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A ESTOCOCRACIA – Modesta proposta para que o povo da França seja governado de

maneira feliz graças ao estabelecimento de uma seleção política aleatória.

AUTOR: Roger de Sizif (pseudônimo), graduado pela HEC (Hautes Études Commerciales) e
diplomado em Filosofia, faz parte do grupo JALONS, no qual anima e coordena o Cercle
Philosophique d’Action Contemplative. O grupo JALONS dedica-se à produção de críticas,
pastiches e sátiras.

O livro foi publicado em 1998, pela Editora Les Belles Lettres, Paris -- 144 páginas.

Esta é uma tradução condensada, feita por Waldemar de Magalhães Lopes Jr., e expressamente destinada a uma
distribuição não comercial (dezembro de 2009)
ÍNDICE

Prefácio

Um rápido diagnóstico da política nacional

O que fazer?

A estococracia, definição e implementação

Para convencer os últimos céticos e alguns que ainda hesitam

Em busca de uma “exceção francesa” feliz

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PREFÁCIO

A política francesa está em crise... Há um distanciamento entre o povo e os seus eleitos. O


primeiro não mais se reconhece nos segundos, insensíveis às expectativas, esperanças e
preocupações dos eleitores.

Resultados de sondagem publicada no Nouvel Observateur em outubro de 1997:

68% dos entrevistados não confiam nos políticos;


61% não os consideram honestos;
66% não os consideram eficazes;
81% os consideram distanciados.

O problema real é um problema de representação. Os políticos não mais representam os


cidadãos. E é a razão desse livro: apresento um sistema simples, eficaz e agradável que
garante uma representação ótima do povo nas instâncias políticas.

O sistema é a “democracia-loto” ou estococracia.

Simples de aplicar, econômica e convivial, a estococracia permitirá reconciliar a classe política


e os cidadãos. Vai garantir que os deputados darão prioridade aos problemas reais e levarão
em conta as expectativas dos eleitores. Além disso a estocracia permitirá resolver alguns
problemas crônicos como o acúmulo de mandatos e a fraca participação das mulheres no poder
político.

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UM RÁPIDO DIAGNÓSTICO DA POLÍTICA NACIONAL

A política está a serviço de quem?

Originalmente a vocação do homem político era servir a coletividade. A famosa divisa


norteamericana: “from the people, by the people, for the people”.

Na França atual os políticos não vêm do povo, não são escolhidos pelo povo e não mais
trabalham para o povo. (Não se está falando dos vereadores ou prefeitos das pequenas
cidades, mas sim daqueles que buscam projeção nacional e veem no cargo público apenas um
degrau para se eleger). Esse tipo de político emana de uma casta particular, é eleito graças a
seu partido e dedica o essencial do seu esforço ao partido.

O sistema que faz emergir tais políticos não é democrático. E, pior, é tão sólido que afasta da
política os cidadãos que, desarmados e resignados, são forçados a sofrer passivamente as
conseqüências. Donde o distanciamento mencionado acima.

Os homens públicos já não têm origem no povo

Predominam nos altos postos do governo os graduados da ENA (École Nationale


d’Administration) e das escolas de Ciência Política e de Direito. Isso não reflete a média
nacional. A distorção é ainda maior se tomarmos um grupo menor , constituído pelos políticos
mais notáveis.

O homem político atual, seja de esquerda, centro ou da direita, tende a seguir um caminho
previsível. Normalmente provém de família razoavelmente rica e bem situada socialmente.
Depois de completar o curso secundário (numa escola de renome), faz o curso de Ciência
Política ou de Direito e, finalmente, o curso da ENA.

Essa formação especializada tem três conseqüências:

A – garante um produto acabado padronizado (uma série de concursos e exames permite


selecionar os indivíduos mais de acordo com o modelo desejado);
B – cria um formidável espírito corporativo, ou de casta (pertencendo ao mesmo grupo social,
freqüentando as mesmas escolas, os políticos às vezes se conhecem desde crianças);
C – não expõe o futuro político ao mundo real (a sua origem social e a natureza dos seus
estudos o mantêm distante do vulgo, sendo evitadas cuidadosamente as poucas ocasiões de
conviver com o povo).

Se a elite da classe política pouco tem a ver com o povo, também os deputados são pouco
representativos, como se pode ver na Assembléia Nacional eleita em 1997: 20,1% são
professores, 5,7% empresários e 0,9% são operários. Ora, os operários constituem 28%, os
empresários são menos de 1% e os professores são 1,7% da população francesa.

Ao ganhar uma eleição, quem é do setor privado perde o emprego; se não for reeleito estará
desempregado. Os mandatos eleitorais são seguros apenas para os que estatutariamente
podem ter o emprego de volta caso não se reelejam: funcionários públicos são 52% da

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Assembléia Nacional. Somando-se mais 21% de profissionais liberais e 6% de empresários
resta relativamente pouco espaço na Assembléia para operários, estudantes, comerciários e
trabalhadores em geral.

A classe política francesa é constituída por indivíduos nem mais nem menos simpáticos,
honestos ou generosos que os demais. Mas, certamente não são representativos do povo para
o qual se supõe que eles trabalhem.

Os homens públicos não mais são escolhidos pelo povo

A política se profissionalizou. Para a atual raça de políticos a política não é uma vocação e sim
um negócio, uma atividade profissional. O político em relação ao seu partido é comparável ao
executivo dentro da grande empresa.

Um partido político é um grupo organizado de homens reunidos para conquistar e conservar o


poder empregando preferencialmente os meios legais. Eles se apóiam mutuamente e, uma vez
no topo, vão agir prioritariamente pelo bem do partido e de seus membros por meio de
comissões, cargos e favores. As ideias não têm nenhuma utilidade real para o político: o que
realmente conta é a fidelidade ao partido.

O mecanismo, então, é simples: os partidos dão legitimidade aos políticos e recebem, em troca,
poder e lucros. O caixa do partido é beneficiado pelas obras e empreendimentos aprovados
pelos políticos.

Os partidos franceses tradicionalmente controlam distritos e municipalidades onde podem


contar com vitória. Acompanham as opiniões em voga e cultivam um maniqueísmo definitivo
com relação aos assuntos principais (integração dos imigrantes, seguro social) e assim
garantem a fidelidade dos eleitores.

Quando chegam ao poder os partidos procuram mudar a “geografia eleitoral”, reformatando os


distritos a seu favor. Sem falar em casos de fraude.

Ao indicar um candidato o partido praticamente assegura a sua eleição. O político sem apoio
do partido dificilmente se elege. Um deputado, desde que apoiado pelo partido, pouco tem a
temer do eleitorado ainda que esteja envolvido em mutretas. Nas eleições de 1993 vários
deputados foram reeleitos sem dificuldade, apesar de comprometidos em negócios mal
explicados. Nas últimas eleições municipais cinqüenta candidatos a reeleição puderam fazer
campanha apesar de terem a gestão investigada: com o apoio dos partidos quarenta e oito
foram reeleitos (um deles fez campanha na cadeia).

Para o político é muito mais importante ter o apoio do partido do que a estima dos seus
concidadãos. Já se vê que não são mais os cidadãos que fazem os eleitos: os políticos são
eleitos pelo povo de maneira apenas formal.

Os homens públicos não trabalham mais para o povo

Os políticos preferem trabalhar para o partido, o que é fácil de entender.

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Dentro do partido o político participa de trabalhos de comissões e de debates que lhe permitem
chegar ao topo da estrutura e, a partir daí, lutar pelos degraus mais altos do poder. Isso
significa participar de reuniões, encontros e telefonar muito, o que praticamente esgota a
semana de trabalho.

Além disso, o político tem que cuidar de sua imagem e de sua notoriedade: é obrigado a
encontros regulares com jornalistas, a participar de debates, solenidades e eventos públicos
com cobertura da imprensa e, se possível, da TV.

Há que considerar ainda o tempo em encontros e tratativas necessários para alimentar o caixa
do partido. E, também, como os emolumentos pagos pela República são pequenos, muitos têm
mandatos múltiplos (NT: a França permite mandatos simultâneos) acumulando remunerações,
para manter o trem de vida como político. Esse procedimento aumenta suas responsabilidades
e importância dentro do partido, mas aumenta a carga de trabalho e os deslocamentos.

Portanto não sobra tempo ao político para cuidar dos eleitores. E, ademais, ele não gostaria de
dedicar muito tempo ao seu distrito porque os eleitores são principalmente uma fonte de
problemas (exceto inaugurações de creche ou hospital, festa do 14 de julho, homenagens com
coquetel, e outras oportunidades em que ele pode beijar bebês, apertar mãos e conversar com
os grandes apoiadores do partido).

Assim, o político moderno sabe que o seu dever e interesse são ditados pelo partido, que tudo
pode, e não pelo eleitor, que pouco pode fazer. Essa fidelidade ao partido é prejudicial ao
país: um bom ministro torna-se alvo preferencial para os partidos contrários ao passo que um
ministro incompetente é um bom pretexto para críticas e contestações dos adversários, que
preferem preservá-lo. Mais uma vez é a preocupação com o interesse do partido que se
sobrepõe ao bem público.

Certamente um ministro ou secretário de Estado trabalha para os eleitores (normalmente um


projeto de lei ou uma lei que vai se ligar ao seu nome). Mas essa lei ou projeto tem a benção,
ou inspiração, do chefe do partido – o interesse do partido vem antes do interesse dos eleitores.
E mais, a sua implementação demandará obras e serviços que provavelmente beneficiarão os
grandes apoiadores do partido.

O ministro usa também o seu poder para ampliar a influência do seu partido, nomeando
simpatizantes para postos-chave do governo e das empresas que dependem dele, ministro.

Desde tempos imemoriais cada ministério francês é de propriedade de algum lobby ou grupo
corporativo. Isso é possível por duas razões. Primeiro, um político que assume um ministério
usualmente desconhece 90% dos assuntos que deverá tratar, tendo que se apoiar nos quadros
de carreira (que têm agenda e interesses próprios). A segunda razão para o poder dos grupos e
lobbies é a falta de tempo: os políticos têm que dedicar ao seu partido e à sua carreira o
essencial de suas jornadas de trabalho -- não têm tempo para detalhes de sua própria
administração.

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Sob outro aspecto um político novato em assuntos do seu ministério é também um homem que
se considera mais bem dotado que a média. Ele tem horror a demonstrar sua ignorância e
raramente vai se rebaixar ao ponto de pedir explicações.

Ocorre ainda que certos ministros cursaram as mesmas escolas ou fizeram parte das mesmas
corporações que administram. Nessas condições o ministro evidentemente compartilha os
mesmos pressupostos e interesses de sua corporação, interesses que ele servirá fielmente,
logo após os de seu partido.

Um outro problema é a endogamia, ou seja, ministros nomeiam os dirigentes de empresas


estatais que fazem parte de seu ministério: o controle teoricamente exercido pela
administração se traduz em total complacência. Foi assim que os inspetores financeiros do
Ministério das Finanças jamais ousaram fazer críticas à gestão dos inspetores financeiros na
direção do Crédit Lyonnais -- não seria polido! Tal polidez vai custar 200 bilhões de francos aos
contribuintes.

Em última análise, eleito ou nomeado ministro, o político moderno só trabalha para o povo na
medida em que isso não contraria os outros interesses que deve servir.

A conseqüência: políticos desligados da vida real

Confiscada pelos partidos, a política funciona em circuito fechado, com a influência dos
cidadãos reduzida ao mínimo. O povo não mais está representado na classe política.

O mais grave é que todos estão conscientes deste fato. Os cidadãos, entendendo que o
sistema lhes escapou, ou votam menos (abstenção crescente) ou se refugiam nas posições
extremas, de direita ou de esquerda.

Os políticos -- que não são nem mais bobos, nem mais cínicos, nem mais irresponsáveis que a
média – estão perplexos e inquietos com a impopularidade e antipatia de que são alvo. Apesar
disso, tolhidos pela lógica dos partidos, eles não entendem o quanto a sua própria atitude é
chocante: por exemplo, diversos políticos acusados de corrupção se defenderam dizendo que
os seus atos eram em benefício do partido, o que desculpava tudo.

E mais, vivendo em circuito fechado, os deputados profissionais acabam por constituir uma
estrutura corporativista que defende seus membros em qualquer situação. Cegos pela
habitualidade, pela impunidade e pela endogamia, os políticos são vítimas de um determinismo
pelo qual já não mais são responsáveis.

Portanto, não é dos homens que vem o mal: chegou a hora de reformar o sistema.

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O QUE FAZER?

O diagnóstico parece severo mas é justo. Com ele podemos perceber melhor as condições que
deve satisfazer um sistema eleitoral que nos permita sair da crise em que estamos atolados.

O primeiro problema, e o mais urgente, é a dominação dos partidos sobre a vida política
francesa. Uma solução radical para sanear a situação seria a de suprimir os partidos políticos,
o que é utópico. Melhor é procurar uma maneira de torná-los inúteis ou inócuos, tornando
imprevisível até o último minuto o resultado das competições eleitorais.

Segundo problema, ligado ao primeiro: a má representatividade de nossas assembléias,


especialmente a Câmara dos Deputados. Precisamos de um sistema que estenda o
recrutamento de homens públicos a todas as camadas da população, de modo que a classe
política francesa reflita a diversidade sócio-cultural do país.

Terceiro problema: a profissionalização da política. Não desagradar ao partido, aos colegas e


aos eleitores é necessário para manter as vantagens do mandato e perpetuá-lo, pela reeleição.
Devemos buscar um sistema eleitoral que impeça os eleitos de exercer mais de dois
mandatos ao longo de sua vida.

Quarto problema: a tendência dos políticos de se desligarem dos eleitores. No sistema ideal a
escuta dos eleitores e a satisfação de suas expectativas deveriam ser uma preocupação
permanente para o eleito, a coisa mais importante para ele.

Quinto problema: a falta de transparência dos processos eleitorais. Para voltar às fontes da
democracia precisamos de um sistema em que a maneira de indicação dos eleitos se
imponha a todos por sua objetividade evidente e sua transparência rigorosa.

Enfim, para satisfazer a todos, nosso sistema deveria reconciliar os franceses com a política.
Ou seja, que cada eleição tenha participação próxima de 100% do eleitorado e que seja
acompanhada atentamente por todos. O sistema deve ser simples, de baixo custo e fácil de
entender. Respeitadas essas condições, ainda que minimamente, teremos restabelecido uma
democracia de verdade, saída do povo, escolhida pelo povo e gerida pelo povo.

Esse sistema ideal existe e eu lhe dei o nome de estococracia.

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A ESTOCOCRACIA, DEFINIÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO

Estococracia – do grego “kratein” (dirigir) e “stokhastikos” (conjectural, aleatório) – designa o


modo de governo em que os dirigentes são escolhidos ao acaso, ou mais exatamente, por
sorteio.

A idéia é muito simples: basta aplicar à lista de eleitores o método de sorteio utilizado pelos
institutos de pesquisa para compor o que eles chamam de “amostra representativa” da
população francesa. Em outras palavras, em vez de campanhas e eleições caras, basta fazer,
em cada distrito ou circunscrição, um sorteio entre os cidadãos relacionados nas listas
eleitorais.

Essa operação teria lugar para as eleições legislativas, departamentais, cantonais ou


municipais, com a mesma freqüência de hoje. O sorteio seria feito nas mesmas condições de
seriedade, solenidade e segurança das loterias, sob controle oficial.

O mandato do eleito teria a duração normal de hoje, cinco anos para um deputado, seis anos
para um prefeito; uma segunda rodada sortearia os suplentes. Durante o seu mandato o eleito
cessaria todas as suas atividades profissionais para dedicar-se integralmente ao trabalho como
representante – assumiria todas as responsabilidades e obrigações inerentes e se beneficiaria
de todas as vantagens ligadas ao cargo (com algumas pequenas exceções que serão
explicadas adiante).

O sorteio, feito simultaneamente em todos os distritos e circunscrições, comporia uma


Assembléia inteiramente designada pelo acaso e, de acordo com o teorema matemático a “lei
dos grandes números”, perfeitamente representativa da população francesa autorizada a votar.

Implementação

As eleições legislativas como exemplo para que se compreenda bem o sistema e suas
vantagens, salientando o sorteio, a residência e a remuneração dos candidatos, e alguns
aspectos políticos.

 Sorteio

Será feito de modo mecânico, como nas loterias. As listas de eleitores serão revisadas
previamente (em especial nos dois departamentos da Córsega, para evitar eleger defuntos).

Se quiser, o cidadão poderá ter o nome suprimido da lista eleitoral, mediante justificativa e o
pagamento de uma taxa de 500 F Tal precaução é para eliminar os cidadãos realmente sem
vontade ou motivação para o sorteio, sem prejuízo para a amostra da qual serão escolhidos os
eleitos.

O eleito, caso se recuse a assumir o trabalho e as responsabilidades inerentes ao cargo, ficará


preso por um período igual ao do mandato recusado.

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Durante o mandato o eleito será considerado como desligado temporariamente do seu trabalho,
cabendo ao Estado pagar o seu salário e encargos. O empregador do eleito terá simplesmente
que recontratá-lo ao final do mandato, com cargo e salário pelo menos um grau acima do que
tinha anteriormente.

 Local de residência

Enquanto durar o mandato o eleito terá a obrigação de residir na mesma região, departamento,
cidade e distrito onde ele foi sorteado. Ele deverá garantir um mínimo de presença local de 4
dias por semana (week-ends incluídos). As férias serão de 5 semanas, podendo ser
fracionadas.

O trem de vida do eleito não vai se alterar, excetuadas as facilidades indispensáveis ao seu
trabalho (viagens gratuitas em TGV ou avião entre o seu distrito e Paris, roupas formais,
secretária parlamentar, assinaturas gratuitas de jornais e revistas, etc). Permanece na sua
casa, com o seu carro, seus móveis, sua mulher (ou marido); continua pagando a assinatura da
TV a cabo e multas de trânsito, enfrentando engarrafamentos e atrasos nos transportes.

O objetivo desse dispositivo é manter o eleito em condições ótimas de representatividade e de


imersão na realidade do dia-a-dia. Ficará preservada a representatividade estatística obtida
pelo sistema de sorteio. Também elimina o sentimento de ele se considerar melhor que os
demais, já que ao final do mandato o eleito volta à sua situação anterior ao sorteio, convivendo
com as mesmas pessoas e amigos.

A estococracia revoluciona as relações entre cidadãos e políticos. A perspectiva do pós-


mandato e o temor de se defrontar com um grande número de descontentes levarão os eleitos
a ficarem sempre atentos às aspirações populares.

 Remuneração dos eleitos

Para obter o mandato o eleito não teve que fazer nenhum esforço particular ou sacrifício
notável, razão pela qual ele não deve ter lucro. Então, além das vantagens inerentes ao cargo,
mencionadas acima, o eleito receberá do Estado o mesmo que recebia antes de ser eleito, com
um acréscimo de 12%. O salário será revisado anualmente e ajustado em função do aumento
do custo de vida. Como vantagem adicional do sistema, os eleitos se empenharão em que o
INSEE calcule exatamente a taxa de correção.

O procedimento proposto é razoável porque:

1. Ao final do mandato os eleitos voltarão ao seu emprego e salário anteriores. Portanto eles
não devem ter remuneração desproporcional ao que eles terão de volta à vida de cidadão, sob
pena de se ter terríveis dramas humanos e familiares ao fim o mandato;
2. Uma das funções da democracia-loto é dar à França uma Assembléia nacional
representativa. Essa representatividade, por definição um conjunto de diferenças, seria
eliminada se as remunerações fossem niveladas. (A França tem pobres e ricos, os primeiros
com inveja dos segundos, os segundos desprezando os primeiros. É bom que esse
antagonismo, existente no “mundo real” , seja mantido na Assembléia);

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3. Os eleitos não precisam de renda superior à que eles tinham antes da eleição, pois deverão
manter o mesmo trem de vida anterior ao sorteio. Qualquer pagamento além do proposto deve
ser considerado como desperdício de recursos públicos.

O caso das outras assembléias

O mesmo método será utilizado nas eleições regionais, cantonais e senatoriais. No caso do
Senado o sorteio se fará a partir da lista dos que já foram eleitos (deputados, conselheiros
gerais e regionais, prefeitos e vereadores) em cada distrito, que contêm cerca de 300.000
pessoas, quantidade suficiente para uma boa representatividade estatística no Senado (320
cadeiras). Assim os senadores já terão alguma experiência prática da vida política. É claro que
os mandatos daqueles escolhidos para o Senado serão preenchidos pelos suplentes
respectivos.

As assembléias funcionarão como prevê a constituição: elegem um presidente, fazem debates,


votam e assim por diante. A única diferença é que o representante votará de acordo com sua
convicção e consciência, sem preocupação com partido ou disciplina partidária.

Pode-se imaginar que alguns eleitos poderão reunir um grupo em torno de si, um embrião de
partido. Isso é pouco provável porque os eleitos deverão passar 4 dias por semana no seu
distrito e não haverá muito tempo para criar vínculos e lealdades. E, por outro lado, seria muito
esforço para pouco resultado já que ao final do mandato o representante voltará à atividade e à
vida que tinha antes de ser eleito. Melhor que ele cuide dos interesses dos seus
representados.

No caso das eleições européias, em vez de enviar ao Parlamento Europeu políticos dos
partidos atuais, a democracia-loto sortearia 87 cidadãos que comporiam o partido francês.

Eleições municipais e presidenciais

É altamente improvável que o sorteio numa população numerosa eleja só malandros ou


cretinos. Estatisticamente o sorteio de 577 deputados deverá resultar numa amostra razoável
da população francesa. E a grande freqüência das eleições permitirá corrigir eventuais
desacertos.

A situação é diferente no caso da eleição não de uma assembléia, mas de uma só pessoa,
como prefeitos de pequenas cidades e o presidente da República. O sorteio de um
incompetente ou de um crápula precisa ser evitado. Donde ser necessário, para essas
exceções, modificar o sistema estocrático.

 Eleições municipais

Nas cidades maiores, com 40 ou mais vereadores, o sorteio é estatisticamente válido para se
compor a câmara. Após 6 a 8 semanas de funcionamento os vereadores elegerão, dentre eles,
o prefeito.

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Ao contrário, nas cidades menores a eleição dos vereadores será como atualmente, a partir de
uma lista. O candidato deverá ser legalmente elegível, ter ali sua residência principal e nela
morar 250 dias por ano, ter seu local de trabalho no máximo a 30 km de distância e ser
conhecido por pelo menos 30 pessoas da cidade (excluídos familiares e agregados). Prefeitos
e vereadores assim eleitos ficarão fora dos sorteios para o Senado.

 Eleição presidencial

O cargo exige competência, experiência e motivação. Cuidados especiais devem cercar a sua
escolha, a ser feita estocraticamente, como se mostra a seguir.

A eleição será controlada por um órgão independente, CSEP (Comissão Superior para a
Eleição Presidencial). Seis meses antes da eleição presidencial poderão candidatar-se os
“eleitos das diversas categorias” (deputados, senadores, conselheiros, deputados europeus,
prefeitos e vereadores de cidades com mais de 40.000 habitantes).

Dependendo do cargo que ocupam os candidatos já terão exercido suas funções durante algum
tempo, tendo condições de avaliar o trabalho político, a responsabilidade e sua própria
competência. Os candidatos poderão desistir até o último minuto.

Depois de fechada, a lista dos candidatos será publicada e comunicada a todos os “eleitos das
diversas categorias”. Cada um deles deverá fazer uma lista de até 15 nomes e encaminhá-la à
CSEP. A partir dessas listas a CSEP fará uma lista dos 15 nomes propostos com mais
freqüência.

Pode-se admitir que, assim composta, essa lista terá os nomes das pessoas com inteligência,
competência e moralidade pelos menos aceitáveis, já que terão sido julgados pela maioria de
seus companheiros eleitos. O nome do novo presidente (ou presidenta) será sorteado entre os
quinze figurantes da lista final. E, em seguida, a CSEP sorteará o nome do primeiro ministro.

O processo dura 6 meses, com o importante detalhe que o presidente é eleito um ano antes do
fim do mandato do presidente em função. Durante um ano o presidente eleito fará um estágio
junto de seu predecessor: sem interferir, ele conhecerá todos os aspectos. Esse ano será
também um período de formação pessoal: cursos de línguas, informática, direito público,
estratégia militar, geografia, história ( e também de boas maneiras ...). O futuro presidente
receberá então um verniz de cultura indispensável para bem representar a França e o
conhecimento necessário para arbitrar eventuais conflitos entre os seus ministros.

O mesmo procedimento de estágio será aplicado ao futuro primeiro ministro.

Durante o estágio, como presidente e primeiro ministro, ambos terão habitação, benefícios e
vantagens do cargo assegurados pelo Estado. Ao fim do mandato os seus patrões anteriores
deverão recontratá-los. Cabe à imprensa e aos amigos do presidente cuidar para que ele não
tenha lucro ou vantagens por beneficiar o seu antigo (e futuro) patrão.

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O governo: formação e funcionamento

Exceto a nomeação do primeiro ministro, por sorteio, o presidente governará de acordo com a
Constituição. O presidente nomeará os ministros e secretários de Estado propostos pelo
primeiro ministro.

Todos eles terão de ser obrigatoriamente escolhidos entre os “eleitos estocráticos”. Na prática
se fará o que fazem as empresas ao contratar executivos: leitura de CV’s, entrevistas, “head
hunting” e o que mais for necessário para preencher corretamente o perfil de cada cargo.
Talvez não se consiga homens mais competentes que os do sistema atual mas, pelo menos,
eles terão sido nomeado em bases racionais.

Deve se lembrar apenas de não nomear para os ministérios ou empresas do governo pessoas
cujos interesses coincidam exageradamente com os dos órgãos que eles vão dirigir (por
exemplo um professor para o ministério da educação, um militar de carreira para o ministério da
defesa, ...) – cabe ao primeiro ministro zelar pelo equilíbrio entre competência e tentação.

O presidente e o primeiro ministro terão mandato fixo de 6 anos (mais um ano de estágio). Os
outros ministros deixarão os cargos ao fim o mandato para o qual foram originalmente eleitos.

Como se vê, o funcionamento da estococracia é simples, econômico, fácil de entender. E tem


outras vantagens sobre o sistema atual de eleição.

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VANTAGENS DO SISTEMA ESTOCRÁTICO

A estococracia permite o retorno à democracia real

A essência da democracia pode se resumir na fórmula “do povo, pelo povo, para o povo”. Já
vimos que o sistema ideal deveria:

- tornar imprevisível o resultado das eleições, fazendo desaparecer os partidos políticos;


- possibilitar uma representação real do país nas assembléias;
- acabar com a profissionalização da política;
- forçar os eleitos a estarem permanentemente na escuta dos seus administrados;
- impor-se a todos pela transparência do processo.

É fácil constatar que a democracia-loto satisfaz a todas essas condições.

 O fim da ditadura dos partidos

Um partido só pode funcionar num sistema de competição, e não num sistema aleatório. A
estococracia então elimina arranjos por baixo do pano, financiamentos ocultos, falsos
comprovantes de despesas, eleitores fantasmas, compra de votos, clientelismo.

As assembléias tratarão dos problemas de modo objetivo e não em função de clivagens


artificiais ou pseudo-ideológicas. Não se verá mais deputados votando contra medidas que
eles consideram boas e desejáveis, mas que rejeitam por emanarem do partido contrário.
Ninguém terá que votar contra suas convicções devido a acordo com o governo para ganhar
uma eleição.

É o fim da bipolarização artificial de nossa vida política. E, também importante, o fim dos
partidos permitirá economizar o que o governo desembolsa para financiar as campanhas (cerca
de 520 milhões de francos por ano).

 Uma representatividade real dos eleitos

É garantida pela própria estatística. Quando se sorteia de 300 a 600 nomes para assembléias
(caso do Senado ou da Câmara dos Deputados) tem-se a representatividade ipso facto.
Proprietários, estudantes, executivos, donas de casa, desempregados, jovens e velhos,
homens e mulheres, funcionários,... serão representados proporcionalmente ao seu peso
específico na população. E, tendo desaparecido os partidos, cada um dos eleitos poderá emitir
sua opinião verdadeira.

Além disso a estococracia permite acabar com o velho debate entre eleição proporcional e
eleição majoritária pois as assembléias serão perfeitamente representativas. É simples e
democrático.

 O fim da política profissional

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O político se dedica de corpo e alma ao partido, satisfazendo assim seus interesses pessoais e
um maior ou menor gosto patológico pelo poder. O fim dos partidos é um golpe fatal em tais
práticas.

Estatisticamente, é ínfima a probabilidade de uma mesma pessoa ser sorteada mais de uma
vez. O problema de mandatos acumulados desaparece. E a própria noção de carreira política
passa a ser absurda. Para se garantir, cada um deverá exercer um trabalho ou profissão, antes
e depois do mandato: aí está uma vantagem importante já que a maioria dos eleitos terá tido
uma experiência de trabalho real.

 A moralização da vida política

Se não for possível renovar o mandato nenhum político poderá se tornar particularmente
poderoso e se considerar acima da lei. Os funcionários do próprio judiciário atualmente se
preocupam em não desagradar um político ou partido importante, que poderá prejudicar suas
carreiras.

Com a estococracia policiais, juízes e magistrados não terão medo de tratar os eleitos como
tratam os cidadãos comuns e nenhum interesse em “engavetar” os processos. Por outro lado,
os eleitos terão plena consciência da transitoriedade de seu cargo, ficando menos expostos às
tentações de alguém convicto de sua impunidade.

A própria imprensa não será submetida a pressões ilegítimas e terá mais tempo para investigar
a cena política. A honestidade dos eleitos será então decuplicada pela vigilância das mídia,
garantindo uma vida política sadia e límpida.

 Os eleitos ouvindo os seus administrados

Os eleitos terão que ficar 4 dias por semana no seu distrito, vivendo em circunstâncias e
condições similares às dos demais cidadãos. Estarão imersos na vida real, junto com sua
família, amigos e vizinhos. Sentirão diretamente os efeitos das leis ou medidas que aprovarem.

E, sempre é bom lembrar, ao fim do mandato retornarão à situação que tinham antes de serem
eleitos.

Na estococracia os eleitos têm excelentes motivos para ficarem atentos às aspirações dos
demais cidadãos.

 Um sistema transparente e indiscutível

O sistema atual freqüentemente dá origem a contestações, reclamações amargas e recursos ao


Conselho de Estado. Tudo serve de pretexto: gastos excessivos na campanha, propaganda
injuriosa, etc.

Já a Loto nunca sofreu qualquer protesto ou contestação por uma razão simples: o sistema da
Loto é igualitário e isso basta em nosso país. Os franceses aceitam de boa vontade o fato de
não ganhar na Loto por que sabem que poderiam ter ganhado.

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A democracia-loto, então, é o sistema mais adequado a nosso país: é o único sistema em que
todo eleitor, independente de seu físico e de suas aptidões, tem uma chance de ser eleito e,
sobretudo, a mesma chance que têm todos os demais.

Vimos que os responsáveis políticos realmente vêm do povo, vivem sob o controle do povo e
trabalham para o povo. Além de ser o sistema ideal a estococracia tem outras vantagens.

A estococracia reconcilia o povo francês com a política

 Eleições lúdicas e simpáticas

É pouco dizer que os franceses se desinteressam pela política: eles a evitam. Os debates têm
audiência cada vez menor e o absenteísmo aumenta. Os dias de eleição trazem também
frustração, tristeza e até raiva para muitos que viram o seu candidato perder.

A estococracia não mais terá luta entre partidos, com um vencedor e um perdedor; terá
espetáculos populares, televisados, acabando com a tristeza e desapontamento de um
candidato derrotado. A audiência será muito grande, pois todos têm chance de ser eleitos. O
público vai se interessar pelas imagens, nomes e biografias dos eleitos – todos eles
vencedores.

A cobertura das eleições será feita pelas redes oficiais de TV, que terão aumentadas suas
receitas publicitárias.

 A política, fenômeno da sociedade

A possibilidade de qualquer eleitor ser eleito reacende o interesse a população pela política. A
estococracia, pode-se ver, é uma espiral virtuosa.

 Cidadãos sem medo da política

Com uma melhor cultura política os franceses poderão melhor avaliar o desempenho dos
governantes. Desaparece o temor que inspiravam as funções e os cargos políticos; os eleitores
estarão mais maduros e responsáveis, em condições de julgar os méritos ou deficiências dos
dirigentes.

E os eleitos, por sua vez, sem a perspectiva de fazer carreira política, terão uma forte
motivação para bem aproveitar a duração (curta) do mandato realizando um trabalho eficaz e
exemplar.

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PARA CONVENCER OS ÚLTIMOS CÉTICOS E ALGUNS QUE AINDA HESITAM

O sistema foi exposto a amigos e parentes que reagiram com entusiasmo mas apresentaram
algumas objeções.

A primeira dúvida é quanto ao custo dos sorteios na modalidade da Loto (pequenas bolas
numeradas dentro de uma esfera de plexiglass): o investimento é modesto face ao orçamento
nacional e a fabricação e operação dos equipamentos criará uma nova fonte de emprego em
algumas PME. NT – Aqui no Brasil, a tecnologia deste tipo de sorteios já está bem
estabelecida nas diversas modalidades de loteria exploradas pelo governo, e tem a confiança
da população .

A segunda objeção é que o sistema pode contrariar os gostos e aspirações de alguns dos
eleitores. No caso de quem realmente não pretende correr o risco de ser eleito está previsto
que, mediante o pagamento de uma taxa, o cidadão poderá retirar o seu nome da lista eleitoral.
Mas, por outro lado, foi observado que o militantismo político às vezes é, para indivíduos com
dificuldades psicológicas ou afetivas, uma maneira de fugir de seus problemas. A estococracia
seria então prejudicial à saúde dessas pessoas? Ou, numa visão mais ampla, qual será o
futuro dos militantes?

Observemos, contudo, que os militantes já são uma espécie em extinção. Pouca ou nenhuma
chance têm de progredir dentro partido e de serem eleitos – as posições são mantidas: os
hierarcas no topo e os militantes na base. Os militantes terão mais chance de serem eleitos no
sistema estococrático do que no sistema atual.

Outra objeção é que a estococracia representaria a morte da cidadania: não caberia ao


cidadão candidatar-se nem votar no seu candidato; ele não teria como defender suas idéias.
Ora, a objeção não procede já que, na estococracia, todo cidadão é candidato pelo simples fato
de estar registrado nas listas eleitorais. Ainda melhor: qualquer cidadão, se não for um
“enarca”, funcionário público ou membro de uma família abastada, terá mais chance de ser
eleito do que no sistema atual.

Quanto à defesa de suas idéias, quem leva a sério que na França atual o cidadão exerce sua
influência na escolha de um determinado candidato? Na verdade o eleitor apenas valida as
escolhas feitas previamente pelos diversos partidos. Os franceses sabem disso: pesquisa
recente (outubro de 1997) apurou que 65% dos consultados afirmavam que “a democracia
realmente não funciona; o povo está excluído do processo de decisão”; outra pesquisa do
mesmo período mostrou que 52% dos ouvidos viam nos partidos políticos “um instrumento de
confisco da democracia pelos profissionais da política”.

A estococracia prevê a imersão dos eleitos entre os cidadãos comuns que terão certamente
maiores oportunidades da expor e debater suas idéias com os seus representantes. E o eleito,
sabendo que voltará à condição de cidadão comum ao fim do mandato, terá sua capacidade de
escuta ampliada. É o triunfo da democracia direta.

Algumas pessoas, céticas sobre a estococracia mas desejando ver reestabelecida a


democracia direta, propõem a adoção do plebiscito, como se pratica na Suíça ou na Califórnia.

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É uma ideia sedutora, mas não resiste a um exame sério: pode funcionar em territórios
pequenos sob a condição de que as perguntas sejam simples (tipo SIM ou NÃO) e sua
realização não seja freqüente. Uma democracia direta de verdade exigiria a consulta sobre
tantos assuntos que plebiscitos teriam que ocorrer a cada quinze dias, situação nada boa para
o cidadão. E quem formularia as perguntas? Um grupo de “sábios” dos diversos partidos? De
toda forma não se acaba com a ditadura os partidos e o sistema de referendo pode resultar em
novo confisco das decisões: as perguntas formuladas apenas serviriam de pretexto para o
governo, naquilo que lhe interessa, obter a aprovação dos cidadãos.

Outras pessoas preocupam-se com o fim da discussão e dos debates sobre questões políticas.
Mas, na realidade atual, vivemos só a aparência de debate democrático. A superficialidade da
mídia, especialmente a televisão, impede a discussão em profundidade de qualquer assunto.
Os parlamentares votam com base em acordos, tácitos ou não, entre os partidos e procuram
se esquivar dos assuntos que realmente preocupam os cidadãos. E a oposição é sempre
contra, não entrando no mérito das questões. E, na maior parte do tempo os parlamentos estão
vazios, com um deputado votando pelos demais do seu partido: por exemplo, à sessão mais
importante em 1997 do Parlamento Europeu em Estrasburgo estavam presentes apenas 21 dos
626 eurodeputados. Na estococracia, tendo desaparecido os partidos, cada eleito representa a
si e aos seus representados, prevalecendo sua sensibilidade e suas opiniões. Os
parlamentares encontrarão o seu papel legítimo e o debate voltará às assembléias.

E há quem fique desconfortável com a possibilidade de se ter eleitos totalmente incompetentes.


Esse risco é inerente ao sistema, mas é bom lembrar que a democracia-loto se aplica às
assembléias e é praticamente impossível que a sorte (ou o azar) aponte somente para os
incapazes: o próprio número de parlamentares nas assembléias corrigirá eventuais sorteios
infelizes. Alíás, é assim que funciona o sistema atual pois os deputados incompetentes passam
quase despercebidos no conjunto de seus colegas.

Resta o caso das eleições de indivíduos, a exemplo da Presidência. Já se viu que um sistema
de filtragem prévia garantirá um mínimo de qualidades e a seleção de ministros terá cuidados e
procedimentos próprios. Em suma, a sorte manterá o número de incompetentes abaixo do
nível tolerável e as modalidades do sistema impedirão a eleição de incompetentes onde não for
possível contar com a sorte.

Existe ainda o temor que, tendo-se ministros sem experiência política os altos funcionários
(quadro permanente) aumentem seu domínio sobre o governo. Isso não deve ocorrer porque
na estococracia, pelo jogo estatístico, as assembléias passarão a ter um número ínfimo de
representantes ligados de alguma forma à ENA. Os “enarcas” perderão a dominação que têm
sobre a vida política francesa; em contrapartida retornarão à função de administradores
públicos, incumbidos de por em prática as políticas decididas pelo governo.

Já se viu anteriormente que na estococracia desaparecem ou se atenuam as três causas que


levam os políticos a se deixar conduzir pelos altos funcionários: corporativismo (os “enarcas”,
se eleitos, serão em número muito pequeno); os políticos têm que dedicar quase todo o seu
tempo a assuntos de interesse do partido (os partidos terão desaparecido); vaidade em não
mostrar ignorância sobre os assuntos que deveria conhecer (os eleitos por sorteio têm todas as
razões para, humildemente, pedir explicações claras sobre aquilo que desconheciam até então)

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– um homem comum cônscio de suas limitações é menos prejudicial que um “expert”
convencido de que sabe tudo.

A estococracia, então, coloca a administração pública sob controle, em benefício dos eleitos e
de ministros que provêm do mundo real. O sistema dessacraliza efetivamente a política,
invertendo a relação entre dirigidos e dirigentes: o político volta a ser o servidor do povo. e a
república passa a ser a res publica, ou seja, a coisa de todos.

E vou mais longe, a estococracia pode ser a única forma de salvar a República. Um número
crescente de cidadãos -- decepcionados com a classe política e frustrados por que suas
carências não são satisfeitas e nem mesmo enunciadas – é tentado pelos extremismos. Donde
se ter uma verdadeira aporia: como lutar democraticamente contra um partido anti-democrático
que vem atraindo cada vez mais eleitores? É razoável deformar a democracia no sentido de
defendê-la? A estococracia traz uma resposta pragmática e eficaz para tais perguntas;
primeiro, dissolvendo os partidos, de direita ou esquerda, extremista ou não; segundo, permite
uma representatividade real do cidadão, dando voz a todas as tendências opiniões. Ninguém
mais se sentirá amordaçado e, conseqüentemente, as reações de frustração eleitoral não mais
terão razão de existir.

O sistema traz então uma barreira eficaz aos desvios populistas que podem perverter o sistema
eleitoral. Elimina também os desvios econômicos do tipo public choice, USA, sob cuja
perspectiva o político procura maximizar o seu resultado (aumentando seu poder e as rendas
de situação), sendo que o essencial é manter o cargo e agradar os seus eleitores: não há
espaço para o bem público, patriotismo, dedicação à coletividade e outras velharias românticas.
A carreira política passa a ser um campo para oportunismo, pragmatismo, cinismo, onde
prosperam os mais hábeis em satisfazer o “mercado” eleitoral.

Como se vê, a estococracia permite conciliar o ideal democrático com o ideal republicano.

Por último, alguns comentários sobre o princípio do sorteio, peça-chave do sistema


estococrático. O acaso está no universo, como nos ensina a física quântica. E o acaso é
freqüentemente solicitado em nossa sociedade: seja para compor um corpo de jurados, para
programar os jogos de futebol ou para determinar as chaves dos torneios de tênis ...

Não sou eu o inventor da estococracia. O sistema de sorteio foi amplamente utilizado no


passado, em comícios romanos e eleições gregas. As repúblicas italianas na Idade Média e na
Renascença freqüentemente escolhiam seus magistrados por sorteio. Rousseau e
Montesquieu julgavam razoável e legítimo que os governantes fossem escolhidos por sorteio:
“o sufrágio por sorteio é da natureza da democracia; o sufrágio por escolha é o da aristocracia.
A sorte é uma maneira de eleger que não aflige ninguém; dá a cada cidadão uma esperança
razoável de servir à pátria.” (Montesquieu). A tradição democrática ateniense contemplava o
sorteio e, segundo Aristóteles, “É democrático que as magistraturas sejam atribuídas pela sorte
e oligárguico que elas sejam eletivas”.

Reflexões semelhantes às minhas vêm sendo feitas em universidades americanas e já há uma


comissão do governo britânico que preconiza o sorteio entre a população para formar uma
Câmara de Pares realmente representativa.

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EM BUSCA DE UMA “EXCEÇÃO FRANCESA” FELIZ

A esta altura todo francês sensato já concluiu que o sistema estocrático é o melhor, o mais
desejável, o único capaz de nos tirar da crise política e social em que estamos afundando. No
entanto, há um obstáculo imenso pois é preciso uma reforma constitucional para estabelecer
este sistema na França.

Isso só é possível pela iniciativa do Presidente da República ou dos parlamentares, que são
políticos profissionais: é difícil imaginar que eles iriam concordar em serrar o galho em que
estão sentados. Como acreditar que eles teriam a generosidade e a grandeza necessárias
para fazer uma reforma que, por mais salutar que seja, os condenaria ao desaparecimento? É
inútil sonhar.

Atualmente a expressão “exceção francesa” provoca risos, pois evoca imagens arcaicas e
grotescas de desvios na proteção social, funcionários em excesso e indolentes, estradas
paralisadas por caminhões pesados ou empresas públicas dirigidas por incompetentes (apesar
dos múltiplos diplomas) e outros vícios. A adoção da estococracia seria uma “exceção
francesa” virtuosa, admirada e cobiçada pelos outros países.

Contra a ditadura dos partidos, contra o confisco da política, temos que batalhar pela
implantação da estococracia, o único sistema equitativo, eficaz e salutar.

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