como aspecto

cíclico narrativamente. A recorrência da temática familiar, em acentuação dos dramas


presentes nesse contexto e a ênfase no afastamento interpessoal é claramente
perceptível. Identificamos nos contos analisados também um certo tom de passividade
das personagens narradoras, assistindo às vezes com incredulidade às cenas que se
sucedem ao seu redor. Para tanto iremos analisar os liames entre os contos de maneira
linear, tratando primeiro em explicitar como são apresentadas inicialmente as relações
familiares, passando ao ponto de contraste com esse ponto inicial, ao seja, à mudança
sofrida pelo contexto do narrador e por ele mesmo, empreendendo mudança no
encaminhamento da narrativa, identificar os elementos que possibilitam uma inter-
relação com um período histórico especifico, uma contextualização história, grosso
modo, e por último fechando-se na contraposição entre as caracterizações iniciais da
narrativa e em seu encerramento, nesse caráter de retorno ao contexto familiar, agora
fragmentado e de impossível reconstituição. Em "o filho do Homem", o contexto familiar
é caracterizado inicialmente pela transmissão do conhecimento através da modalidade
oral. O ato de contar histórias a crianças empreende papel de perpetração de valores e
de conhecimentos. A transmissão de conhecimento aqui, relacionada à fase infantil do
narrador e aliado ao seu interesse por histórias de cunho gótico podem ser um ponto
reiterado na caracterização da infância em "alguma coisa urgentemente", onde a
conexão se dá, também, pelo contar de histórias medievais. A aquisição de
conhecimentos é claramente um dispositivo para ascenção social e individual do ponto
de vista da formação e emancipação do ser humano. A figura materna aqui é ausente,
focando-se na figura paterna e no seu acolhimento, na potência e na sabedoria
emanados pelo pai.
A máxima exprimida serve de motivo a expressar tal sabedoria taciturna, quase
estranha ao tratamento com uma criança:
Mas meu pai não propunha me assustar, dizia que não é preciso temer o
nosso destino, que a dor e o prazer são coisas imponderáveis, mas que
chegam na hora certa e saem na hora justa. O meu pai está morto. (NOLL,
2008, p. 87)
A caracterização é interrompida pela morte do pai com uma sentença direta. E
logo seguinte à sentença que interrompe a caracterização infantil, o narrador se volta às
relações com o meretrício. É onde se concentra o ponto de cisão com essa estrutura de
caracterização da infância como demonstrada até o momento. O narrador empreende a
construção de um complexo familiar com Eva, a prostituta mais desejada do bordel que
frequenta. É perceptível o entrelaçamento de topos recorrentes na cultura cristã no
conto, desde o título, até o nome da prostituta com quem o narrador inicia sua família
representando um signo de fertilidade. Os sete dias que o “noivado” leva antes do
casamento e também o incesto vivido pelos filhos do casal podem servir de referência às
diversas discussões de incesto na gêneses bíblica devido à escassez de parceiros sexuais
disponíveis. O posterior afastamento dos filhos parece inevitável pelas diferenças que
guardam, e o exílio do namorado da filha parece nos dar pistas do momento histórico
vivido, assim como os papeizinhos alusivos à Semana da Pátria. Episódios de patriotismo,
protestos e perseguição política remetem de maneira contundente à regimes ditatoriais,
e em âmbito brasileiro, ao período compreendido de 1964 a 1985. A passividade do
protagonista é percebida principalmente quando observamos suas reações frente ao
incesto dos filhos ou aos adultérios de sua esposa, que posteriormente lhe abandona, ou
ainda a sua postura frente à morte dela, permanecendo numa quase fidelidade.
“Meu pai contava histórias macabras e eu as ouvia. Hoje não tenho nem a
própria filha para contar as minhas próprias histórias, tudo passou muito depressa.”
(NOLL, 2008, p. 90). O conto se encerra com a solidão expressa em sua figura, na
incompletude do homem destituído de suas relações familiares. O narrador exprime a
falta de uma relação de pertencimento e de transmissão de conhecimento que não mais
é possível no contexto atual. É uma figura de representação do momento político vivido
por ele, de um homem cansado, pungido.
Em “alguma coisa urgentemente” encaramos uma construção que apresenta
elementos similares à de “o filho do Homem”. Inicialmente temos a constituição de uma
infância marcada também pela constância da figura paterna em contraposição da figura
materna, pela qual o narrador sofreu abandono. A relação familiar inicial também é
marcada pela transmissão de conhecimentos, marcadamente oral, elementos medievais
são reiterados (em "o filho do Homem" as histórias góticas, aqui uma canção), as máximas
usadas para exprimir conhecimento e a relação de extravasamento humano e social: "-
Quando você aprender a ler vai possui de alguma forma todas as coisas, inclusive você
mesmo." (NOLL, 2008, p. 12). A contextualização histórica aqui nos situa também no
período ditatorial pelo qual o Brasil passou no qual o pai do narrador é preso,
aparentemente acusado de coadunar com grupos de oposição ao governo. O medo da
tortura e até mesmo o medo do toque da campainha, de quem pode estar do outro lado
da porta aguardando é algo que se coloca com coerência na narrativa. Diferentemente
de em “o filho do Homem”, o tempo narrativo se volta mais à visão da criança inserida
em contexto de desnorteamento. A prisão do pai seguida da ida para o colégio interno
institui aqui a cisão inicial da narrativa, contrapondo o contexto exposto previamente.
“Como lidar com uma criança que sabe?” (NOLL, 2018, p. 12) A relação de silêncio e de
perigo das informações prestadas ao filho ajudam a traçar melhor esse papel de
instabilidade diante do regime em vigor e da posição que o pai ocupa em seu combate.
As reações empreendidas pelo narrador demonstram o desamparo vivenciado, tal qual a
apatia do narrador de “o filho do Homem”: “Eu já tinha perdido a capacidade de chorar.
Eu procurei esquecer.” (NOLL, 2008, p. 14)
O desamparo pode ser explicitado também pelas atitudes tomadas pelo
narrador em vistas de sobrevivência. O ato de prostituir-se demonstra o apagamento das
vontades pessoas diante da necessidade de permanência em uma realidade de
abandono, hostil. Chega, inclusive, a pensar em denunciar o pai, pensando que isso lhe
proporcionaria uma volta ao orfanato e consequentemente teto e comida, apesar de não
cometer tal ato, a simples consideração sobre transmite o embotamento assimilado pela
experiência de abandono. O encerramento do conto explicita ainda mais esse desamparo
pelo sentimento de incapacidade ocorrendo de maneira simultânea à necessidade de
ação diante de uma situação decisiva, a morte do pai.
A efígie da morte aqui aparece de maneira distinta de o “o filho do Homem”,
aqui a morte é sentida e intensificada pela imagem do pai em estado de declínio,
encaminhando-se para a morte enquanto o filho assimila aos poucos a realidade
agonizante de pai. O parafuso em que o narrador é inserido leva a se questionar por uma
atitude que possa levar à solução e uma situação insolúvel. A necessidade de fazer
alguma coisa urgentemente. Como pudemos observar, há um movimento de retorno às
relações familiares nos desfechos dos contos, interseccionados, porém, por uma
inabilidade de se encaixar às mudanças sofridas durante o percurso narrado, um pela
passividade, o outro pela urgência de ação. As relações familiares servem também como
pano de fundo a revelar, a partir do núcleo familiar, um contexto histórico específico e as
refrações desse contexto sobre o indivíduo.

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