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€ um artesfo ithado no meio da indéstria da informagdo. Os objetos que ele molda, aparentemente apenas como o fato fugaz também destinado fugacidade, na verdade sio feitos da ma- ‘éria de sua propria vida: a experiéncia carregada de substéncia pessoal, destinada, como tudo, a perecer, mas impregnada pelo desejo de ficar. Em contradicio com 0 meio, sobra a esse cro- ta aquela espécie de solidao marginal, o que, provavelmente, © toma tio reveptivo © disponivel para pereeber as coisas mit das ¢ também & margem, com que tende a identificarse. E com clas e, por assim dizer, com sua prépria substincia mortal que cle faz suas hist6rias. Num mundo como 0 nosso, jé bastante estandardizado, de relagoes reificadas, onde tudo pode virar ‘mercadoria e em si nada valer, 0 yelho Braga, em meio ao mais ‘efémero, nao apenas nos dé a impressio sdbita do momento de beleza fugitiva, mas a dignidade © a poesia do perectvel, quando tocado por um dedo humano. (1985) ws de Rubem Braga foram feitas conforme 0 texto de sua coletanea 200 crdnicas escolhidas, 4 ed., Rio dde Janeiro, Record, 1978. As citacdes de Manuel Bandcira foram retira- das do Itinerdrio de Pasirgada. In: M. Bandeira — Poesia e prosa, Rio de Janciro, José Aguilar, 1958, vol. I, pp. 1-112 ¢ de Andorinha, ando- rinka, Sel. © Coordenag#o de’ Carlos ‘Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, José Olympia, 1966. 2. A referencia a0 “cotidiano fisico, simbélico © i ‘mens que vivem no Brasil” pertence a Alfredo Bosi,citado ma adiante, In: Dermeval. Sa Filosofia da eduearto brasileira, Rio de Janeiro, Civiliza- ‘io Brasileira, 1985, pp. 135-176. © trecho transcrito se acha & p. 157. jo de Walter Benjamin referido diretamente no item final, mas muito presente todo © tempo € *O Natrador", In: W. Benjamin ¢ ‘outros, Textos escolhidos, Séo Paulo, Abril, 1980, pp. 57-74 (Col. “Os Pensadores”) 4. 0 presente ensaio retoma e desenvolye outro — “Onde andaré © velho Braga?” —, publicado om mou livro Ackados e perdidos, Sao Paulo, Poli, 1979, pp. 159-16. Aeereveei, Dauth Evicgne Boas) cy pats files Ses, FRAGMENTOS SOBRE A CRONICA O QUE SERA A CRONICA Esse género de literatura ligado ao jornal esta entre nés hé mais d> um século ¢ se aclimatou com tal naturalidade, que parece nosso. Despretensiosa, préxima da conversa e da vida de todo dia, a crénica tem sido, salvo alguma infidelidade metua, companheira quase que didria do leitor brasileiro. No entanto, apesar de aparentemente ficil quanto aos temas e A linguagem coloquial, € dificil de definir como tantas coisas simples. ‘Sio virios os significados da palavra crénica. Todos, porém, implicam a nogdo de tempo, presente no proprio termo, que procede do grego chronos. Um leitor atual pode nao se dar conta desse vinculo de origem que faz dela uma forma do tempo © da meméria, um meio de representayio temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada, Mas a crdnica sempre tece a continuidade do gesto humano na tela do tempo. Lembrar ¢ escrever: trata-se de um relato em permanente relagao com o tempo, de onde tira, como meméria escrita, sua matéris principal, 0 que fica do vivido — uma definigio que se poderia aplicar igualmente ao discurso da Hist6ria, a que um ja cla dew lugar. Assim, a principio ela foi crénica histérica, (4) Este ensaio nasceu de uma entrevista dada a Leio Serva, da Folha de §. Paulo, em 1985, Numa primeira versio, agora revista © ‘aumentada, apareceu na Tlustrada, em 5/10/85, p. 49. st errentiinis . Sos como a medieval: uma narragao de fatos hist6ricos segundo uma ordem cronoligica, conforme dizem os dicionérios, ¢ por essa vin se tomo uma precursora da historiografia moderna, Tal género supde uma sociedade para a qual importa a exper progressiva do tempo, um passado que se possa concatenar si nificativamente, a Historia, enfim, e nao apenas um tempo clico ou repetitivo, implicado noutra forma de narrative — o mito, Presa ao calendario dos feitos humanos ¢ nao as faganhas dos deuses, mas podendo envolver até conjungdo dos astros (0 cronista costumava fazer as vezes de astrnomo, dando no- ia do que ia pelo céu paralelamente sos acontecimentos ter- resttes), @ crdnica pode constituir © testemunho de uma vida, © documento de toda uma época ou um meio de se inscrever Hist6ria no texto, Além disso, a0 distanciar-se no passado, pode se transformar em fonte da imaginagGo: gestas romanticas e ou- tras formas literdrias nascerem dela, como o drama histérico clizabetano, de que Shakespeare deixou tio grandes exemplos. Nessa acepeio histérica, o cronista € um narrador da His- {éria, Como notou Benjamin, o historiador escreve os fatos, buscando-Thes uma explicagao, enquanto que o cronista, que 9 precedeu, se limitava a narré-los, de uma perspectiva religiosa, tomando-os como modelos da hist6ria do mundo e deixando toda explicagio na sombra da divindade, com seus designios insondéveis? Mas ao narrar os acontecimentos, assemelhava-se 40 seu duplo secular, o narrador popular de casos tradicionais que, pela meméria, resgata a experigncia vivida nas narratives que integram a tradigao oral e as vezes se incorporam também & chamada literatura culta, Como este, o eronista era um habil artesio da experitncia, transformador da matéria-prima do vivido fem narrago, mestre na arte de contar histérias. Hoje, porém, quando se fala em crénica, logo se pensa num géneto muito diferente da crénica histérica. Agora se trata sim- plesmente de um relato ou comentétio de fatos corriqueitos do diaa-dia, dos faits divers, fatos de atualidade que alimentam o (2) Ver Waltor Benjamin, *O Narrador”, Em seu: Magla ¢ técnica, arte ¢ politica. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. Sio Paulo, Brasiliense, 1985, p. 208. 92 noticiatio dos jornais desde que estes se tornaram instruments de informagio de grande tiragem, no século passado. A crdnica vvirou uma segao do jornal ou da revista. Para que se possa com- preendéla adequadamente, em seu modo de ser e significacao, deve ser penseda, sem divida, em relagao com a imprensa, a que esteve sempre vinculada sua produgdo. Mas seria injusto reduzi-la a um apéndice do jornal, pelo menos no Brasil, onde dependsu na origem da influéncia européia, alcangando logo, porém, um desenvolvimento proprio extremamente signficativ. Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar, com dimensio estética € relativa autonomia, a ponto de constituir um género propriamente literério, muito préximo de certas modalidades da épica e as vezes também da rica, mas com uma histéria especifica ¢ bastante expressiva no conjunto da pro- -ducdo literéria brasileira, uma ver. que dela participaram grandes escritores, sem falar naqueles que ganharam fama sendo sobre tudo cronistas ‘Compreendida desse modo, a erOnica € ela propria umm fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imedia‘o, as inquietagdes de um desejo sempre insatisfeito, & rapida transformagio e a fugacidade da vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metropoles do capitalismo indus- ‘© em seus espagos periféricos. A primei como parte de um veiculo como 0 jornal, ela parece destinada & pura con tingéncia, mas acaba travando com esta um arriscado duelo, de que, as vezes, por mérito literdrio intrinseco, sai vitoriosa. Nao aro ela adquire assim, entre nds, a espessura de texto lterério, tornando-se, pela elaboragéo da linguagem, pela complexidade interns, pela penetragdo psicol6gica ¢ social, pela forca postica ‘ou pelo humor, uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa historia. Entao, a uma s6 vez, cla pparece penetrar agudamente na substincia intima de seu tempo € esquivar-se da corrosio dos anos, como se nela se pudesse sem- pre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade intima, humana e hist6rica, impresgo na massa passagcira dos fatos esfarelando-se na diregao do passado. © cronista moderno, ¢ claro, est mais perto dos fatos do dia do que da tradigéo oral ou hist6rica, como comentarista qd 33 € dos acontecimentos do cotidiano; mas de vez em quando reto- ma, por assim dizer, a persona de seus ancestrais. E sabido o fraco que Machado de Assis tinha pela prosa do cronista medic- val portugués Fernao Lopes. E, & medida que a critica avanga no conhecimento de sua obra, vaise vendo o quanto havia de Penetracio histdrica numa simples crénica do velho bruxo, escrita com pena de ponta fina ¢ malignamente irénica como tantas de suas melhores paginas de ficcionista. Nas erdnicas de Carlos Drummond de Andrade, ¢ ccmum retornar um narrador rigo- 080 © preciso de fatos hist6ricos que faz Iembrat o antigo sig. nificado da palavra, como ja notou Antonio Candido? Outro caso parecido o de Manuel Bandeira, sobretudo 0 das Crdnicas da Provincia do Brasil, reunidas em livro em 1937. Ali o grande poeta se torna também um cronista & moda antiga, Comega pela fevocagio do passado colonial brasileiro numa longa erénica sobre Ouro Preto, como que levado pelo gosto de acompanhar © tracado arquiteténico das velhas casas intactas e dos sobradées de frontarias barrocas, preso a0 encanto da cidade que no mu- dou. Mas encomprida o relato como um narrador oral, pela suces- sio de historias antigas, nascidas de gestos simples dos homens que construiram aquele mundo parado no ar do passado. Como © caso do mulato anénimo que um belo dia desceu do serro do ‘Tripui a0 ribeirio hoje de Ouro Preto e, num gesto humilde de apanhar um pouco d'égua para matar a sede, deu com os ‘granitos negros que encobriam 0 ouro e 0 nove mundo das Minas. No fundo distante, o hist6rico e 0 ficcional se confundem, a0 ‘mesmo tempo que uma poesia inesperada espia através dos fatos ‘da meméria. £ ainda como narrador da Histéria que Bandeira prossegue, a0 longo do livro, no resgate desse passado hist6rico, aglutinando terras da Bahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro. No Rio se detém, abandonando o pano de fundo e 0 jeito de cronista antigo, para se fixar no cenério presente e préximo que era a capital carioca. Adota entao um tom coloquial de conversa amena ¢ bem humorada, escrita com grande naturalidade em prosa limpa ¢ enxuta, como se desenhasse a bicode-pena par- 3) Cf. Antonio Candido, “Drummond prosador: singularidade do ago", Revista do Brasil, Ano I, n° 2/84, p. 8 34 findo do natural, sem perder @ graga e a precisio dos detalhes, uum quadro vivo do Rio de seu tempo. Através de figuras singu lares de seu convivio, 0 cronista conta agora fragmentos de uma hist6ria menor, aquém dos. grandes acontecimentos, vivida no dia-a-dia da Cidade Maravilhosa: 0 Rio dos meninos pobres do morro do Curvelo, do mundo noturno do samba, das rodas boé- mias da Lapa, dos intelectuais modemnistas. A crOnica se situa bem berto do chao, no cotidiano da cidade modema, e escolhe linguagzm simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar das pequenas coisas que formam 2 vida didria, onde as vezes encontra a mais alta poesia. F exata- ‘mente essa a situagdo preferida das crénicas de Rubem Braga, Braga, embora pocta bissexto e contista eventual, escreve eronicas desde a década de 30 € foi decerto quem deu 0 maior grau de autonomia estética a esse género entre nds, tormando-se, Por isso, um modelo de cronista. Forjou, na verdade, uma forma literdria nica, feita com a mescla de elementos variados, vindos até onde se pode perceber, da antiga tradigéo do narrador oral (no caso, do contador de causos do interior) e da bagagem do cronista moderno, associado & imprensa e experimentado na labuta das grandes cidades de nosso tempo. Com ele, a tensio tio caracieristica da crOnica, entre o cardter puramente. circuns: tancial e o propriamente literério, tende a se resolver, mais que nna maioria dos cronistas rotineiros, em proveito da literatura. Por isso, através dele, se nota mais 0 que & comum a todos: a relagdo ambigua com o fato que serve de referéncia a crénica. Muito préximo do evento mitido do cotidiano, o eronista deve de algum modo driblé-lo, se nao quiser naufragar agarrado ao efémero, Buscando uma saida literdria, as margens de sua terra firme sao bastante imprecisas: ele pode estender a ambi- gilidade i linguagem ¢ as fronteiras do género, sem perder © nivel de estilo adequado is pequenas coisas de que trata. Com isso, &s vezes a prosa da crénica se torna lirica, como se estivesse tomada pela subjetividade de um poeta do instantineo, que, mesmo sem abandonar 0 ar de conversa fiada, fosse capaz de ticar 0 dificil do simples, fazendo palavras banais algarem v6o. Outras vezes, a tendéncia € para a prosa de ficgao, pela énfase ‘na objetivacao de um mundo recriado imaginariamente: ele pode 55

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