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T e n d ê n c i a s

Resiliência e desastres naturais


Marilza Terezinha Soares de Souza

A
resiliência, conceito em- em características pessoais, relações de ciada por um grupo dos fatores inter-
prestado da física e enge- vínculo, e situações do próprio con- relacionados que incluem experiências
nharia e introduzida nas texto que nutrem o processo de resili- passadas, atitudes atuais em relação ao
pesquisas das ciências da ência. Os mecanismos mediadores são evento, personalidade e valores, juntos
saúde, há cerca de 35 anos, variáveis que exercerão sua força sobre com as expectativas futuras. Um fator
sofreu transformações desde sua defi- a intensidade, duração e avaliação dos importante é a experiência passada
nição inicial como um traço ou carac- fatores de risco e protetores. Dentre eles com o evento. Os desastres, aos quais
terística individual até ser considerada podemos citar a faixa etária, as questões as pessoas não estão familiarizadas,
como um processo que se desenvolve de gênero, a fase de desenvolvimento têm o potencial de causar comprome-
no âmbito das interações humanas humano, a fase do ciclo vital familiar, o timento psicológico maior”.
frente às adversidades tendo como re- contexto, as crenças e valores culturais e Percebemos, assim, que a forma como
sultado final a superação. Para Walsh espirituais, o momento sócio-histórico as pessoas avaliam um evento poten-
(1) o processo de resiliência, vai além e a disponibilidade de recursos. cialmente perigoso definirá quais atitu-
do enfrentamento, incluindo o apren- Trata-se de afirmar que um mesmo des preventivas tomará, de quais recur-
dizado com a situação de crise passa- evento estressor terá peso e intensida- sos lançará mão e o sentido que dará a
da, a integração de sua elaboração, seja de difererentes para diferentes pessoas, essa experiência. A autora (4) realizou
pessoal, familiar ou social, e o retorno em diferentes momentos de sua vida. pesquisa com moradores de duas cida-
desse aprendizado à comunidade. Ao Como exemplificou Cyrulnik (2) uma des do nordeste do Brasil, uma delas
definir a resiliência como um proces- criança que perde seus pais, antes dos em área de seca, e investigou o nível de
so, pressupõe-se que existam fatores, seis anos, sofrerá um trauma, mas não percepção de risco sobre a seca para os
mecanismos e variáveis que possam terá um traumatismo para ser elabo- habitantes de ambas. Surpreendente-
contribuir, facilitando ou dificultando rado, uma vez que não possui ainda a mente, a população que não era atingi-
seu desenvolvimento. Tais fatores são capacidade de representação para pos- da pela seca mostrou um nível mais alto
denominados risco e proteção. terior elaboração. E se tiver pessoas que de percepção de risco. Pessoas atingidas
Os fatores de risco são situações, carac- substituam a figura parental e mante- pela seca de forma repetitiva criam me-
terísticas pessoais ou eventos estressores nham com ela uma relação de afeto, ela canismos psicológicos e sociais e apren-
que predispõem as pessoas, famílias ou poderá desenvolver-se plenamente. dem com a experiência parecendo estar
comunidades às crises e desestrutura- Em pesquisas com comunidades, Mc- mais preparadas para lidar com o próxi-
ções, mas, ao mesmo tempo, as convi- Cubbin et al (3) concluíram que as mo evento. Por outro lado, a população
da ao enfrentamento e a responder aos pessoas agem de forma diferente diante que não vivia em situação de seca via
desafios. São essas as oportunidades de um desafio, devido à forma como o a situação como muito mais perigosa,
em que o processo de resiliência pode interpretam. Já Coêlho (4), em estudos influenciada pelas notícias veiculadas
desenvolver-se. Já os fatores de proteção sobre percepção de risco e perigo, afir- na mídia.
são potenciais facilitadores do enfrenta- mou que “a percepção do perigo está O fato de uma determinada situação ou
mento desses desafios, que traduzem-se relacionada aos desastres e é influen- evento ser previsível exerce uma media-

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ção de maior ou menor impacto sobre perdas catastróficas. Essas perdas tam- de adaptação ao sertão. Os resultados
a população. O ser humano tem um bém provocam uma quebra no curso do da pesquisa demonstraram que a visão
tempo para programar-se e estará mais desenvolvimento normal esperado, po- que se tem, de que a convivência do
preparado para absorver seu impacto. dendo ter desdobramentos como a de- nordestino com a estiagem e sua adap-
Assim, podemos dizer que eventos que pressão, suicídio e violência. Os autores tação positiva são condições naturais
ocorrem de forma gradual e previsível (5, pg.3) consideram que após o impacto de vida, faz pensar que a resiliência está
permitem o planejamento, armazena- da tragédia, é importante a reconexão da calcada em sua sobrevivência trazendo
mento de forças e estratégias de enfren- família com seus contatos anteriores de uma imagem do nordestino como resi-
tamento e a reconstrução pós trauma. apoio, tais como parentes, amigos e refe- liente e forte para enfrentar esse tipo de
Desastres e adversidades naturais, pre- rências espirituais, bem como o restabe- intempérie já prevista. Corre-se o risco
vistos ou não, trarão perdas materiais, lecimento de rituais diários. de concluir que o mesmo não necessita
afetivas e sociais, fazendo com que as O apoio mútuo possibilita que as famílias de ajuda dos órgãos públicos governa-
pessoas atingidas passem por um pro- compartilhem suas necessidades e cons- mentais, e que essa situação de miséria
cesso de luto. Ocorre que, juntamente truam juntas, estratégias para buscarem não precisa mudar, afinal, ele é forte,
com esse processo e sua elaboração, elas recursos. O apoio mútuo entre pessoas como um “cabra da peste”.
devem reconstruir suas bases, e não há da própria comunidade é mais útil do
tempo para se fazer uma coisa de cada que o vindo de fora, já que a comunidade Marilza Terezinha Soares de Souza é dou-
vez. Durante o enfrentamento da situa- conhece os recursos que possui e as redes tora em psicologia clínica pela PUC-SP e do-
cente do curso de mestrado em desenvolvi-
ção, há que se avaliar as perdas, priorizar de relacionamento confiáveis. É desejá-
mento humano da Universidade de Taubaté.
necessidades de sobrevivência e manter vel que não haja separação entre a comu-
Email: de_souzamarilza@hotmail.com.
aquilo que não foi perdido. nidade e os profissionais que trabalham
Falar em recuperação e resiliência em si- com esses eventos – como se a primeira
tuações de desastre natural implica em não tivesse nenhuma competência e os
Referências bibliográficas
conceituarmos a resiliência comunitá- segundos detivessem o saber – sugerindo
ria. Landau e Saul (5) definiram a “resi- que ambos compartilhem o trabalho (5). 1. Walsh, F. Strengthening family resilience.
liência da comunidade” como “a capaci- Aos profissionais cabe intervenções The Gilford Press. 1998.
dade da mesma de ter esperança e fé para não somente durante a fase de enfren- 2. Cyrulnik, B. O murmúrio dos fantasmas.
Ed. Martins Fontes. 2005
suportar a maioria dos traumas e perdas, tamento, mas nas posteriores. O psicó-
3. Mccubbin, H.; Thompson, A. I.; Mccubbin,
superar a adversidade e prevalecer, ge- logo, como parte dessa equipe multi-
M.A. Family assessment: resiliency, coping
ralmente com recursos, competência e disciplinar, deve privilegiar a reorgani- and adaptation. University of Wisconsin
união” (pg.2), considerando a família zação da comunidade, seguida pelo seu Publishers. 1996.
como unidade primordial de mudança. empoderamento no compartilhamen- 4. Coêlho, A.E.L. “Percepção de ris­co no con-
Os autores investigaram o impacto do to e busca de recursos, na recuperação e texto da seca: um estudo exploratório”.
ataque às torres gêmeas em Nova York construção de vínculos e na elaboração Psicologia para a América Latina. Ed Ulapsi,
em 2001 nas comunidades do “baixo do sentido da experiência vivida. n.10, julho/2007.

Manhattan”. Os resultados demonstra- Finalmente, faz-se necessário um aler- 5. Landau, J. & Saul, J. “Facilitando a resiliên-
cia da família e da comunidade em respos-
ram que houve um aumento de 31% no ta para as implicações ideológicas que a
ta a grandes desastres”. Pensando Famílias
abuso de drogas após a tragédia, desta- visão de resiliência pode trazer. Figueira
n.4, ano 4, (56-78), pg.3. 2002.
cando que a adição é uma forma de adap- (6) pesquisou a resiliência do nordesti- 6. Figueira, A.A. “A resiliência do cabra da
tação à desorganização, quebra de roti- no – o “cabra da peste” – que enfrenta peste: uma contribuição à promoção de
na e de rituais e da estrutura da família a seca anualmente, adquirindo um co- saúde no sertão nordestino”. [Dissertação
e comunidade, como consequência de nhecimento que pode ser instrumento de mestrado] PUC-SP, 2005.

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