A conquista da América – Leituras Historiográficas
Prof. Dr. Marcos Arraes
O tema da conquista das Américas se faz presente na historiografia ocidental
desde há muito tempo, chegando mesmo a ser considerado por alguns autores como quase que contemporâneo ao evento. Ao menos assim nos faz crer Frank Salomón, em seu texto “Crônicas do Impossível: notas sobre três historiadores indígenas peruanos”, ainda sem tradução em português, onde ele vê os relatos indígenas não apenas como fontes para o trabalho do historiador, mas como obras historiográficas, que possuíam em si interpretações do contato com os europeus do ponto de vista dos nativos. Se aceitarmos a argumentação do autor, poderemos tomar os relatos dos europeus a respeito da “descoberta” também como escritos historiográficos, como procura discutir, no entanto, com o objetivo de desconstruí-los, Edmundo O’Gorman, em a Invenção da América. Aqui o autor analisa os escritos de personagens como Fernando Colombo, Bartolomé de Las Casas, Olviedo e outros atrás de pistas para a emergência da ideia de “descoberta” que ele procura questionar. Vemos aqui já um outro prisma para o tema: a questão conceitual e de como significar o ano de 1492. Para alguns escritores europeus, este ano é interpretado como o símbolo da transformação do mundo por ser o ponto de partida da ascensão da civilização europeia (Paul Kennedy, p. Ex.) e o deslocamento do eixo de disputas e influência mundial do leste para o oeste. E é também lembrado como o ano da conquista de granada e expulsão dos muçulmanos da Península Ibérica, da expulsão dos judeus dos territórios espanhóis e da unificação dos reinos de Aragão e Castela. Ou seja, segundo Steve Stern, seria também o momento da construção de um paradigma civilizatório mais excludente, com fronteiras mais rígidas entre o eu e o outro que a vitória do cristianismo teria colocado, além do paradigma da unificação política. Para este autor, 1492 representa, portanto, o surgimento de três grandes novos paradigmas: político, imperial e da diferença (alteridade). Do lado americano, ou, mais especificamente, latino-americano, a polaridade dos debates será mais centrado na questão conceitual: seria o empreendimento de Colombo uma descoberta, encontro, conquista, invasão ou invenção? Essas são algumas das sugestões que surgem ao longo das discussões sobre o tema. A ideia de descoberta, cristalizada por muito tempo na historiografia e também no senso comum teve grande aceitação quando das comemorações do quarto centenário de 1492, quando, segundo Tulio H. Donghi, Colombo foi venerado pela realização da sua “missão providencial”. Contudo, a luz das renovações ocorridas no campo do saber histórico ao longo do século XX, de que logo iremos discutir, essa versão foi duramente criticada. Além da já citada crítica de O’Gorman, que viu na palavra o enquadramento de um ser a priori, já existente e definido em si mesmo, acusou-se a ideia de descobrimento de focar apenas na ação europeia, que chega a um continente até então desconhecido em sua consciência. Além disso, acusaram outros, o termo é carregado de um etnocentrismo, que via os habitantes nativos da terra como existentes apenas após a chegada europeia. Por fim, o termo ainda carregaria uma suposta neutralidade dos conflitos que ali se deram, um abrandamento das violências que se iniciavam a partir de então. Essa mesma acusação também foi feita a ideia de encontro, que, no entanto, não chegou a ganhar muita força. Edmundo O’Gorman, ao em grande parte iniciar o movimento contestador, sugeriu também uma solução, pautada na ideia de invenção. Para ele, a instituição que passou-se a chamar América inexistia em quaisquer perspectivas antes de 1492. O que foi aqui construído, foi resultado de um processo de transposição de elementos europeus que sofreram processos de adaptação e também de caminhos originais que moldaram o “ser americano”, sendo, portanto, uma invenção europeia. A crítica feita ao historiador mexicano, contudo, é que sua visão, apesar de inovar no campo conceitual, propondo interessantes análises na história das mentalidades, não altera a perspectiva de análise que foca apenas na ação e no ato de vontade do agente civilizador europeu, sem dar espaço para outras culturas e atores. Buscando superar esses problemas e procurando dar voz e visibilidade ao lado indígena, passou-se então a falar em invasão, pois, argumentou-se, aqui já habitavam povos que desenvolveram civilizações e relações com a terra e o ambiente, sendo, a partir de então, vítimas de um processo violento do elemento exterior em sua busca desenfreada por ouro e poder. Deu-se, então, uma inversão da ordem anterior, apostando todas as fichas na visão da vítima, sem, contudo, tirar o fato de uma dicotomia interpretativa, que classificava os atores em vilões ou heróis. Esse é, portanto, um campo aberto de debates, estando longe de constituir um consenso. Contudo, a proposta menos conflituosa na atualidade é o conceito de conquista, que, segundo seus defensores, deixa claro a existência de povos e culturas na região antes da chegada do elemento exógeno, que promoveu, através de diversas iniciativas e estratagemas, estas não apenas unidirecionais, mas dialógicas com as ações e reações dos nativos, uma conquista física, política e cultural, apossando-se do território já ocupado e iniciando aí embates e relações de poder que duram até a atualidade. A esta altura já fica claro não apenas a extensão do debate historiográfico sobre a conquista, mas também sua complexidade, o que pode ser corroborado pelas múltiplas direções tomadas nesse campo. Assim, para além das discussões do simbolismo da conquista e do(s) setor(es) em que ela teria se processado, podemos perceber ainda narrativas a respeito dos lados envolvidos e de quem teria a primazia da ação, por vezes dando voz a agentes diferentes e específicos. Esse é, por exemplo, o caso de Inga Clendinnen, em “Conquista Ambivalente”, sem tradução em português, onde ela procura dar conta da conquista do Yucatán não a partir do ato da chegada espanhola em si, mas como uma ação perene, iniciada com a chegada desses últimos, mas que continua de forma ambivalente, daí o título, com as ações e reações dos Maias diante das iniciativas europeias. Diante de tamanha diversidade, proponho portanto uma espécie de inventário das tradições historiográficas nas quais pode-se inserir essas múltiplas visões/versões, cada uma delas relacionadas ao momento histórico de sua produção, fazendo então uma breve história da historiografia da conquista. Devido aos limites de espaço aqui, faz-se necessário um recorte, que procurará focar no período mais recente do século XX, sem contudo deixar de pontuar alguns momentos anteriores quando necessários para efeitos de sentido. A centralidade do poder e cultura europeus no final do século XIX e início do século XX, ditando modelos e paradigmas em todo o mundo ocidental, ai incluídos os países latino-americanos, deram o tom das produções historiográficas da conquista nesse período. Já foi comentado que o quarto centenário do 1492 procurou louvar a ação europeia e noção de descobrimento. Para além do conceito, fixaram-se com ele também as noções da visão europeia e a contribuição que teriam dado à consolidação das sociedades e culturas que hoje abitam as Américas inventadas. Parte dessa tradição deve-se a busca por um contraponto às ideias da chamada “lenda negra”, que teria sido divulgada na Europa pelos rivais imperiais da Espanha nos séculos XVII e XVIII, muito pautados nos relatos de Las Casas, e que procuravam destacar a cobiça espanhola e as violências perpetrada contra os nativos durante a conquista da América. Outra parte deve-se à questão dos limites das fontes então consideradas para tais estudos, a maior parte delas disponível no Arquivo das Índias e relativas aos empreendimentos e atividades europeias nas colônias. Com a Revolução Mexicana e o surgimento de uma constituição mais preocupada com o elemento indígena naquele país em 1917, o indigenismo começa a espalhar-se por países da América Latina e, com ela, uma visão crítica das ações dos conquistadores. Além disso, o surgimento dos primeiros arquivos históricos hispano- americanos, como o do México na década de 1920, dão corpo e estrutura para tais visões. Ainda nesse sentido, a renovação que atingiu o saber histórico nas décadas seguintes, com a revisão do conceito de fontes e o recurso a outros modelos e métodos científicos como suporte a escrita da história só veio a contribuir para o revisionismo historiográfico. É nesse contexto que começam a surgir diversas traduções de textos indígenas e também se dá a aproximação da história da antropologia, dando vasão aos trabalhos da chamada etno-história. Nesse contexto, entre as décadas de 1920 e 1950 surgem trabalhos que procuram uma compreensão mais ampla e sutil das instituições, políticas e ideias coloniais espanholas, como é o caso de “Para uma teoria do governo hispano- americano, sem tradução em português, de Richard Morse, e também trabalhos como o de Angel Rosenblat, que enfoca na temática da catástrofe demográfica que a chegada do homem branco causou nas populações nativas. Inovava-se a temática, contudo sem grandes mudanças de perspectiva. Entre as décadas de 1950 e 1970, e com repercussões e influências além desse período, os debates sobre o terceiro-mundismo e os reflexos dos estudos de organizações como a Comissão Econômica para a América Latina aliados ao importante impacto trazido pela História Social põem em evidência o problema das populações subalternas das desigualdades sociais, recorrendo-se ao passado e presente das explorações estrangeiras como forma de explicar as condições presentes. Assim, na historiografia da conquista, as obras desse período buscam evidenciar o colapso populacional ocasionado pelas enfermidades e agentes patogênicos trazidos pelos estrangeiros; a exploração do trabalho indígena que induziram a deterioração e o colapso das sociedades e economias indígenas; a desestruturação das organizações internas indígenas que lhes havia proporcionado o crescimento e agora só restava a submissão. Aqui podem ser citados obras como “Os incas sob as instituições coloniais espanholas”, sem tradução para o português, de John Rowe, “Os astecas sob domínio Espanhol, de Charles Gibson e O tributo indígena na Nova Espanha durante o século XVI, de José Miranda. É também desse período o surgimento da chamada Berkeley School, que fez tradição com autores como W. Borah, Sherburne Cook e Lesley Simpson. Essas renovações trouxeram os nativos para a história, contudo, ainda como vítima passiva das ações estrangeiras. É apenas ao longo da década de 1980, com a popularização do chamado multiculturalismo, trazendo novos desafios às ciências humanas de uma forma geral, que a História passou a buscar uma narrativa que se distanciasse das histórias de heróis, vilões e micróbios europeus atuando sobre índios inertes, dóceis, passivos e que seriam, assim, destruídos. Assim, Steve Stern, em “Os Indígenas do Peru e os desafios da conquista espanhola”, procura dar agência aos índios, demonstrando as formas de incorporação à ordem colonial encontrada por algumas autoridades indígenas. Seguiram uma linha similar de empoderamento dos nativos das Américas autores como Karen Spalding e, para o caso mais específico do Brasil, Stuart Schwartz. Esses autores foram e ainda são muito influentes na historiografia da conquista. Nas últimas décadas, a experiência indígena da conquista tem sido a tendência dentro da historiografia. Nesse sentido, vê-se alguns movimentos de releituras críticas das visões do passado e avanços para áreas ainda pouco exploradas, podendo-se apontar três caminhos principais: a conquista como uma grande experiência de trauma e destruição; como encontro de culturas e de questões de alteridade; e, não menos importante, como uma relação de poder que recebeu uma resposta. O primeiro caminho pode ser vistos em estudos de Roger Bartra sobre o México, e se transformou em uma importante tendência de suporte nas construções atuais das culturas nacionais em alguns países. O segundo caminho é trilhado por autores importantes como Serge Gruzinski e James Lockhart. Tal caminho relembra as proposições presentes em A conquista da América, de Tzvetan Todorov, onde o autor procura demonstrar como o encontro de duas culturas completamente diferentes gerou problemas de comunicação ou, mais que isso, uma incapacidade de compreender o outro. Esses abismos da alteridade teriam gerado um processo violento ímpar na história, que proporcionou a conquista dos europeus e a devastação das culturas indígenas. Apesar da similaridade no caminho do “encontro cultural”, a obra de Todorov pertence a uma vertente anterior e teve grande repercussão e importância para o momento em que foi escrita, mas vem recebendo duras críticas devido, entre outras questões, a rigidez de como vê a questão cultural, não dando vazões para a fluidez e flexibilidade característicos do campo da cultura. É justamente essa a força das obras de Gruzinski, que, trazendo à tona uma análise dos imaginários indígenas, procura entender o processo de conquista a partir dos elementos culturais e imagéticos dos europeus especialmente no campo religioso. O autor demonstra em obras como A colonização do Imaginário e Guerra de Imagens, como o recurso a diversos mecanismos adaptativos e impositivos deram inicio ao processo de “ocidentalização” da cultura nativa. Assim, o autor procura dar fluidez e flexibilidade aos encontros culturais que, como bem demonstra, teve efeitos não apenas para o conquistado, mas também para o conquistador. Isso ele demonstra com o questionamento do uso do conceito de Sociedade Colonial para os momentos iniciais da conquista, quando, segundo ele, a aparente ordem e estabilidade pressupostas na expressão não estariam presentes. Nesse momento, argumenta, as disputas tanto entre os europeus e os indígenas como divergências internas em cada um desses grupos teriam gerado uma ausência de referencia e ordem, dando lugar ao que ele prefere chamar de “aglomerado”. (Vide Pensamento Mestiço). De forma similar, James Lockhart, em Os Nahuas depois da conquista, ainda sem tradução para o português, procura se ater a ideia do encontro de duas culturas. A diferença aqui, no entanto, é que para ele essas culturas não seriam tão distantes assim e o encontro desses dois mundos não foi lá tão difícil. Segundo ele, a interação entre a cultura nativa e a cultura invasora conheceu algumas bases comuns que tornou possível a rápida implantação de modelos europeus pelos indígenas. Isso teria sido particularmente presente no caso do contato entre a cultura castelhana e Nahua. A semelhança com Gruzinski fica na defesa de que essa integração teve efeitos em ambos os lados, sendo, portanto, recíproca. Lockhart chegou a receber algumas críticas a respeito de uma possível tentativa de abrandar a desigualdade das relações de força entre os contendores, sendo o processo bem mais impactante para o lado nativo. Seus críticos viram a raiz do problema no uso das fontes que, segundo o próprio Lockhart, foram documentos redigidos em Nahuatl, contudo datados de momentos já bem avançados do processo de colonização, o que daria a entender que foram escritos por indígenas já adaptados e que escreveram de forma retrospectiva, recaindo nos problemas da suavização proporcionados pela memória distante da efetiva do ocorrido. Finalmente, o terceiro caminho aponta na direção de um processo mais amplo, que percebe ambos os contendores como agentes e humanos diante de uma disputa quase sempre conflituosa. Esses estudos não somente transporta os ameríndios do reino dos objetos sobre o qual se age, como se fossem meramente vítimas passivas da destruição e desprezo dos invasores, como também tira os colonizadores do reino da demonização histórica, situando-os em dimensões mais próprias a sua humanidade como exploradores, conquistadores do poder, cujos projetos de dominação foram atrapalhados pelas lutas iniciativas e reações tanto de dentro como de fora destes mesmos projetos. Isso não significa a negativa dos processos de desentendimentos e exclusões proporcionados por esses conflitos, nem tampouco minimiza a intensidade destrutiva de alguns deles. O que ela propõe é tirar as interpretações da dualidade simples de vilões e heróis ou mesmo demônios e condenados, trazendo a história de volta ao nível da humanidade de todos os atores que a fazem. Essa parece ser a tradição mais próxima do conceito de conquista, uma vez que, como já colocado de início, supõe os dois lados do conflito, cada um em seu lugar e nas intercessões proporcionadas pelo encontro. Atualmente, há ainda um esforço na direção de incorporar o legados desses três caminhos, reunindo essas perspectivas em uma única análise, sem fazer pesar sobre nenhuma uma maior força na narrativa. O conjunto da obra de autores como a já citada Inga Clendinnen e Gruzinski podem ser colocados nesse escopo, ainda que determinadas obras específicas possam tender para um ou outro caminho específico. Concluindo, no lugar dos entrincheiramentos e batalhas por verdades mais influentes, a história só tem a ganhar com a reunião dos avanços proporcionados pela história social, pelo multiculturalismo e pelas incorporações dos métodos de outras ciências vizinhas. Dessa forma, certamente não chegaremos a verdade histórica definitiva, e nem é esse o objetivo, mas, ao cerca-se o objeto de múltiplos pontos de observação, dá-se vazão para a diversidade de condicionantes presentes na realidade vivida. Apesar da longevidade das discussões, o tema da conquista está longe de ser esgotado. Mais recentemente, o contínuo subdesenvolvimento das regiões latino- americanas continuam procurando no passado uma saída, ao menos explicativa, e, nesse sentido, alguns temas voltam a tona e ganham nova roupagem. É o caso por exemplo dos estudos que vêm na conquista ibérica e seu universalismo católico uma maior flexibilidade à diferença, compondo com alguma aceitação sociedades multiétnicas. Por outro lado, o provincianismo e a rigidez anglo-saxões não permitiram essa “passividade”, constituindo sociedades exclusivistas e que destinou os nativos e as pessoas de ascendência racial mista à guerra e ao genocídio. Para além da validade e dos problemas e críticas que se podem fazer a essas visões, que buscam encaixar fórmulas do passado na realidade presente da hegemonia estadunidense no continente, é significativo a perenidade das discussões. Parafraseando Stern, é como se 1492 fosse o amanhecer simbólico de um dia histórico cujo sol ainda não se pôs.