You are on page 1of 40

.

,
-t
e Ili ....
o
:I led;::
-~

Ili
a.
=~ =ft o
-n

a.
(1)
-m :::1 o
o --e ! O &
Ili•

~
1
...l>o
-e: o-
::s ~
Ili
o
~O'Q
,...
o
=
i aº
Ili

li
i ;· ;·
Ili

!:
3
Ili
,,• &
Ili
--·
ft
Ili
Ili
;

Reitor Roberto Leal Lobo e Silva Filho


Vice -reico r Ruy Laurenti

ED ITORA DA UNlVCRS IDADE DE SÀO PAULO

Presideme João Alexandre Barbosa


Diretor Edi1orial Plinio Martins Filho
Editor-assislellle Manuel da Costa Pinto

Comissão Edirorial João Alexandre Barbosa (Presidente)


Celso Lafer
Jose E. Mindlin
Oswa ldo Paulo Forallini
Ojalma M irabelli Redondo
14 METODOLOGIA DA ECONOMIA !
As funções de produção do lar. A instituição do ad hoc. Alguns l
resultados. Verificacionismo, mais uma vez. Em retrospecto.
f
1
10. O postulado da racionalidade ... .. . . . . ... . . .. . . .. . 315
O significado da racionalidade . Racionalidade sacrossanta. Críti-
cas da racionalidade.

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO


Parte IV
O QUE APRENDEMOS SOBRE ECONOMIA?

Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 325

A crise da economia moderna. Medida sem teoria. Falseabilismo,


mais uma vez. Econometria aplicada . O melhor caminho para o
futuro .
Uma ambigüidade inevitável cerca a expressão "a metodologia
Glossário . 339 da ... " O tenno metodologia é às vezes empregado com o significado de
"procedimentos técnicos de uma disciplina", sendo apenas um sinônimo
Sugestões para leitura complementar . . 343 mais pomposo da palavra método. Com freqüência, entretanto, tem a co-
notação de investigação dos conceitos, teorias e princípios básicos de ra-
Bibliografia . . .. . 347 ciocínio de uma matéria, e é com esse sentido mais amplo que estaremos
lidando neste livro. Para evitar mal-entendidos, acrescentei o subtítulo,
Índice onomástico . 371 Como os Economistas Explicam, para fazer com que "a metodologia da
economia" deva ser entendida simplesmente como filosofia da ciência
Índice de assuntos . 379 aplicada à economia.
Perguntar como os economistas explicam os fenômenos que inves-
tigam na realidade é o mesmo que questionar em que sentido a economia
é uma ciência. Segundo um proeminente filósofo da ciência moderna: " O
que gera ciência é a busca por explicações que sejam ao . mesmo tempo
sistemáticas e controladas por evidência fatual; e o objeto distinto das
ciências é constituído pela organização e classificação do conhecimento
baseado nos princípios explanatórios" (Nagel, 1961, p. 4) . Não há dúvida
de que a economia oferece muitos exemplos de "explicações que são ao
mesmo tempo sistemáticas e controladas por evidência fatual", e, portan-
to, não perderemt s tempo defendendo a asserção segundo a qual a econo-
mia é uma ciência. Todavia, a economia é também uma ciência peculiar,
17
16 METODOLOGIA DA ECONOMIA PREFÁCIO
matéria, e, embora a prática real tenha pouca relação com o que é procla:
separada, digamos, da física porque estuda ações humanas e, portanto,
mado, vale a pena se considerar este último em seus fundamentos. Essa e
invoca as motivações e razões de agentes humanos como "causas das
a matéria que abordamos na parte II . A parte I é uma breve introdução ao
coisas" e, digamos, da sociologia e da ciência política porque, de alguma
pensamento corrente na filosofia da ciência, que desenvo~ve várias _d_istin-
forma, consegue apresentar teorias rigorosas e dedutivas acerca da ação
ções que serão usadas ao longo do restante do livro (vep o glossano no
humana que estão quase ausentes naquelas outras ciências comportamen-
t~is. Em re~umo, as explanações dos economistas representam uma espé- final).
Depois dle pesquisar a literatura sobre metodologia econômica na
cie em particular de uma classe mais ampla de explanações científicas; e,
parte II, capítulos 3 e 4, trataremos no capítulo _s da questão in~ômoda ~o
sendo assim, apresentam algumas características discutíveis.
status lógico da economia do bem-estar. Ao fim daquele capitulo, apos
Qual é então a natureza das explanações econômicas? Na medida
adquirir uma visão mais ou menos completa das questões pendentes na
em que essas explanações consistem em teorias precisas, qual é a estrutu-
metodologia da economia, estaremos aptos a aplicar as conclusões às
ra dessas teorias e, em especial , qual é a relação entre as suposições e as
quais teremos chegado a algumas controvérsias econômi,c~s m~is i~por­
implicações previsíveis de teorias econômicas? Se os economistas confir-
tantes . A parte III, portanto, apresenta uma série de analises mtens1vas ,
mam suas teorias mediante evidências fatuais, tais evidências são perti-
cujo objetivo não é estabelecer conclusões acerca de questões substanti-
nentes apenas às implicações previsíveis dessas teorias, ou às suas
vas sobre as quais os economistas discordam entre si, e sim demonstrar
suposições, ou a ambos os casos? Além disso, o que representa evidência
como toda controvérsia na economia envolve questões de metodologia
fatua~ Pª!'ª os ec.onomistas? Como as teorias econômicas que pretendem
econômica. O último capítulo da parte IV nos leva a algumas conclusões
defimr sao lambem empregadas de forma quase idêntica para demonstrar
finais; talvez ele seja mais pessoal do que o resto do livro.
o que deve.ria ser'. .Em outras palavras, q_ual é exatamente a relação entre
as economias positiva e normativa ou, usando uma linguagem já fora de Muitos dos que escreveram acerca da metodologia econômica afir-
moda, a relação entre economia como ciência e a economia política como maram que estavam apenas racionalizando as formas tradicionais de argu-
arte? ~sses são os tipos de pergunta com que estaremos nos preocupando mentação dos economistas, e talvez isso explique por que o economista
1
neste livro. moderno médio raramente se dedica às investigações metodológicas. Para
,J
1 ser franco, a metodologia econômica representa pouco no treinamento e
Os economistas têm se afligido com essas questões desde os tem"
formação do economista moderno. É possível que tudo isso esteja mudan-
1 pos de Nassau William Senior e John Stuart Mill, e há muito o que apren-
do atualmente. Após muitos anos de complacência com relação ao status
de: q~ando se vo.lta a esses escritores do século XIX para se ver o que os
científico de sua matéria, uma fração cada vez maior de economistas co-
propnos economistas de forma certa ou errada pensavam estar fazendo
meça a se questionar profundamente acerca do que estão fazendo. De
quando praticavam a economia. Por volta de 1891, John Neville Keynes
qualquer fom1a, existe um número crescente que suspeita que nem tudo
resumrn e pensamento metodológico de toda uma geração de economistas
esteja bem no edifício que a economia construiu. Não pretendo me trans-
em sua obra merecidamente famosa Scope and Method of Political Eco-
formar em instrutor que os tome melhores economistas, mas, por outro
nomy, que pode ser considerada um marco na história da metodoloaia
econômica. O século XX presenciou algo semelhante com The Nat~re
lado não há rriuito sentido em simplesmente se descrever o que fazem os
eco~omistas sem se extrair daí algumas lições; em alguma etapa, até mes-
and Significance of Econo111ic Science (1932), de Lionel Robbins, seguido
mo o espectador mais imparcial deve ter desejo de assumir o papel de
alguns anos depois p~la publicação de um livro amplamente consultado,
árbitro. Assim como muitos economistas modernos, eu também tenho
com uma tese diametralmente oposta, The Significance and Basic Postu-
uma visão de What'.s Wrong with Economics ? ("O que há de errado com
lates of Economic Theory (193 8), de Terence· Hutchison. Mais recente-
a economia?"), citando o título de um livro de Benjamin Ward; porém,
m~nte, Milt.on _Friedman, Paul Samuelson, Fritz Machlup e Ludwig von
estou menos prépcupado com o conteúdo real da economia moderna do
M1ses cont~bmram com importantes pronunciamentos para a metodologia
que com a forma'. segundo a qual os economistas se ocup_am em ;o~firmar
da economia. Em resumo, há muito tempo os economistas estão conscien-
suas teorias. Não há muito de errado com a metodologia econom1ca pa-
tes da necessidade de defender princípios "corretos" de raciocínio em sua
18 METODOLOGIA DA ECONOMIA

drão assim como é exposta no primeiro capítulo de qualquer livro de teo-


ria econômica; o que há de errado é que os economistas não praticam o
que pregam.
Quando Laerte diz a Ofélia para não se render aos avanços de
Hamlet, ela responde: "Não faças como os párocos descorteses,/ Mostra-
me o espinhoso e íngreme caminho do céu,/ Enquanto como um libertino
imprestável/ Ele caminha pela trilha florida do galanteio". Acho que eco-
nomistas do século XX se assemelham muito a aqueles "párocos descor-
teses". Deixo aos meus leitores a decisão de julgar se atingi meu objetivo
ao escrever este livro.
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
Este livro é essencialmente dirigido a estudantes de graduação na
área da economia, ou seja, àqueles que já aprenderam algo da economia
substantiva, porém encontram dificuldade, se não a impossibilidade, de
escolher entre teorias econômicas alternativas. O interesse crescente dos
economistas profissionais por problemas metodológicos é tal que ouso d_i-
zer que até mesmo alguns de meus colegas acharão o livro interessante.
Outros estudantes de ciência social - sociólogos, antropólogos, cientistas
políticos e historiadores - têm inclinação para invejar os economistas por A primeira edição deste livro foi publicada em 1980. Desde então
seu aparente rigor científico ou desprezá-los por serem lacaios de gover- testemunhamos o lançamento de sete textos importantes, três livros de
nos. Pode ser que não vejam neste livro um antídoto contra inveja en- leitura, uma bibliografia anotada e obviamente centenas de artigos, todos
quanto lembrete dos benefícios que a economia colhe e sempre tem abordando a metodologia da economia - nada mau para apenas uma déca-
colhido de sua orientação política. da de atividade intelectual em uma área relativamente sem importância da
Este livro exigiu um longo tempo para ser concluído. O primeiro
economia1..
capítulo foi rascunhado na Villa Serbelloni, em Bellagio, Itália, onde pas-
sei o mês de novembro de 1976, graças à generosidade da Fundação Roc-
kefeller. Depois que deixei a atmosfera idílica do Centro de Conferências l. Em ordem cronológica e limitando-se estritamente a livros: H. Katouzian, ldeo/ogy alld Method i11 Econo-
e Estudos de Bellagio, a atividade de ensino e outros compromissos de mics (1980); W. J. Samuels (ed.), Tlie Mechodology of Economics, Criticai Papers from the Jo11rnal of
Ecollomic /ss11 es (1980); J. Pitt (ed.), Philosophy ili Ecollomics (1981); B. J. Caldwell, Beyond Positivism,
pesquisa impediram que voltasse ao manuscrito durante o ano acadêmico Ecollomic Met/iodology ili tlie Twe111ielh Cer1111ry (1982); W. Stegmuller, W. Balzer e W. Spolm (eds.),
de 1976-1977. Levei todo o ano de 1978 para terminá-lo . Recebi comen- Philosophy of Economics (1982); L. A. Boland, The Foundatiolls of Ecollomic Method (1982); A. S. Eich-
tários valiosos e numerosos de Kurt Klappholz e Thanos Skouras. Ruth ner (ed.), Why Ecollomics Is Not Yet A Sciellce ( 1983); A. W. Coais (ed.), Methodological Controversy in
Ecollomics: Historica/ Essays in Honor of T. W. Hu1c/1ison (1983); W. L. Marre B. Raj (eds.), How
Towse leu todo o manuscrito e corrigiu lapsos de gramática. Por essa Economisrs E:rplain. A Reader ili Methodology (1983); R. B. Mckenzie, The Limits of Economic Science
tarefa, tenho para com ela uma divida de gratidão que somente pode ser (1983); B. J. Caldwell (ed.), Appraisal alld Criticism ili Ecollomics: A Book of Readings (1984); D. M.
Hausman (ed.), The Phi/osophy of Economics: An Alllhology (1984); P. Willes e G. Routh (eds.), Econo -
paga em forma de moeda.
mics ili Disarray (1984); J. J. Klant, T/ie R11/es of 1/le Game: The Logical S1rnc1ure of Economic Tlieories
(1984); E. R. Weintraub, General Eq11ilibrium Analysis (1985); A. Mingai, P. Salmon e A. Wolfelsperger,
Mark Blaug Methodologie economiq11e (1985); D. McC!oskey, The Rhetoric of Economics (1985); S. C. Dow, Macroe-
conomic Tho11ght, A Methodological Approac/1 (1985); T. Lawson e H. Posarian (eds.), Keyne's Econo-
mics: Me1hodologi_cul /ss11es (1985); L. A. Boland, Methodology for a New Microeconomics (1986); P. J.
Londres Q"Sullivan, Econo'inic Metlwdology and Freedom 10 Choose (1987); K. Phoby, Methodology and Econo-
mics: A Criticai 1i17rod11ctio11 (1988); N. de Marchi (ed.), The Popperian Legacy in Economics (1988); L.
agosto de 1980 A. Boland, The Metlwdology of Economics Model B11ildi11g: Methodology A/ter Samuelson ( 1989); S. Roy,
Phi/osophy of Ecollomics (1989); D. A. Redman (ed.), Economic Methodology, A Bibliography (1989); J.

1
20 METODOLOGIA DA ECONOMIA PREFÁCIO 21
Essa explosão de literatura na metodologia da economia já seria como prescritiva isso é ·o que os economistas deveriam fazer para
suficiente para justificar uma segunda edição, com o fim de registrar o produzir avanços na economia"; finalmente, a metodologia não apresenta
progresso mais recente na área. Além do mais, minha mensagem central um algoritmo mecânico nem para construir nem para validar teorias, e
foi por vezes mal entendida, sem dúvida por ter sido expressa de forma !!esse sentido ela é mais uma "arte" do que uma "ciência". Também
deficiente, o que me leva a reenunciar a minha argumentação. Além dis- concordamos que as teorias econômicas devem cedo ou tarde ser confron-
so, alguns dos estudos de caso da segunda parte do livro eram por demais tadas com a evidência empírica enquanto árbitro final da verdade, porém
inconsistentes enquanto outros necessitavam de atualização. Finalmente, aceitando que o teste empírico é tão difícil e ambíguo, que não se pode
novos progressos na macroeconomia, teoria do equilíbrio geral e teoria do encontrar muitos exemplos de teorias econômicas que foram derrubadas
comércio internacional encorajaram-me a preparar a nova edição. de forma decisiva por refutações repetidas (entretanto, existem exemplos
A princípio, tinha ambição de dobrar o conteúdo do livro original marcantes precisamente desse fenômeno, como veremos). Não vale a
por meio de novos capítulos sobre a economia pós-keynesiana, economia pena buscar-se um correlativo empírico para toda concepção teórica em-
experimental, teoria do jogo e a crise na econometria, resolvendo o con- pregada, o que é de qualquer forma um objetivo impossível; porém, pode-
flito entre as teorias de inferência bayesiana e ci<issica. Porém, em ultima mos obter teste indireto por meio da consideração da rede de concepções
análise, a preguiça intelectual e a falta de estímulo para aventurar-se em fundamentais imbuídas em uma teoria especifica e deduzir suas implica-
área tão temida terminaram por produzir uma segunda edição que é sem- ções para c:om algum fenômeno do mundo real. Isso não quer dizer, entre-
pre marginalmente mais longa ou diferente que a primeira. Ampliei minha tanto, que as previsões representam tudo e que não importa se as
discussão acerca da teoria do equilíbrio geral, da teoria de Heckscher-Oh- hipóteses são "realistas" ou não. Teorias econômicas não são simples-
lin do comércio internacional, do monetarismo e da nova macroeconomia mente instrumentos para se fazer previsões perfeitas sobre eventos econô-
clássica, acrescentando uma nova seção sobre o postulado da racionalida- micos e sim tentativas genuínas de se descobrir forças causais que agem
de enquanto "núcleo central " da economia da corrente dominante. Essen- dentro do sistema econômico.
cialmente, todavia, a nova edição é substancialmente igual à primeira
Entretanto, nossa concordância termina aí. Argumento em favor de
edição. As adições ambiciosas que eu planejava inserir foram deixadas
"falsificacionismo", definido como um ponto de vista metodológico que
para um outro livro.
considera teorias e hipóteses como sendo científicas se e somente se suas
Tentarei agora recolocar a mensagem central do livro por intermé- previsões forem pelo menos em princípio falseáveis, ou seja, se proibirem
dio de uma comparação entre minha descrição da metodologia da econo- que certos atos/eventos/estados venham a ocorrer. Os motivos que me le-
mia e a de Bruce Caldwell, contida na obra Beyond Positivism 2• Nossos vam a manter essa visão são em parte epistemológicos - a única forma de
dois livros concordam plenamente em muitos dos temas substantivos da sabermos se uma teoria é verdadeira ou, por outro lado, não falsa é nos
metodologia econômica: "metodologia" não é apenas um nome sofistica- comprometermos com uma previsão sobre atos/eventos/estados que se se-
do para "métodos de investigação" e sim um estudo da relação entre guem a partir dessa teoria - e em parte históricos - o conhecimento cien-
concepções teóricas e conclusões abalizadas sobre o mundo real; em par- tifico tem progredido por meio de refutações de teorias existentes e por
ticular, a metodologia é o ramo da economia no qual examinamos as for- meio da construção de novas teorias que resistem à refutação . Além disso,
mas com as quais os economistas justificam suas teorias e as razões que afirmo que os economistas modernos de fato aderem, à metodologia do
eles invocam para preferir uma teoria a outra; a metodologia tanto é uma falsificacionismo: a despeito de algumas diferenças de opinião, especifi-
disciplina descritiva - "isso é o que a maior parte dos economistas faz" - camente sobre o teste direto de hipóteses fundamentais, economistas da
corrente dominante se recusam a levar qualquer teoria econômica a sério
C. Glass e W. Johnson, Eco110111ics Progression, Stag11atio11 er Degeneration ? ( 1989); D. A. Redman, se ela não ousar fazer previsões definitivas acerca de eventos econômicos
e, em última ~nálise, julgam as teorias econômicas em termos de seu su-
Eco110111ics and The Phi/osophy o/ Science (1991); S. Gordon, The History and Phi/osophy o/ Social Scien-
ce 1991).
2. As paginas que se seguem têm muito que ver com meu " Commeut"" sobre Wiles e Routh (1984, pp. cesso em fazer previsões que se confirmam. Também argumento que os
30-36).
economistas falham consistentemente ao praticar o que pregam: sua filo-
r
PREFÁCIO 23
22 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA

sofia da ciência prática é caracterizada de forma apta como "falsificacio- no fato de as refutaçõe.s serem tomadas seriamente como reflexos possí-
nismo inócuo". Em outras palavras, sou crítico do que os economistas na veis do erro fundamental. Os confirmacionistas se certificam de que suas
realidade fazem, que é diferentes daquilo que eles dizem fazer. teorias corram poucos riscos e, quando confrontados por uma refutaçãq
Caldwell, por outro lado, duvida que o falsificacionismo seja uma empírica, tratam de consertar a teoria ou de emendar seu alcance; nunca
metodologia recomendável: suas estruturas são tão exigentes que pouco a abandonam por ser falsa. Os falsificacionistas, por outro lado, correm
da economia sobreviveria se fossem rigorosamente aplicadas. Além disso, riscos deliberadamente e consideram fracassos repetidos para prever de
ele encontra poucos sinais de economistas que praticam o falsificacionis- forma perfeita como um sinal de que teorias alternativas devem ser consi-
mo, mesmo que de forma inócua. Em vez disso, ele defende o "pluralis- deradas. Obviamente, as distinções são diferenças de grau, não de tipo, e
mo metodológico", ou "deixe que centenas de flores se abram", dois metodologistas podem honestamente discordar, como Caldwell e eu
implicando que várias escolas do pensamento da economia podem ser cri- o fazemos, acerca de como caracterizar de forma mais apropriada os eco-
ticadas de dentro, ou seja, em termos dos critérios que elas mesmas pro- nomistas modernos, já que temos opção entre "confirmacionistas" e "fal-
fessam. Porém, se todos os padrões metodológicos forem igualmente sificacionistas inócuos".
legítimos, será difícil detenninar que tipo de teorização será excluída. Do Existem boas razões que explicam por que o falsificacionismo é
ponto de vista ultra permissivo do "pluralismo metodológico", não é ob- difícil de ser praticado na economia: qualquer hipótese está sujeita a ou-
vio por que deveríamos exigir que as teorias sejam logicamente consis- tras coisas que são mantidas constantes e tais coisas são numerosas e· nem
tentes, ou que coloquem algo definitivo acerca do mundo real, o que no sempre bem especificadas; não existem leis universais bem atestadas na
final apresenta a implicação do que elas podem ser consideradas falsas. economia e as leis gerais que existem são leis estatísticas ou tendências
Caldwell nutre clara simpatia para com a metodologia do falsifica- às quais faltam constantes universais; para testar uma teoria, devemos
cionismo; porém, ele cria muitas de suas negativas sobre o falsificacionis- construir um modelo da teoria, e, infelizmente, a mesma teoria pode ser
mo a partir de uma distinção sutil entre a metodologia do representada por uma variedade de modelos; e, finalmente, os dados em-
"conformacionismo" e a do "falsificacionismo". Ele observa que a pregados em qualquer teste empírico correspondem de forma superficial
maioria dos economistas modernos acredita "que as teorias deveriam ser às concepções existentes na teoria sob teste (Caldwell , 1982, pp. 238-
testáveis; que um teste útil consiste na comparação das previsões de uma 242). Entretanto, exatamente os mesmos fatores operam na física, quími-
teoria com a realidade; que a adequação prevista é freqüentemente a ca- ca e biologia, ainda que num grau menor. Na realidade, a chamada tese
racterística mais importante de uma teoria; e que o relativo ordenamento de Duhem-Quine enuncia que é logicamente impossível se refutar de for-
de teorias deveria ser detenninado pela força da confirmação, ou corrobo- ma decisiva qualquer teoria, uma vez que qualquer teste de uma teoria
ração, daquelas em comparação" (Caldwell, 1982, p. 124). Os quatro envolve a conjunção de condições iniciais e os elementos componentes da
princípios, argumenta ele, definem a metodologia do "confirmacionismo" teoria, de forma que se pode sempre jogar a culpa por uma refutação em
em vez de "falsificacionismo". O falsificacionismo é uma doutrina mais condições iniciais inapropriadas. A saída para esse dilema é estabelecer
severa. Em sua forma mais simples, pode ser enunciada nas próprias. pala- restrições no que Popper denomina "estratagemas de imunização'', que
vras de Caldwell (1982, p. 125): "Os cientistas não deveriam somente são adotados unicamente para proteger teorias contra refutações empíri-
CJ!S2 Tais restrições são características importantes da metodologia do fal-
testar empiricamente suas hipóteses; eles deveriam construir hipóteses que
fazem previsões arrojadas e deveriam tentar refutar tais hipóteses em seus sificacionismo, as quais são ignoradas por Caldwell, como também por
tes~s . Igualmente importante, os cientistas deveriam fazer uma tentativa
muitos outros comentaristas de assuntos metodológicos.
para aceitar somente hipóteses confirmadas, rejeitando aquelas que foram Reconheçamos que não existem testes na economia (ou em qual-
desconfirmadas. O ato de testar, então, tomaria as coisas diferentes" . quer outra. ciência) que sejam interpretáveis de forma não ambígua. Não
•\
Portanto, a distinção entre confirmacionismo e falsificacionismo si- queremos repetir Caldwell, para quem os testes que desconfirmam são
tua-se parcialmente no grau segundo o qual as teorias são pressionadas sempre ignorad;s na economia ou que sempre levam a um trabalho de
para produzir implicações arriscadas sujeitas à refutação e parcialmente reparo destinado a certificar que não haverá desconfirmações posteriores.

!-
24 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA PREFÁCIO 25

A história da economia, em particular da economia moderna, está cheia estamos apresentando um argumento efetivo contra o falsificacionismo quando simplesmente apon-
de teorias e hipóteses que foram rejeitadas devido a repetidas, se não tamos que [... ] refutações decisivas são raras. Este problema sempre existe.
decisivas, refutações empíricas. "Não é facil pensar em uma proposição
na economia", disse Frank Halm ( 1987, p. 110) certa vez, "sobre a qual O remédio para o problema é bem simples: tente com mais esfor-
todos os economistas razoáveis concordam em que foi decisivamente fal- ço! Logicamente, a recomendação para que se tente com mais esforço
seada pela evidência". Mas na realidade é bastante fácil. Obviamente, deve ser plausível, ou seja, uma metodologia prescritiva como o falsifica-
tudo depende de quem estamos falando quando nos referimos a "econo- cionismo deve ser descritivamente adequada ou pelo menos não descriti-
mistas razoáveis" e o que queremos dizer com "decisivamente falseada". vamente imprática. Nesse ponto da argumentação, Caldwell (1991, p. 9)
Mas aqui apresentamos uma lista ilustrativa: a re_ki_r ~o total da curva de_ mais uma vez se refere à sua convicção anterior de que o falsificacionis-
Phill~ s nos anos 7Q, interpretada como uma troca estável entre a inflação mo nunca foi praticado num nível significativo na economia: " Nem Hut-
e o desemprego; a rejeição de uma velocidade de renda do dinheiro está- chison nem Blaug foram capazes de apontar com clareza episódios
vel nos anos 80, fugindo da noção segundo a qual a inflação pode ser paradigmáticos de prática falsificacionista. Os exemplos de Hutchison (as
controlada apenas com o controle da base monetária, podendo até mesmo refutações da teoria malthusiana da população e de certas versões não
reduzi-la (a inflação) a zero em dois ou três anos; a rejeição, ainda nos qualificadas da macroeconomia keynesiana e monetarista) envolvem oca-
anos 80, da proposição de que expectativas racionais tomam impossível siões em que normalmente, depois de períodos razoavelmente longos, tor-
se alterar O..Qill/2lil..real ou a taxa de emprego por meio da política mone- nou-se evidente que as previsões de uma teori a não chegaram a passar " .
tária ou fiscal; a rejeição da " lei" de Bowlex, em algum momento dos Espero que a leitura do capitulo 7, parte III, que se segue convença qual-
anos 60, que proclamava a constância das porções relativas da renda na- quer "economista razoável" de que toda a história da macroeconomia do
cional que iriam para o capital ou para o trabalho, assim como a "lei" de pós-guerra apresenta uma longa série de episódios paradigmáticos de prá-
todos sobre a constância da taxa capital-ourpw na economia como um tica falsific acionista , ou seja, ocasiões em que se tomou evidente com
todo; a rejeição nos anos 50 da função de consumo de Keynes, que faz do rapidez que " as previsões de uma teoria não chegaram a passar ".
consumo corrente uma função simplesmente da renda corrente; a rejeição Bruce Caldwell estabeleceu o padrão para as reações de outras pes-
nos anos 30 da visão do Tesouro acerca da concentração total dos dispên- soas à primeira edição deste livro. Daniel Hausman (1985 ; 1988; 1989)
dios públicos em tempos de depressão; a rejeição, ainda nos anos 30, da disse que o falsificacionismo nunca é praticado porque é impratiçável.
proposição de que salários reais flutuam de forma contrária aos ciclos - Ele insiste em que os economistas modernos adoram o que ele denomina
poderíamos prosseguir citando exemplos até o fim do livro. A noção de "dedutivismo " ou o que denominei "verificacionismo" , cujo santo pa-
que as teorias econômicas, assim como os velhos soldados, nunca morrem droeiro é John Stuart Mill e não Karl Popper: "Dada a pobreza de apoio
e sim apenas se desvanecem é simplesmente um mito perpetuado pela pertinente a vários enunciados auxiliares que são necessários para a deri-
repetição constante. vação de teorias econômicas, não é normalmente sensível ou responsável
Assim, Caldwell (1991, p. 7) recentemente admitiu que pelo menos que se siga o conselho popperiano de Blaug e que se considerem fracas-
um dos muitos argumentos que ele empregou ao longo dos anos como sos previsíveis como teorias econômicas em falseação" (Hausman, 1989,
crítico persistente do falsificacionismo é "se não errado [... ] seriamente p. 119) 3 . Depois disso não causa surpresa o fato de se ouvir dizer que
incompleto". Hausman ( 1989, pp. 122- 123) acredita em metodologia descritiva, não em
prescritiva. Cada vez mais , chegaremos à conclusão de que o falsificacio-
nismo é uma "metodologia agressiva" , que é critica de boa parte daquilo
Meu erro foi afirmar que a fa lseação é uma metodologi a inapropriada para a economia
3. De fonna semelhante Harg.reaves -Heap {l 989, cnp. 2) usa a t ~e de Duhem-Quine para atacar o falsifica-
porque a maioria das teori as econômi cas não pode ser falseada de forma conclusiva. Para apoiar a
cionismo, argumtfi1tando que, como os tr.slcs l"-mpiricos são sempre inconclusivos, temos que aceitar uma
afirmação enumerei vários obstáculos para se obter testes claros de teorias na economia [... ] (Po-
"comprcensào" na i::conomia, de acordo com a qual a evidt!ncia empi.ri ca G rdevante, porem não decisiva,
rém) toda ciência encontra dificuldades ao se deparar com refutações claras [...] Portanto, não para com a escolha da lt!oria .

11
26 METODOLOGIA DA ECONOMIA PREFÁCIO 27

que passa como economia moderna, enquanto os críticos do falsificacio- 32-35; também p. 124). Concluindo para sua própria satisfação que as
nismo invariavelmente adotam uma "metodologia defensiva", argumen- teorias econômicas não podem ser mais falseadas do que as teorias físi-
tando que a tarefa dos metodologistas econômicos é descrever as práticas cas, conforme sua própria interpretação, ela me incrimina por autocontra-
reais dos economistas, o que vem a ser, em poucas palavras, obter o me- dição : "Blaug assevera que os economistas dizem que o objetivo deles é
lhor possível de uma tarefa chata. Essa é a velha distinção entre a econo- a falseação, porém eles de fato não a praticam; sendo assim, os economis-
mia positiva e a normativa no domínio da metodologia: nós descrevemos, tas devem ser repreendidos por fazerem algo que Blaug admite ser de
explicamos e apoiamos o que os economistas fazem ou na realidade de- qualquer forma impossível "(Redman, 1991, p. 119). Será que estou sozi-
fendemos a economia de alto nível na suposição de que muitos economis- nho ao pensar que aí está um bom exemplo para se ganhar uma disputa
tas não conseguem atingir tal nível? inventando-se um bode expiatório?
Lawrence Boland não vai tão longe quanto Hausman: o falsifica- Finalmente, Bill Gerrard (1990, pp. 201-202), em uma pesquisa
cionismo é implementável, porém, na realidade, não é implementado. útil de livros recentes sobre a metodologia econômica, resume o argu-
"Para Blaug, qualquer prática daquilo que ele denomina falsificacionismo mento distinguindo entre "falsificacionismo radical" e "falsificacionismo
representa não somente projetar modelos que são em princípio refutáveis dogmático":
e sim tentar ativamente a refutação de tais modelos. Com exceção de um
breve momento nos seminários LSE, praticamente nenhum economista da O falsificacio1úsmo radical reconhece a falibilidade do conhecimento, enfatiza o papel dos
corrente dominante tem defendido uma aplicação tão rigorosa dos requisi- testes empiricos corno válvula de segurança que protege as disciplinas do dogmatismo e reconhece
tos metodológicos da falseabilidade" (Boland, 1989, p. 10; também 1982, as dificuldades envolvidas nos testes empiricos como sendo o resultado da natureza conglomerada
caps. 10-11). Os economistas se preocupam com a capacidade de ser testa- das teorias. O falsificaciorúsmo dogmático, por outro lado, aborda os testes empiricos como meios
do enquanto requisito dos modelos econômicos adequados, assevera Bo- puramente objetivos e infaliveis de se chegar ate certo conhecimento.

land, porém consideram uma refutação empírica como um desafio que leva
à melhoria do modelo de forma que aumente seu " grau" de !estabilidade e O primeiro é a metodologia de Popper, declara Gerrard; o segundo,
não como um motivo para se rejeitar a teoria que suporta o modelo. a metodologia popperiana. Ele conclui: "Parece claro que temos ai apon-
Da mesma forma, Klant (1984, pp. 184-186) e de Marchi (1988, tada a necessidade de mais da metodologia de Popper na economia com a
pp. 12-13) têm profundas restrições acerca da falseabilidade na economia, eliminação da versão bastardizada que é o método popperiano" .
considerando essa concepção como um ideal nunca alcançado na prática e Entre os livros resenhados por Gerrard encontra-se Rhetoric of
na melhor das hipóteses passivei de se alcançar somente até certo ponto; Economics (1985), de Donald McCloskey, um livro sagaz e provocador
em resumo, eles deixam a porta aberta para o falsificacionismo como que foi expressamente projetado para livrar a economia de todas as meto-
uma meto :lologia normativa . Deborah Redman, por outro lado, faz pouco dologias prescritivas, como falsificacionismo, verificacionismo, ou seja lá
caso de filósofos da ciência, como Popper, Kuhn e Lakatos, e considera o o que você quiser. Os economistas, argumenta McCloskey, seguem uma
legado popperiano na economia como quase totalmente desastroso. Inter- filosofia da ciência superada, que ele rotula de "modernismo", embora
pretando a falseação como "contraprova conclusiva", ela não tem dificul- seja normalmente rotulada de "positivismo lógico" . Esse assunto de rótu-
dade em demonstrar que isso não· existe na ciência, seguindo-se daí que los é importante, pois em nenhuma ocasião ele inclui dentro do modernis-
"defender uma teoria porque eia ainda não foi 'falseada' ... é na realidade mo várias proposições que são bem aceitas entre os economistas, mas que
indefensável" (Redman, 1991, p. viii). A lógica do argumento é impecá- nada tem a haver com o movimento filosófico conhecido como "positi-
vel. Infelizmente, ninguém conseguiu definir a falseação como sendo vismo lógico". O modernismo, diz McCloskey, se caracteriza por Dez
equivalente à contraprova conclusiva, e Popper escreveu páginas e mais Mandamentos, que incluem a noção de que somente as previsões observá-
páginas na obra The Logic of Scientific Discovery argumentando contra a veis de uma teot!_ia importam para uma verdade; que fatos e valores per-
tese segundo a qual se poderia de forma conclusiva fazer a contraprova tencem ao realismo diverso do discurso, de forma que as proposições
de algo, páginas estas que são de fato citadas por Redman (1991, pp. positivas sempre devem ser separadas das normativas; que qualquer ex-
!
li 28 METODOLOGIA DA ECONOMIA PREFÁCIO
29

bert foge!, que são instrutivos até mesmo se não comungamos ~s m~smas
planação científica de um evento classifica esse evento sob uma lei que o
idéias que formam aquilo que McCloskey chama a "Teona Anarqutca do
define e regulamenta; e que a introspecção, crenças metafísicas, conside-
r~ções estéticas e assemelhados podem figurar na descoberta de qualquer Conhecimento na Economia".
hipótese, porém são irrelevantes em sua justificação. Tais noções, afirma O mistério está em como McCloskey consegue examinar a lingua-
McCloskey, agora são descartadas por muitos filósofos profissionais - po- gem usada pelos economistas sem algum critério de lingu.age~ ."boa''. e
rém, os economistas não têm prestado atenção alguma a essas reações ao "ruim", alguns padrões acerca do que se procurar nos dispositlv?s lm-
"modernismo" entre os filósofos e continuam a acreditar que a única pro- oüísticos empregados por esses economistas com o fim de persuadir seus
va . "~undamental" de uma afirmação econômica é um teste quantitativo e leitores a acreditar neles. O fato é, claro, que ele não consegue: es~~s
objetivo. Essa crença ingênua no teste empírico como se fosse a marca estudos de caso de análise retórica estão cheios de julgamentos metateon-
oficial da Verdade é que constitui o âmago real do "modernismo" e, por- cos implícitos. Para mencionar um, o penúltimo capítu~o do livro de
tanto, o Lobo Mau do livro de McCloskey. "É difícil se desacreditar na McCloskey ataca uma das piores características da economia moderna,. ou
doininação do modernismo na economia'', observa ele, "embora um tex- seja, a confusão entre testes de significância estatística e testes de efeitos
to objetivo e quantitativo tivesse que tomá-lo, ou a qualquer afirmação, substantivos. Esse capítulo lit eralmente está repleto de conselhos acerca
mais acreditável e valeria a pena fazer isso" (McCloskey, 1985, p. 11). da "boa" prática estatística, que eu pessoalmente a~l~udo . Por~m, de
onde tais conselhos provêm se não de normas metateoncas, lambem co-
Por um lado, ele deplora todas as sugestões que levam a uma me-
nhecidas como "metodologia", isto é, a lógica dos métodos empregados
todologia prescritiva; ou seja, ninguém deverá colocar padrões metateóri-
pelos praticantes de uma disciplina? Sem dúvida , McCloskey se opõe à
cos do que deveria ser considerado um argumento bom ou ruim. Por
Metodologia com letra maiúscula, porém é a favor da _metodologia com
outro lado, "um teste objetivo e quantitativo o tomaria [... ] mais acreditá-
letra minúscula. O que isso parece indicar é que voce pode prescrever
vel e valeria a pena fazê-lo" (grifo meu). Sim, poderia tomar uma propo-
muitas coisas pequenas - não grite; tenha sua mente aberta; encare. os
sição mais acreditável pelo menos porque economistas não-filosóficos
fatos · não caia em sua própria retórica; não se pronuncie acerca de efeitos
tendem a levar tais testes a sério. Porém, por que valeria a pena fazê-lo
grandes ou pequenos sem fornecer padrões de comparação; .não c~nfu~da
se não exerce nenhuma influência na validade da afirmação? E, se é que
sionificância estatística com significância substantiva; substitua a mferen-
t~n_i algu.ma, po~ que não nos dizem que influência eles têm? McCloskey º . ,. -
eia de Neyman-Pearson pelos métodos de Bayesi; etc. - porem, .voce nao
nd1culanza o leitor que acredita que existem algumas proposições na eco-
pode prescrever coisas grandes, como evitar conclusões compat!ve1s com
noinia que são verdadeiras ou falsas, sendo nesse caso difícil de estabele-
toda e qualquer evidência fatual ; sempre comparar as conclusoes de al-
cer por que em alguma circunstância valeria a pena fazer-se testes
ouém com aquelas de teorias concorrentes, se existirem; evitar mudanças
empíricos.
~a teoria de alguém que não tenham outro objetivo se não apontar .uma
Se ~oetoào logia prescritiva está mesmo fora de moda, o que resta é anomalia empírica etc. Infelizmente, não consigo ver uma base ra~10nal
a metodologia descritiva ou o que McCloskey prefere denominar estudo para a distinção em tela, entre Metodologia deplorável e metodologia sa-
da "retórica" ou 'conversação" . O termo "retórica" adquiriu em anos
lutar, e McCloskey nunca apresenta essa baseJ.
recentes uma conotação depreciadora, porém houve um tempo (até o sé-
Pode-se imacrinar uma análise retórica dos escritos de Milton
culo XIX aproximadamente) em que significava simplesmente a forma de
Friedman sobre mo:etarismo. Friedman usa alguns artifícios literários im-
produzir um efeito em uma platéia por meio do uso cuidadoso do idioma·
plícitos e explícitos que parecem explicar seu enorme poder de pers~asão
é a arte de falar, a arte de persuadir as pessoas fazendo-as crer naquil~
e, portanto, sua influência na economia moderna. Tendo est~dado tais ar-
que devem crer. McCloskey nunca oferece uma definição precisa do ter-
tifícios, provavelmente me perguntarei por algum tempo se e de fato ver-
mo "retórica", porém a idéia geral daquilo que ele busca é, com certeza,
?~stante claro. Além do mais, ele apresenta um certo número de exemplos .,-:

Jª trabalhados de análises retóricas na segunda metade do livro, basean- Para outras criticas de McClos key usando 0 mc~mo ponto de vista, vc.r Caldwell e Coais (1984), Rosen-
4.
berg (1988), Gcrrard (1990, pp. 208-212) e Backhousc ( 1992).
do-se nos trabalhos de Paul Samuelson, Robert Solow, John Muth e Ro-
30 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA PREF.~CIO 31

<ladeiro que o controle da oferta de dinheiro é a chave para o controle da teses" não vem de outras fontes, ao contrário do que diz McCloskey, e é
inflação nas modernas economias industriais. Parvo, posso ouvir McC!os- claro que não deveriam. Descrição e prescrições concordam perfeitamente
key dizendo, não existe tal coisa como verdade na economia: "A econo- entre si nesse e em muitos outros casos. E aí está a essência do meu
mia, como a geologia ou biologia evolucionária ou a própria história, é argumento.
uma ciência histórica em vez de previsiva" (McCloskey, 1990, p. 18). Neste livro documento uma continuidade marcante nos preceitos
Porém, a geologia, a biologia evolucionária e a história são ciências retro- metodológicos dos economistas modernos, preceitos que correspondem
ativas, ou seja, a validade dessas proposições depende ex post facto de vagamente às observações do falsificacionismo de Popper. Porém, ao
dados empíricos (considere a importância da evidência representada por mesmo tempo, não se pode negar que a prática dos economistas na me-
fósseis para os debates da teoria darwiniana). O mesmo se aplica à econo- lhor das hipóteses constitui uma variação inócua do falsificionismo e na
mia? A validade do monetarismo depende, se não da perfeição de suas pior das hipóteses um estilo milliano do verificacionismo5•
produções futuras, da perfeição de suas retrodições passadas? Friedman, Minha crença otimista de que se podia estimular os economistas a
afinal de contas, foi o co-autor de um livro sobre a História Monetária levar mais a sério o falsificacionismo recebeu alguns duros golpes ao lon-
:I dos Esrados Unidos, 1867-1960. Ele verificou o monetarismo por meio de go dos últimos dez anos. Um certo número de teóricos do equilíbrio geral
dados históricos sobre a oferta de moeda e o nível de preços? É importan- e do jogo tem expresso em anos recentes uma hostilidade aberta para com
li te que se faça essa pergunta? Idiota, você está praticando metodologia o falsificacionismo (ver capítulo 8 que se segue), e uma conferência sobre

\~
mais uma vez: que seja decapitado! a aplicação da filosofia da ciência de Lakatos na economia, realizada em
A idéia de estudar como os economistas na realidade tratam de 1989, revelou um ceticismo deliberado entre os participantes acerca da
persuadir uns aos outros é boa, porém é falso se asseverar que todos os utilidade das idéias popperianas e lakatosianas para com uma disciplina
motivos que levam a se acreditar em uma teoria econômica são igualmen- como a economia e, em particular, uma inclinação em não avaliar teorias
te válidos e que os economistas de fato os consideram como tal. Entretan- econômicas em termos de seu novo conteúdo empírico (de Marchi, 1991,
to, é exatamente isso o que vem dizendo McCloskey. pp. 504-506, 509) . Ficou claro que muitos economistas não podem aban-
donar a noção de que o mero progresso teórico, uma compreensão mais
Considere, como exemplo, a sentença na economia, ··A curva de demanda inclina-se para profunda sobre alguns problemas econômicos, tem valor mesmo que não
baixo·'. A retórica oficial diz que os economistas acreditam nisso devido a evidência estatística - produza quaisquer descobertas substantivas sobre a economia e mesmo
coeficientes negativos em curvas de demanda para ferro fundido ou itens negativos em diagonal que não potencialize a nossa habilidade de provar as conseqüências das
nas matrizes de sistemas completos de demanda - que se acumula constantemente em artigos de
políticas econômicas. Ao fazer isso, eles refletem uma tendência marcante
publicações especializadas. Tais são os testes .. consistentes com as hipóteses ... Omras crenças nas
na economia moderna , que consiste em cultivar a teorização como um
hipóteses emergem de outras fontes: da introspecção (o que eu faria?) ; de casos não controlados
(como a crise do petróleo); da autoridade (Alfred Marshall acreditava nisso); da simetria (uma lei jogo intelectirnl, não pretendendo se referir a nenhum outro mundo possí-
de demanda, se existe uma lei de oferta); de definição (um preço mais alto permite menos dispên- vel na esperança de que isso traga algo a ser aprendido e que traria luz
dio , inclusive esse próprio); e, além de ludo, da analogia (se a curva de demanda se inclina para algum dia para uma economia real.
bai xo para o item chiclete, por que não o faz para a habitação e o amor também?). Como se pode Em uma carta para o Science , Wassily Leontief (1982) pesquisou
. comprovar na sala de aula e nos seminários, a amplitude de argumentação na economia é maior do
artigos publicados na American Economic Reviev na última década e che-
que lhe permite a retórica oficial (McCloskey, 1987, p. 174).
gou à conclusão de que mais de 50 por cento deles consistia em modelos
.
Sem dúvida, há muitas razões para se acreditar que as curvas de 5. Can1crberry e Burkhardt ( 1983), t: .l.: nmirrnndo 542 artigos empi.ricos em quatro publicações especializadas
demanda são negativamente inclinadas, porém há pouca dúvida de que, se em economia im port anl ~s no longo dos anos 1973· 1978, concluíram que somente três artigos tentaram
a evidência estatística repetidamente apontasse para a outra direção, ne- faiscar as hipôtt>.se~ proposlas; t>.m todos os oul ros casos a hipôtcse fo i aceita, o que derilonstra que os
economistas confin~ am cm vl·.z dl·· folsc:u. Mas nfto ~ isso que dizem alguns dos críticos do falsifica cionis-
nhuma dessas razões seria suficiente para fazer com que os economistas mo, como Hausman '! Sim, por ~ m dcs gost;un disso e consideram inevilâvel, enquanto eu deploro e argu-
acreditassem na "lei da demanda". A maior parte das "crenças nas hipó- menlo que e corrigivel.

1.

'l l
32 METODOLOGIA DA ECONOMIA PREFÁCIO 33

matemáticos sem quaisquer dados empíricos, enquanto 15 por cento consistia mia ao sucesso obtido pela pirotecnia matemática, por vezes suplementa-
em análises teóricas não-matemáticas, da mesma forma sem dados empíri- da por alguma econometria elegante.
cos, sobrando 35 por cento de artigos que continham análise empírica. O fato de que a educação no nível da graduação na área da econo-
mia enfatiza as habilidades técnicas de resolução de problemas às custas
Artigos Publicados na AER de prejudicar o conhecimento substancial do sistema econômico é apenas
um reflexo do formalismo vazio que cada vez mais caracteriza o todo da
1972-1976 1977-1981 economia moderna. E por que não? Afinal, o que há de errado com uma
(%) (%)
economia elegante praticada como passatempo intelectual? Existem, su-
ponho, duas respostas a essa questão. Uma é que alguns de nós sofremos
1. Modelos matemáticos sem quaisquer dados 50,1 54,0
2. Modelos teóricos sem formulação matemática
de "curiosidade preguiçosa" com relação à economia. Com o mesmo
e sem dados 21 ,2 11,6 grau com que apreciamos a economia abstrata matematicamente formula-
3. Metodologia estatística 0,6 0,5 da, não podemos deixar de pensar acerca de como a economia na verdade
4. Análise empírica baseada em dados funciona, e a maioria dos preceitos escritos da teoria pura rigorosa na
desenvolvidos pelo autor 0,8 1,4 realidade não satisfazem o desejo de compreender como as coisas se en-
5. Análise empírica usando inferência estatística caixam no mundo econômico. A segunda resposta é que a economia du-
em dados publicados 21 ,4 22,7 rante sua longa história tem sido intimamente ligada à polític a
6. Outros tipos de análise empírica 5,4 7,9 econômica, com o desejo de melhorar os negócios econômicos, erradicar
7. Análise empírica baseada em simulação e a pobreza, equalizar a distribuição de renda e riqueza, combater depres-
experimento artificiais 0,5 1,9 sões etc., e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no período recente de
pós-guerra. Mas se os economistas têm que se posicionar sobre questões
Morgan ( 1988) atualizou as conclusões de Leontief, demonstrando de política econômica, além de assessorar os governos acerca do que fa-
mais uma vez que metade dos artigos publicados na American Economic zer, eles devem ter conhecimento sobre o funcionamento do sistema eco-
Review e no Economic Journal não emprega nenhum tipo de dados, uma nômico: sabemos que a privatização, se acompanhada de um aumento nos
taxa que excede em muito aquela que é encontrada em artigos de publica- números de produtores, melhora a qualidade e quantidade dos bens priva-
ções especializadas em física e química. Oswald ( 1991) confirmou os re- tizados; sabemos que um déficit no balanço de pagamentos pode ser re-
sultados de Leontief e Morgan na área da microeconomia, concluindo de solvido por meio de uma desvalorização e sabemos até mesmo a rapidez
forma acertada que um grande número de economistas aborda a disciplina com que isso pode ser obtido; sabemos que a inflação pode ser reduzida
como se ela fosse "uma espécie de filosofia matemática" . Uma melhor por meio de políticas fiscal e monetária austeras e até mesmo o que leva-
expressão poderia ser "matemática social", ou seja, um ramo da matemá- rá para se reduzir a inflação a taxas percentuais dadas - sabemos mesmo?
tica que parece lidar com problemas sociais, porém que o faz apenas em Tudo isso ilustra que a economia deve ser acima de tudo uma ciência
um sentido formal. O que temos aqui é um tipo de formalismo: refestelar- empírica ou então deve abandonar sua antiga preocupação com a "enge-
se na técnica por amor à técnica. Colander e Klamer (1987; 1988) de- nharia social tipo colcha de retalhos " 6.
monstraram que os estudantes das faculdades americanas percebem que a Uma vez que se aceite que os economistas devem em última análi-
habilidade analítica constitui o critério mais importante para o sucesso se julgar suas idéias por meio do teste de evidência empírica - que o
profissional, não o conhecimento da economia ou familiaridade com a rigor analítico talvez tenha que ser trocado pela relevância prática -, não
literatura econômica. Estudantes são normalmente observadores astutos necessariamente resulta que eles precisam endossar a metodologia do fal-
de sua profissão futura e têm um faro sensível para notar a "agenda es- sificacionismo. 9 argumento em prol de uma economia baseada empirica-
condida" em seus currículos. É claro que os estudantes americanos da '
área de graduação perceberam corretamente que nada se iguala na econo- 6. Esse argumc111 0 foi colocado de forma mais enfalica por Hutchison (1988, pp. 172-173; 1992).
34 ~IETODOLOG!A DA ECONOMIA

mente pode derivar de considerações metodológicas com m minúsculo1 •


Sem dúvida, mas o fato é que qualquer recomendação metateórica não é
melhor que a metodologia que a sustenta. Apesar de McCloskey, não
existe nenhuma distinção lógica ou filosófica entre metodologia e Meto-
dologia. E a Metodologia que melhor apóia a luta dos economistas em
sua busca por conhecimento substantivo das relações econômicas é a filo-
sofia da ciência associada aos nomes de Karl Popper e Imre Lakatos.
Alcançar de fonna completa o ideal da falseabilid ade é, ainda acredito, o
I
objetivo principal da economia.
TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS SABER
SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA,
MAS TINHA MEDO DE PERGUNTAR

7. Mayer ( 1992) argu menla longamenle sobre isso em um novo livro cujo iilulo e sua mensagem: Trurh
Versus Precision i11 Eco T1 0111 ics ( Verdnde vers11s Precisão 11a Eco nomia).
1. DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER

A Visão Adquirida
Toda pessoa que consultar um moderno texto acadêmico sobre a
filosofia da ciência não tardará a concluir que se trata de um assunto
muito estranho; não é, como seria de se esperar, um estudo dos fatores
psicológicos e sociológicos que promovem e encorajam a descoberta de
hipóteses cientificas; não é uma investigação acerca das abordagens filo-
sóficas do mundo que se encontram implícitas nas teorias cientificas do-
minantes; não chega a ser uma reflexão sobre os princípios, métodos e
resultados das ciências físicas e sociais, que descrevem no mais alto nível
de generalidade os pináculos das descobertas cientificas. Na realidade,
parece consistir em uma análise puramente lógica da estrutura fonnal das
teorias cientificas, que parecem estar mais ligadas à prescrição de boa
prática cientifica do que à descrição daquilo que tem de fato passado
como ciência; e, quando eventualmente menciona a história da ciência,
refere-se à física clássica como se ela fosse a ciência protótipo, à qual
todas as demais disciplinas devem cedo ou tarde se ajustar, a fim de justi-
ficar o título "ciência".
Essa caracterização da filosofia da ciência é atualmente considera-
da ultrapassada, 'pois reflete o auge do positivismo lógico dos anos com-
preendidos entre as duas guerras mundiais. Entre os anos · 20 e 50,
38 METODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER 39

filósofos da c1encia concordavam mais ou menos com o que Frederick nheim (1965)1, que argumentava que todas as explicações verdadeiramen-
Suppe ( 197 4) denominou "A visão adquirida das teorias". Entretanto, os te científicas têm uma estrutura lógica comum: envolvem pelo menos
trabalhos de Popper, Polanyi, Hanson, Toulm.in, Kuhn, Lakatos e Feyera- uma lei universal, mais uma declaração de condições relevantes iniciais
bend, apenas para mencionar os nomes mais importantes, vieram a des- ou de limites, que, juntas, constituem a explanans ou premissas a partir
truir a visão adquirida sem, no entanto, substituí-la por nenhuma das quais uma explanandum, um enunciado sobre algum evento cuja ex-
t concepção alternativa aceitável. Resumindo, a filosofia da ciência tem es- plicação estejamos buscando, é deduzida com a ajuda das regras da lógica
tado em uma situação de tumulto desde os anos 60, o que complica a dedutiva. Por lei universal, queremos dizer uma tal proposição como "em
tarefa de estabelecer uma diretriz simples para o assunto no espaço de todos os casos em que ocorrem os eventos A, ocorrem também os eventos
1 dois capítulos. Enfim, há muito a dizer, começando com algumas princi- B", e tais leis universais podem ser de forma determinista quando se refe-
pais características da visão adquirida e somente então passando à nova rem aos eventos individuais B ou de forma estatística ao se referirem a
heterodoxia, usando o trabalho de Karl Popper como linha divisória entre classes de eventos B (assim, leis estatísticas tomam a forma: "em todos
as novas e antigas abordagens da filosofia da ciência. os casos onde os eventos A ocorrem, eventos B também ocorrem com
'
1
uma probabilidade de p, onde O<p<l"). Por meio das regras da lógica
dedutiva, queremos dizer algum tipo de raciocínio silogístico infalível
\1 O Modelo Hipotético-dedutivo como "se A é verdadeiro, então B é verdadeiro; A é verdadeiro; portanto,
B é verdadeiro" (isso é um exemplo daquilo que os estudiosos da lógica
'l De acordo com a abordagem padrão da ciência em meados do sé- denominam um silogismo hipotético). Nem é necessário acrescentar que a
culo XIX, as investigações científicas começam com a observação livre e lógica dedutiva é um cálculo abstrato e que a validade lógica do raciocí-
1
t sem preconceitos dos fatos, prosseguem por meio de inferência indutiva nio dedutivo ele forma alguma depende da verdade material ou da premis-
1 em direção à formulação de leis universais sobre esses fatos e chegam sa principal "se A é verdadeiro, então B é verdadeiro", ou da premissa
finalmente, por meio de indução mais ampla, a enunciados de generalida- menor "A é verdadeiro".
de ainda maior conhecidos como teorias; tanto as leis como as teorias são Hempel e Oppenheim 'prosseguiram demonstrando, a partir da es-
1
I!t finalmente examinadas para que se possa aferir seus conteúdos de verda- trutura lógica comum de todas as explicações verdadeiramente cientificas,
de, por meio de comparação de suas conseqüências empíricas com todos que a operação chamada explicação envolve as mesmas regras de inferên-
os fatos observados, inclusive aqueles com os quais elas iniciaram. Essa cia lógica que a operação chamada previsão, sendo a única diferença o
visão indutiva da ciência, perfeitamente resumida no livro System of Lo- fato de que as explicações vêm depois dos eventos e as previsões, antes.
gic, Ratiocinative and Inductive, de John Stuart Mill (1843), e que até No caso da explicação, começamos com um evento a ser explicado e
hoje continua sendo a concepção de ciência do cidadão comum, começou encontramos pelo menos uma lei universal mais um conjunto de condi-
a se desvanecer gradualmente na última metade do século XIX, sob a ções iniciais que logicamente significam o enunciado do evento em ques-
influência dos escritos de Ernst Mach, Henri Poincaré e Pierre Duhem, e tão. Em outras palavras, citar uma causa específica como sendo uma
foi quase totalmente substituída pelo modelo hipotético-dedutivo de expli- explicação de um evento é simplesmente classificar o evento em questão
cação científica que surgiu depois da virada do século no trabalho do sob uma lei universal ou conjunto de leis; por esse motivo, um crítico da
Circulo de Viena e dos pragmatistas americanos (ver Alexander, 1964; tese de Hempel-Qppenheim denominou-a "o modelo de explicação basea-
Harre, 1967; e Losee, 1972, caps. 10, 11).
1. Essa foi uma versão mais resguardada da mesma tese anunciada por Hempel ( 1942), a qual produziu um
Entretanto, somente em 1948 é que o modelo hipotético-dedutivo amplo debate enrre,os historiadores acerca do significado das explicações históricas (ver a nota de rodape
5). Enunciados antiiri~res e menos precisos do modelo hipotetico-dedutivo podem ser enconrrados na obra
foi colocado em termos formais, sendo considerado o único tipo de expli-
de Popper, Tlte Logfc o/ Sciencijic Discovery, publicada primeiro em alemão em 1934 e depois em inglês
cação válido na ciência. Essa versão autorizada apareceu pela primeira em 1959 .(1965, pp. 59, 68-9; tambem Popper, 1962, II, pp. 262·3 , 362-4; Popper, 1976, p. 117), e ate
vez em um trabalho hoje famoso, escrito por Carl Hempel e Peter Oppe- mesmo Mill, em 1843 (1973, pp. 471-2).
,.

DA VISÃO ADQUIRIDA À VISAO DE POPPER 41


40 METODOLOGIA DA ECONOMIA

do na lei" (Dray, 1957, cap. 1). No caso da previsão, por outro lado, Isso não quer dizer que seja fácil determinar se uma teoria científi-
começamos com uma lei universal mais um conjunto de condições ini- ca com característica de previsão notável alcança seus resultados devido
ciais e a partir daí deduzimos um enunciado sobre um evento desconheci- ao acaso ou mediante planejamento. Alguns críticos da visão adquirida
do; a previsão é usada para ver se a lei universal de fato se . mantém. têm argumentado que o modelo de explicação cientifica baseado na lei
Resumindo, uma explicação é simplesmente uma "previsão escrita pelo está fundamentado na análise de causa de David Hume . Para Hume, o
avesso". que se chama causa não é senão a conjunção constante de dois eventos
que são contíguos no tempo e no espaço, sendo o evento anterior no tem-
A noção de que existe uma simetria lógica e perfeita entre a nature-
po rotulado de "causa" e o evento posterior, "efeito'', embora, na reali-
za da explicação e a natureza da previsão foi rotulada de tese da simetria.
dade, não haja necessariamente conexão entre eles (ver Losee, 1972, PP ·
Constitui o âmago do modelo de explicação científica hipótetico-deduti- 104-6). Em outras palavras, nunca podemos ter certeza de que causa não
vo, ou baseado na lei. O ponto central do modelo é que ele não emprega é simplesmente a correlação entre o evento no tempo t e o evento no
outras regras de inferência lógica além da dedução (a força desse comen- tempo t + J. Os críticos têm rejeitado esse "modelo de causa e efeito do
tário se tomará clara dentro em pouco). As leis universais que estão en- tipo bola de bilhar" de Hume, insistindo que uma explicação cientifica
volvidas em explicações não são derivadas mediante generalização aenuína deve incluir um mecanismo que seja capaz de conectar causa e
indutiva a partir de exemplos individuais; são meras hipóteses, conjeturas ~feito e de garantir que a relação entre os dois eventos seja de fato "ne-
inspiradas, se assim quisermos ch<1má-las, que podem ser testadas se as cessária" (por exemplo, Harré, 1970, pp. 104-26; 1972, pp . 92-5, 114-32;
usarmos para fazer previsões sobre eventos específicos, mas que não po- e Harré e Secord, 1972, cap. 2).
dem ser reduzidas a observações sobre eventos. O exemplo da teoria da atração universal de Newton, entretanto,
demonstra que a demanda insistente por um mecanismo verdadeiramente
causal na explicação cientifica, se levada ao extremo, pode se tomar pre-
A Tese da Simetria judicial ao progresso cientifico. Ignore tudo sobre corpos em movimento,
disse Newton, com exceção de suas posições, massas, velocidades, e pro-
O modelo de explicação científica baseado na lei tem sido atacado videncie definições operacionais para esses termos; o resultado disso, a
a partir de um certo número de pontos de vista, e até mesmo o próprio teoria da atração, que incorpora a lei universal que diz que corpos se
Hempel, seu mais ardoroso defensor, recuou ao longo dos anos devido a atraem com uma força que varia de forma diretamente proporcional ao
esses ataques (Suppe, 1974, p. 28n). A maioria dos críticos toma a tese da produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da dis-
simetria como o alvo maior de todas as objeções. Argumenta-se que pre- tancia entre eles, nos habilita a prever o comportamento de fenômenos
visão não implica explicação e até mesmo que explicação não implica tão diversos como as órbitas elípticas dos planetas, as fases da Lua, as
necessariamente previsão. Esta última proposição, de qualquer maneira, é ocorrências das marés, a trajetória de projéteis atirados de armas de fogo,
bem clara: uma previsão requer apenas uma correlação, enquanto uma e até mesmo a velocidade com que maçãs caem de árvores. Entretanto,
explicação requer algo mais. Portanto, qualquer extrapolação linear de Newton não apresentou nenhum mecanismo do tipo puxa-empurra para
uma regressão ordinária é uma previsão, e ainda assim a própria regres- esclarecer a ação da gravidade - e não se descobriu nenhum -, e ele não
são pode não estar baseada em teoria alguma, não importando a relação foi capaz de combater a objeção de muitos de seus contemporâneos, com
entre as variáveis pertinentes, muito menos uma noção de quais são cau- relação à própria noção de que o fato de a gravidade agir instantaneamen-
sas e quais são efeitos. Não se precisa dizer a nenhum economista que se te à distância sem qualquer meio material para conduzir a força - dedos
pode fazer uma previsão econômica de curto prazo razoável, assim como fantasmaaóricos
b
acelerando através do vácuo! - constitui algo altamente
previsão de tempo de curto prazo confiável, com a ajuda de regras que metafisico1 . ·
}
levam a resultados satisfatórios, embora não tenhamos idéia de como isso
ocorra. Em resumo, pode-se prever bem sem explicar nada. 2. Sabemos que Newton tinha conhecimento dessa objeção; em uma carta a um amigo, escreveu: "A gravida-

l; ~·
42 METODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRIDA Ã VISÃO DE POPPER

Ainda assim, não se pode negar o extraordinário poder de previsão qüentemente citado por críticos da visão adquirida (por exemplo, Kaplan,
da teoria newtoniana, especialmente depois da confirmação em 1758 da 1964, pp. 346-5 1; Harré , 1972, pp. 56, 176-7), é a teoria da evolução de
previsão de Edmund Halley sobre o retomo do "cometa de Halley'' em Darwin, que procura explicar como formas biológicas altamente especiali-
1948 por Leverrier, que usou a lei do quadrado inverso para vaticinar a zadas se desenvolvem a partir de uma sucessão de outras menos especia-
existência de um planeta até então desconhecido, Netuno, baseando-se lizadas, através de um processo de seleção natural , que atua para
nas aberrações ·observadas na órbita de Urano: o fato de a teoria newto- maximizar a capacidade de reprodução sem, entretanto, especificar que
niana não ser infalível (veja a procura infrutífera de Leverrier de outro formas altamente especializadas irão emergir sob que condições ambien-
"planeta" desconhecido, Vulcano, para explicar as irregularidades do mo- tais específicas.
vimento de Mercúrio) foi convenientemente esquecido. Em resumo, pode- A teoria darwiniana, dizem os críticos, pode revelar muito sobre o
se argumentar que a teoria da atração de Ne wton é apenas um processo evolucionário uma vez que ele tenha ocorrido, mas muito pouco
instrumento altamente eficiente para gerar previsões que são aproximada- sobre tal processo antes que ele se concretize. Não é que a teoria darwi-
mente corretas para todos os objetivos práticos dentro de nosso sistema niana não estabeleça as condições iniciais necessárias para a ocorrência
solar, apesar de não ser capaz de "explicar" o movimento dos corpos. De da seleção natural, e sim que não apresenta leis uni versais definitivas so-
fato , pensamentos como esse levaram Mach e Poincaré no século XIX a bre os índices de sobrevivênci a das espécies sob diferentes circunstâncias
afirmar que todas as teorias e hipóteses científicas são ' apenas descriçÕes ambientais . Ao fazer uma previsão, ela supõe a possibilidade de um certo
condensadas de eventos naturais, não sendo verdadeiras nem falsas em resultado condicionado a que outros eventos de fato ocorram, e não a plau-
essência, porém simples convenções usadas para o armazenamento de in- sibilidade daquele resultado se os eventos ocorrerem. Por exemplo, ela su-
formação empírica, cujo valor será determinado exclusivamente mediante gere que uma certa proporção de uma espécie dotada da capacidade de
o principio da economia de pensamento - isso é o que se chama atual- nadar sobreviverá à inundação súbita de seu hábitat, até então árido, porém
mente metodologia do convencionalismo. não pode prever a proporção que de fato sobreviverá a uma inundação real
e nem mesmo se essa proporção será maior que zero (Scriven, 1959).
Pode-se dizer que a previsão, até mesmo partindo de uma teoria
Seria injusto afirmar que a teoria darwini ana comete a famosa falá-
altamente sistemática e rigorosamente axiomatizada, não implica necessa-
cia do post hoc, ergo propter hoc, ou seja, inferir a causa a partir da
riamente explicação. Mas e a proposição inversa: pode-se ter explicação
simples conjunção casual , pois Darwin apresentou um mecanismo para
sem fazer previsão? A resposta depende do que queremos dizer com ex-
explicar o processo evolucionista_ A causa da variação de espécies de
plicação, uma questão que evitamos cuidadosamente até agora. No senti-
acordo com Darwin é a seleção natural, e a seleção natural se expressa
do mais amplo da palavra , explicar é responder a uma pergunta do tipo
através de uma luta pela existência que opera através da reprodução e
"Por quê?" ; e reduzir o misterioso e desconhecido a algo conhecido e
variações ao acaso no que ele chamou gemmules, semelhante à seleção
próximo, produzindo então a exclamação: " Ah, então é isso!" Se aceita-
doméstica feita por criadores de animais . O mecanismo de hereditarieda-
mos esse uso deliberadamente informal do idioma, chegamos à conclusão
de de Darwin era essencialmente um sistema através do qual os traços
de que existem teorias científicas que geram aquele tipo de atitude, mas
herdados de cada pai eram misturados nos filhos , sendo progressivamente
que, todavia, pouco ou nada produzem ao nível de previsão sobre as clas-
diluídos em gerações sucessivas . Infelizmente, o mecanismo especificado
ses de eventos com as quais elas se relacionam. Um bom exemplo, fre-
é imperfeito: nenhuma nova espécie poderia surgir, pois qualquer muta-
ção, ou sport como chama Darwin, desapareceria mediante tal mistura no
de deve ser causada por um agente que funciona de forma constante e de acordo com certas leis, mas se
esse agente é material ou imnterial, deixo isso ã consideração de meus leitores" (citado em Toulmin e
espaço de várias gerações, até o ponto em que deixaria de ter qualquer
Goodfield, 1963, pp. 28 1-2; ver lambem Toulm in e Goodfi eld, 1965, pp. 217-20; Hanson, 1965, pp. 90-1 ; valor seletivo. O próprio Darwin reconheceu essa objeção, e na última
Losee, 1972, pp. 90-3). Da mesma forma, o histórico da concepção da hi pnose (do "magnetismo animal" edição de A Otigem das Espécies fez concessões cada vez maiores à de-
ao "mesmerismo" até "hipnose") demonstra que muitos íenômenos naturais conhecidos, por exemplo, o
uso eficaz de hipnose como anestésico médico, não podem ser explicados até hoje em termos de uma sacreditada corih pção lamarckiana da herança direta de caracteres adqui-
intervenção de um mecanismo causal no processo. ridos, num esforço para apresentar algo como explicação convincente da
44 METODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER 45

evolução 3 • Para Lamarck, a girafa tem o pescoço comprido porque precisa forma , dizer que a evolução darwiniana pode explicar o pescoço da girafa
alcançar as folhas que estão no alto das árvores e tal característica adqui- moderna, porém nunca poderia tê-lo previsto com antecedência, equivale
rida é passada para sua descendência, que por sua vez estica ainda mais o a não compreender a teoria darwiniana, a qual prevê, se é que prevê de
pescoço. De acordo com Darwin as girafas têm filhotes com pescoços de alguma forma, não para indivíduos (como as girafas) ou para organismos
comprimentos diferentes e a escassez de folhas dá às girafinhas com pes- (como os pescoços) e sim para características ou conjuntos de caracterís-
coço mais comprido uma chance maior de sobreviver, acasalar e dessa ticas . O próprio Darwin sabia perfeitamente que certos fatos , tais como a
forma produzir mais girafas com pescoço comprido igual ao seu; ao lon- existência de insetos assexuados e híbridos estéreis, pareciam contradizer
go de gerações esse mesmo efeito eventualmente produz a girafa do pes- sua teoria ; por isso todo um capítulo de A Origem das Espécies foi devo-
coço comprido tal como a conhecemos. Os dois mecanismos tado a "objeções diversas à teoria da seleção natural'', isto é, característi-
evolucionistas são radicalmente diferentes e o fato de Darwin ter concedi- cas que não poderiam ter evoluído por meio da seleção natural. Em
do mesmo uma mínima menção à Lamarck comprometeu seriamente sua resumo, o darwinismo é pass ive! de refutação por meio de observações, o
argumentação fundamental. A ironia é que nessa época, 1872, sem que que está bem longe do fato de que em tempos recentes alguma especiali-
l
., Darwin ou qualquer outra pessoa soubesse, Mendel ja havia descoberto a
idéia de genes, isto é, unidades distintas de hereditariedade que são trans-
zação à la Darwin tem sido observada de forma direta (Ruse, 1982, pp .
97-108; Ruse , 1980, pp. 20-26). Nesse sentido, a evolução darwiniana
mitidas de geração a geração sem que haja mistura ou diluição. A genéti- não é um tipo de teoria logicamente diferente da, digamos, mecânica
ca mendeliana dotou a teoria darwiniana de um mecanismo causal newtoniana ou da relati vidade eisteiniana (Williams, 1973; Flew, 1984,
convincente, mas em nossa opinião deixou o status da teoria da evolução pp. 24-3 1; Caplan, 1985). Entretanto, pode-se admitir que o modelo de
essencialmente onde ele estava antes: a teoria darwiniana parece que ex- explicação ci entifica baseado na lei com seu corolário, a tese da simetria,
plica o que não pode prever e oferece pouco apoio aos seus argumentos, não pode acomodar facilmente a teoria darwiniana da evolução'.
exceto indiretamente, depois do fato. O próprio Darwin se declarava de- Existem outros exemplos de teorias que parecem apresentar expli-
fensor do modelo hipotético-dedutivo de explicação científica (Ghiselin, cações sem fazer previsões exatas , como, por exemplo, a psicanálise de
1969, pp. 27-31, 59-76, George, 1982, pp. 140-50), mas o fato é que para
Freud e a teoria do suicídio de Durkheim, acusadas de não serem verda-
alguns até hoje ele é "o paradigma do cientista explicador, mas não-pro-
deiramente cientificas. Exemplos ainda mais amplos são constituídos por
fético" (Scriven, 1959, p. 477). Isso talvez tenha sido dito para exagerar
todas as formas de explicações históricas, que, na melhor das hipóteses,
o fato, pois o darwinismo se baseia em um certo número de colocações
geram condições suficientes, mas não necessárias, para que um certo tipo
condicionais específicas sobre a realidade - por exemplo, que a descen-
de evento ocorra ou que tenha ocorrido; o que os historiadores explicam é
dência varia em fenótipos; que tais variações são sistematicamente rela-
quase nunca dedutível a partir de suas explanans e, portanto, não resulta
cionadas aos fenótipos dos pais; e que diferentes fenótipos deixam
em algo que seja uma prev isão exata (ou retro visão). As explicações his-
números diferentes de descendência em gerações remotas e implica algu-
tóricas são de fato controladas por evidência fatu al, assim como o são as
mas previsões definidas, como, por exemplo, que espécimes nunca reapa-
explicações científicas; porém, a evidência normalmente é tão esparsa e
recem; sendo assim, se o cisne de capelo voltasse, o darwinismo seria
I'. ambígua que se torna compatível com um amplo número de explicações
refutado (Mayr, 1982, cap. 10; Rosemberg, 1985, caps. 5 e 7). Da mesma
alternativas e até mesmo conflitantes. Portanto, é difícil se resistir ao ar-
gumento de Hempel ( 1942), segundo o qual praticamente todas as expli-
3. É com satisfação que notamos que Darwin foi inspirado por um economista, Thomas Maltus, e fortemente
criticado por outro , Fleeming Jcnkin, um professor de engenharia da Universidade de Edinburgh (Jenkin, a cações históricas são pseudo-explicações: elas podem ser verdadeiras ou
propósito, foi o primeiro economista inglês a desenhar curvas de procura e oferta). Foi Jcnkin quem pri- falsas, porém raramente saberemos qual das circunstâncias ocorre, e o
meiro demonstrou em um artigo sobre A Origem das Espécies em 1867 que a teoria darwiniana era incor-
reta, da fonna como Darwin a enunciava. Foi essa objeção talvez que tenha encorajado Darwin a inserir
um novo capitulo na sexta edição de A Origem das Espécies, ressuscitando as idêias de Lamarck (ver 4. Talvez por isso Ói"quc Popper (1976, pp. 168, 171-180; lambem 1972a, pp. 69, 241-2, 267-8) uma vez
Jenkin, 1973, em particular pp. 344-5; Toulmi n e Goodfield, 1967 , cap. 9; Ghiselin, 1969, pp. 173-4; Lee, argumentou que a teoria darwiniam1 da evolução não _e uma teoria cientifica testável e sim "um programa
1969, Mayr, 1982, pp. 512-4). de pesquisa metafisico - um arcabouço passivei para teorias cicn1ificas tes1âveis" .

----------------
DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER 47
46 METODOLOGIA DA ECONOMIA

historiador normalmente não está preparado para nos ajudar a distinguir são de que sua diversidade é mais marcante do que sua similaridade; pa-
entre uma e outra. rece que não existem propriedades comuns a todas as teorias científicas.
Resumindo: podemos fazer a defesa da tese da explicação-sem-pre- Além de explicações históricas, dedutivas, semelhantes a leis, esta-
visão, porém não se trata de uma defesa forte, e eu continuo convencido tísticas, as quais já mencionamos, a ciência social e a biologia em geral
de que o modelo de explicação científica baseado na lei sobrevive bem a oferecem numerosos exemplos de explicações funcionais ou teleológicas,
toda a crítica que lhe tem sido dirigida . Trata-se de uma posição contro- sob a fonna de indicação do papel instrumental que uma certa unidade de
versa, mas é suficiente que se diga que devemos estar na defensiva ao um organismo desempenha ao manter um certo estado do organismo, ou
recebermos uma explicação que não faz uma previsão, isto é, quando, em
que a ação humana individual representa ao trazer à tona um objetivo
vez de uma explicação, recebemos "compreensão". " Nós entendemos as
coletivo (ver Nagel, 1961, pp . 20-6). Esses quatro ou cinco tipos de expli-
causas dos terremotos", diz Frank Hahn (1985, p. 10), " porém no mo-
mento não podemos prevê-los ou ". Pelo contrário, todavia: os geofísicos cação aparecem em uma va riedade de teorias científicas, e as próprias
têm feito grandes progressos em anos recentes no campo da previsão de teorias podem ser classificadas em várias dimensões (por exemplo, Sup-
terremotos, porque eles chegaram a entender com precisão suas causas. pe, 1974, pp. 120-5; Kaplan, 1964, pp. 298-302).
De qualquer fonna, quando o entendimento não está acompanhado de ca-
Porém até mesmo tais tipologias ·detalhadas de teorias científicas
pacidade de previsão, deveríamos perguntar: será que é porque não pode-
trazem dificuldades, pois muitas teorias combinam diferentes fonnas de
mos assegurar toda a informação relevante sobre as condições iniciais,
assim como na maior parte da evolução biológica, ou será que é porque a explicação, de maneira que não é verdadeiro que todas as teorias científi-
explicação não se baseia de forma alguma em uma lei universal ou pelo cas classificadas sob uma denominação comum revelarão as mesmas pro-
menos uma generalização solta de algum tipo, assim como em tantas ex- priedades estruturais. Em outras palavras, assim que desenvolvemos uma
plicações históricas? Se ocorre esta última opção, eu diria que definitiva- visão abrangente da prática científica, chegamos à conclusão de que existe
mente estão querendo nos passar gato por lebre, pois não é possível se material em demasia para que seja possível fazer uma simples "reconstrução
1 explicar qualquer coisa sem referência e um conjunto maior do qual essa racional" das teorias, a partir da qual pudéssemos produzir normas metodo-
1
,1 coisa é um elemento (ver Elster, 1989). lógicas a serem obedecidas por todas as teorias científicas adequadas.

A tensão entre descrição e prescrição na filosofia da ciência, como


Normas Versus Prática Corrente também entre a história· da ciência e a metodologia da ciência, foi um
fator decisivo ao abandono da visão adquirida nos anos 60 (ver Toulmin,
Nó> já vimos que o modelo de explicação científica baseado na lei 1977). Essa tensão também se faz sentir na abordagem de Karl Popper do
exclui a ma ior parte daquilo que pelo menos algumas pessoas considera-
papel da falseabilidade no progresso científico, que se tornou um dos
vam ciência. E esse é exatamente seu objetivo: ele procura "dizer como
pontos principais de oposição à visão adquirida. A discussão das idéias de
deveria ser" e não "dizer como é". Essa função prescritiva e normativa
Popper permitirá que retornemos à tese da simetria com novos insights.
do modelo de explicação baseado na lei é considerada objetável por seus
críticos. Eles argumentam que, em vez de enunciar as exigências lógicas
representa o que eles na realidade fazem: a história ê um assunlo "idiogrãfico" e não "nomolético", e
de uma explicação científica, ou as condições mínimas que deveriam ser
estuda eventos e pessoas específicos, e não leis gerais do desenvolvimento (ver Dray, 1957; 1966) . Mas a
preenchidas por teorias científicas, poderíamos aproveitar melhor ~osso essência do argumento original de Hempel era que ate mesmo eventos individuais não podem ser explica-
tempo classificando e caracterizando as teorias que são de fato emprega- dos a não ser que se invoquem generali zações de algum tipo, não imporia quão triviais, e que os historia-
dores normalment~ aprcsentarn apenas um "GSboço de explicação" porque deixam de especificar suas
das no discurso científico5 . Ao fazer isso, dizem eles, chegamos à conclu-
generali zações ou afirmam sem funda mento que das são bem atestadas. O debate sobre a visão adquirida
entre filósofos da ciência e, por tanto, reproduzido pelo debate de Hempel- Dra y entre os filósofos da histó-
ria (ver McClelland, 1975, cap. 2, para sumário criterioso).
5. Da mesma forma, historiadores têm argumentado que o modelo de explicação histórica baseado na le i não
48 METODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRIDA À VISAO DE POPPER 49

Falseabilismo de Popper forma ampla em uma série de livros influentes escritos por Percy Bridg-
man. Para descobrir o significado de qualquer concepção científica, afir-
Popper começa com a diferença entre ciência e não-ciência, o seu mava Bridgman, devemos apenas especificar a operação física que se
chamado critério de demarcação, e termina com a tentativa de estabelecer efetua para lhe atribuir valores numéricos: o comprimento é a medida dos
padrões para a avaliação de hipóteses científicas concorrentes em termos objetos em uma dimensão simples e a inteligência é o que é medido por
de seus graus de verossimilhança . Ao fazer isso, ele se afasta da visão testes de inteligência (ver Losee, 1972, pp. 181-4).
adquirida, em que o objetivo da filosofia da ciência é reconstruir racio- Popper rejeita todas as tentativas de diferenciar o que tem signifi-
nalmente as teorias científicas desordenadas do passado de forma a encai- cado daquilo que não o tem, e as substitui por um novo critério de demar-
xá -las em certos cânones da explicação científica. Com Popper, a cação que divide todo conhecimento humano em duas classes
filosofia da ciência toma-se uma matéria em que buscamos métodos de mutuamente exclusivas, rotuladas de "ciência" e "não-ciência ". A res-
avaliação de teorias científicas propostas . posta tradicional do século XIX a esse problema de demarcação era que a
O ponto de partida de Popper é uma crítica da filosofia do positi- ciência difere da não-ciência pelo fato de usar o método da indução: a
vismo lógico da forma como foi adotado pelo Círculo de Viena e coloca- ciência começa com experiência e prossegue através de observação e ex-
do no que veio a se chamar o princípio da verificabilidade do perimentos, até chegar ao arcabouço de leis universais com a ajuda das
significado. Esse princípio estipula que todos os enunciados são analíticos regras de indução. Infelizmente, existe um problema lógico acerca da jus-
ou sintéticos - ou são verdadeiros por meio da virtude de definição de tificação da indução, que tem preocupado os filósofos desde o tempo de
seus próprios termos ou são verdadeiros, se é que o são, pela virtude da David Hume. Tome-se um exemplo concreto: os homens deduzem a lei
experiência prática - e declara que todos os enunciados sintéticos são universal de que o sol sempre nasce de manhã a partir da experiência
significat ivos se, e somente se, forem capazes, pelo menos em princípio, passada, que mostra que o sol nasce de manhã; entretanto, isso não pode
de serem empiricamente verificados (ver Losee, 1972, pp. 184-90). Histo- ser uma dedução logicamente conclusiva, no sentido em que premissas
ricamente, os membros do Circulo de Viena (Wittgenstein, Schlick e Car- verdadeiras necessariamente implicam conclusões verdadeiras, pois não
nap) empregaram o princípio da verificabilidade do significado como há garantia de que aquilo que experimentamos até agora persista no futu -
uma agulha para perfurar as pretensões metafisicas tanto na ciência como ro. Argumentar que a lei universal do nascimento do sol está baseada em
na não-ciência, sugerindo que até mesmo alguns enunciados que passa- experiência invariante é, conforme Hume, incorrer em petição de princi-
vam como ciência e com certeza todos os enunciados que não eram pre- pio, pois transfere o problema da indução do caso em questão para um
tensamente científicos poderiam ser desprezados por não te~em outro caso; o problema é o quão lógico se pode ·deduzir algo sobre a
significado6 . Na prática, o principio da verificabilidade criou uma forte experiência futura baseando-se em nada, a não ser a experiência passada.
suspeita a.:erca do uso de concepções não-observáveis em teorias científi- Em alguma etapa do argumento, a indução de exemplos específicos até
cas, como espaço absoluto e tempo absoluto na mecânica de Newton, uma lei uni versal requer um salto ilógico no pensamento, um elemento
elétrons na física de partículas, vínculos de valência na química e a sele- extra que pode levar de premissas verdadeiras a conclusões falsas. Hume
ção natural na teoria da evolução. Um produto típico dessa tendência an- não negou que nós constantemente generalizamos a partir de casos indivi-
duais por causa do hábito e pela associação espontânea das idéias; o que
timetafísica dos positivistas lógicos foi a metodologia do
ele negou foi que tais deduções fossem logicamente justificáveis. Esse é o
operacionalismo, introduzida em 1927 e posteriormente disseminada de
famoso problema da indução.

6. Conclui·se que enunciados como "Deus exislr.", "a vida ê sagrada", "a guerra é má" e "as obras de
A partir do argumento de Hume, estabelece-se uma assimetria fun-
R emb~andt são lindas" são t.:xpressões de gosto pessoal que não lêm nenhum significado lógico ou fil osó· damental entre .indução e dedução, entre provar e relutar, entre verifica-
fico. E claro que têm algum tipo de significado e, portanto, a própria escolha da linguagem para expressar ção e falsifica;~ão, entre estabelecer a verdade e negá-la . Nenhum
o princípio de verificação do significado foi projetada para provocar os lradicionalistas de todos os tipos.
O sabor revolucion~rio do positivismo lógico foi perfeitamente caplado naquele que é o melhor best-seller enunciado universal pode ser loboicamente derivado de afirmacões

sinou-
b
filosófico de todos os tempos. o La11g11age, Trnrh a11d Lagic (1936), de Alfred .Ayer. lares, não importa quantas, nem conclusivamente estabelecido por elas.
50 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER 51

Porém, pode-se contradizer logicamente ou refutar qualquer enunciado premissa principal na afirmação hipotética, para que a conclusão "B é
universal com a ajuda da lógica dedutiva mediante apenas um enunciado verdadeiro" continue necessariamente lógica. Lembre-se de que o termo
singular. Ilustremos com um exemplo favorito de Popper (que, de fato, verdadeiro em toda essa argumentação se refere à verdade lógica e não à
originou-se com John Stuart Mil!): por mais que se observe os cisnes verdade efetiva.
brancos, não se pode inferir que todos os cisnes são brancos, porém a Considere o que acontece se alterarmos ligeiramente a premissa
observação de um único cisne negro é suficiente para refutar aquela con- secundária do nosso silogismo hipotético, de forma que tenhamos : "Se A
clusão. Em resumo, não se pode demonstrar que qualquer coisa é mate- é verdadeiro, então B é verdadeiro; B é verdadeiro; portanto, A é verda-
rialmente verdadeira, mas pode-se demonstrar que algumas coisas são deiro". Em vez de afirmar o antecedente, agora "afirmamos o conseqüen-
materialmente falsas, um enunciado que podemos considerar como sendo te" e tentamos argumentar a partir da verdade do conseqüente, "B é
o primeiro mandamento da metodologia científica. Popper explora essa verdadeiro", para a verdade do antecedente, "A é verdadeiro" . Mas isso
assimetria fundamental ao formular seu critério de demarcação: a ciência é uma argumentação falaciosa, pois a nossa conclusão não deve seguir
é aquele corpo de proposiçàes sintéticas sobre o mundo real que pode, necessariamente a lógica de nossas premissas. Um simples exemplo ilus-
pelo menos em princípio, ser falseada mediante observaçàes empíricas. trará o ponto: se Blaug é um filósofo qualificado, ele sabe usar correta-
Portanto, a ciência se caracteriza pelo seu método de formular e testar mente as regras da lógica; Blaug sabe usar corretamente as regras da
proposiçàes, não pelo seu campo de estudo ou por sua presunção em lógica; portanto, Blaug é um filósofo qualificado (aliás, ele não é) .
apresentar certeza de conhecimento; qualquer que seja a certeza apresen-
É logicamente correto "afirmar o antecedente" (algumas vezes
tada pela ciência, essa é a certeza da ignorância.
chamado modus ponens), porém "afirmar o conseqüente" é uma falácia
A linha demarcatória entre ciência e não-ciência, entretanto, não é
lógica. O que podemos fazer, todavia, é "negar o conseqüente" (modus
absoluta: tanto a falseabilidade como a !estabilidade são assuntos de
tollens), e isso sempre será logicamente correto. Se expressarmos o silo-
graus (Popper, 1959, p. 113; 1972b p. 257; 1976, p. 42) . Em outras pala-
gismo hipotético em sua forma negativa, temos: "Se A é verdadeiro, en-
vras, devemos encarar o critério de demarcação como a descrição de um
tão B é verdadeiro; B não é verdadeiro; portanto, A não é verdadeiro".
espectro mais ou menos continuo de conhecimento em que em uma extre-
Continuando com nossa ilustração anterior: se Blaug não conseguir usar
midade encontramos certas ciências naturais "pesadas", como a física e a
corretamente as regras da lógica, estaremos logicamente justificados, ao
química Uunto dessa temos as ciências mais "leves", como a biologia
concluir que ele não é um filósofo qualificado.
evolucionária , geologia e cosmologia), e na outra, a poesia, as artes, a
crítica literária etc., ficando a história e todas as ciências sociais em algum Expressando o mesmo ponto de forma mais informal: modus po-
ponto entre as extremidades, de preferência mais perto da área científica. nens na lógica formal significa que a verdade das premissas é transmitida
para as conclusàes, porém a falsidade não o é; modus tollens, por outro
lado, significa que a falsidade das conclusàes é transmitida de volta para
Uma Falácia Lógica as premissas, porém a verdade não o é. A primeira diz que, quando as
premissas são comprovadamente falsas, a verdade ou falsidade das con-
Elaboremos a distinção entre capacidade de verificação e de falsea- clusàes é ainda urna questão em aberto; a última diz que, quando as con-
bilidade mediante breve digressão, dentro do assunto fascinante das falá- clusàes são falsas, uma ou mais das premissas deve ser falsa, porém,
cias lógicas. Dado o silogismo hipotético, "Se A é verdadeiro, então B é ainda que as premissas fossem verdadeiras, não poderíamos garantir a
verdadeiro; A é verdadeiro; portanto, B é verdadeiro", o enunciado hipo- verdade das conclusàes.
tético da premissa principal pode ser separado no antecedente, "Se A é Aqui está um motivo que leva Popper a enfatizar a idéia de que
verdadeiro", e no conseqüente, "então B é verdadeiro". A fim de chegar existe uma assiinetria entre verificação e falsificação. De um ponto de
à conclusão "B é verdadeiro", devemos poder dizer que A é de fato ver- vista estritament~ lógico, nunca podemos estabelecer que uma hipótese é
dadeiro; no jargão técnico da lógica, devemos "afirmar o antecedente" da necessariamente verdadeira porque concorda com os fatos; ao raciocinar a
52 METODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISAO ADQUIRIDA À VISAO DE POPPER 53

partir da verdade dos fatos até a verdade da hipótese, implicitamente- co- ma. Em resumo, sua colocação de que "resolveu" o problema da indução
metemos a falácia lógica de "afirmar o conseqüente". Por outro lado, é até certo ponto uma brincadeira com palavras 7•
podemos negar a verdade de uma hipótese com referência aos fatos, pois, Para evitar mal-entendidos, devemos analisar o duplo sentido do
ao raciocinar a partir da ausência dos fatos até a falsidade da hipótese, termo indução na linguagem coloquial. Até agora, falamos sobre indução
invocamos o processo logicamente correto de raciocínio chamado "nega- no sentido estritamente lógico, como um argumento que usa premissas
ção do conseqüente" ou modus tollens. Resumindo todo o argumento em que contêm informação sobre alguns membros de uma classe a fim de
uma fórmula mnemônica, podemos dizer: não há lógica de prova, porém apoiar uma generalização sobre toda a classe, incluindo dessa maneira
existe uma lógica de contestação. alguns membros não examinados dessa mesma classe. Para Popper, assim
como para Hume, a indução nesse sentido não é um argumento lógico
válido; somente a lógica dedutiva apresenta o que os filósofos chamam de
O Problema da Indução argumentos "demonstrativos" ou compelativos, através dos quais as pre-
missas verdadeiras sempre levam a conclusões verdadeiras. Porém, na
Se a ciência é caracterizada por uma tentativa sem fim de falsear ciência, assim como no pensamento cotidiano, estamos continuamente
hipóteses existentes e substitui-las por outras que resistem à falsificação, sendo confrontados por argumentos também rotulados de "indutivos",
é natural que se pergunte de onde vêm essas hipóteses. Popper ( 1959, pp. que tentam mostrar que hipóteses especificas são apoiadas por fatos espe-
31-2) segue a visão adquirida ao rejeitar qualquer interesse no chamado cíficos. Tais argumentos podem ser chamados "não-demonstrativos", na
"contexto de descoberta " como distinto do "contexto de justificação" - o medida em que as conclusões, embora apoiadas pelas premissas, não são
logicamente " suportadas" por elas (Barker, 1957, pp. 3-4); mesmo que as
problema da gênese do conhecimento cientifico é consignado à psicologia
premissas sejam verdadeiras, uma conclusão indutiva não-demonstrativa
ou sociologia do conhecimento -, porém ele insiste em que, seja qual for
não pode logicamente excluir a possibilidade de que a conclusão final
a origem das generalizações cientificas, não se trata de indução de caso
seja falsa. Portanto, "eu vi um grande número de cisnes brancos: eu nunca
especifico. Para ele, a indução é simplesmente um mito; as inferências
vi um cisne preto; portanto, todos os cisnes são brancos" é uma conclusão
indutivas não são somente inválidas, como Hume demonstrou há muito
indutiva não-demonstrativa que não é vinculada às premissas principais e
tempo; elas são, na realidade, impossíveis (Popper, 1972a, pp. 23-9;
secundárias; ambas podem ser verdadeiras e ainda assim a conclusão pode
l 972b, p. 53). Não podemos fazer generalizações indutivas a partir de
divergir. Em resumo, um argumento não-demonstrativo pode, na melhor
uma série de observações, pois no momento em que selecionamos certas das hipóteses, convencer uma pessoa razoável, enquanto um argumento de-
observações dentre o número infinito de possibilidades, já nos detemos monstrativo deve convencer até mesmo uma pessoa teimosa.
em um ponto de vista que é em si mesmo uma teoria, ainda que bruta e
A asserção de Popper de que "a indução é um mito" se refere à
sem sofisticação. Em outras palavras, não existem "fatos brutos", e todos
indução enquanto argumento lógico demonstrativo, e não enquanto tenta-
os fatos estão carregados de teoria - uma idéia fundamental, à qual volta-
tiva não-demonstrativa de confirmar uma hipótese, envolvendo com fre -
remos mais adiante. Popper, assim como Hume, não nega que a vida coti-
qüência um exercício de inferência estatistica 8 . Pelo contrário, como
diana esteja cheia de exemplos de indução prima facie, mas, ao contrário
de Hume, ele vai até o ponto de negar que sejam generalizações que
7. A história da filosofia está simplesmente cheia (k tentativas fracassadas de resolver "o problema da indu-
fortalecem o que anteriormente não passava de intuições prévias. Na vida ção'". Atê mesmo economistas não têm sido capazes de resistir atentação de refutar Hume. Por exemplo,
comum, assim como na própria ciência, diria Popper, adquirimos conheci- Roy Harrod (1956) escreveu um livro tentando justificar a indução como uma espCcic de raciocínio proba-
bilistico, considaando a probnbilidnde como uma relação lógica e não uma carnc teristica obje ti va dos
mento e crescemos por meio de uma constante sucessão de conjeturas e eventos. A questão envolve alguns enigmas na prôpria concepção de probabi lidade que não podemos exa·
impugnações, usando o método conhecido de tentativa e erro. Nesse sen- minar aqui (mas v}ja Ayer, 1970).
8. A tendência de eSQuecer o duplo significado do 1en110 "indução .. G responsâvcl por alguns dos ataques
tido, podemos dizer que Popper não chegou mesmo a resolver o problema
desfrchados contra as severas criticas de Popper ao indulivismo (ver, por exemplo, Grunbaum, l 976).
da indução, que ele afirmava ter conseguido, e sim dissolveu tal proble- Barker ( l 957) apresenta boa abordagem desses lemas, apesar de sua discussão sobre Popper deixar a

lj
54 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRID:\ AVISAO DE POPPER 55

veremos, Popper tem muito a dizer sobre a indução não-demonstrativa ou Estratagemas de Imunização
aquilo que às vezes é chamado de a lógica da confirmação. Tudo isso
para dizer que dificilmente poderá haver algo que confunda mais do que Voltemos a Popper. Ele faz freqüentes referências, especialmente
a noção comum de que dedução e indução são operações mentais opostas, em suas primeiras obras, ao modelo de explicação cientifica baseado na
com a dedução nos levando do geral ao especifico e a indução, do especí- lei, e apresenta também uma desconfiança crescente com relação à tese
fico ao geral. O contraste pertinente nunca se dá entre dedução e indução, da simetria. Para ele as previsões têm grande importância no teste de
porém entre inferências demonstrativas que são certas e inferências não- teorias explanatórias, mas isso não quer dizer que ele considera a expla-
demonstrativas que são precárias (ver Cohen, 1931, pp. 76-82; Cohen e nans de uma teoria como se fosse apenas uma máquina que produz previ-
Nagel, 1934, pp. 273-84) . sões. "Considero o interesse do teórico na expla11atio11 - ou seja, em
Poderíamos evitar uma enorme confusão se pudéssemos encorajar descobrir teori as explanatórias - como sendo irredutível ao interesse tec-
o uso lingüístico de "adução" para denominar estilos não-demonstrativos nológico prático na dedução de previsões" (1959, p. 6ln; também 1972a,
de raciocínio vulgarmente rotulados de "indução" (Black, 1970, p. 137). pp. 191-5; Popper e Eccles, 1977, pp. 554-5; e nota 1, acima). Os cientis-
Por exemplo, é comum se encontrar enunciados assim: toda ciência é ba- tas procuram explicar e produzem as previsões lógicas inerentes às suas
seada em indução; dedução não é senão uma ferramenta para o pensa- explicações a fim de testar suas teorias; todas as teorias "verdadeiras"
mento claro que não pode servir de instrumento para o ganho de novo são apenas provisoriamente verdadeiras, tendo até então contestado a fal-
conhecimento, sendo um tipo de máquina de fazer lingüiça que somente sificação; expressando de outra forma, toda a verdade material que pos-
suímos está embutida nessas teorias que ainda não foram falsificadas.
produz em uma extremidade o que teria entrado na outra extremidade;
somente através da indução podemos aprender coisas novas sobre o mun- Toda a questão, portanto, se resume em definir se podemos de fato
do, e, afinal, a ciência é a acumulação de novos conhecimentos sobre o falsificar teorias, e mesmo que possamos, se podemos fazê-lo de forma
mundo. Esse ponto de vista, virtualmente uma paráfrase da Lógica de decisiva. Há muito tempo, Pierre Duhem argumentou que nenhuma hipó-
tese cientifica era conclusi vamente fa lsificável , pois sempre testamos toda
John Stuart Mil!, é simplesmente uma medonha confusão de palavras. Su-
a explanans, a hipótese especifica em conjunção com enunciados auxilia-
põe que a indução é o oposto de dedução e que esses são os únicos méto-
res, e assim nunca podemos ter certeza de que confirmamos ou refutamos
dos de pensamento lógicos. Entretanto, não existe indução demonstrativa,
a própria hipótese. Assim, qualquer hipótese pode ser mantida em face de
e adução não é de forma alguma o oposto de dedução, sendo de fato um
evidência em contrário, e, portanto, sua aceitação ou rejeição é, de certa
tipo totalmente diferente de operação mental; adução é a operação não-ló- forma, convencional. A título de exemplo: se quisermos testar a lei da
gica que consiste em pular do caos, que é o mundo real, para uma intui- queda dos corpos de Galileu, terminaremos necessariamente testando a lei
ção ou tentativa de conjetura acerca da relação real existente entre o de Galileu juntamente com uma hipótese auxiliar sobre o efeito da resis-
conjunto de variáveis pertinentes. O modo de se dar esse salto pertence tência do ar, pois a lei de Galileu se aplica a corpos que caem em um
ao contexto da descoberta. O estudo desse contexto não deve ser despre- vácuo perfeito, e vácuos perfeitos são impossíveis de se obter na prática.
zado, como é habitual entre os positivistas e até mesmo entre os poppe- Assim, nada nos impede de deixar a refutação da lei de Galileu de lado,
rianos, mas o fato é que a filosofia da ciência se preocupa exclusivamente com a alegação de que os instrumentos de medição falharam, não conse-
com o próximo passo no processo, isto é, como conjeturas iniciais são guindo eliminar os efeitos da resistência do ar. Resumindo, concluiu Du-
convertidas em teorias cientificas ao serem ligadas a uma estrutura dedu- hem, não existem " experimentos cruciais" (ver Harding, 1976). Diz-se de
tiva bem tecida e como essas teorias são então testadas contra observa- Herbert Spencer que sua idéia de tragédia era uma teoria linda, assassina-
ções. Resumindo, não vamos dizer que a ciência é baseada em indução; da por um fato discordante. Na realidade, ele não deveria ter se preocupa-
ela é baseada na adução seguida da dedução. do: tais tragédia'~.. nunca acontecem!
Esse argumento convencional de Duhem hoje em dia é conhecido
desejar; veja lambem BraiU1wai1e ( 1960, cap. 8). como a tese de Duhem-Quine pois foi reenunciado por Williard Quine,
DA V1SAO ADQUIRIDA A V1SAO DE POPPER 57
56 METODOLOGIA DA ECONOMIA

moderno filósofo americano. Popper não apenas é consciente da tese de (4) ... somente aquelas [hipóteses auxiliares] são aceitáveis cuja intro-
Duhem-Quine, como na realidade toda a sua metodologia é concebida dução não venha diminuir o grau de falseabilidade ou testabili-
para lidar com ela. Uma vez que Popper ainda é considerado em alguns dade do sistema em questão, mas, sim, aumentá-lo (1965, p. 83).
círculos como um falsificador ingênuo, ou seja, alguém que acredita que (5) Experimentos testados de forma interdisciplinar devem ser aceitos
uma simples refutação é suficiente para invalidar uma teoria científica, ou rejeitados à luz de contra-experimentos. O apelo a deriva-
vale a pena citar seu próprio endosso à tese de Duhem-Quine: ções lógicas a serem descobertas no futuro pode ser desconside-
rado (1965, p. 84).
Na realidade, nenhuma contestação conclusiva de uma teoria pode ser produzida; pois
(6) Devemos considerar que [uma teoria] está adulterada somente ao
sempre se pode dizer que os resultados experimentais não são confüi v~ ;< ou que as discrepâncias descobrirmos um efeito reprodutível que refute a teoria. Em ou-
que se supõe existir entre o resultado experimental e a teoria são apenas aparentes e que desapare- tras palavras, aceitamos a adulteração se uma hipótese empírica
cerão com o avanço de nossa compreensão (Popper, 1965, p. 50; ver tambem pp. 42, 82-3, 108). de nível inferior que descreva tal efeito for proposta e corrobo-
rada (1965, p. 86).
(7) .. . deve-se dar preferência àquelas teorias que podem ser testadas
Devido ao fato de que "nenhuma contestação conclusiva de uma
de forma mais rigorosa (1965 , p. 121).
teoria pode ser produzida " , precisamos de limites metodológicos nos es-
tratagemas que podem ser adotados pelos cientistas para proteger suas (8) ... hipóteses auxiliares devem ser usadas da forma mais esparsa
teorias da refutação. Esses limites metodológicos não são acessórios su- possível (1965, p. 273).
perficiais da filosofia da ciência de Popper; são absolutamente essenciais. (9) ... qualquer novo sistema de hipóteses deve apresentar, ou explicar,
Não é a capacidade de falseamento como tal que distingue a ciência da as regularidades velhas, corroboradas (1965, p. 253).
não-ciência no trabalho de Popper; o que delimita a ciência da não-ciên-
cia é o falseamento mais as regras metodológicas que proíbem aquilo que Essas regras metodológicas, inclusive a que versa sobre a própria
ele a princípio chamou de "suposições auxiliares ad hoc", depois "estra- falseabilidade , constituem o critério de limitação entre ciência e não-ciên-
tagemas convencionalistas " e finalmente "estratagemas de imunização" cia na obra de Popper. Mas por que alguém deve adotar tal critério de
(Popper, 1972a, pp. 15-16, 30; 1976, pp. 42, 44). delimitação? " O único motivo pelo qual propus meu critério de demarca-
ção" , afirma Popper, "é que ele é frutificante : muitos pontos podem ser
Se lermos The Logic of Scientific Discovery, de Popper, procuran-
esclarecidos e explicados com sua ajuda" ( 1965, p. 55). Porém, frutifican-
do por frases como "eu proponho a regra ... ", "devemos adotar a regra
te para quê? Para a ciência? A aparente circularidade do argumento desa-
metodológica ... " etc., vamos encontrar mais de vinte exemplos. É eluci-
dati vo que apresentemos uma amostragem dessas frases 9 : parece somente ao nos lembrarmos de que a busca por ciência pode ser
justificada apenas em termos não-científicos. Queremos obter conheci-
mento sobre o mundo, mesmo que seja conhecimento falível, mas a razão
(1) ... adotar tais regras que venham a assegurar a !estabilidade de por que nós desejamos tal conhecimento continua sendo uma questão me-
enunciados científicos; isso quer dizer, sua falseabilidade (1965, tafísica profunda e ainda não respondida acerca da natureza do homem
p. 49). (ver Maxwell, 1972).
(2) ... somente tais enunciados podem ser introduzidos na ciência, sen-
do testáveis de forma interdisciplinar (1965, p. 56). "As regras metodológicas são aqui consideradas convenções", diz
Popper (1959, p. 59) . Note que ele não procura justificar suas regras ape-
(3) ... em caso de ameaça ao nosso sistema, não o salvaremos median-
lando para a história da ciência, e de fato rejeita a noção que considera a
te nenhum tipo de estratagema convencionalista (1965, p. 82).
metodologia cotfu,o disciplina que investiga o comportamento de cientistas
no trabalho (1959, p. 52). É verdade que ele faz referências freqüentes à
9. Para uma lisla completa das regras, ver Johaimson (1975, caps. 2, 4-11), um livro muito útil escrito por um
autor que, todavia, não tem simpatia pelo que hoje em dia é conhecido como filosofia da ciência. história da ciência - tendo Einstein como fonte especial de inspiração
DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER õ9
õ8 METODOLOGIA DA ECONOMIA

(1959, pp. 35-6) -, embora não admita que apresentou fundamento lógico inferência estatística envolve o uso de observações de amostras para infe-
para o que fazem os cientistas, não importando se eles percebem isso 1º. rir algo sobre as características desconhecidas de uma população, e ao
Parece que seu objetivo é aconselhar os cientistas a proceder de forma a fazer tal inferência podemos ser muito rigorosos ou muito vagos: sempre
encorajar o progresso científico, e suas regras metodológicas são franca- corremos o risco do que é chamado erro Tipo 1, a decisão de rejeitar uma
mente normativas, como aquele famoso princípio dos filósofos medievais, hipótese que é de fato verdadeira, mas também estamos sempre sujeitos
"a navalha de Occam", que permite uma discussão racional, mas não ao erro Tipo II, a decisão de aceitar uma hipótese que é de fato falsa, e
pode ser derrubada por contra-exemplos históricos. Nesse sentido, o título em geral não existe uma maneira de estabelecer um teste estatístico que
da obra maior de Popper, The Logic of Scientific Discovery, é confuso em não inclua em algum grau ambos os riscos simultaneamente. Aprendemos
dois sentidos ''· A lógica da descoberta cientifica não é uma lógica pura, a testar uma hipótese estatística indiretamente mediante a formação de
ou seja, uma série de proposições analíticas; como ele mesmo diz, "a uma versão negativa da hipótese a ser testada, a hipótese nula, Ho. A
lógica da descoberta científica deve ser identificada com a teoria do mé- probabilidade do erro Tipo 1 ou "amplitude" do teste então consiste na
todo científico" ( 1959, p. 49), e essa teoria, como já vimos, consiste no probabilidade de erroneamente se rejeitar Ho, e a probabilidade do erro
principio da falseabilidade mais as regras metodológicas negativas espa- Tipo II consiste na probabilidade de erroneamente aceitá-la; a "força" do
1' lhadas ao longo de seus escritos•~ . Além disso, a teoria do método cientí- teste é a probabilidade de rejeitar corretamente uma hipótese falsa que é
fico, mesmo sendo descrita vagamente como um tipo de lógica, não é igual a (l - Prob. erro Tipo II). Aprendemos ainda a escolher uma peque-
uma lógica da descoberta científica e sim uma lógica de justificação, pois na "amplitude", digamos, 0,01 ou 0,05 , e maximizar a " força " de forma
o problema da descoberta de uma nova e frutificante hipótese científica consistente com aquela "amplitude" ou , expressando de forma alternati-
foi excluído por Popper desde o começo, considerado por ele um enigma va, estabelecer a probabilidade do erro Tipo 1 em algum número pequeno
psicológico. arbitrário, minimizando então a probabilidade do erro Tipo II para a pro-
babilidade dada do erro Tipo I. Isso finalmente produz uma conclusão
segundo a qual uma dada hipótese é estabelecida no nível de significância
Inferência Estatística de 5 por cento, e isso quer dizer que estamos prontos para correr o risco
de aceitar aquela hipótese como verdadeira quando nosso teste for tão
I'.
Muitos estudiosos têm se sentido perturbados pelas noções de prin- rigoroso que haja de fato uma chance em vinte que rejeitemos uma hipó-
cípios metodológicos que não são em nenhum sentido generalizações ba- tese verdadeira.
I' seadas em façanhas cientificas do passado. Porém, os economistas são O objetivo dessa simples lição sobre o que se tornou conhecido
1
i admiravelmente dotados para julgar o valor das regras metodológicas pu- como teoria de Neyman-Pearson de inferência estatística foi demonstrar
ramente n<mnativas, pois elas surgem sempre que eles estimam uma rela- que qualquer teste estatístico de uma hipótese depende essencialmente de
ção estatística . Como ensina todo livro elementar de estatística, a uma hipótese alternativa com a qual se faça a comparação, mesmo que
essa comparação seja apenas um artefato, Ho. Isso é verdadeiro não ape-
10. Assim. diz Popper, o próprio Newton nchava que havia usado o método de indução baconiano, o que toma nas com relação a testes estatísticos de hipóteses, como também a todos
seu fo ito '"ainda mais admir:ivd: foi alcançado a despeito de crenças metodológicas falsas" (Popper e os testes de "aduções". Um indivíduo é culpado de assassinato? Bem,
Eccles, 1977, p. 190; lambem Popp<'r, 1972b, pp. 106-7, 1983 pp. i-xxxi). Até mesmo Einstein, diz Popper
depende da decisão do júri, que pode considerá-lo inocente até prova em
(1976, pp. 96-7), foi durrutl e anos um positivista e operacionalista dogmatico. E estranho que Popper
raramen te cite: o nome de Darwin, que, por sinal, se distingue denlre os grandes ci entistas do passado na contrário , ou culpado até que consiga provar que é inocente. A própria
medida em que era vcrdadei ramcnle poppaiano, a ponlo de dizer a seus leitores acerca de maneiras scgun· prova, sendo tipicamente "circunstancial" como eles chamam, não pode
do as quais sua teoria poderi a ser reprovada (ver a nota 14 mais adiante).
11. Isso pode ser uma q11es1ão de u adução infeli z: A Lógica dn fovestigação seria uma tradução mais apropria·
ser avaliada a 11\enos que o júri primeiro decida se o risco do erro Tipo I
da para o lÍlulo em alemão, Logik der Forscl11mg . é menor ou ma19r do que o risco do erro Tipo II. Queremos um sistema
12. Ainda é comum que se enconlre lrabalhos de Popper que deixam de lado o elemento vital das regras legal que nunca 'condene gente inocente, ao qual chegaremos ao custo de
metodológicas que proibem os ··estralagemas de imuni zação' º; ver, por exemplo, Ayer (1976, pp. 157-9);
Harrc (1972, pp. 48-52); Williams (1975); e até mesmo Magoe ( 1973). ocasionais absolvições de partes culpadas, ou queremos estar certos de
60 METODOLOGIA DA ECONOMIA DA vrsAo ADQUIRIDA A VISÃO DE POPPER 61

sempre punir os culpados, e nesse caso com a ocasional condenação de virtualmente idêntica à moderna teoria de teste de hipóteses de Neyman-
partes inocentes? Pearson (Bartlett, 1968), e, além disso, Popper tem escrito muito sobre a
Os cientistas têm tipicamente um medo maior de aceitar uma falsi- filosofia da ciência desde 1934. O fato de Popper haver negligenciado as
dade do que deixar de reconhecer uma verdade; isto é, comportam-se implicações da moderna teoria de inferência estatística com relação à fi-
como se o custo dos erros Tipo II fosse maior que o custo dos erros Tipo losofia da ciência toma-se ainda mais surpreendente quando ele inicia sua
I. Podemos deplorar essa atitude, considerando-a conservadorismo indi- discussão sobre probabilidade em The Logic of Scientific Discovery afir-
gesto, uma manifestação típica de recusa, por parte daqueles que têm in- mando que enunciados de probabilidade são inerentemente não-falsificá-
teresses em doutrinas estabelecidas, em aceitar novas idéias, ou podemos veis porque "não desprezam qualquer coisa que seja observável" (1965,
elogiá-la como uma manifestação de ceticismo saudável, indicação de pp. 189-90). "Está bem claro ", continua ele, "que a" falsificação prática
tudo o que é salutar na atitude científica. Mas, seja lá qual for o nosso " pode ser obtida somente através de urna decisão metodológica que con-
ponto de vista, devemos necessariamente concluir que dessa forma o que sidera eventos altamente improváveis corno refutados - corno proibidos"
se considera regras metodológicas entra na própria questão de se aceitar o (1965, p. 191). Aí está a essência da teoria de Neyrnan-Pearson, e, nesses
fato estatístico como um fato . Sempre que dizemos que uma relação é termos , toma-se claro imediatamente que o princípio da falseabilidade
estatisticamente significativa em um nível de significância tão baixo exige normas metodológicas para funcionar. O fato de que Popper não
quanto 5 ou mesmo 1 por cento, comprometemo-nos com a decisão de tenha explorado a teoria de Neyrnan-Pearson e, em particular, sua aparen-
que o risco de aceitar urna hipótese falsa é maior que o risco de rejeitar te relutância em mencioná-Ia, deve então ser considerado corno um da-
uma verdadeira, e essa decisão não é por si própria uma questão de lógi- queles mistérios insolúveis da história das idéias' 3• Suponho que tem algo
ca, nem pode ser justificada simplesmente apontando-se para a história a ver com sua oposição, que durou a vida inteira, ao uso da teoria da
dos fatos científicos passados (ver Braithwaite, 1960, pp. 174, 251; Ka- probabilidade para estabelecer a verossimilhança de uma hipótese - uma
plan, 1964, cap. 6). questão atemorizante demais para analisarmos aqui - , mas isso é apenas
Em face do cunho inerenternente estatístico da física quântica mo- um hipótese inspirada.
derna (Nagel, 1961 , pp. 295, 312), essas não são observações infundadas,
pertinentes apenas a uma ciência social como a economia. Sempre que as
previsões de urna teoria forem de natureza probabilística (e que previsões
Graus de Corroboração
não o são - qualquer experiência de laboratório feita para confirmar até
mesmo uma relação tão simples quanto a lei de Boyle nunca encontrará o Embora Popper negue o ponto de vista segundo o qual as explica-
produto da pressão e volume em forma de constante exata), a noção de ções científicas são simplesmente "ingressos de inferência" para se fazer
estabelecer provas sem invocar princípios metodológicos normativos será previsões, ele, entretanto, insiste que as explicações científicas não po-
um absurdo. A filosofia da ciência de Popper teria sido mais bem com- dem ser aval iadas a não ser em termos das previsões que implicam. Veri-
preendi.da, muito menos ligada a erros de interpretação ainda abundantes
na literatura secundária, se ele tivesse feito referência explícita à teoria de 13. Lakatos ( 1978, 1, p. 2511) observa q11e o ººfalseabil ismo de Popper e a base filosófica de alguns dos mais
inferência estatística de Neyrnan-Pearson desde o início . inlt.:rt!ssanks progressos da estalistica moderna. A abordagem de Neyman-Pcarson estã completamente ba-
seada no falseabilismo metodológico" . Porêm, Lakatos não comenta o fato de Popper nunca mencionar a
É verdade que essa teoria de teste de hipóteses somente emergiu teoria de Neyman-Pearson, que fo i desenvolvida independentemente de e mu ito antes do fa lseabilismo de
com os escritos de Jerzy Neyman e Egon Pearson entre 1928 e 1935, Popper. Ver também Ackerman (1976, pp. 84-5). Brail11waite (1960, p. 19911), depois de notar a ligação
tomando-se prática padrão em um momento dos anos 40 (Kendall, 1968), enlíe o ··problema da indução·· e o trabalho inicial de Fisher sobre os testes de significância, culminando
com a teoria de inferência de Neyman e Pcarson, e, mais ad iante, na teoria de decisão eslatistica de
e que a obra The Logic of Scientific Discovery, de Popper, foi publicada Abraham W:ald, escreveu uma nota de rodapê reveladora: "Embora muitos comentaristas da lógica se
pela primeira vez na Alemanha em 1934, cedo demais para se beneficiar refiram ao metodo ,de "semeU1ança máxima . de Fisher, conheço apenas dois trabalhos sobre lógica, de C.
W. Churhman, Theo}y of Experimenral illference (Nova York, 1948), e logical Fou11da1io11s of Probabili-
daquela revelação . Porém, Ronald Fisher, em um famoso trabalho de
ty, de Rudolf Carnap, que se refere ao lrabalho de Wald - ou mesmo ao trabalho de Neyman e Pearson,
1930, já havia desenvolvido a concepção de inferência fiduciária, que é que ja exisle desde 1933 · ·.
62 DA VISÃO ADQUIRIDA À VISÃO DE POPPER 63
METODOLOGIA DA ECONOMIA

ficar as previsões de uma explicação teórica, demonstrar que os fenôme- dade de uma teoria, no sentido em que, quanto mais simples a teoria,
nos observáveis são compatíveis com a explicação, é fácil: existem pou- mais exatas suas implicações observáveis; portanto, maior sua testabilida-
cas teorias que não possam ser autenticadas por algumas observações, por de. É devido ao fato de que teorias mais simples têm essas propriedades
incrível que pareça. Uma teoria científica somente é testada quando um que buscamos simplicidade na ciência (Popper, 1965, cap. 7) . Duvidamos
cientista especifica com antecedência as condições observáveis que pode- que esse argumento seja convincente, uma vez que a própria noção de
riam falsear a teoria". Quanto mais exatas as especificações das condições simplicidade de uma teoria é altamente condicionada pela perspectiva his-
falseadoras e mais provável sua ocorrência, maiores serão os riscos enfren- tórica dos cientistas. Mais de um historiador da ciência já notou que a
tados pela teoria. Se a teoria for bem sucedida ao resistir à falsificação e simplicidade elegante da teoria de atração de Newton, que tanto impres-
se conseguir prever os resultados com sucesso, resultados esses que não se sionou os pensadores do século XIX, não teve tanto efeito em seus con-
originem de explicações científicas concorrentes, será considerada alta- temporâneos do século XVII, e se a mecânica quântica moderna e a teoria
mente confirmada ou, como Popper prefere, "bem corroborada" (1959, da relatividade são verdadeiras, deve-se reconhecer que não são teorias
cap. 10). Em resumo, uma teoria é corroborada não quando concorda com muito simples t5 • Tentativas de definir com exatidão o que se quer dizer
muitos fatos, porém quando não encontramos fatos que a refutem. com teoria mais simples até agora falharam (Hempel, 1966, pp. 40-5), e
Na filosofia da ciência tradicional do século XIX, as teorias cientí- Oscar Wilde provavelmente estava certo quando de forma satírica comen-
ficas adequadas deviam satisfazer uma lista de critérios, como consistên- tou que a verdade é raramente pura e nunca simples.
cia interna, simplicidade, completeza, e generalidade de explicação, isto Seja lá corno for, a referência de Popper a "graus de corrobora-
é, a habilidade de implicar ou pelo menos jogar alguma luz em ampla ção" sugere uma medida de comparação entre teorias, mas ele, de fato,
variedade de fenômenos (o que William Whewell costumava chamar de
nega explicitamente a possibilidade de atribuir uma expressão numérica
"consonância de indução"), fecundidade, ou seja, o poder de estimular
ao grau de falseabilidade de um sistema teórico. Para começar, nenhuma
pesquisa adicional e talvez até mesmo a relevância prática das implica-
teoria pode ser falseada de forma decisiva por qualquer experimento sim-
ções. Vale a pena notar que Popper luta para reduzir a maior parte desses
ples - a tese de Duhem-Quine. Depois, embora possamos instar os cien-
critérios tradicionais à sua demanda por previsões falsificáveis. Obvia-
tistas a não fugir da falsificação de suas teorias mediante "estratagemas
mente, a consistência lógica é "o pré-requisito mais geral" de qualquer
de imunização", deve-se reconhecer o valor funcional do ato de ater-se
teoria, pois uma explicação autocontraditória é compatível com qualquer
tenazmente, em certas circunstâncias, a uma teoria refutada, na esperança
evento e, portanto, nunca pode ser refutada (Popper, 1959, p. 92). Da
de que ela possa ser revista com o objetivo de lidar com as anomalias
mesma forma, é óbvio que, quanto maior a generalidade de uma teoria,
mais amplo o alcance de suas implicações e mais fácil falseá-la; nesse recém-descobertas (Popper, 1972a, p. 30); em outras palavras, o conselho
sentido, a ampla preferência por teorias científicas cada vez mais abran- oferecido por Popper aos cientistas não é de fonna alguma indefinido. Em
gentes pode ser interpretada como o reconhecimento implícito do fato de terceiro lugar, a maioria dos problemas de avaliação teórica envolve não
que o progresso científico é caracterizado pela acumulação de teorias que apenas um duelo entre uma teoria e um conjunto de observações, e sim
resistiram a testes rigorosos . De forma mais controvertida, Popper argu- uma luta em três frentes entre duas ou mais teorias rivais e um conjunto
menta que a simplicidade teórica pode ser igualada ao grau de falseabili- de provas que é explicado de forma mais ou menos satisfatória pelas duas
teorias (Popper, 1965, pp. 32-3, 53-4, 108). As três considerações redu-
14. E interessante que Darwin (1859, pp. 228-9) faça precisamente uma especificação tão popperiana: .. Se zem a concepção de graus de corroboração de uma teoria a uma compara-
fosse possível provar que qualquer parle da estnllura de qua lquer especie ti vesse sido formada para o bem
exclusivo de outras espécies, isso aniquilaria minha Leoria, pois tal não poderia ter sido produzido através
15. Como Polanyi (195 8 p. 16) observou, .. as grandes teorias raramente são simples no senlido ordin:irio do
da seleção natural··; ele cita o chocalho da cascavel como exemplo, mas imediatamente evita o assunto do 1
lt:rmo. Tanto a teo~~ da relatividilde quanlo a ml!câuica quântica são difíceis de compreender; leva·se
comportamento altruísta, comentando: ··Aqui não tenho espaço para adentrar nesse e em outros casos
semelhantes". O problema de como explicar o altruísmo em animais continua despertando o interesse dos apenas alguns minutos para memorizar os fa los abordados pela relatividade, porêm anos de estudo podem
sociobiólogos modernos. não ser suficientes para dominar a teoria e colocar esses fa tos em seu contexto".

li
64 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA DA VISÃO ADQUIRIDA -~ VISÃO DE POPPER 65

ção ordinal ex post que é inerentemente qualitativa (Popper, 1972a, pp. so do colete antes de concluir que uma teoria antiga é falsificada; porém,
18, 59): não insiste em que ele tem necessariamente de ter tal teoria no bolso do
colete, o que vem a ser o maior argumento de Lakatos (Lakatos, 1978, II,
Quando falo em grau de corroboração de uma teoria, refiro-me a uma avaliação concisa pp. 184-5, 193-200; também Ackerman, 1976, cap. 5).
do estado (em um dado tempo r) da discussão critica de uma teoria, com relação à forma como
resolve seus problemas; seu grau de !estabilidade; o rigor dos testes a que foi submetida; e a
maneira como resistiu aos testes. A corroboração (ou grau de corroboração) e, portanto, um relató- Uma Conclusão Fundamental
rio avaliador de desempenho passado. E essencialmente comparativo: em geral, pode-se dizer so-
mente que a teoria A tem um grau de corroboração mais alto (ou mais baixo) que uma teoria B Cheaamos
b
aoora
b
a uma de nossas conclusões fundamentais: assim
concorrente, a luz da discussão critica, o que inclui testes, até u111 certo te111po t. Sendo apenas um como não existe uma lógica de descoberta, não há tampouco uma lógica
relatório de desempenho passado, leva a uma situação de ter que escolher uma teoria entre as demonstrativa de justificação; não há nenhum algoritmo formal, nenhum
demais. Poré111, nada diz acerca de dese111pe11ho fimiro, ou sobre a "co11fiabilidade ·· de uma teo- procedimento mecânico de verificação, falsificação'. confirmaçã~, c~~o­
ria ... Não acho que graus de verossimilhança, ou uma medida de conteúdo de verdade, ou conteúdo
boração, ou seja lá como se queira chamar isso. A pergunta filosof1ca
de falsidade (ou, digamos, grau de corroboração ou ate mesmo de probabilidade lógica) possam ser
numericamente determinados, exceto em certos casos limites (como Oe l).
"Como podemos adquirir conhecimento irrefutável do mundo quando
tudo em que podemos nos basear é nossa experiência singular?" Popper
responde que não existe conhecimento empírico determinado, seja basea-
O problema de dar uma precisão à concepção de corroboração tor-
do na nossa experiência pessoal ou na experiência da humanidade em
na-se ainda mais exacerbado pelo fato de que teorias rivais podem ter na geral. Mais ainda: não há método seguro que garanta que o conhecimento
realidade domínios ligeiramente diferentes, e em tais casos não chegam
falível que temos do mundo real seja positivamente o melhor que pode-
nem a ser comensuráveis. Se, além disso, elas são partes de um sistema mos ter sob as circunstâncias vigentes. Um estudo da filosofia da ciência
de teorias mais amplo e interligado, a tarefa de compará-las em termos de
pode estimular nossa avaliação acerca do que constitui o conhecimento
seus graus de corroboração ou verossimilhança torna-se quase impossível.
empírico aceitável; todavia, tal avaliação continua sendo provisória. Po-
Essa dificuldade central na metodologia popperiana está bem colocada
demos suscitar a crítica mais rigorosa a essa avaliação, mas o que não
em uma "reconstrução racional" algo injuriosa de seu trabalho, escrita
podemos fazer é ter a pretensão de ter estocado em algum lugar um méto-
por um de seus alunos, Imre Lakatos (1978, I, pp. 93 -4) .
do perfeitamente objetivo, isto é, um método intersubjetivamente demons-
trativo, que leve de forma positiva a um entendimento acerca do que é ou
Popper e o falsificador dogmatico que nunca publicou uma palavra: ele foi inventado - e
não é uma teoria científica aceitável.
.. criticado .. - primeiro por Ayer e depois por muitos outros .. Popper 1 e o falsificador ingênuo,
Popper, , o falsificador sofisticado. O Popper real desenvolveu-se de uma versão dogmática a uma
versão ingênua do falseabilismo 111erodológico nos anos 20; ele chegou às "regras de aceitação·· do
falseabilis1110 sofisticado nos anos 50 ... Porem, o verdadeiro Popper nunca abandonou suas regras
de falsea111enro originais (i ngênuas) . Ele exige, ate hoje, que o "critério de refuração·· tem que ser
estabelecido com antecedência: deve ser acordado que situações observáveis, se forem de fato
observáveis, certificam que a teoria esta refutada . Ele ainda traduz "falsificaçãoºº como o resultado
de um duelo entre teoria e observação, sem que outra teoria m~lhor esteja necessariamente envolvi-
da ... Portanto, o Popper real consiste na reunião de Popper 1 com alguns elementos de Popper,.

A caracterização de Popper oferecida por Lakatos talvez não seja


justa, mas não há dúvida, como veremos, de que a tentativa de diferenciar
seu próprio produto do de Popper (Lakatos = Popper3) é justificada: Pop-
per reconhece que os cientistas normalmente têm uma nova teoria no boi-
2. DE POPPER À NOVA HETERODOXIA

Paradigmas de Kuhn
Vimos que a metodologia de Popper é evidentemente nonnativa,
que prescreve a prática correta em ciência, possível mas não necessaria-
mente à luz da melhor ciência do passado. Até aí, a metodologia do fal-
seabilismo popperiano está compatível com a visão adquirida, embora em
muitos outros aspectos afaste-se dela. Em The Structure of Scienti.fic Re-
volutions, de Kuhn (1962), todavia, o rompimento com a visão adquirida
é quase total, pois sua ênfase não é em prescrição nonnativa e sim na
descrição positiva. Além disso, a tendência para preservar teorias e tomá-
las imunes a críticas, que Popper relutantemente aceita como sendo um
afastamento da ciência de prática superior, toma-se o tema central da ex-
plicação do comportamento científico elaborada por Kuhn. Ele considera
a ciência normal, ou seja, a atividade que resolve problemas no contexto
de um arcabouço teórico ortodoxo, como a regra, e a ciência revolucioná-
ria, ou a derrubada de um arcabouço por outro por meio de refutações
repetidas e anomalias acumuladas, como a exceção na história da ciência.
Fiea-se tentado a dizer que para Popper a ciência está em estado de revo-
lução pennanente, sendo sua história uma sucessão de conjeturas e refuta-
ções; para Kuhn~ a história da ciência é marcada por longos períodos
durante os quais o status q11.o é preservado, sendo às vezes interrompido

1
1
DE POPP ER À NOVA HETERODOXIA
69
68 METODOLOGIA DA ECONOMIA

por saltos descontínuos de um paradigma em vigor para outro sem nenhu- processo auto-sustentável e cumulativo de resolução de enigi::.as .dentro
ma ligação conceituai que estabeleça comunicação entres eles. do contexto de uma estrutura analítica comum; o colapso da c1encia nor-
Como referência, começaremos por definir alguns termos. Na pri- mal, quando ocorre, é precedido de uma proliferação de teorias e do sur-
meira edição de seu livro, Kuhn usa freqüentemente o termo paradigma O'imento de controvérsia metodológica; a nova estrutura oferece uma
num sentido que significa certos casos exemplares de façanhas científicas :olução decisiva para enigmas até então negligenciados e em retrospecto
do passado que continuam a servir de modelo para praticantes atuais. En- nota-se que tal solução tinha sido reconhecida havia muito tempo, embora
tretanto, ele também emprega o termo com um sentido bem diferente, que previamente ignorada; as velhas e novas gerações discutem enquanto
denota tanto a definição dos problemas quanto o conjunto de técnicas a enigmas não resolvidos na velha estrutura se tornam exemplos corrobora-
serem empregadas para analisá-los, às vezes cheg2nrl0 mesmo a dar a dores na nova; uma vez que sempre existe uma perda de conteúdo, bem
paradigma um significado ainda mais amplo : o de uma perspectiva geral como um ganho, a conversão para a nova abordagem assume a natureza
de um mundo metafísico; o último sentido do termo, na realidade, é o que de uma experiência religiosa, envolvendo uma mudança-Gestalt; na medi-
a maior parte dos leitores guarda do livro. Na segunda edição de The da em que a nova estrutura se estabelece, torna-se por sua vez a ciência
Structure of Scientific Revolutions (1970), Kuhn admite que houve impre- nonnal da próx.ima geração.
cisão de termos na versão original' e sugere que se substitua o termo O leitor familiarizado com a história da ciência pensa imediata-
" paradigma" pela expressão "matriz disciplinar " : " 'disciplinar ' porque mente na revolução copérnica, na revolução newtoniana, na revolução
se refere ao fato de que os praticantes possuem em comum uma disciplina darwiniana ou na revolução de Einstein-Planck. A chamada revolução co-
específica; 'matriz ', porque se compõe de elementos ordenados de vários pérnica, entretanto, levou 150 anos para se completar e ao l~ngo do c~i­
tipos, cada um requerendo especificações mais detalhadas" (Kuhn, 1970a, nho foi extensivamente questionada\ até mesmo a revoluçao newtomana
p. 182) . Porém, seja qual for a terminologia usada, o foco de seu argu- levou mais de uma geração para ganhar aceitação nos círculos científicos
mento continua sendo " todo o conjunto de crenças, valores, técnicas, e da Europa, enquanto os cartesianos, leibnizianos e newtonianos se engaj a-
assim por diante, que são compartilhados pelos membros de uma dada vam em disputas amargas acerca de todos os aspectos da nova teoria3; da
comunidade", e ele prossegue dizendo que, se tivesse que reescrever o mesma fonna , a revolução darwiniana falha ao não confirmar a descrição
livro, começaria com uma abordagem da profissionalização da ciência an- de Kuhn das revoluções cientificas: não havia crise na biologia de 1850;
tes de examinar os "paradigmas" ou "matrizes disciplinares" comparti- a adesão a Darwin foi rápida, mas de forma nenhuma instantânea; havia
lhados pelo cientistas (1970a, p. 173). até mesmo al go como que um declínio na reputação de Darwin na virada
Essas concessões não são decisivas pela simples razão de que a do século; e uns duzentos anos transcorreram entre o início da revolução
característica principal das idéias de Kuhn não é a concepção de paradig- darwiniana de 1740 e sua versão moderna na síntese evolucionária de
mas que todos aprenderam, e sim a das "revoluções científicas" como 1940 (Mayr, 1972). Finalmente, a mudança no século XX da física clássi-
rupturas importantes no desenvolvimento da ciência, e em especial a no- ca para a física relativista e quântica não envolveu incompreensão mútua
ção de uma falta difundida de comunicação durante períodos de " crise nem conversões quase-reli giosas, ou seja, mudanças de Gestalt, pelo me-
revolucionária " . Lembremo-nos dos fundamentos da argumentação de
Kuhn: os praticantes de ciência normal formam um colegiado invisível no 2. A teoria hd iocGntrica de r.opêrnico ê, a propósito, o melhor exemplo na história da ciência do apelo
sentido de que estão de acordo acerca dos problemas que requerem solu- pem13 nente pela simplicidade como critério de progresso cientifico: De Revolutio11ibus Orbiw11 Caelestium,
de Copêmico, não chegou a alcançar a perfeiçã o profolica do Alm agesro, de Plolomeu, e nem mesmo
ção e a forma geral que a solução deveria ter; além disso, apenas as opi- chegou a se livrar de todos os epiciclos e extravagâncias que alravancaram a teoria geocêntrica de Ptolo-
niões dos membros do colegiado são consideradas relevantes ao se definir meu, porem era uma explicação mais econômica acerca da maior parte, se não de lo~os, dos fatos contem-
problemas e soluções, em conseqüência do que a ciência normal é um porâneos co nhecidçs sobre 0 movimen to planet:irio (Kuhn , 1957, pp. 168-71); tambem Bymu et al. ( 198 1
pp. so-t. 348-52)A _ . . •.
3. Como 0 próprio Kuhn ( 1957, p. 259) apontou em seu estudo anterior sobre a revoluçao copenuca: Passa-
1. Mastennan (1970, pp. 60-5), na realidade , identificou 21 definições diferentes do tenno paradigma na ram-se quarenta anos a1Gque a fís ica ncwtonirurn supl<mlasse finnemcnte a fisica cartesiana, atGmesmo nas
primeira edição do livro de Kuhn. universidades britânicas··.
70 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 71

nos se dennos crédito aos cientistas diretamente ligados à "crise da física controvérsias cientificas, em particular no que diz respeito à escolha entre
moderna" (Toulmin, 1972, pp. 103-5)4. Sequer é necessário, contudo, dis- abordagens concorrentes da ciência, juntamente com uma suspeita vaga-
cutir-se esses pontos, pois na segunda edição de seu livro Kuhn admite mente formulada porém profundamente estabelecida dos fatores cogniti-
candidamente que sua descrição anterior das revoluções científicas sofria vos como a racionalidade epistemológica, em vez de fatores sociológicos
de exagero retórico: mudanças de paradigma no decorrer de revoluções como autoridade, hierarquia e grupos de referência, como determinantes
científicas não implicam interrupções do debate científico, ou seja, esco- do comportamento cientifico. O que Kuhn parece ter feito é fundir pres-
lher entre teorias concorrentes, porém, totalmente incomensuráveis; in- crição e descrição, deduzindo dessa maneira sua metodologia da ciência a
compreensão mútua entre cientistas durante períodos de crise intelectual é partir da história da ciência.
apenas uma questão de grau; chama-se mudanças de paradigma de "revo- Em certo sentido, a obra de Kuhn The Structure of Scientific Revo-
luções" apenas para enfatizar o fato de que os argumentos usados para lutions não é uma contribuição à metodologia e sim à sociologia da ciên-
apoiar um novo paradigma sempre contêm elementos não-racionais que cia . Não é de admirar que uma confrontação entre kuhnianos e
vão além da prova matemática ou lógica (Kuhn, 1970a, pp. 199-200). popperianos produza algo como um impasse. Portanto, o próprio Kuhn
Como se isso não bastasse, ele prossegue reclamando que essa teoria de (1970b, pp. 1.-4, 19-21, 205-7 , 238, 252-3) aponta as semelhanças entre
revoluções científicas não foi bem entendida, pois pensou-se que ela se sua abordagem e a de Popper, insistindo no fato de que ele é, como Pop-
referia somente às revoluções mais importantes, como a copémica, new- per, um "crente devotado no progresso científico", enquanto reconhece a.
toniana , darwiniana ou einsteiniana; ele insiste em que o esquema da natureza inerentemente sociológica de seu próprio trabalho. Da mesma
mesma forma estava diri gido a mudanças menores em campos científicos forma , popperianos admitem a propósito que "existe muito mais Ciência
específicos, que talvez não parecessem revolucionários para aqueles que Nonnal, medida em homem-horas, do que Ciência Extraordinária" (Wat-
estavam fora de "uma comunidade simples, que consistissem talvez em kins, 1970, p. 32; também Ackerman, 1976, pp. 50-3); porém, eles enca-
menos de 25 pessoas diretamente ligadas a esses campos" (1970a, pp. ram tais concessões ao realismo como irrelevantes para o foco
180-1). essencialmente nonnativo da filosofia da ciência; segundo Popper, "para
Em outras pal avras, nesta última versão de Kuhn qualquer período mim a idéia de buscar esclarecimento acerca dos objetivos da ciência, e
1 de desenvolvimento cientifico é marcado por grande número de paradig- seu possível progresso, com vistas à sociologia e à psicologia (ou ... à
mas interpenetrantes e justapostos; alguns podem ser incomensuráveis, história da ciência), é uma surpresa e um desapontamento" (Popper,
jl mas certamente não todos ; paradigmas não se substituem subitamente, e, 1970, p. 57).
de qualquer fonna , novos paradigmas não surgem de maneira repentina e
sim emer?em vitoriosos ao fim de um longo processo de competição inte-
lectual5. E evidente que essas concessões diluem consideravelmente o im-
Metodologia Versus História
pacto aparentemente dramático da mensagem original de Kuhn. O que
permanece, contudo , é a ênfase no papel dos critérios normativos nas A discussão sobre o livro de Kuhn nos trouxe de volta ao velho
enigma da relação entre metodologia da ciência normativa e história da
ciência positiva, um enigma que tem acompanhado a visão adquirida das
4. Entre as variadas críti cas que o livro de Kulm recebeu, nenhuma C mais devastadora do que a de Toulmin
(1972, pp. 98-117), que reconstiluiu a história das ideias de Kulrn desde seu surgimento em 1961 alé sua teorias científicas por mais de uma geração. O enigma é o seguinte: crer
versão final em 1970. Para uma apreciação profundamente favorâ vel, porém em muitas maneiras igualmen- que seja possível escrever a história da ciência " como de fato ocorreu "
te critica das iddas de Kuhn, ver Suppe (1974, pp. 135-51).
5. Em resumo, Knlrn eventualmente abandonou as quatro teses dist intas que Watkins (1970, pp. 34-5) encon-
sem preconceber a diferença entre ciência "boa" e "ruim" , sem noção
trou imbuídas em seu li vro, quais sejam ( l) a lese do paradigma-monopólio - um paradigma não suporta anterior de sólida prática científica, significa cometer a falácia indutiva
riva is; (2) a tese da incompatibilidade:. - novos paradigmas são imcompativeis e incomensuráveis com ao escrever a ft.istória intelectual. Se Popper estiver certo acerca do mito
paradigmas antigos; (3) lese do não- inlerregno - os ci entistas não se debatem entre abandonar um paradig-
ma antigo e abraçar um novo; e (4) a lese do paradigma inslanlàneo ou mudança-Gestalt - quando os
da indução, aq~eles que querem "contar do jeito que é" serão compelidos
cientistas mudam para o novo paradi gma, fazem-no de forma insla.ntãnea e total. a "contar do jeito que deveria ser": contando a história de ocorrências
i2 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 73

passadas de uma forma ou outra , eles necessariamente estarão revelando ca justificar em vez de criticar a prática científica real7. Os escritos de
seus pontos de vista implícitos sobre a natureza da explicação cientifica. Lakatos, por outro lado, podem ser interpretados como uma acomodação
Em resumo, todos os enunciados da história da ciência são carregados de entre a metodologia agressiva, a-histórica, ou até mesmo anti-histórica, de
metodologia. Popper e a metodologia defensiva e relativista de Kuhn, um acordo que,
Por outro lado, poderia parecer que todos os enunciados acerca da no entanto, pennanece firmemente dentro do campo popperianoª. Lakatos
metodologia da ciência são da mesma maneira carregados de história. é "mais suave" com relação à ciência do que Popper, porém muito "mais
Louvar-se o método cientifico enquanto se ignora solenemente a questão pesado" do que Kuhn, e está sempre mais inclinado a criticar ciência
sobre o fato de os cientistas terem realmente praticado tal método agora ruim com a ajuda de uma boa metodologia do que qualificar especulações
ou no passado certamente é algo arbitrário; além disso, na prática até metodológicas mediante apelo à prática científica.
mesmo Popper acha impossível resistir-se à referência à história da ciên- Para Lakatos, bem como para Popper, tal metodologia não oferece
cia como uma justificação parcial de seus pontos de vista metodológicos . aos cientistas um manual para a resolução de problemas científicos; ela se
Parece que caímos em um círculo vicioso, ao implicar a impossibilidade dedica à lógica da avaliação, um conjunto de normas não-mecânicas para
tanto de uma historiografia da ciência li vre de metodologia e totalmente efetuar a avaliação de teorias completamente articuladas. Lakatos difere
descritiva como de uma metodologia da ciência a-histórica e puramente de Popper quando essa lógica de avaliação é por ele empregada ao mesmo
prescritiva 6 . Acredito que não há saída desse circulo vicioso. Justificando tempo como uma teoria histórica que pretende fazer retroagir o desenvol-
essa afirmação, precisamos considerar o trabalho de Imre Lakatos, que foi vimento da ciência. Como uma metodologia da ciência normativa, é empi-
expressamente projetado para converter o círculo vicioso num circulo vir- ricamente irrefutável porque deriva de um ponto de vista específico da
tuoso. Em uma série de documentos, publicados entre 1968 e 1971, Laka- epistemologia. Porém, como teoria histórica, que estabelece que cientistas
tos desenvolveu e elaborou a filosofia da ciência de Popper, tornando-a no passado freqüentemente se comportavam de acordo com a metodologia
um instrumento crítico de pesquisa histórica, tomando como axioma uma da falseabilidade , é perfeitamente refutável. Se a história da ciência se
paráfrase de uma das máximas de· Kant: .. A filosofia da ciência sem his- ajustar à metodologia normativa, é o que Lakatos parece dizer, temos justi-
tória da ciência é vazia; a história da ciência sem filosofia da ciência é ficativa, além dos motivos filosóficos, para aderir ao falseabilismo; caso
cega" (Lakatos, 1978, I, p. 102). Essa máxima expressa com perfeição o contrário, temos motivos para abandonar nossos princípios normativos. Em
enigma ou o circulo vicioso em questão. outras palavras, Lakatos insiste em que nós não podemos evitar a tarefa de
examinar a história da ciência com a ajuda de uma metodologia falseabi-
lista explícita, para notar o tamanho real da área de conflito9 •
Programas de Pesquisa Científica
Lakatos começa por negar que teorias individuais sejam as unida-
des apropriadas para se fazer avaliações científicas; o que deve ser avalia-
A metodologia da ciência de Popper é uma metodologia agressiva do, e o que inevitavelmente é avaliado, são aglomerados de teorias mais
na medida em que, por seus padrões, uma certa parte do que é chamado
de .. ciência" pode ser desprezada por não ter solidez metodológica. A 7. A dislinçào entre metodologias agressiva e defensiva é devida a Latsis (1974).
metodologia de Kuhn, entretanto, é uma metodologia defensiva, pois bus- 8. Bloor (1971, p. 104) esta errado, como veremos, ao caracler izar o trabalho de Lakatos como "um ato de
revisionismo, chegando a ser uma lraiçâo do que é essencial na abordagem popperiana, e uma absorção
lotai das características principais das posições kuhn ianas". Todavia, não 6 somente ele que vê pouca
6. O circulo vicioso é colocado de fo rma perfr·.ita por um cie 111is1a que freqüentemente reconhece seu dCbito diferença entre Kulrn e Lakatos (por exemplo, Green, 1977, pp. 6-7); portanto, não percebe todo o argu-
para com Popper. Discutindo o par;idoxo que C testar uma mclodologia científica mediante as práticas dos menta de Lakatos.
cientistas, Pctcr Mcclawar ( 1967, p. 169) escrnvcu: "Se admitimos que a metodologia não é sôlida, então 9. De qualquer forma,, é assim que interpreto Lakatos. Deve·se dizer que ele 6 um autor difícil de ser inter·
nossos testes para confirmar sua v;ilid;idc tampouco o serão. Se admil imos que C sôlida, en tão não há prelado de forma p~c isa. Sua tendência de estabelecer argumentos vitais em notas de rodapé, ~e produzir
motivo para testã- la, pois o tes le não poderia in val id~- la ". Para mais esclarecimentos acerca do amplo de fomrn prolífica rõtulos para diferentes· posições intelectuais, de criar novas frases e expressoes e de se
reconhecimento do circulo vicioso por parte de filósofos e historiadores da ciência, ver Lakatos e Musgra· referir a seus próprios escritos - como se fosse impossível se entender qualquer parle deles sem entender o
ve (1970, pp. 46, 50, 198, 233, 236-8); Achinslcin (1974); Hesse (1973); e Lauda n (1977, cap. 5). conjunto - , tudo isso bloqueia a compreensão imediata. -
74 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 75

ou menos interconectados ou programas de pesquisa científica (PPC) 10 • um PPC não é "científico" de uma forma definitiva; pode deixar de sê-lo
Quando uma estratégia de pesquisa específica ou PPC encontra falsifica- na medida em que passa o tempo, caindo do status de "progressivo" ao
ções, passa por mudanças em suas suposições auxiliares, o que, segundo estado "degenerativo" (a astrologia é um exemplo), podendo também
Popper, diminui ou aumenta o conteúdo ou, como Lakatos prefere dizer, ocorrer o inverso (parapsicologia?) . Temos então um critério de delimita-
representa "problemas de mudança progressivos ou degenarativos". Diz- ção entre ciência e não-ciência, que é em si mesmo histórico, envolvendo
se que um PPC é teoricamente progressivo se uma formulação de progra- a evolução de idéias ao longo do tempo como um de seus elementos ne-
ma posterior contiver "excesso de conteúdo empírico" com relação cessários.
àquela que a precede, ou seja, se faz a previsão de "algum fato novo, até Estende·-se o argumento dividindo-se os componentes de um PPC
então inesp.e rado"; um PPC é empiricamente progressivo se "esse con- em partes rígidas e flexíveis. "A história da ciência", observa Lakatos
teúdo empírico em excesso for corroborado" (Lakatos, 1978, 1, pp. 33-4). (1978, pp. 49-52), "é a história de programas de pesquisa em vez de
Da mesma forma, se o PPC se caracteriza pela edição ininterrupta de história de teorias", e "todos os programas de pesquisa científica podem
ajustes ad hoc que meramente acomodam quaisquer fatos que se tomam ser caracterizados mediante seus 'núcleos centrais', cercados por um cinto
disponíveis, é rotulado de "degenerativo" . protetor de hipóteses auxiliares que deve suportar o impacto dos testes. "
Sim, mas o que vem a ser um "fato novo"? Uma implicação até O núcleo central é tratado como se fosse irrefutável, devido à "decisão
então totalmente insuspeita de um PPC (tal como a existência do planeta metodológica de seus protagonistas" , e contém , além de crenças pura-
Netuno no PPC newtoniano), ou um fato o qual, apesar de conhecido, não mente metafisicas, uma "heurística positiva", e uma "heurística negati-
apresentava previamente qualquer explanação teórica (tal como a primei- va", que consistem, na realidade, em uma lista de "sims" e uma lista de
ra lei de Kepler do movimento planetário, as órbitas elípticas dos planetas "nãos". O cinto protetor contém as partes flexíveis de um PPC, e é aqui
em tomo do Sol, o que resultou ser uma simples dedução da fórmula que o núcleo central se combina com hipóteses auxiliares para formar as
newtoniana para a gravidade) . É claro que o primeiro critério é mais se- teorias específicas a serem testadas, com as quais o PPC ganha sua repu-
vero que o último e escolher dentre eles iria, portanto, afetar o nosso tação científica.
julgamento lakatosiano do grau de progresso de um PPC. O próprio Laka- Termos como nlÍcleo central e cinto protetor foram escolhidos de-
tos debilitou os requisitos de seu fato novo, e seus seguidores rapidamen- vido a suas conotações irônicas. Até certo ponto, a distinção é lógica: se
te se apegaram às definições soltas (Hands, 1991): um PPC progressivo é os PPCs estáo constantemente evoluindo dentro do esforço para lidar
aquele que continuamente tem sucesso ao fazer novas previsões, sistema- com anomalias e para abranger novos fenômenos , segue-se que alguns de
ticamente respondendo pela apresentação de dados fora das amostras; em seus componentes devem permanecer mais ou menos os mesmos ou esta-
resumo, faz algo mais que simplesmente responder, mesmo que de forma ríamos na realidade nos deparando com PPCs inteiramente novos; em re-
inteligente, por fenômenos já conhecidos antes que o PPC fosse formula- sumo, deve haver algo como um "núcleo central" ou parte relativamente
do, ou pior, responder somente por aqueles para cuja explicação formu- rígida em qualquer PPC. Não queremos dizer que o núcleo central de um
lou-se o PPC. PPC é moldado em concreto no nascimento do programa; pelo contrário,
ele também evolui, porém, presume-se, de forma mais lenta do que o faz
De qualquer forma, a distinção entre um PPC degenerativo e um
o cinto protetor. O núcleo central, como já dissemos, consiste em crenças
progressivo é relativa. Além do mais, não são aplicáveis em um dado
empiricamente irrefutáveis e, portanto, vem a ser aquilo que se chamou
ponto no tempo, e sim ao longo de um período de tempo. A característica
de "metafísica" 11 • Em outras palavras, não há nenhuma obsessão positi-
de perspectiva futura de uma estratégia de pesquisa, diferente de uma
teoria isolada, provoca uma avaliação instantânea. Para Lakatos, portanto,
11. O "núcleo ccnlral" ' de Laka tos expressa uma idt:ia virtualmente idêntica àquela formulada por Schumpe-
t~r, a noção de .. ~ ~são " na história da economia - " o ato cogniti vo pré-analitico que fornece a matéria-
10. Se a concepção de programas de pesquisa científica parece a alguns leitores como vaga, deve-se recordar prima para o esfo(ço analilico·· (Schu111peler, 1954, pp. 41-3) - , ou a "'hipótese de mundo·· de Gouldner,
que a concepção de teorias e tão vaga quanto aquela. E de fato difícil definir a noção de teoria, mesmo que aparece de forma preponderante em sua explicação do moti vo por que os sociólogos adotam certas
quando o lermo é empregado de forma reslrila e lecnica (Achinslein, 1968, cap. 4). teorias e rejeitam outras (Gouldner, 197 1, cap. 2). A teoria da ideologia de Marx pode ser inlerpreiada
76 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 77

vista em se livrar da metafísica de forma definitiva. Assim como Popper surabilidade de estratégias de pesquisa sucessivas. Entretanto, Lakatos
(1959, p. 38), Lakatos é convencido de que descobertas cientificas são prossegue com a declaração algo surpreendente de que toda a história da
impossíveis sem compromissos metafísicos; simplesmente, a metafísica ciência pode ser igualmente descrita como sendo a preferência "racional"
da ciência é deliberadamente escondida no núcleo central, de forma muito de cientistas por PPCs progressivos em vez de degenerativos, aparente-
semelhante à manipulação de cartas num jogo de pôquer, em que são mente porque o ganho de conteúdo sempre excede a perda, e ele define
escondidas nas mãos do banqueiro, enquanto no jogo real da ciência a qualquer tentativa de proceder nesse sentido como a história interna da
ação ocorre em termos de cartas nas mãos dos jogadores, ou seja, as teo- ciência (p. 102).
rias falsificáveis no cinto protetor. De forma contrastante, a história externa não é apenas todas as
Lakatos argumenta que o critério de falseabilidade de Popper re- pressões normais do ambiente político e social que normalmente associa-
quer não apenas que uma teoria cientifica seja testável e sim que seja mos ao termo externo, e sim qualquer deficiência dos cientistas em agir
testável de forma independente, ou seja, capaz de prever um resultado conforme a MPPC; por exemplo, preferir um PPC degenerativo a um pro-
que não seja também previsto por uma teoria rival. Nesse caso, a "corro- gressivo na hipótese de que o primeiro seja mais simples. Lakatos não
boração" popperiana exige pelo menos duas teorias, e isso se aplica tam- pretende nem por um segundo que a história int erna seja tudo: pensar
bém aos PPCs. Um PPC especifico é julgado superior a um outro se assim implicaria dizer que cientistas são sempre perfeitamente " racio-
cobrir todos os fatos previstos por um PPC rival, e, além disso, fazem-se nais '', uma proposição que ele não pode abraçar por ser muito kuhniano
também previsões extras, algumas das quais sendo empiricamente confir- (pp. 130, 133). Ele aceita que a alegação segundo a qual toda a história
madas (Lakatos, 1978, I, pp. 69, 116-7). Lakatos ilustra o argumento me- da ciência pode ser explicada por uma reconstrução racional puramente
diante a análise da teoria da atração de Newton - "provavelmente o mais "interna" talvez não seja sustentável à luz da evidência histórica; porém,
bem sucedido programa de pesquisa que já existiu" - , identificando a ele recomenda que priorizemos a história interna antes de recorrermos à
tendência dos físicos, depois de 1905, de apoiar a teoria da relatividade, história externa. De forma alternativa, o que podemos fazer é " relacionar
que classifica a teoria de Newton como um caso especial. Ele rotula essa a história interna, no texto , e indicar nas notas de rodapé como a história
mudança do PPC newtoniano para o einsteniano de "objetiva'', pois a real 'comportou-se mal' à luz de sua reconstrução racional " (p. 120), con-
maioria dos físicos agiu como se acreditasse na metodologia de progra- selho que ele mesmo seguiu em sua famosa história, dos teoremas mate-
mas de pesquisa cienrífica lakatosiana (MPPC). máticos de Euler sobre os poliedros (Lakatos, 1976) 12 • Escrita dessa
maneira, a história da ciência precisaria de poucas notas de rodapé que se
Ocorre que esse incidente específico na história da ciência pratica- referissem à história externa, pensava Lakatos.
mente não envol veu nenhuma perda de conteúdo kuhniano ao mover-se Respondendo às calúnias de Lakatos sobre sua teoria sociopsicoló-
de um PPC degenerativo em direção a um PPC progressivo: o sistema gica, Kuhn (1970b, p. 256) minimiza as diferenças entre eles: " Embora
newtoniano pode ser considerado um caso especial da mais abrangente sua terminologia seja diferente, seu mecanismo analítico está tão próximo
teoria da relatividade de Einstein. Porém, nem toda a história da ciência do meu quanto for necessário: núcleo central, trabalho no cinto protetor e
se adequa de fonna tão clara à noção de um progresso cientifico cumula- fase degenerativa são paralelos próximos aos meus paradigmas, ciência
tivo e constante, no qual teorias mais antigas estão sempre sendo substi- normal e crise" . Entretanto, ele insiste que "o que Lakatos concebe como
tuídas por outras mais novas , de caráter mais geral. Freqüentemente, o história não o é de forma alguma e sim filosofia que fabrica exemplos.
ganho de conteúdo no progresso ci entífico surge às custas de alguma per-
da , e nesse caso voltamos ao conhecido problema kuhniano da incomen-
12. Seria mais verdadeiro di zer que seu consdho fo i uma racionalização de sua história dos teoremas de Euler,
publicada pela primeira vez em 1964. Essa brilhante obra foi escrita na forma de um diáloeo de Platão e
como uma teoria especifica sobre n naturcz;i do "micko central " de Lakatos; Mnrx estava certo ao acredi- lodas as referênc~s à hislória da matemáti ca são consignadas às notas de rodapé; demons~a que conc~p­
tar que a ··ideologia .. desempenha 11111 p:-i pcl import ante na teoriznç:i.o cienlifi ca, porCm eslava errado ao ções matemáticas àntigas como "rigor'', "elegância" e "prova'', as quais há muito tempo têm sido consi-
pensar que a caraclr.risti ca de classe d~ssa ideologia era decisiva na cscoUrn de ace'itação o~ rejeição de deradas assunto de pura lógica, foram submetidas a tanto desenvol vimento histórico quanto suas equivalen-
teori a> cientilicas '(vcja Seliger, 1977, especilicamente pp. 26-45, 87-94). tes cientificas "poder de convicção", "sim plicidade'', ··necessidade dedutiva" etc.
78 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 79

Colocada dessa fonna, a história em princípio não poderia ter o mínimo a constituir um tipo de esquizofrenia intelectual, especialmente quando
efeito sobre a posição filosófica anterior que a fonnou com exclusivida- nenhum limite de tempo é especificado nem para cientistas, publicações
de" (Kuhn, 1971, p. 143). Lakatos contra-argumenta afinnando que sua de prestígio ou fundações de pesquisa. Feyerabend (1976, p. 423n) co-
abordagem da historiografia da ciência é perfeitamente capaz de reconhe- menta maliciosamente que "se pode comentar sobre a futilidade de um
cer fatos históricos novos, ou seja, fatos que são inesperados à luz das ponto de vista segundo o qual um ladrão pode roubar tanto quanto quiser
abordagens existentes dos historiadores da ciência. Nesse sentido, a "me- e ser louvado pela polícia como honesto, como também pelo cidadão co-
todologia dos programas de pesquisa historiográficos" pode ser justifica- mum, desde que diga a todos que é um ladrão ".
da pela própria MPPC; ela provará ser progressiva se, e somente se, É claro que os esforços de Lakatos para separar avaliação de reco-
promover a descoberta de fatos históricos novos (Lakatos, 1978, I, pp. mendação, de reter uma metodologia da ciência critica que sej a franca-
131-6). A prova do pudim está, portanto, no ato de comer: resta saber se a mente nonnativa, mas que, no entanto, seja capaz de servir como base de
história da ciência, natural ou social, pode ser concebida de fonna mais um programa de pesquisa na história da ciência, devem ser julgados com
frutificante, não como uma série constante de refinamentos paradigmáti- um sucesso altamente qualificado ou então um fracasso , ainda que um
cos rebatidos a cada século por uma revolução científica kuhniana, e sim fracasso ~magnífico ' 3 .
como uma sucessão de programas de pesquisa lakatosianos progressivos,
suplantando-se com teorias de conteúdo empírico cada vez maior.
O Anarquismo de Feyerabend
As concepções de PPC e MPPC de Lakatos já inspiraram uma sé-
rie de reinterpretações de episódios conhecidos e não conhecidos, na his- Muitas tendências, nos escritos de Lakatos, para suavizar as carac-
tória da ciência (ver Urbach, 1974; Howson, 1976), inclusive algumas terísticas "agressivas" do popperianismo, expandir os limites do que é
aplicações na economia que examinaremos com detalhe mais adiante, permitido, são levadas adiante por outros críticos recentes da visão adqui-
neste livro (ver também de Marchin e Blaug, 1991). Deixaremos que ou- rida de teorias , como Hanson , Polanyi e Toulmin, ·sendo ainda mais ela-
tros julguem se esses estudos de fato demonstram o poder heurístico do boradas por Pa.ul Feyerabend ".
programa de pesquisa meta-histórico de Lakatos, mas é justo dizer que na Todos esses escritores negam a distinção positivista entre "o con-
análise final Lakatos tem a mesma dificuldade experimentada por Popper, texto de descoberta" e "o contexto de justificação" (ver especificamente
ao estabelecer um meio tenno entre arrogância prescritiva e humildade Toulmin, 1972, pp. 478-84; Feyera bend , 1975, caps. 5, 14). É claro que
descritiva . eles concordam que a justificação lógica e empírica de teorias não pode
Como vimos, Popper parece estar dizendo aos cientistas o que fa- ser reduzida a uma exposição de suas origens históricas; entretanto, recu-
zer - sem, contudo, negar a possibilidade de se alcançar o progresso cien- sam-se completamente a desvincular avaliações de validade ex post do
tífico sem seu conselho. De fonna semelhante, Lakatos caracteriza sua estudo da gênese das teorias. Em outras palavras, eles seguem Kuhn e
MPPC como uma avaliação ex post de programas de pesquisa científica Lakatos ao rejeitarem o programa popperiano de uma filosofia da ciência
passados que não pode simplesmente ser comparada com um conselho completamente a-histórica, mais ainda ria medida em que cada um deles
heurístico a cientistas vivsis, que os incentive a abandonar um PPC dege- enfatiza repetidamente a característica essencialmente pública e coopera-
nerativo adentrando um PPC progressivo. Ele prega tolerância para com tiva do conhecimento científico: a capacidade de teste interpessoal, defi-
PPCs emergentes que ainda não chegaram a prever fatos novos e se recu- nida pela noção de resultados indefinidamente passíveis de repercussão,
sa a condenar cientistas que se apegam a PPCs degenerativos, desde que
admitam honestamente que o programa deles esteja de fato em degenera- 13. O fracasso ê confirmado pela tentativa desh:midn, porêm pouco convincente, de um de seus alunos, que
ção. Ele acrescenta, contudo, que editores de publicações científicas têm visou reformular a MPPC de Lab tos: ver Worral ( 1976, pp. 161-76). Para outras criticas concludentes de
Lakatos, ver Berksoil (1976) e Toulmin ( 1976).
razão quando recusam publicar trabalhos que resultam de PPCs degenera- 14. Gastou Bachclard, u~m filósofo da ciência frnncis pouco conhecido fora da França, deve ser ligado aos
tivos, como também fundações de pesquisa que se recusam a financiá-los crit icas ingleses e americanos dít visão adqu irida. Para um comentário sobre Bachelard, ver Bhaskar
(Lakatos, 1978, I, p. 117). Não é difícil notar que essas distinções chegam (1975).
80 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER A KOV:\. HETERODO:\l..\ 81

constitui a marca distinta da ciência, e somente isso já bastaria para dis- parece que estamos recebendo camisas que mais adiante tornam-se trans-
tingui-la de outras atividades conceituais humanas. Até mesmo no livro parentes16. Entretanto, aqueles que absorveram o impac.to da tese de Du-
de Michael Polanyi que tem o titulo oportuno de Personal Knowledge o hem-Quine, assim como a lição lakatosiana srcr,undo a qual todos os testes
argumento básico sobre ciência contradiz o titulo: seja lá o que for o compreendem uma luta em três frentes, e1..1re fatos e pelo menos duas
conhecimento científico, não é apenas o conhecimento pessoal que não teorias rivais, guardarão a natureza de base teórica das observações empí-
pode ser transmitido ao público (por exemplo, l>olanyi, 1958, pp. 21, 153, ricas em seu progresso.
164, 183, 292-4; ver também Ziman, 1967, 1978). Pode haver discordân- E verdade que os fatos são até certo ponto embasados em teorias,
cia acerca do que pode ser de fato transmitido ao público, mas concorda- porém não precisam estar completamente constituídos pelas teorias que
se acerca da idéia segundo a qua l teorias científicas devem ser avaliadas apóiam. Parece que os fatos existem em três formas. Há fatos que são
em termos de observações que pelo menos em princípio estejam disponí- eventos observados, em que as observações são tão numerosas ou eviden-
veis a todos os observadores. Uma vez que isso ocorra, contudo, torna-se tes que o fato em questão torna-se universalmente aceito como conclusi-
óbvio que novas observações irão alterar tais avaliações, em conseqüên- vo. Porém, existem também fatos inferidos, como a existência de átomos
cia de que um elemento evolucionário inevitável se agrega à avaliação e genes, que não constituem dados de experiência direta , mas que obtêm,
das teorias científicas. Assim, o ataque popperiano contra a " falácia ge- todavia, o srat11s de fatos incont estáveis. Finalmente, há fatos ainda mais
nética" , a confusão entre origens históricas e validade empírica, cai por hipotéticos, em que a evidência ou é suspeita ou sujeita a interpretações
terra. concorrentes (por exemplo, telepatia, poltergeists e aparições de objetos
Outra nota persistente da nova visão das teorias científicas é a voadores não identificados) ; o mundo certamente está cheio de "fatos"
idéia segundo a qual todas as observações empíricas são necessariamente misteriosos que ainda esperam por uma explicação racional (ver Mitchell,
embasadas em teoria e que até mesmo atos simples de percepção, como a 1974). Em resumo, os fatos têm pelo menos alguma independência em
visão, a percepção sensorial e a audição, são profundamente condiciona- relação às teorias, na medida em que podem ser verdadeiros apesar de a
dos por conceituações anteriores. Como Hanson (1965, p. 7), para quem teoria especifica em questão ser falsa; consistentes em um nível mais bai-
isso é virtualmente uma idée fixe, expressa : "há mais para ver do que o xo, com um certo número de teorias cujas colocações de um nível mais
olho enxerga" 15. Nesse contexto específico, a nova visão se aproxima de elevado estejam, no entanto, em conflito; e o processo de exame dos fatos
Popper, que há muito tempo envolveu-se com o paradoxo de exigir o envolve sempre uma comparação relativa entre teorias mais ou menos
teste rigoroso de teorias em termos de suas previsões observáveis, en- falíveis . Uma vez que aceitemos que o conhecimento completamente ver-
quanto ao mesmo tempo concedia que todas as observações são, na reali- dadeiro nos é negado , nada há de desconfortável com a natureza profun-
dade, interpretações à luz de uma teoria . Em vez de fugir de uma damente teórica de nosso modo de encarar os fatos do mundo real.
aparente -:ontradição, Popper se recusou a definir o termo observável: Entretanto, se juntamos a concepção dos fatos embasados em teo-
"Acho que deveria ser empregado como um termo indefinido que se tor- rias à noção kuhniana da perda de conteúdo em teorias sucessivas, para-
na suficientemente preciso ao ser usado" (Popper, 1959, p. 103; também digmas ou PPCs, de forma que sistemas teóricos concorrentes tomem-se
p. 107n). Para alguns, isso sempre pareceu ser um conselho de desespero: difíceis de comparar se não literalmente incomensuráveis, chegamos a
uma posição em que pareceria não haver condições para se exercitar uma
15. Os economistas deveriam estar familiarizados com os argumentos de Hanson; são citados no primeiro escolha racional entre teorias científicas conflitantes. Foi essa posição de
capílulo da obra Economics, de Sa11111elso11 (1976, pp. 10-12). Alguns sociólogos que invesligam a ciência anarquismo teórico que Feyerabend expôs com grande inteligência e elo-
(Collins, 1985) levam a noção da evidência carregada de leoria um passo adiante. Uma vez que a experi·
mentação é uma pr:itica que necessita de habilidnde, nunca fica claro se um segundo experimento foi
qüência em seu livro Against Merhod, indo mais além ao dizer que "da-
realizado de forma suficienlemcnle boa para qne possa ser levado em conta como uma réplica do primeiro daísmo irre ve re~te " seria uma descrição melhor de sua posição do que
·~
experiment o; experimentos adicionais são necessãrios para testar a qualidade do st:gundo experimento, e
assim por adiante. Dessa maneira, podemos demonstrar que;: na realidade não existe tal coisa como a ·t
reprodução de experimentos de laboratório: lodo c:xperim ento ê sui generis e, portanto, a famosa reproduti- 16. Vi:,r a critica niilisla, t"lll gemi perspicaz, porr.m sem muita lógica, de Popper, ao longo dessa argumentação
bilidade das descobertas cientificas ~ . de: acordo com t:sse ponto de visla, nada mais que um mito. de um escri lor marxisla; llindess ( 1977, cap. 6).

fI
1

1 82 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 83

,,
11 anarquismo sério" (Feyerabend, 1975, pp. 21, 189-96). O desenvolvi- escolas públicas, se isso atender o desejo deles (1975 , p. 299). O único
! mento intelectual de Feyerabend como filósofo da ciência tem sido ade- valor de ordem maior é a liberdade, não a ciência. Como disse um critico:
quadamente caracterizado como "uma viagem de um Popper "para Feyerabend a única liberdade que merece tal nome é aquela de
ultrapopperiano a um Kuhn ultrakuhniano " (Bhaskar, 1975, p. 39). estar na sua , numa boa" (Bhaskar, 1975, p. 42). No final, o livro de Feye-
Against Method afirma, antes de tudo, que não existem cânones de rabend equivale a querer substituir a filosofia da ciência pela filosofia dos
metodologia cientifica que não tenham sido impunemente violados em hippies 11 •
algum ponto na história da ciência, apesar de sua plausibilidade e de esta-
rem firmemente baseados na epistemologia; além disso, alguns dos maio-
res cientistas somente tiveram sucesso ao quebrar deliberadamente toda De Volta aos Princípios Originais
regra sólida de procedimento (Feyerabend, 1975, p. 23 ; também cap. 9).
I' Em segundo lugar, a tese segundo a qual a ciência se desenvolve através O que devemos fazer de um ceticismo, relativismo e voluntarismo
da incorporação de teorias antigas como casos especiais de teorias mais tão extremado como o de Feyerabend, que é bem-sucedido em aniquilar
novas e abrangentes é um mito: a justaposição real entre teorias científi- não apenas sua própria análise e suas recomendações, como também o
cas rivais é tão pequena que até mesmo o falseabilismo sofisticado não próprio assunto para o qual deveria estar fazendo uma contribuição? De-
encontra base na avaliação racional (pp. 177-8) . Em terceiro, o progresso vemos realmente concluir após séculos de elaboração filosófica sistemáti-
cientifico, não importa quão concebido ou medido, somente ocorreu no ca sobre a ciência que esta é igual ao mito e que qualquer coisa vai na
passado porque os cientistas não eram limitados por nenhuma filosofia da ciência, assim como acontece em sonhos? Se assim for, a astrologia não é
ciência: a filosofia da ciência é uma daquelas " disciplinas bastardas ... à pior ou melhor do que a física nuclear - afinal, existe alguma evidência
qual não se credita uma única descoberta" e "o único principio que não que confirma a astrologia genethliacal, que prevê a profissão de indiví-
inibe o progresso é: qualquer coisa vai" (pp. 302, 23). duos a partir da posição de certos planetas no momento de seu nascimen-
A ci ência, insiste Feyerabend, é "muito mais 'bagunçada' e 'irra- to'8; feiticeiras podem ser tão reais quanto elétrons - o fato é que a
cional' do que sua imagem metodológica" ; mais que isso, não há critério maioria das pessoas cultas acreditou em feitiçaria por mais de dois sécu-
de delimitação que possa de forma útil distingui-la da não-ciência, ideolo- los (Trevor-Roper, 1969); nós realmente já fomos visitados por super-ho-
gia ou até mesmo do mito (pp. 179, 297). "Qualquer coisa vai", explica mens do espaço exterior, pois Von Daniken afirmou isso, usando o truque
ele, "não significa que não existem princípios metodológicos racionais, surrado de comprovação sem menção a explicações alternativas bem-ates-
porém apenas que, se temos de ter princípios metodológicos universais,
terão que ser tão vazios e indefinidos como 'qualquer coisa vai' ; 'qual- 17. Ne.nhuma crílica de Against Method, de Feycrabend, no entanlo, deprecia sua qualidade de "'charme""
quer coisa vai' não expressa nenhuma convicção minha, é um sumário ullrajante, no mellior sentido dessa pa lavra; ele é hilariantemente desrespeitoso para com o mundo acadê-
jocoso da condição do racionalista" (1978, p. 188 ; também pp. 127-8, mico-cientifico1 enamora-se de todos os marginais, inclusive os marxistas, astrólogos e Leslemunhas-de-jeo-
vã, e faz troça de si próprio, como tambGm dos outros; realmente, fica difícil saber se o autor não está
142-3, 186-8). Em resumo, ele não é contra o método na ciência e sim constautemenle se divertindo às nossas custas. Agai11st Metlwd fo i amplamente comentado, e em um novo
contra o método em geral, inclusive seu próprio conselho para se ignorar li vro Feyerabcnd (1978) reage de forma carac l l~ríst ica, respondendo aos que sobre ele escreveram, com o
métodos ("para ser um verdadeiro dadaista, deve-se ser também um anti- dobro do conteúdo de suas resenhas ori ginais, acusando-os de não haverem entendido nada, interpretação
errônea, distorção deliberada, evasivas e, pior que tudo, fal ta de humor. Ele nos assegura que existem
dadaísta "). mêtodos alêm daqueles acc:.itos pdos cientistas, que poderiam complementar os procedimentos cientificas
Mas Feyerabend não pretende demolir apenas a metodologia; o racionais, mas não os identifica~ sua contraprova consiste, em sua maior parte, em anedotas sobre experiên~
cias bem-sucedidas com a medicina n:io-orlodoxa. Em um li vro mais recente, ele continua defendendo a
alvo real de suas farpas céticas é a influência repressiva da própria ciên- astrologia e at6 mesmo a bruxaria como exemplo de:. pluralismo radical em todos os esforços intelectuais
cia e em particular a presunção do sistema cientifico oficial de que so- (Feyerabcnd, 1988).
mente ele encontrou métodos corretos para descobrir a verdade: o Estado 18. Ver Wesl e Toondcr (1973, pp. 158, 162-74). Kuhn (1970b, pp. 7-!0), por sua vez, argumentou que a
astrologia ··genethÍiaca/"" (que preve o futuro de indivíd uos), sendo diferente da astrologia ··mundana··
e a ciência devem ser separados, de maneira que os pais exercitem seu (que prevê o fuluro de nações e raças inteiras), deve ser admitida como ciência genuína sob o critêrio de
direito de fazer com que os filhos estudem mágica em vez de ciência nas delimilaçào de Popp<r, ainda que uma ciência refu lada. Ver lambem Eysenck (1979).
84 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA.HETERODOXIA 85

tadas; o planeta Vênus foi ejetado de Júpiter em torno de 1500 a.C., qua- A Circunstância do Monismo Metodológico
se colidiu com a Terra e fixou-se em sua órbita atual somente por volta
de 800 a.C., como Emmanuel Velikovski queria que acreditássemos, con- Até agora, ao fa lannos de ciência, temos raramente mencionado a
finnando dessa fonna a Bíblia como uma narrativa mais ou menos perfei- ciência social, muito menos a economia. Para completar o alicerce de
ta de catástrofes contemporâneas 19 ; as plantas têm emoções e podem nossa análise posterior da metodologia econômica, todavia, devemos le-
receber comunicações de seres humanos'°; a cura pela fé caminha ao lado vantar uma questão famosa dentro da filosofia das ciências sociais: existe
da medicina moderna; e o espiritismo voltou à cena como a resposta ao um método cientifico ap licável a todas as ciências independentemente de
ateísmo. seu campo de estudo ou a ciência social deve empregar uma lógica de
Se resistinnos a implicações tão radicais, deve ficar bem claro que investigação própria? Existem muitos cientistas sociais que buscam na fi-
a resistência não pode ser baseada no leito supostamente finne da episte- losofia da ciência melhores maneiras de imitar a física, a química e a
mologia. Nem pode estar baseada na práxis, como os leninistas gostam de biologia; porém, também existem alguns convencidos de que a ciência
dizer, ou seja, a experiência prática de grupos sociais que atuam com social possui uma compreensão intuitiva de seu campo de estudo que de
base em certas idéias; a práxis justifica o anticomunismo de McCarthy e alguma fonna é negada aos cientistas da área física. Até mesmo filósofos
o anti-semitismo de The Protocols of Zion tão faci lmente quanto a crença da ciência, que são inflexíveis quando insistem em que todas as ciências
em uma conspiração trotskista nos Julgamentos de Moscou, sendo sim- devem seguir a mesma metodologia, algumas vezes renunciam a exigên-
plesmente um nome pomposo para a opinião da maioria11• A única respos- cias especiais com relação à explicação válida na ciência social. Assim,
ta que podemos dar à filosofia de "qualquer coisa vai" é a disciplina Popper em sua obra The Poverty of Hisroricism anuncia pela primeira vez
apresentada pelos ideais da ciência. A ciência, apesar de todas as falhas, é a doutrina do 111011is1110 merodológico - "todas as ciências teóricas ou ge-
o único sistema ideológico autoquestionador e autocorregedor que o ho- rais devem usar o mesmo método, sejam ciências naturais ou ciências
mem já inventou; a despeito da inércia intelectual, do conservadorismo sociais " - e prescreve um princ ipi o de individualismo metodológico para
incrustado, e a despeito das fileiras cerradas para manter os heréticos em as ciências sociais: "a tarefa da teoria social é construir e analisar cuida-
apuros, a comunidade científica pennanece leal ao ideal de competição dosamente nossos modelos sociológicos em tennos descritivos ou nomi-
intelectual em que não pennite outras annas a não ser o argumento e a nalistas; isso quer dizer, em termos de indivíduos, de suas atitudes,
evidência. Cientistas isolados às vezes se desviam desses ideais; entretan- expectativas, relações etc. (Popper, 1957, pp. 130, 136). Tudo isso é no
to, a comunidade científica constitui o modelo da sociedade aberta. mínimo um pouco confuso para o principiante.
11 Comecemos por examinar o argumento em prol da doutrina da
\ unidade das ciências, ou o que chamamos monismo 111ewdológico. Nin-
1
guém nega que as ciências sociais freqüentemente empregam técnicas de
investigação diferentes daquelas usadas nas ciências naturais, por exem-
l
l
19. O argumento de Velikovski seria mais plausível se ti vesse sido feit o 1 milhão de anos atrás. Eum exemplo
espl êndido de uma teoria que lida de forma rnzorivel com previsões, das quais praticamente Iodas são ad
plo, técnicas do observador participante na antropologia , técnicas de le-
vantamento social na sociologia e análise estatística multi variável na
Jwc; alêm disso, ele erra com a mesma freqüência com que acerta (Goldsmith, 1977). psicologia, sociologi a e economia, em contraste com a técnica de experi-
20. A essa suposição espec!fica íalla uma teoria . Ela se baseia simplesmente em alguns poucos resultados mentos controlados em laboratório em muitas ciências físicas . Vale a pena
experimenta is e, e claro, seu profundo apelo psicológico (ver Tompkins e Bird, 1973).
2 1. Como observou Polan yi ( 195 8, p. 182): · ·Quase lodo erro sislemálico maior qu e lem iludido o homem por
notar, entretanto, que as técnicas de investigação talvez não divirjam mais
milhares de anos se baseou na experiência prática. Horóscopos, encantamentos, oráculos, feitiçaria mágica, entre as ci ências sociais e naturais consideradas como um todo do que
as atividades de cnrnnd eiros e de mêdiuns antc::s do advento da medicina moderna, tudo isso estava firme- entre as ciências naturais indi viduais consideradas separadamente. Mas o
mente eslabelc:: cido, ao longo dos séculos, perante os olhos do povo devido ao sucesso prático que lhe era
atribuído. O m~todo ci entifico foi concc::bido justamente com o objetivo de elucidar a natureza das coisas
monismo metoàológico não está envo lvido com técnicas de investigação
sob condições mais cuidadosamente controladas e mediante critérios mais rigorosos do que os existentes e sim com o " !ontexto de justificação" de teorias. A metodologia de uma
em situações criadas por probl emas prãticos·· . ciência é a sua argumentação para aceitar ou rejeitar suas teorias ou hipó-
-.

DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 87


86 ~IETODOLOGIA DA ECONOMIA

teses. Assim, manter a idéia segundo a qual as ciências sociais devem Além disso, podemos duvidar que os cientistas sociais .realmente obte-
empregar uma metodologia distinta das ciências naturais é advogar em nham vantagem da informação extra obtida mediante introspecção e em-
prol da visão surpreendente de que teorias ou hipóteses acerca de ques- patia, pois o conhecimento imediato cria o problema embaraçoso de como
tões sociais devem ser validadas de forma radicalmente diferente daquela lidar com relatos que são enganosos, seja ou não de forma intencional.
utilizada para validar teorias ou hipóteses acerca de fenômenos naturais. Da mesma forma, é fácil justificar a intuição e a empatia como fontes
A negação categórica de tal dualismo metodológico constitui o que cha- extras de conhecimento à disposição dos cientistas saciai~ que podem au-
mamos de monismo metodológico. xiliar na invenção de hipóteses adequadas sobre o comportamento huma-
Há uma objeção nova e uma antiga a essa doutrina. A objeção anti- no, porém é difícil sustentar-se o argumento em prol da ciência social
ga é aquela de certos filósofos alemães do século XIX da escola neokan- verstehende no "contexto de justificação" (ver Nagel, 1961 , pp. 473-6;
ti ana e desenvolve-se em torno da concepção de Verstehen ou 480-5; Rudner, 1966, pp. 72-3 ; Lesnoff, 1974, pp . 99-104).
"compreensão". A objeção nova deriva de uma parte do trabalho filosófi- A objeção nova ao monismo metodológico foi colocada de maneira
co de Wittgenstein que aborda o significado das ações humanas, governa- forçada, e até mesmo com estulticia, por Peter Winch em sua discutida
das como sempre por normas sociais. Vamos abordá-las. obra Jdea of a Social Science (1958), e liga-se a algumas das idéias meto-
O termo alemão Verstehen denota compreensão interior através de dológicas de Max Weber, em particular à noção de tipos ideais que incor-
intuição e empatia, de forma oposta ao conhecimento exterior mediante poram os significados que os agentes humanos vinculam a suas ações23 • O
observação e cálculo; em outras palavras, conhecimento da primeira pes- fio central desse tipo de pensamento é que o significado não é uma cate-
soa que é acessível a nós como seres humanos companheiros, em vez do goria aberta à análise causal e que, enquanto ações humanas criadas por
conhecimento de terceira pessoa que pod~ não corresponder a algo que normas formarem o campo de estudo da investigação social, a explanação
possa ser alcançado em termos humanos. E claro que esse tipo de conhe- na ciência social deverá ocorrer não em termnos de causa e efeito físicos,
cimento de primeira pessoa, participante, é negado aos cientistas naturais, e sim em termos das motivações e intenções de indivíduos. Em outras
pois eles não imaginam como você se sente ao ser um átomo ou molécu- palavras, o tipo de conhecimento apropriado para a investigação social
\ las". Porém, os cientistas sociais, interessados nas ações humanas, aden- somente pode ser obtido "aprendendo-se as regras", e, por sua vez,
tram de modo simpático à posição dos atores humanos em estudo, apelam aprender as regras implica conhecer os fenômenos internamente, ou seja,
1.1 para a introspecção como fonte de conhecimento sobre o comportamento ter a experiência de se comportar em conformidade com essas regras.
desses atores, podendo assim exercitar uma vantagem inerente em relação Portanto, a objeção nova ao monismo metodológico em última análise se
ao estudante dos fenômenos naturais. Verstehen não é apenas umas carac- harmoniza com a objeção antiga à doutrina Verstehen; ambas estão sujei-
terística necessária da explanação adequada dentro das ciências sociais, tas à mesma crítica, segundo a qual não recebemos nenhum método inter-
portanto, desqualifica alguns ramos da psicologia como o behaviorismo pessoalmente testável para validar asserções acerca de comportamento
de Skinner, como também a fonte de energia sem par, se comparada com auto-regulado (Rudner, 1966, pp. 81-3; Lesnoff, 1974, pp . 83-95; Ryan,
o conhecimento de observador exterior dos cientistas naturais. 1970, caps. 1, 6) .
A dificuldade metodológica com a doutrina Verstehen é a mesma A questão da Versteh.en e a expressividade da ação guiada por nor-
do uso da introspecção como fonte de evidência acerca do comportamen- ma está íntima e confusamente ligada ao princípio popperiano do indivi-
to humano: como sabemos que um uso específico da Verstehen é confiá-
vel? Se objetamos a um ato específico de empatia, como irá o agente da 23. Os lipos ideais de Weber não são a~nas qualquer concepção abstrata e sim tipos particulares de elabora-
empatia validar seu método? Se a validàde do método empático pode ser ções especificamente relacionadas com agentes humanos que pensam e sentem e os eventos resultantes da
estabelecida de forma independente, normalmente se revelará redundante. ação desses agent~s (pçr exemplo, o homem econômico, capitalismo, burocracia etc.). Em resumo, a defi-
4
nição de Weber lipos ideais envolve a Ve rs1elie11 como um de seus elementos essenciais. O significado
de Weber foi maÍ entendido, em parle porque l~stava expresso de forma obscura; tipos id ea is nem são
22. Para uma defesa di vertida da doulrina Versreiien, sob o IÍlnlo "Se a maléria falasse", ver Machlup (1978, "ideais" nem "lipos". Tanlo Burger (1976) quanlo Machlup ( 1978, caps. 8, 9) lidam como experrs com a
pp. 315-32). excessivamettle injuriada teoria de tipos ideais de Weber.
88 ~IETODOLOCIA DA ECONOMIA DE POPPER À NOVA HETERODOXIA 89

dualismo metodológico. Esse princípio estabelece que as explanações so- nhuma ligação necessária com a maneira que deveríamos ou não investi-
bre os fenômenos sociais, políticos ou econômicos somente devem ser gar os fenômenos coletivos, ou seja, com o individualismo metodológico.
consideradas adequadas se colocadas em termos das crenças, atitudes e Uma interpretação óbvia do que significa o individualismo meto-
decisões de indivíduos. Esse princípio se opõe ao alegadamente indefen- dológico equivale a equacioná-lo com a proposição de que todas as con-
sável princípio do holismo metodológico, de acordo com o qual se postula cepções da sociologia são redutíveis e deveriam ser reduzidas àquelas da
que os conjuntos sociais têm objetivos ou funções que não podem· ser psicologia. Entretanto, Popper denuncia essa. inte~retaçã~ con:io sen~o
reduzidos a crenças, atitudes e ações dos indivíduos que os fazem. A for- psicologismo. O ataque de Popper contra o ps1colog1smo nao foi convm-
ça da insistência de Popper no individualismo metodológico não é clara a cente, e a maior parte do debate na realidade contemplou a diferença en-
partir de seus próprios escritos (Ackerman, 1976, p. 166), e os anos 50 tre "fatos da sociedade" irredutíveis ou instituições e "leis da sociedade"
presenciaram um grande debate sobre essa questão, de que o próprio Pop- passíveis de redução, à luz de que Popper pode ser interpretado como se
per não participou~'. estivesse insistindo na redução de leis sociais a indivíduos e as relações
O debate foi bem sucedido ao esclarecer certas confusões que ine- entre eles. Infelizmente, Popper argumenta também que "a tarefa princi-
vitavelmente cercam o imperativo do individualismo metodológico. A ex- pal das ciências sociais teóricas [... ] é a de identificar as repercussões
pressão "individualismo metodológico" foi aparentemente inventada por sociais involuntárias da ação humana intencional" (1972b, p. 342; tam-
Schumpeter ainda em 1908, e Schumpeter foi o primeiro a diferenciar o bém pp. 124-5, 1962, II, p. 95; 1972a, p. 160n) . Mas como isso é possível
individualismo metodológico do "individualismo político", com o pri- se não existem leis sociais legítimas, ou seja, proposições sobre conjuntos
meiro prescrevendo um modelo de análise econômica que sempre começa que sejam mais do que a soma de proposições acerca das partes que os
com o comportamento de indivíduos, enquanto o último expressa um pro- constituem? Sem dúvida, o individualismo teórico da economia e da polí-
grama político em que a preservação da liberdade individual toma-se a tica nos dias de Hobbes e Locke culminou com a doutrina de conseqüên-
pedra de toque da ação governamental (Machlup, 1978, p. 472). Popper cias não intencionais dos filosófos escoceses do século XVIII - a
não faz essa distinção de fonna tão clara quanto o fez Schumpeter, daí linguagem, a lei e até mesmo o mecanismo do mercado são as conseqüên-
sua defesa do individualismo metodológico, ou sua crítica do holismo cias sociais não planejadas das ações individuais desempenhadas por mo-
metodológico, ser por vezes ilegitimamente ligada à defesa do individua- tivos puramente egoístas -, mas seguramente isso não é motivo para
lismo político (Popper, 1957, pp. 76-93); uma tendência semelhante é de- tomar o estudo dos subprodutos das ações individuais uma característica
tectável na crítica anterior de Friedrich Hayek (1973) ao "cientismo", a necessária, ou até mesmo principal, das ciências sociais. Porém, se fosse,
imitação servil dos m~todos das ciências físicas (Machlup, 1978, pp. 514- o que ocorreria com o imperativo do individualismo metodológico?
6), que parece ter inspirado Popper a formular o princípio do individualis-
mo metodológico~ 5 • De forma semelhante, muitos dos seguidores de Nessa altura, é bom notar o que o individualismo metodológico, ao
Popper, se não ele próprio, derivam o individualismo metodológico a par- ser interpretado de forma rigorosa (ou a doutrina Verstehen no que diz
tir do que tem sido denominado "individualismo ontológico", isto é, a respeito ao assunto), envolveria a economia. Com efeito, excluiria todas
proposição segundo a qual os indivíduos criam todas as instituições so- as proposições macroeconômicas que não pudessem ser reduzidas a mi-
ciais, e, portanto, os fenômenos coletivos são simplesmente abstrações croeconômicas, e, desde que poucas o têm sido, isso equivaleria a dizer
hipotéticas derivadas das decisões de indivíduos reais . Porém, embora o adeus a quase toda a macroeconomia estabelecida. Deve haver algo erra-
individualismo ontológico seja verdadeiro de forma trivial, não tem ne- do com um princípio metodológico que tenha implicações tão devastado-
ras. A referência à economia não é de forma alguma supérflua, pois o
24. Praticamente todo o debate esta reproduzido nas obras de Krimerman (1969, pi. 7) e O'Neill (1973); mas próprio Popper çxplicou que o individualismo metodológico deve ser in-
ver lambem Nage l (1961, pp. 535-44); Lukes (1973); Ryan (1970, cap. 8); e Lesnoff (1974, cap. 4); com terpretado comO"~,a aplicação do "princípio da racionalidade" às ciências
relação â economia, ver o capitulo 15 que se segue.
sociais, ou o "método zero" aplicado à "lógica da situação". Ele explica
25. Hayek voltou atras na maior parle de sua oposição anterior ao monismo metodológico e agora adota uma
posição Popper-com-uma-diferença: ver Barry (1979, cap. 2) e Hutchison (1992), Caldwell (1992). esse método de análise situcional em sua biografia intelectual,
I~ 90 METODOLOGIA DA ECONOMIA DE POPPER A NOVA HETERODOXIA 91
(... ) foi uma tentativa de generalizar o método da teoria económica (teoria da utilidade colher em princípio entre os métodos das ciências físicas e soc1a1s; po-
marginal) de fonna a torná-lo aplicável às outras ciências sociais teóricas [... ] esse método consis-
rém, na prática, a divisão entre elas é quase tão grande quanto a que
te na construção de um modelo da situação social, incluindo em especial a situação institucional,
existe entre os métodos das Ciências sociais e, digamos, os princípios da
em que um agente atua, de tal maneira a explicar a racionalidade (o caráter zero) de sua ação. Tais
modelos, então, são as hipóteses testáveis das ciências sociais (Popper, 1976, pp. 117-8; também
crítica literária.
1957, pp. 140-1; !972a, pp. 178-9, 188).

Elogiemos o individualismo metodológico como sendo um postula-


do heurístico; em princípio, é altamente desejável que se definam todas
as concepções holísticas, fatores macroscópicos, variáveis agregadas, ou
seja lá como são chamadas, em tennos de comportamento individual se e
quando isso for possível. Porém, quando não for possível, não vamos cair
no silêncio sob a alegação de que não podemos desafiar o princípio do
individualismo metodológico. Como escreveu um participante do debate:

O máximo que podemos exigir do cientista social [.. .] é que ele mantenha finne em sua
mente o_ individualismo metodológico, como meta e ideal a ser consumado da melhor fonna passi-
ve!. Isso deve pelo menos assegurar que ele nunca mais perderá tempo coll'. suspeitas e "forças"
impessoais, econômicas ou não; nunca mais propriedades não observáveis serão atribuídas a entida-
des de grupo igualmente não observáveis. Ao mesmo tempo, ele não será silenciado, com sanção
metodológica, com relação a assuntos sobre os quais existe , não importa o quão impreciso, muito a
se dizer (Brodbeck, 1958, p. 293).

Agora que reafirmamos o monismo metodológico, mesmo indo


contra a aparente diluição da doutrina de Popper, não queremos negar a
imaturidade relativa de toda ciência social, inclusive a economia, em
comparação com pelo menos algumas das ciências físicas. Mesmo que a
diferença entre a física "pesada" e a ciência social "leve" seja apenas de
grau, esse grau torna-se amplo . Nenhuma ciência social pode alardear as
j leis universais da química moderna, as constantes numéricas da física de
.1
partículas e a acuidade previsiva da mecânica newtoniana. A comparação
entre ciências sociais e naturais parece um pouco melhor em tennos de
biologia, geologia , fisiologia e meteorologia, mas até mesmo aqui existe
um longo conflito entre nosso conhecimento do comportamento humano e
nosso conhecimento dos fenômenos naturais 26 • Pode não haver nada a es-

26. Ver Machlup (1978, pp. 345-67) para uma teutativa criteriosa de lidar com a pergunta: as ciências sociais
são realmente inferiores? Sua resposta ê sim, por~m não tanto quanlo as pessoas parecem pensar. Qualquer
pessoa que pensa que a economia CUnica em tcnnos da fraqueza e indecisão da evidência empregada para
apoiar suas colocações deveria examinar o "caso NGmesis" , a hislória da hipótese que diz que o impacto
de um grande meteorito há 65 milhões de anos foi a causa da ex.tinção dos dinossauros; atem do mais, que extinções são periódicas, e devidas a Nêmesis, uma es1rela companheira do nosso próprio Sol que adenira
essa foi apenas uma dentre nrnilas outras extinções ao longo dos liltimos 250 milhões de anos, que essas o sistema solar a cada 30 milhões de anos.

You might also like