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Este livro faz afirmações sonantes a respeito da evolução: que esta se pode
tornar uma questão incontroversa, que os seus princípios básicos são fáceis de
apreender, que toda a gente deveria querer conhecê-los e que, uma vez
compreendidas as suas implicações, a evolução e a religião, esses velhos
inimigos que presentemente se situam em campos opostos do pensamento
humano, se podem associar de forma harmoniosa.
Será possível que estas afirmações sejam verdadeiras? Não será a evolução
a teoria mais controversa que o mundo alguma vez conheceu? Uma vez que é
um tema científico, não será difícil de apreender? Se as suas implicações são
inócuas, porque tanto receio e nervosismo? E porque diabo velhos inimigos
como a evolução e a religião haveriam de abandonar os campos opostos do seu
combate?
Posso ser um optimista, mas não sou ingénuo. Permita-me que me
apresente: sou um evolucionista, o que significa que uso os princípios da
evolução para compreender o mundo à minha volta. Seria um biólogo evolutivo
se me restringisse aos temas tipicamente associados à biologia, mas incluo tudo
o que é humano na vida no seu conjunto. Isso faz de mim um evolucionista sem
quaisquer limitações. Eu e os meus colegas evolucionistas estudamos a criação
em todos os seus aspectos, desde a origem da vida até à religião. Por
conseguinte, tenho uma percepção bastante clara do que as pessoas pensam
sobre a evolução e posso afirmar que a situação é muito pior do que se poderá
pensar. Vou mostrar como ela é má antes de explicar por que razão continuo a
estar confiante quanto ao cumprimento dos objectivos deste livro.
A maioria das pessoas conhece a relutância da generalidade do público em
aceitar a teoria da evolução, especialmente nos Estados Unidos da América.
Segundo a sondagem mais recente da Harris, 54 por cento dos adultos dos EUA
acreditam que o ser humano não é um produto da evolução de espécies
anteriores. Este valor é superior aos 46 por cento de 1994. A rejeição da
evolução estende-se às ideias sobre a origem de outras espécies e ao registo
fóssil como prova da evolução, e vai de par com o refrão constante de que a
evolução é «apenas uma teoria».
Para piorar as coisas, a maioria das pessoas que aceitam a teoria da
evolução não a usa para compreender o mundo que as rodeia. Para elas, esta
teoria tem a ver com dinossauros, fósseis e seres humanos a evoluir a partir dos
macacos, e não com o meio ambiente actual ou com a condição humana. As
sondagens não medem a percentagem de pessoas que relacionam a evolução
com a sua vida quotidiana, mas ela deve ser mínima.
Para os cientistas e intelectuais, é fácil sorrir face à ignorância dos crentes
e do público em geral, mas a verdade é que eles não são muito melhores. A torre
de marfim seria mais apropriadamente apelidada «arquipélago de marfim». É
composta por centenas de temas isolados, cada um deles dividido em outros
mais pequenos numa progressão quase infinita. As pessoas são examinadas, não
tanto com um microscópio, mas com um caleidoscópio — psicologia,
antropologia, economia, ciência política, sociologia, história, arte, literatura,
filosofia, estudos de género, estudos étnicos. Cada perspectiva tem a sua própria
história e os seus pressupostos específicos. A heresia de uma pessoa é a
trivialidade de outra. No que respeita à evolução, a maioria dos cientistas e
intelectuais diria que aceita a teoria de Darwin, mas muitos negariam a sua
relevância para os assuntos humanos ou reconheceriam de bom grado a sua
importância sem a utilizarem nas suas vidas profissionais ou quotidianas. Com
efeito, há um muro no mundo académico que restringe o estudo da evolução à
biologia e a uns poucos de assuntos relacionados com o ser humano, como a
genética humana, a antropologia física e ramos especializados da psicologia.
Para além deste muro, é possível uma pessoa fazer um doutoramento sem uma
única disciplina de evolução ou mais do que uma referência casual a esta teoria
noutras disciplinas. É por isso que a expressão «biólogo evolutivo» é uma
designação reconhecida pelas pessoas, enquanto o termo mais geral
«evolucionista» lhes parece estranho.
Alguns intelectuais rivalizam com os criacionistas da Terra jovem na
rejeição da evolução no que respeita aos assuntos humanos. Um artigo
publicado na revista The Nation em 1997, intitulado «The New Creationism:
Biology Under Attack», formula a questão nos seguintes termos:
O resultado é uma visão ideológica estranhamente semelhante à do criacionismo
religioso. Tal como os seus homólogos cristãos fundamentalistas, os antibiologistas mais
radicais sugerem que os seres humanos têm um estatuto completamente diferente, e
nitidamente «acima» do dos outros seres vivos. Do mesmo modo que os fundamentalistas
religiosos, os novos criacionistas universitários defendem a sua posição como se estivesse
em jogo toda a dignidade humana e toda a esperança no futuro.
Este curso mudou a forma como olho para as coisas em geral. Agora
tento vê-las e compreendê-las a partir de uma perspectiva evolutiva.
2
Limpar o convés
3
Um terceiro modo
de pensar
4
Provem-no!
5
Cautela com aquilo
que deseja
7
Como o cão ficou
com a cauda enrolada
Dmitry K. Belyaev não estava onde queria estar. Era um geneticista russo
que se recusava a apoiar as teorias de cariz ideológico do seu colega Trofim
Lysenko, e por isso fora retirado de um posto de trabalho prestigioso em
Moscovo e enviado para a Sibéria — não para trabalhar no gulag, mas para criar
um novo instituto científico. Mesmo o seu antigo trabalho parecia estranho aos
olhos de um americano: chefe do Departamento de Criação de Animais com
Pêlo no Laboratório de Investigação Central de Criação de Animais para
Curtumes. No entanto, em 1959 Belyaev iniciou uma experiência no seu novo
instituto que revelou algo fundamental sobre a evolução em geral.
O objectivo restrito da experiência era criar uma variedade de raposa-
prateada mais mansa. Desde o início do século xx, as raposas-prateadas
selvagens eram criadas em jaulas para obtenção de peles, mas não eram de
modo nenhum animais completamente domesticados. Belyaev estabeleceu um
protocolo rígido para medir o grau de domesticação ao longo do
desenvolvimento, começando com animais com um mês e indo até aos que
tinham adquirido maturidade sexual. Os indivíduos eram seleccionados para
criação apenas com base no seu índice de domesticidade, sem atender a
nenhuma outra característica. Quarenta anos e quarenta e cinco mil raposas
mais tarde, Belyaev (que morreu em 1985) e os seus sucessores tinham
produzido uma nova raça à altura de receber o nobre título de «elite
domesticada». Em vez de fugirem das pessoas e de as morderem quando as
tratavam, como os seus antepassados haviam feito, as raposas da nova raça
ansiavam por contacto humano, ganindo, farejando e lambendo como cães,
ainda antes de completarem um mês.
É assim o poder da selecção artificial, que inspirou parcialmente a teoria
da selecção natural de Darwin. Todavia, o mais extraordinário nesta experiência
foi as raposas terem-se tornado semelhantes a cães noutros aspectos. As caudas
tinham ficado enroladas, as orelhas caídas, o pêlo às manchas. As pernas
tinham-se tornado mais curtas e os crânios mais largos. Estas características
físicas não haviam sido seleccionadas, mas mesmo assim tinham aparecido,
como que ligadas por fios invisíveis a uma característica comportamental de
domesticidade.
Estas relações ocultas forçam-me a corrigir a minha descrição de variação
hereditária como um tipo de argila viva que pode ser modelada pela selecção
natural. Isto era demasiado simples. A argila verdadeira é tão maleável que se
pode modelar uma parte de uma escultura sem alterar as outras partes. A argila
viva é mais complexa e interligada, impondo uma forma própria. Como bom
evolucionista, é possível que lhe interesse uma característica bem visível, como
uma cauda enrolada ou uma orelha caída, e pergunte como evoluiu ela
contribuindo para a sobrevivência e a reprodução. É uma boa pergunta e eu
poderia fornecer muitos exemplos de características que inicialmente parecem
tão caprichosas como uma orelha caída, mas que, submetidas a um estudo mais
atento, acabam por se revelar importantes adaptações. No entanto, a
experiência da raposa revela uma possibilidade completamente diferente: talvez
a característica não tenha absolutamente nenhuma função. Existe devido a
relações ocultas com outras características que podem ser tão obscuras como as
relações entre uma cauda enrolada e a domesticidade.
Para saber mais, temos de compreender de uma forma mais
pormenorizada a argila viva da variação hereditária. No capítulo 3 descrevi três
maneiras de pensar baseadas na teologia, no materialismo e na selecção natural.
A teologia já não é usada para explicar o mundo material, não por ter sido
injustamente excluída, mas por inúmeras vezes ter mostrado a sua incapacidade
nesta matéria. Ao fazer esta afirmação, não é minha intenção manifestar
qualquer falta de respeito, e de resto voltarei a fixar a atenção na teologia em
capítulos futuros. De momento, basta dizer que a missão da teologia é
estabelecer valores, e não factos, relativos ao mundo material.
Restam as outras duas maneiras de pensar, baseadas no materialismo e na
selecção natural. Estas são complementares e uma nunca pode substituir a
outra. Um conhecimento completo sobre a constituição física dos organismos
não nos elucidará sobre a influência da selecção natural. Um conhecimento
completo sobre a selecção natural não nos elucidará sobre os mecanismos que
evoluem ou misteriosas relações ocultas. como as que foram reveladas pela
experiência da raposa. Os evolucionistas usam os termos «último» (para
explicações baseadas na selecção natural) e «próximo» (para explicações
referentes aos mecanismos) a fim de estabelecerem esta distinção. Usando estes
termos, precisamos de aprender mais sobre os mecanismos próximos que levam
uma raposa a ser brava ou mansa.
Quase todos os animais selvagens são mais mansos em pequenos do que
em adultos. É provável que isto seja óbvio a partir da vossa experiência e que
faça sentido do ponto de vista funcional. Uma raposa bebé é incapaz de se
defender e vive num mundo protegido que lhe é proporcionado pelos pais. Só
mais tarde terá os meios e as razões para correr ou lutar. Esta lógica adaptativa
(a explicação última) é implementada em raposas bebés por mecanismos
hormonais (a explicação próxima). Elas nascem mansas e o medo cai como uma
cortina entre os dois e os quatro meses de idade, causado pelo aumento dos
níveis de corticosteróides, hormonas associadas ao stresse. Os seus corpos estão
simplesmente programados para que isto aconteça, não sendo necessária
qualquer experiência. É fácil imaginar uma raposa bebé que tivesse de
experimentar um acontecimento assustador antes de ficar medrosa, mas esses
bebés não sobreviveriam tão bem como os que ficam automaticamente
medrosos quando têm uma determinada idade.
A nível individual, as raposas distinguem-se umas das outras quanto à
altura exacta em que cai a cortina hormonal, e esta variação é hereditária.
Quando Belyaev seleccionava raposas puramente pela sua mansidão, escolhia as
que tinham o período imaturo mais prolongado. No entanto, as hormonas não
influenciam comportamentos isolados; são como condutores que determinam
muitos comportamentos de uma maneira coordenada. As raposas mansas
permaneciam infantis em muitos aspectos, incluindo as orelhas caídas, as
pernas curtas e os crânios largos. Outro aspecto do desenvolvimento dos
mamíferos consiste em as células pigmentares (melanócitos) terem origem
numa parte do embrião (a crista neural) e migrarem para a sua localização final
na pele. Prolongar o desenvolvimento infantil atrasa a sua migração e leva
algumas a morrerem, o que tem por resultado zonas de pele sem pigmentação —
manchas.
Estas regras do desenvolvimento dos mamíferos são muito gerais, o que
explica um padrão surpreendente. Já alguma vez reparou que todos os
mamíferos domésticos, incluindo cães, gatos, gado, cavalos, porcos e
porquinhos-da-índia têm tendência para partilhar determinadas características?
Tendem mesmo a partilhar a mesma malha branca na testa, em forma de
estrela. Darwin, sempre tão observador, reparou que «não existe um único
animal doméstico que não tenha orelhas caídas em país nenhum». Ora aqui está
um facto humilde em si mas que adquire importância em associação com outros
factos! Entre os mamíferos selvagens, a maioria das crias tem orelhas caídas,
mas só o elefante as mantém em adulto. Todos os nossos animais domésticos se
tornaram mansos retendo as suas características juvenis, como as raposas da
experiência de Belyaev.
Belyaev era um importante cientista e evolucionista, que teve de lutar
contra grandes adversidades. O seu colega Trofim Lysenko tirou-lhe o
prestigioso posto de trabalho e praticamente ilegalizou o estudo da genética e da
evolução na Rússia durante décadas. O governo do seu país não compreendia o
valor do conhecimento fundamental, o que o forçou a justificar o seu trabalho
com os parcos benefícios do comércio de peles. O país era tão pobre que oferecia
um escasso apoio a qualquer tipo de ciência, fundamental ou aplicada. É
extraordinário que, em tais circunstâncias, ele tenha conseguido manter o seu
empenhamento na ciência fundamental.
Em comparação com Belyaev, um jovem cientista americano chamado
Douglas Emlen é um homem cheio de sorte. Está exactamente onde quer estar,
ou seja, na Universidade de Montana em Missoula. Faz exactamente o que quer
fazei que é estudar a evolução e o desenvolvimento, tal como Belyaev. Ainda
melhor, consegue concentrar-se completamente no conhecimento fundamental
avançado, o que o leva a estudar um grupo de escaravelhos sem qualquer
significado económico mas de grande significado científico.
Estes insectos assemelham-se um pouco aos meus escaravelhos-
necrófagos, só que enterram esterco em vez de carne putrefacta. A maioria das
pessoas que visitam África fica maravilhada com a caça grossa, mas há outro
espectáculo que tem lugar cada vez que um dos grandes animais que constituem
a caça defeca. Quase antes de as fezes tocarem no chão, aproximam-se centenas
de escaravelhos, vindos de todas as direcções. Sei por experiência que os
ouvimos chegar antes de conseguirmos puxar as calças para cima. Estes animais
pertencem a dezenas de espécies, que têm desde o tamanho de uma bola de
golfe até ao de uma lentilha, e muitos deles têm chifres como rinocerontes voa-
dores em miniatura.
Doug estuda um único género de escaravelhos-bosteiros chamados
Onthophagus. Um género é a unidade taxonómica acima da espécie, de modo
que todos os seus membros derivam de um antepassado comum recente. O
género Ontophagus inclui mais de duas mil espécies, distribuídas por todo o
mundo, e a morfologia do chifre é extraordinariamente variada. Alguns
escaravelhos não têm chifre, enquanto outros exibem enormes peças bucais
semelhantes a um par de presas. Os chifres podem estar situados na ponta da
cabeça, na testa ou numa espécie de escudo (chamado pronoto) atrás da cabeça.
Os estudos moleculares revelaram que qualquer tipode chifre dentro do género
evoluiu não uma, mas inúmeras vezes. Se pudéssemos transformar a evolução
de todo o género num desses livrinhos de imagens que, quando rapidamente
folheados, dão a ilusão de movimento, veríamos uma sucessão louca de chifres,
a brotar, a encolher e a mudar de posição. Doug escolheu este género por ele
permitir tantas comparações e o seu objectivo é estudar a evolução e o
desenvolvimento dos chifres tanto de uma perspectiva assente nas causas
últimas como próximas. Claro que o que mais interessa não são os escaravelhos
em si, mas o que eles nos dizem sobre a evolução e o desenvolvimento em geral.
Do ponto de vista das causas últimas, queremos saber se os chifres são
adaptações que evoluiram por selecção natural. Como vimos, a resposta não
precisa de ser afirmativa. Os chifres podiam ser como as orelhas caídas das
raposas, que não têm nenhuma função. Todavia, uma vez que se penetra nas
vidas destes seres maravilhosos, a função dos chifres torna-se evidente. As
fêmeas, que não têm chifres na maioria das espécies, acumulam excrementos
em túneis subterrâneos para criarem as ninhadas. Os machos, que têm chifres,
guardam as entradas dos túneis impedindo a entrada de outros machos.
Debaixo de cada pilha de esterco tem lugar uma batalha homérica entre machos
pela posse das fêmeas e dos recursos.
Alguns machos são demasiado pequenos para travarem estas batalhas. O
motivo pelo qual são pequenos é não terem recebido alimento suficiente. Um
escaravelho-bosteiro bebé ingere o que arranja e transforma-se em adulto
quando a comida acaba. É melhor ser um adulto enfezado do que não conseguir
chegar a adulto. Estes machos fracalhotes não sao fortes mas são astutos e
conseguem ter acesso às fêmeas cavando os seus próprios túneis. Os chifres
seriam um impedimento para esta estratégia «furtiva», e os machos pequenos
não os têm.
Tal como com os escaravelhos-necrófagos que descrevi anteriormente,
talvez fiquem estupefactos por estes insectos serem capazes de tantas
estratégias «inteligentes». Os machos e as fêmeas não só se envolvem em
tarefas muito diferentes, mas além disso os machos adultos adoptam estratégias
diferentes consoante a quantidade de comida que receberam enquanto larvas.
Mudam não só os seus comportamentos, mas até os seus corpos, por exemplo
com a presença ou ausência de chifres. Os escaravelhos-bosteiros não possuem
mais inteligência do tipo da inteligência humana que os escaravelhos-
necrófagos, mas possuem um sistema de mecanismos físicos (a explicação
próxima) que os dota de corpos e comportamentos que os ajudam a sobreviver e
a reproduzir-se (a explicação última).
Com os escaravelhos-bosteiros verifica-se um período crítico quando a
larva se transforma num adulto (a fase pupal). Nesta altura, a presença ou
ausência do cromossoma sexual determina que genes serão ligados ou
desligados de modo a produzir um adulto macho ou fêmea. Se for um macho, o
tamanho do corpo é avaliado e comparado com um limiar a fim de determinar
se será produzido um chifre. São igualmente tomadas outras decisões. O corpo
larvar é como um único mealheiro cheio de dinheiro que precisa de ser
distribuído pelas partes do corpo adulto: quanto deve ir para as asas, os olhos,
as pernas, as antenas, os ovários ou os testículos? De certo modo, as interacções
hormonais no interior do escaravelho funcionam como uma calculadora,
recebendo informação (como o tamanho do corpo) e dando respostas sensatas
(as partes e as proporções certas do corpo).
Os chifres são claramente adaptativos para os indivíduos que os têm
(machos grandes), mas ainda precisamos de explicar a diversidade de chifres.
Porque se encontram localizados na ponta da cabeça, na testa ou no escudo na
parte posterior da cabeça em diferentes espécies de escaravelhos-bosteiros?
Verificou-se que a resposta a esta pergunta se baseia não numa diversidade de
funções (todos os chifres são usados basicamente para o mesmo fim) mas num
capricho do desenvolvimento do escaravelho. A competição verifica-se não só
entre escaravelhos machos que usam os chifres para combater, mas entre partes
do corpo adjacentes dos escaravelhos machos durante o desenvolvimento
adulto. Se o chifre estiver localizado na ponta da cabeça, só se pode tornar maior
se as antenas se tornarem mais pequenas. Se estiver localizado na testa, só se
pode tornar maior se os olhos se tornarem mais pequenos. Se estiver localizado
no escudo, só se pode tornar maior se as asas se tornarem mais pequenas. Estas
trocas talvez pareçam intrigantes. Não seria possível conceber um sistema que
não exigisse competição entre estruturas adjacentes? Talvez, mas não foi um
sistema desses que se desenvolveu nos escaravelhos-bosteiros.
A competição interna entre partes do corpo adjacentes começa a explicar
por que motivo os chifres podiam estar localizados em diversas partes do corpo
em espécies diferentes. Por exemplo, entre os milhares de espécies do género
Onthophagus, algumas são diurnas e outras nocturnas. As espécies nocturnas
precisam de olhos maiores para verem no escuro, de modo que os seus chifres
deviam estar localizados na ponta da cabeça ou nos escudos, mas não na testa.
Claro que foi isto que Doug descobriu quando comparou as espécies diurnas e
nocturnas dentro deste único género. De igual modo, as espécies que têm de
percorrer grandes distâncias a voar não deviam ter chifres nos escudos e as
espécies que dependem principalmente das antenas para detectar substâncias
químicas não deviam ter chifres na ponta da cabeça. Doug está a testar estas
hipóteses comparando os milhares de espécies neste único género das maneiras
apropriadas.
Os escaravelhos-bosteiros de Doug e as raposas de Belyaev dizem-nos que
o pensamento que se baseia na selecção natural e o pensamento mecanicista —
último e próximo — devem ter lugar em associação com uma compreensão
plena do processo da evolução. A argila viva da variação hereditária não é
infinitamente maleável e as suas propriedades só podem ser descobertas por
meio de um trabalho árduo. Ninguém poderia ter sabido antecipadamente que
as raposas seleccionadas puramente pela mansidão se tornariam semelhantes a
cães em outros aspectos ou que partes do corpo adjacentes competem entre si
durante o desenvolvimento dos escaravelhos. A única maneira de obter este
conhecimento consiste em arregaçar as mangas e começar a trabalhar utilizando
métodos científicos e uma boa teoria que faça as perguntas certas.
Doug e eu somos ambos evolucionistas, mas praticamos a nossa arte de
modos muito diferentes. Eu uso a evolução para estudar a criação em toda a sua
amplitude, e nunca me ocupo de qualquer organismo ou assunto particular
durante muitos anos. Ele baseia toda a sua carreira num único assunto (os
chifres) e num único grupo esotérico de insectos (os escaravelhos-bosteiros), o
que talvez pareça incrivelmente limitado. Mas o trabalho de Doug é certeiro
como um raio laser. Ele utiliza o seu conhecimento pormenorizado para fazer
perguntas básicas e encontrar uma resposta para elas, perguntas essas que eu
nem sequer consigo abordar com o meu conhecimento relativamente
superficial. Ambas as abordagens merecem coexistir devido às suas perspectivas
distintas.
Doug e eu fazemos ambos investigação científica fundamental, o que
significa que o nosso objectivo principal é promover o conhecimento por si
mesmo. Pode parecer que a ciência prática e a ciência fundamental deviam ser
completamente compatíveis. Se se puder estudar a evolução e o
desenvolvimento ao mesmo tempo que se cria uma raposa melhor, porque não
fazê-lo? Infelizmente, estas associações tão felizes só aparecem de vez em
quando. Da mesma maneira que há trocas entre partes do corpo adjacentes de
um escaravelho-bosteiro, há trocas entre ciência fundamental e prática. A
experiência da raposa podia ter sido realizada de uma forma muito mais rápida
e menos dispendiosa usando ratos do campo, que não possuem nenhum
significado económico. Emlen escolheu os seus escaravelhos-bosteiros como o
melhor sistema para promover o conhecimento fundamental sobre evolução e
desenvolvimento. Não há nenhum sistema comparável que seja
economicamente significativo. A vida moderna assenta em alicerces de
conhecimento fundamental e não é necessário justificar o reforço desses
alicerces com um objectivo prático mais restrito.
É possível levar mais longe a metáfora da ciência fundamental como
alicerce. Construir alicerces exige uma certa estabilidade e riqueza. Não faz
sentido se não estivermos aqui amanhã ou se estivermos preocupados com a
próxima refeição. A sociedade russa tem falta de estabilidade e de riqueza para
investir muito em conhecimento fundamental. Na realidade, a situação depois
do colapso do comunismo é pior do que nunca, como os sucessores de Belyaev
descrevem num artigo de 1999 que constitui um pedido de socorro neste esforço
heróico para prosseguir com a experiência da raposa:
Pela primeira vez em quarenta anos, o futuro da nossa experiência de domesticação é
incerto, ameaçado pela crise contínua da economia russa. Em 1996, o nosso efectivo
reprodutor era constituído por 700 elementos. No ano passado, sem fundos para
alimentar as raposas ou para pagar os salários ao nosso pessoal, tivemos de reduzir esse
número para 100. Anteriormente, conseguíamos cobrir a maioria das nossas despesas
vendendo as peles das piores raposas da matilha. Agora essa fonte de rendimento já
praticamente se esgotou, deixando-nos cada vez mais dependentes do financiamento
exterior, numa época em que os orçamentos reduzidos e as alterações no sistema de
concessão de subsídios da Rússia estão a tornar cada vez mais difícil manter experiências
a longo prazo como a nossa. Como muitos outros empreendimentos do nosso país,
estamos a tornar-nos cada vez mais semelhantes a empresas.
8
Dançar com fantasmas
Imaginem um sonho surreal que começa com uma sala de baile cheia de
dançarinos elegantemente vestidos. De súbito, um membro de cada par
desaparece, mas os seus companheiros continuam a dançar como se nada se
tivesse modificado. Os seus braços permanecem estendidos e eles continuam a
descrever círculos como se estivessem a dançar com fantasmas. Depois surge
um poço sem fundo no meio da pista de dança. Ficamos a ver, fascinados, os
dançarinos solitários aproximarem-se da beira do poço, como actores da beira
de um palco. Infelizmente, os dançarmos mostram-se tão inconscientes do poço
como da ausência dos seus pares. E nada podemos fazer quando eles
mergulham um a um e desaparecem.
Esta fantasia sinistra torna-se realidade cada vez que umaespécie se
depara com um novo meio ambiente. Já mostrei que seres como os escaravelhos
necrofagos e os escaravelhos-bosteiros não têm uma inteligência semelhante à
dos seres humanos. A sua sabedoria — a sua dança — é o produto dos processos
do nascimento e da morte a esculpirem a argila viva da variação hereditária ao
longo de muitas gerações. Se mudarmos o meio ambiente, nada de mental se
verifica que os leve a alterar o seu comportamento. As estratégias bem sucedidas
tornam-se simplesmente mal sucedidas e desvanecem-se lentamente ao mesmo
tempo que a escultura viva adquire uma nova forma.
O facto de ser necessário tempo para as forças da selecção natural
causarem a evolução das adaptações leva-me a corrigir a descrição que fiz no
capítulo 3 do meio ambiente como um guia rápido para as propriedades dos
organismos. Isso era demasiado simples. Os organismos têm de residir no meio
ambiente durante um número suficiente de gerações para a relação organismo-
ambiente se consolidar.
Quantas gerações são suficientes? Darwin imaginou a evolução como um
processo de uma lentidão glaciar, que actuava sobre pequenas diferenças na
capacidade de sobrevivência e reprodução. The Beak of the Finch, o livro
maravilhoso de Jonathan Weiner mostra como essa concepção se modificou
com base na investigação moderna. As forças da natureza podem actuar com a
intensidade de um furacão, e diferenças minúsculas entre indivíduos, como uma
fracção de milímetro no bico de um tentilhão, podem fazer a diferença entre a
vida e a morte. Em certas espécies de zooplâncton (seres minúsculos que
flutuam na água), um quarto da população é consumido por predadores todos
os dias. Uma única estirpe de bactérias colocadas num caldo nutritivo sofrerá
mutações transformando-se em poucos dias em diversas formas que ocupam
diferentes nichos, como o líquido, os lados do recipiente e a película da
superfície (abrangendo muitas gerações bacterianas). Por outras palavras, o
mesmo tipo de diversificação que tem lugar em ilhas remotas como o Havai e as
Galápagos também ocorre a nível microbiano numa taça de sopa; se, por
distracção, nos esquecermos dela e voltarmos uma semana mais tarde,
descobriremos que o caldo se tornou «nojento». Quando temos uma infecção na
bexiga, não é apenas porque uma E. coli qualquer conseguiu penetrar nela, mas
porque a evolução genética teve lugar no interior do nosso corpo, criando uma
nova estirpe de E. coli capaz de se agarrar às paredes da nossa bexiga. A selecção
natural tem lugar dentro de nós e à nossa volta, como é relatado com tanta
eloquência em The Beak of the Finch.
Ainda assim, ela precisa de algum tempo para se desenvolver, e quando
uma espécie encontra um novo meio ambiente começa a dançar com fantasmas.
Desde tempos imemoriais, as tartarugas marinhas bebés saem dos ninhos nas
praias à noite e abrem caminho até ao mar. Evoluíram de modo a poderem
orientar-se pela luz reflectida pela superfície da água, o que lhes proporcionou
uma pista fiável até à altura em que começaram a ser construídas casas na praia.
Agora as luzes das casas brilham ainda mais que o luar reflectido no mar, o que
leva as tartarugas a tomarem a direcção errada, rumo à morte, exactamente
como os dançarinos que caíam no poço no meu salão de baile surreal.
Podia apresentar dezenas de outros exemplos, muitos deles relacionados
com as alterações ambientais causadas pelo homem. Os antilocapras fogem com
uma velocidade e uma resistência extraordinárias de predadores que já não
existem nas planícies americanas, Os carvalhos produzem as bolotas em
resposta a pombos que já não escurecem os céus. Estas espécies irão continuar a
dançar com fantasmas até se extinguirem ou até a selecção natural lhes ensinar
novos passos de dança.
A ideia de um novo ambiente exige clarificação. A rã--dos-bosques (Rana
sylvatica) põe os ovos em pequenas poças de água durante a Primavera. Uma
dada poça pode ter ou não ter predadores. Para um girino que nasce numa poça
com predadores, uma poça sem predadores seria um novo ambiente, mas é
habitual a população de girinos viver em ambos os ambientes. Nesta situação,
que adaptações será provável evoluírem? Teoricamente, um girino devia ser
capaz de começar a avaliar o seu ambiente para em seguida manifestar a
adaptação adequada. Já vimos um exemplo deste tipo de flexibilidade nos
machos dos escaravelhos-necrófagos, que avaliam o seu tamanho e depois
exibem chifres só no caso de serem suficientemente grandes.
Espero que neste momento já consigam ver que uma previsão como esta
não é necessariamente correcta. É apenas uma conjectura razoável, que exige
trabalho para poder ser confirmada ou rejeitada. Acontece que muitas espécies
são muito boas a avaliar o seu meio ambiente e a manifestar as adaptações
adequadas. As rãs-dos-bosques têm um plano A e um plano B para a presença
ou ausência de predadores, tal como acontece com os machos dos escaravelhos-
necrófagos em relação ao tamanho do seu corpo. A presença de predadores é
detectada quimicamente, e cada plano envolve uma série coordenada de
comportamentos (tal como o movimento), de características anatómicas (como
o tamanho da cauda) e de características do ciclo de vida (como a melhor altura
para sair da poça). O ambiente tem um enorme efeito no organismo, mas não da
forma que em geral associamos à aprendizagem. Em vez disso, um traço muito
específico do ambiente (a presença ou ausência de um determinado químico) é
utilizado como interruptor para activar estratégias geneticamente
determinadas.
Pensemos noutro exemplo. Imaginemos a criação de uma determinada
espécie de vairão a partir da fase de ovo em diversos aquários em condições
cuidadosamente controladas. Quando os espécimes tiverem seis meses,
peguemos num lúcio (um predador do vairão) de plástico preso à ponta de um
pau e desloquemo-lo lentamente através da água durante um minuto em
metade dos aquários. Depois não precisamos de fazer nada durante os dezoito
meses que se seguirem. Esta experiência incrivelmente breve tem um efeito
profundo e duradouro no comportamento dos vairões, levando-os a recear os
predadores até ao fim da vida. Isto não é aprendizagem como em geral a
entendemos. Assemelha-se mais a um plano de guerra elaborado, posto em
movimento por um único telefonema.
Os vairões e as rãs-dos-bosques têm «planos de guerra» desencadeados
pelo ambiente para se protegerem contra os predadores porque, ao longo de
muitas gerações, algumas vezes defrontaram-se com eles no seu ambiente
natural. E as espécies que nunca se defrontaram com predadores? Essas
espécies existem, especialmente em ilhas remotas. Quando os primeiros
marinheiros desembarcaram nas Galápagos, as aves não os trataram como
predadores, mas como árvores. Não tinham plano de guerra para os predadores,
pois ha muitas, muitas gerações que estes estavam completamente ausentes do
seu ambiente. Uma vez que não possuíam inteligência de tipo humano, nunca
aprenderam a evitar os marinheiros, limitando-se a permitir que estes as
apanhassem nos poleiros e as atirassem para a panela em mais uma versão cruel
do meu sonho surreal.
Que entendo por inteligência humana e como nos protege ela de
dançarmos com fantasmas? Quando somos postos numa situação
completamente nova, dispomos pelo menos de alguma capacidade de
compreender que temos um problema e de tentar arranjar uma nova solução.
Tem lugar um processo mental rápido que realiza aproximadamente a mesma
coisa que o processo geracional lento da selecção natural. Mais adiante teremos
mais para dizer sobre a inteligência semelhante à dos seres humanos, mas por
agora quero sublinhar a sua natureza limitada. É uma coisa maravilhosa que
funciona às vezes, mas quem pensar que ela resolve completamente o problema
de dançar com fantasmas está tristemente iludido. Antes de possuirmos
inteligência humana éramos mamíferos e primatas com um arsenal de planos de
guerra que evoluíram por meio da selecção natural. A nossa inteligência
humana foi somar-se a esse arsenal. Não substituiu os outros planos de guerra,
nem nós necessariamente desejaríamos que tal acontecesse. Alguns dos planos
de guerra nem sequer são mentais. Na realidade, todo o conceito de «mental»
está a desvanecer-se diante de nós. Um cérebro é um sistema físico que actua
como uma calculadora, recebendo informação e dando respostas sensatas. Já
vimos que os escaravelhos na fase larvar têm calculadoras hormonais que fazem
a mesma coisa. Até as bactérias têm calculadoras moleculares que recebem
informação e dão respostas sensatas. Precisamos de alargar o conceito de
mental de modo a incluir todos os tipos de calculadoras, independentemente da
sua composição material. Quando fazemos isto, torna-se claro que estamos a
dançar com fantasmas apesar da nossa inteligência humana, de que tanto nos
vangloriamos.
Os nossos hábitos alimentares constituem um excelente exemplo de
dançar com fantasmas. O desejo que sentimos de gordura, açúcar e sal fazia
todo o sentido num ambiente em que estas substâncias eram constantemente
escassas, mas pôr um restaurante de comida rápida em cada esquina é como
iluminar o céu da ilha para as tartarugas marinhas bebés. Precipitamo-nos para
consumir, mas é uma partida cruel e acabamos por nos matar. Sabemos que há
um problema, mas isso não significa que saibamos resolvê-lo com um simples
acto de força de vontade usando a nossa maravilhosa inteligência. A nossa
chamada mente racional não tem assim tanto controlo sobre o resto da nossa
mente e do nosso corpo.
Isto é evidente a partir da experiência comum, mas uma análise mais
atenta revela que estamos a dançar com fantasmas diferentes. Tanto quanto
sabemos, baseando-nos na informação de que actualmente dispomos, os nossos
antepassados saíram de África (ou permaneceram lá, se o leitor for africano) há
aproximadamente setenta mil anos e espalharam-se pelo planeta, chegando à
Austrália há aproximadamente sessenta mil anos e às Américas há cerca de
trinta mil anos. Podemos agradecer esta expansão à inteligência humana, pois
ela exigiu a solução para diversos problemas a uma grande escala. Para onde
quer que fôssemos, descobríamos como extrair comida do ambiente, até
estarmos a comer tudo, desde sementes até baleias. Em seguida descobrimos
como produzir os nossos próprios alimentos, não uma mas numerosas vezes em
várias regiões do planeta, como Jared Diamond relatou em Guns, Germs and
Steel.
Em cada população humana distinta, a lenta sabedoria da selecção natural
seguia para onde a rápida sabedoria da inteligência humana a conduzia. Em
civilizações que criavam gado, pela primeira vez na história dos mamíferos o
leite tornou-se um recurso para os adultos. A princípio era difícil de digerir
porque o corpo dos mamíferos está adaptado para encerrar o sistema digestivo
dos bebés (plano A) e para dar início ao sistema digestivo dos adultos (plano B)
na altura do desmame. Pôr os micróbios a fazerem a digestão fermentando o
leite proporcionou uma solução de curto prazo, mas nessa altura surgiram
mutações genéticas que permitiram aos seres humanos adultos digerirem-no
directamente e estas mutações proporcionaram uma vantagem suficiente para
se tornarem comuns em populações criadoras de gado. Outras populações
humanas começaram da mesma maneira a tornar-se geneticamente adaptadas
às suas dietas particulares. É importante sublinhar que todas essas mutações
genéticas ocorriam em todas as populações mas só aumentavam de frequência
quando proporcionavam uma vantagem. Milhares de anos são tempo suficiente
para permitir este tipo de diversificação genética. Lentamente, cada uma das
diferentes populações humanas começou a realizar os passos de dança certos
para o seu ambiente, mas apenas para vermos o sonho surreal repetir-se com as
migrações em massa e com as alterações ambientais dos tempos modernos. Na
década de 1950, os programas americanos de ajuda ao estrangeiro enviaram
leite em pó para todo o mundo, produzindo flatulência generalizada em regiões
onde as pessoas não estão geneticamente adaptadas a digerir leite em adultas.
Não admira que nos odeiem! Hoje, a questão de o peso de uma pessoa ser 80 ou
150 quilos no mesmo ambiente de comida rápida depende em parte do local de
origem dos seus antepassados.
Também depende em parte de quanto pesava quando nasceu. Tal como as
larvas do escaravelho-bosteiro têm uma calculadora hormonal que avalia o
tamanho do corpo, parece que os mamíferos realizam uma avaliação semelhante
numa fase precoce da vida, mesmo antes de nascerem. Se forem pequenos,
consideram esse facto um sinal de que as condições são más e de que devem
acumular todas as calorias em adultos. Se forem grandes, consideram-no um
sinal de que a comida é abundante e de que se podem dar ao luxo de ser menos
eficientes em adultos. Claro que não pensam porque ainda são embriões, mas
algum sistema físico está a funcionar como uma calculadora para implementar o
plano metabólico A ou o plano metabólico B baseado no sinal ambiental
(tamanho do corpo). Uma vez a decisão tomada, não há possibilidade de
retroceder, tal como um escaravelho-bosteiro macho não pode eliminar o seu
chifre.
Este tipo de flexibilidade adaptativa evoluiu porque o tamanho do corpo
fetal foi um indicador fiável do ambiente alimentar do adulto durante muitos
milhares de gerações, mesmo antes do nosso aparecimento como espécie, uma
vez que outros mamíferos como os ratos têm a mesma adaptação. Podemos
pregar uma partida cruel a um rato alimentando a mãe com uma dieta restrita
durante a gravidez e depois mudando o ambiente dando ao filho tanta comida
quanta ele quiser. O rato torna-se obeso porque o seu metabolismo foi
concebido para absorver todas as calorias que puder e por ter tantas para
absorver. De igual modo, se uma pessoa é obesa, é provável que tivesse pouco
peso quando nasceu. Essa pessoa está a dançar com fantasmas num sonho
surreal.
O facto de a selecção natural levar tempo e de por vezes haver um
desfasamento entre as adaptações e o ambiente actual torna o estudo da
evolução mais difícil, mas também mais urgente. Estamos a dançar com
fantasmas de muitas formas além dos nossos hábitos alimentares e o nosso
impacto ambiental está a levar outras espécies a fazê-lo a um ritmo cada vez
mais acelerado. Não podemos ficar de braços cruzados a ver a tragédia
desenrolar-se como no sonho. Precisamos de compreender como as adaptações
funcionam e de tentar intervir quando elas funcionam mal nas nossas vidas
presentes.
9
Qual a função de um abre-latas?
Como é que sabe?
11
Bem-vindo a casa, filho pródigo
12
Ensinar os especialistas
Iniciei este livro com uma lista de afirmações sonantes acerca da evolução:
que ela pode tornar-se incontroversa, que os seus princípios básicos são fáceis
de apreender, que toda a gente devia querer aprendê-los, e por aí adiante. Neste
momento, espero que todo o meu leitor esteja de acordo quanto a estas
afirmações poderem ser sonantes, mas não escandalosas. Todas elas são
afirmações sustentáveis que decorrem da teoria da evolução a um nível
elementar.
Uma das minhas afirmações sonantes é que um evolucionista como eu
pode abordar com desenvoltura um novo assunto (como a religião) e ensinar
qualquer coisa aos especialistas cujo conhecimento factual é muito superior ao
que eu alguma vez poderei vir a ter esperança de alcançar. Se o leitor não estiver
familiarizado com o pensamento com base na selecção natural, assemelha-se ao
Darwin anterior ao seu momento na carruagem ou a uma pessoa a tentar
explicar uma escultura sem fazer ideia do que é um artista. Se for um
especialista, nesse caso o seu problema poderá ser ainda pior pois a sua cabeça
está repleta de factos sobre um assunto restrito que o impedem de pensar
noutros factos. Ninguém ilustra melhor esta situação que Margie Profet, uma
mulher catapultada para a fama em 1993 ao tornar-se um dos mais jovens
«génios» galardoados com o prémio da MacArthur Foundation que distinguiu a
sua teoria evolutiva sobre os enjoos durante a gravidez.
Margie não era especialista em coisa nenhuma. Filha de um casal que vivia
para a ciência (uma mãe engenheira e um pai físico), concluiu o curso de
Ciências Políticas em Harvard e obteve um segundo diploma em Física na
Universidade da Califórnia em Berkeley. Nenhum desses graus académicos
satisfez a sua curiosidade intelectual, pelo que abandonou a vida académica e se
tornou uma «vagabunda», como se define a si mesma, a fim de dispor de mais
tempo para pensar. Não tinha qualquer diploma formal em Evolução ou mesmo
em Biologia, mas, como descreveu em 1996 num artigo da Scientifjc American,
«conhecia algumas pessoas no campo da biologia evolutiva, com as quais
costumava conversar, lia tudo sobre o assunto e comecei a pensar nas coisas».
Uma dessas coisas ocorreu-lhe durante uma conversa com umas familiares
grávidas que se queixavam dos enjoos matinais, que é mais correcto designar
por enjoos da gravidez, pois podem ter lugar em qualquer altura do dia. Como
muitas outras mulheres grávidas, não podiam comer certas coisas que havia
umas escassas semanas tinham feito parte da sua dieta habitual, incluindo
algumas do seu particular agrado, como café e alimentos considerados
saudáveis, como legumes de folha verde escura. É frequente as grávidas terem
náuseas apenas com o cheiro destes alimentos e às vezes ficam tão mal dispostas
que têm de ir ao médico.
Estes factos do conhecimento geral sobre os enjoos da gravidez não
encaixavam bem no conhecimento que Margie acabara de adquirir sobre a
evolução. Considerados em si, os enjoos da gravidez são desagradáveis para a
mulher e para o bebé que vai nascer. A selecção natural elimina coisas que são
desagradáveis. É necessário acrescentar algo à história para explicar por que
motivo milhões e milhões de mulheres ficam misteriosamente «enjoadas»
quando engravidam. O raciocínio de Margie sobre o enjoo na gravidez
assemelhou-se à busca empreendida por Steve Suomi de um benefício que
compensasse o custo dos macacos dementes descritos no capítulo 6.
A pergunta que não saía da cabeça de Margie tinha mais de uma resposta
plausível. Talvez as mulheres grávidas sejam particularmente vulneráveis à
doença e os enjoos sejam causados por um agente infeccioso. Talvez haja um
poluente ambiental muito disseminado que provoque os enjoos. Talvez estes
estejam indissoluvelmente ligados a alterações hormonais que têm lugar
durante a gravidez, tal como uma cauda enrolada está ligada a um
comportamento amigável. Ou talvez o custo dos enjoos da gravidez esteja
associado a quaisquer benefícios mais vastos que possam ser identificados com
um nadinha de pensamento baseado na selecção natural.
Margie não levou muito tempo a conceber uma teoria plausível dos enjoos
da gravidez como uma adaptação, tal como muitos estudantes (e talvez também
o leitor) foram capazes de conceber uma teoria do infanticídio. A maioria das
espécies está envolvida numa corrida evolutiva com os seus predadores e a sua
presa. Os antílopes e as chitas evoluíram para correr mais depressa até ambos
correrem a uma velocidade vertiginosa. As sementes desenvolvem cascas mais
grossas e os papagaios bicos mais resistentes até conseguirem partir cascas de
oleaginosas que uma pessoa teria dificuldade em abrir com um alicate. Uma
corrida evolutiva semelhante criou inúmeras espécies de animais, plantas e
micróbios que estão adaptados para se protegerem com toxinas, mas, no
entanto, são comidos por espécies que estão adaptadas para fazerem face às
toxinas. Enquanto espécie omnívora descendente de uma longa linhagem de
omnívoros, somos tão bons a enfrentar as defesas químicas das outras espécies
que as utilizamos para combater os nossos parasitas e doenças.
Margie pôs a hipótese de os embriões não terem a capacidade de aguentar
a chacina química que faz parte da alimentação quotidiana de um adulto. Assim
sendo, a gravidez exigiria uma modificação nos hábitos alimentares da mãe para
proteger o seu embrião em desenvolvimento de ser envenenado pelas toxinas da
sua alimentação normal. Porém, a modificação não seria consciente, mas
aconteceria com a mesma regularidade mecânica com que um escaravelho
desenvolve chifres ou um feto adopta uma determinada estratégia metabólica,
Os enjoos da gravidez podem ser desagradáveis para a mãe e privar de calorias o
embrião em desenvolvimento, mas as consequências de não sofrer de náuseas
durante a gravidez poderiam ser muito piores.
A teoria de Margie era tentadora, mas isso não bastava para a tornar
correcta. Como já sublinhei, o melhor que uma teoria pode fazer é sugerir um
certo número de alternativas plausíveis. Para se avançar é necessário fazer girar
a manivela do método científico. Felizmente, as várias hipóteses dão origem a
consequências muito diferentes. Se os enjoos da gravidez forem causados por
um agente infeccioso, então seria possível identificar esse agente ou talvez curar
os enjoos com um antibiótico. Se os enjoos da gravidez forem causados por um
poluente disseminado, então isso seria um fenómeno recente e talvez mais
comum em países industrializados. Se os enjoos da gravidez fossem um
subproduto de modificações hormonais que têm lugar durante a gravidez (como
a cauda enrolada do cão), então devia ser possível descobrir as associações
ocultas. Se os enjoos da gravidez fossem uma adaptação destinada a proteger
das toxinas o embrião em desenvolvimento, então daí decorreria um certo
número de consequências. As náuseas deveriam coincidir com o período de
desenvolvimento mais vulnerável, deveriam ser desencadeadas pelos alimentos
com maior probabilidade de fazerem mal ao embrião, e por aí adiante. Cada
hipótese conduz a previsões tão diferentes que, com trabalho suficiente, devia
ser simples determinar a verdade da questão.
A trabalhar num apartamento de uma única divisão que partilhava com
esquilos e gaios do mato que iam receber mãos-cheias de amendoins, Margie
mergulhou na literatura científica e médica. Recordemos que, como foi referido
no capítulo 4, os factos são como tijolos — duradouros e fáceis de produzir,
embora inúteis até serem reunidos numa estrutura maior. A grande proeza de
Darwin consistiu em criar uma teoria que organiza os factos existentes e orienta
a busca de novos factos. O desafio de Margie consistiu em repetir o feito de
Darwin para o tema específico dos enjoos durante a gravidez. Ela teve acesso a
centenas de factos, mas estes eram como tijolos empilhados ao acaso, aqui e
além. Se tivesse podido montar com eles uma estrutura sólida, que hipóteses
iria essa mesma estrutura sustentar?
Um a um, os factos pareciam favorecer a hipótese da adaptação. Já em
1940 um investigador médico referia que as mulheres que sofriam de enjoos
graves durante a gravidez tinham menos propensão para abortar do que as
mulheres com sintomas menos graves. Os enjoos da gravidez ocorrem
principalmente durante o período em que o embrião está a desenvolver os seus
principais sistemas de órgãos e é particularmente sensível a toxinas. Os
alimentos muito condimentados e amargos são mais susceptíveis de
desencadear enjoos do que os insípidos. Esses mesmos alimentos estão
implicados em abortos e deficiências do feto. Não há conhecimento de nenhum
agente infeccioso ou poluente ambiental associado aos enjoos da gravidez. E
estes não estão limitados aos países industrializados modernos.
A investigação de Margie não tardou a levá-la para além do tema restrito
dos enjoos da gravidez, até outras adaptações que parecem destinadas a
proteger o embrião em desenvolvimento das toxinas dos alimentos. As grávidas
não só evitam determinados alimentos, mas os seus corpos também trabalham
mais para eliminar os produtos tóxicos dos alimentos que elas ingerem. Os
alimentos deslocam-se mais lentamente através dos intestinos. O fluxo
sanguíneo para os rins aumenta. O fígado eleva gradualmente a produção de
enzimas. O nariz torna-se mais sensível aos cheiros. Até o hábito aparentemente
bizarro de comer argila se torna explicável, uma vez que se provou que a argila
reduz a absorção de produtos químicos tóxicos para a corrente sanguínea e é um
ingrediente fundamental do Kaopectate, usado para tratar problemas de
estômago e náuseas. Estas alterações coordenadas têm todas a marca distintiva
de um importante «plano de guerra» fisiológico que evoluiu ao longo de milhões
de gerações, muito antes do nosso aparecimento como espécie, para resolver um
problema recorrente de sobrevivência e reprodução.
Vamos fazer uma pausa a fim de saborearmos a ironia da situação. Se a
teoria da Margie estiver correcta, as mulheres estão biologicamente adaptadas
para proteger os seus bebés durante o desenvolvimento. Porém, não têm um
conhecimento consciente da sua capacidade e só experimentam os sintomas
incómodos da aversão pela comida. Vão ao médico, a pensar que estão doentes.
Os médicos são especialistas que quase de certeza acreditam na evolução, mas a
grande maioria não pensa nela em relação com a sua profissão. A sua principal
preocupação consiste em encontrar alguma coisa que impeça as grávidas. de
vomitarem. Na década de 1950 receitavam um fármaco chamado talidomida,
que provocou deficiências trágicas em milhares de crianças de todo o mundo.
Mesmo depois de suspenderem o fabrico deste medicamento, praticamente
ninguém punha em causa a interpretação dos enjoos da gravidez como uma
indisposição que tinha de ser curada. Foi preciso uma vagabunda
intelectualmente curiosa para organizar o grande quadro como se fosse um
puzzle, usando o pensamento com base na selecção natural como a imagem da
tampa e os factos criados pelos especialistas como as peças, no seu apartamento,
rodeada pelos seus amigos esquilos e gaios do mato.
Margie publicou os resultados a que chegou para dois públicos. Para os
especialistas escreveu um longo artigo inserido num livro intitulado The
Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culture, que
foi publicado em 1992 e ajudou a iniciar o estudo moderno da nossa espécie de
uma perspectiva evolutiva. Para as mães de toda a parte redigiu um livro
intitulado Protecting Your Baby to Be: Preventing Birth Defects on the First
Trimester, publicado em 1995. Alguns membros da corporação médica
manifestaram a sua desaprovação, afirmando que Margie estava a dar conselhos
médicos não comprovados, mas quem eram eles para atirar a primeira pedra
nesse mundo de informação incompleta? É certo que Margie elaborou o seu
texto a partir de estudos passados, em grande medida empreendidos tendo em
vista outros objectivos, mas isso seria por culpa dela? Como não ocorreu aos
especialistas que os enjoos da gravidez talvez representassem a outra face de
uma importante adaptação? Que irão fazer a esse respeito em termos de
investigação futura? Porque deviam as mães de todo o lado ser impedidas de
conhecer a teoria de Margie, que, afinal, se baseia numa avaliação cuidadosa de
informação científica passada?
Os enjoos da gravidez constituem o primeiro tópico que apresento aos
meus alunos depois de lhes ensinar os princípios básicos da evolução. Em vez de
usar o texto de Margie, utilizo um artigo mais recente de Samuel M. Flaxman e
Paul W. Sherman, publicado em 2000. Paul é um evolucionista da minha
geração que se tornou famoso já como estudante de pós-graduação pela sua
pesquisa sobre uma determinada espécie de esquilo terrestre. Costumava chegar
ao seu local de trabalho no campo todos os anos no Verão com uma equipa de
estudantes universitários que ficavam sentados em cadeiras semelhantes às dos
nadadores-salvadores, desde o nascer ao pôr do Sol, a registar tudo o que os
esquilos terrestres faziam quando estavam à superfície. Paul foi um dos
primeiros a apresentar dados comprovativos da teoria da selecção parental,
segundo a qual os animais devem ser particularmente agradáveis para com os
seus parentes genéticos. Ainda recordo que quando entrei para o mercado de
trabalho Sherman era a primeira escolha de tantas universidades que toda a
gente que competia pelos mesmos postos de trabalho tinha de esperar que ele
tomasse uma decisão. Acabou na Universidade de Cornell e, tal como eu, estuda
uma grande diversidade de assuntos. Sam era um aluno de Cornell que
trabalhava com Paul na avaliação da teoria de Margie. Por outras palavras, tanto
Sam como Paul eram não-especialistas no tema dos enjoos da gravidez, embora
Paul seja um especialista em evolução.
Dizem que assentar tijolos parece simples mas que, na realidade, se trata
de uma tarefa altamente especializada. É extraordinário ver um mestre nesta
arte a aplicar a argamassa e a assentar os tijolos sem desperdiçar um único
movimento. É ássim que penso no artigo de Simon e Paul: o mestre e o seu
aprendiz em acção a fazerem girar a manivela do método científico sem um
único movimento desperdiçado. A maioria dos meus alunos está de acordo, o
que me dá um grande prazer. Eles andam apenas há umas semanas a reflectir
sobre evolução e já lêem artigos científicos — escritos por especialistas — e não
só os entendem como extraem prazer da sua leitura.
No capítulo 3 afirmei que o pensamento baseado na selecção natural pode
ser aplicado a um número infinito de assuntos. A mente de Margie estava num
estado de grande agitação relativamente a três assuntos e não apenas a um.
Além dos enjoos da gravidez, ela tinha teorias sobre alergias e menstruação. O
seu raciocínio era o mesmo em todos os casos: consideradas em si, estas coisas
são más e deviam ser eliminadas pela selecção natural. A que estão associadas
que as mantém como uma parte da experiência humana? Este simples processo
de raciocínio não é como um míssil termoguiado que encontra infalivelmente o
seu alvo, como já sublinhei. Ele apenas nos lança de pára-quedas nas
proximidades de uma resposta, mas quem, em seu pleno juízo, iria evitar usar
essa informação quando é tão fácil ter acesso a ela? Tanto quanto sei, a teoria de
Margie relativa à menstruação não teve grande êxito, a sua teoria das alergias foi
mais bem acolhida e ambas ajudaram a acelerar o movimento da roda do
método científico. Quanto a Paul Sherman, com a ajuda de outra estudante
universitária, chamada Jennifer Billing, realizou mais uma proeza sobre o tema
aparentemente arbitrário do motivo pelo qual pomos especiarias na comida. Já
alguma vez se interrogou sobre o motivo por que algumas cozinhas insistem
muito mais nas especiarias do que outras? Sabia que quando os Godos cercaram
Roma, em 408 d. C., pediram de resgate cinco mil libras de ouro e três mil libras
de pimenta? Tal como os alunos do meu curso, que começam a ter prazer na
leitura de artigos científicos e a compreendê-los, talvez lhe agrade visitar o site
de Paul na Internet (basta digitar o nome dele no Google) e fazer o download de
alguns dos seus artigos sobre especiarias. Uma vez adquirida a preparação
necessária, são mais interessantes que as inconsistências das revistas populares.
Como um dos meus alunos observou: «Nunca mais voltarei a encarar as
especiarias da mesma maneira!»
A ciência médica é altamente sofisticada, mas raramente beneficia do
pensamento com base na selecção natural. A maioria dos médicos e dos
investigadores dessa área acredita na evolução como algo evidente, mas o seu
contacto com ela nas faculdades de Medicina é praticamente nulo e não
reflectem nela relativamente à sua profissão. Enquanto esta situação se
mantiver, os vagabundos intelectuais como Margie Profet e os mestres
evolucionistas como Paul Sherman com o seu grupo de alunos universitários
têm muito a ensinar aos especialistas.
15
A cidade do crime
14
Como aprendi a deixar
de me preocupar e a amar
o determinismo genético
Meios seguros para obter estatuto Evita riscos e trabalha muito para
sem conflito violento. obter estatuto.
15
Como eles têm personalidade!
Tantas coisas aconteceram desde que Anne se apercebeu com surpresa das
diferenças de personalidade entre os seus galagos, com os seus olhos vermelhos
como fogo a reflectirem a luz da lanterna... Não só as espécies individuais são
reconhecidas como comunidades variadas por direito próprio, mas a nossa
espécie foi acrescentada à lista. Psicólogos como Daniel Nettle e Elaine e Arthur
Aron citam a literatura animal e empregam o mesmo raciocínio evolutivo que
Kris Coleman ao olhar para o seu peixe e que os investigadores holandeses a
contemplarem as suas aves. Darwin teria ficado satisfeito, embora talvez se
perguntasse por que motivo demorámos tanto a combinar o estudo de nós
próprios com o da restante vida, como ele conseguiu fazer há tanto tempo.
Deveremos sentir-nos ameaçados pela perspectiva de alguns aspectos da
nossa personalidade serem definidos pelos nossos genes ou numa fase muito
precoce do nosso desenvolvimento, ou ainda por uma pessoa poder achar difícil
pegar a vida pelos cornos e outra poder achar igualmente difícil ficar
emocionada com uma sinfonia? Penso que sei como Elaine Aron responderia a
esta pergunta. Além de ter uma carreira académica, Elaine trabalha como
psicoterapeuta e, através dos seus livros, do seus workshops e do seu Web site
(http:llwww.hsperson.com), onde se pode fazer um teste simples para descobrir
se somos pessoas altamente sensíveis, conquistou um grande número de
adeptos, todos eles pessoas altamente sensíveis. Numa linguagem simples que
todos podem entender, ela explica que esta característica é normal, está
presente entre 15 e 20 por cento da população e existe aproximadamente na
mesma proporção em outras espécies. É um grande dom que também pode ser
uma desvantagem em certas situações. Dá especialmente lugar a equívocos na
nossa cultura, que valoriza a dureza e considera a sensibilidade extrema
anormal (é mais fácil ser uma pessoa altamente sensível na Ásia). O leitor citado
no início do seu livro, intitulado The Highly Sensitive Person, sentiram-se tudo
menos ameaçados: «Através das suas palavras, tornou bem claro o que eu
sempre soube acerca de mim mesmo.» «Não sei como lhe hei-de agradecer a
paz interior que o seu livro me proporcionou!» «Sem dúvida que me fez sentir
integrada num grupo mais vasto e me ajudou a perder a sensação de ser uma
ave rara.»
Ainda me parece mais válido pensar que este «grupo mais vasto» inclui
não só pessoas altamente sensíveis, mas também seres altamente sensíveis,
grandes e pequenos.
16
A beleza de Abraham Lincoln
17
Ama o teu próximo, o micróbio.
Nos dois últimos capítulos tentei mostrar que o que parece
intrinsecamente humano, como as nossas diversas personalidades e o nosso
sentido da beleza, forma uma continuidade profunda com o resto da vida. Agora
tentarei provar o mesmo para a moral e a religião. Isto vai exigir alguns
capítulos, como convém à amplitude do tema. É frequente as religiões
representarem o conflito entre o bem e o mal como uma luta de proporções
cósmicas. Acontece que têm razão. O conflito é eterno e abrange todas as
espécies existentes no mundo. Embora seja difícil de verificar, era capaz de
apostar tudo o que tenho que esse conflito existe em todos os planetas do
cosmos nos quais existe vida, porque a teoria da evolução prevê que as coisas se
passem assim a esse nível tão fundamental.
Já demos início à nossa viagem no capítulo 5, onde mostrei que termos
com uma forte carga moral como o «bem» e o «mal» possuem uma
interpretação biológica surpreendentemente simples. Características associadas
com «o bem» determinam o bom funcionamento de grupos como unidades,
enquanto características associadas com «o mal» favorecem indivíduos em
detrimento dos seus grupos. Também sugeri que os grupos cujos membros são
verdadeiros anjos uns para os outros se podem comportar em relação a outro
grupo da mesma maneira que os indivíduos maus se comportam para com
membros do seu próprio grupo. Ao que parece, há níveis de bem e de mal, uma
observação que reaparecerá repetidas vezes nos próximos capítulos.
Cheguei a estas conclusões não impondo a minha própria interpretação de
bem e mal, mas perguntando aos meus alunos o que eles associavam com o bem
e com o mal. As listas deles, e não as minhas, é que foram tão fáceis de
interpretar em termos do funcionamento e da sabotagem de grupos. Gostaria de
repetir o exercício em diversas culturas em todo o mundo. Com efeito, se
pertencer a uma cultura diferente da minha, por favor realize um estudo entre
os seus amigos e envie-me os resultados. Suspeito que os indivíduos e as
culturas irão discordar sobre quem se pode incluir no círculo moral (família,
tribo, país, apenas homens, humanidade, todas as espécies) e sobre o que é
preciso para um grupo moral funcionar bem (como conformidade, contra-posta
a tolerância das diferenças), mas que quase toda a gente irá associar moral com
o bem do grupo definido pelo círculo moral e imoralidade com a sabotagem do
grupo.
Na ausência de um estudo cruzado de culturas, podemos consultar
tradições religiosas de todo o mundo e ao longo da história. Segundo o papa S.
Gregório Magno, do final do século VI, os sete pecados mortais são (por ordem
crescente de gravidade) a luxúria, a gula, a avareza, a preguiça, a ira, a inveja e o
orgulho. Alguns deles podem parecer estranhos e até divertidos a membros das
modernas sociedades abastadas que idolatram no altar do consumo, mas fazem
todo o sentido no enquadramento da época. Por exemplo, a definição de orgulho
de Dante era «o amor do eu pervertido em ódio e o desprezo pelo próximo».
Quando desafiaram o rabino Hillel para explicar a Tora durante o tempo em que
conseguia manter o equilíbrio apoiado num só pé, a sua resposta, que se tornou
famosa, foi: «Não faças ao próximo o que detestarias que te fizessem a ti [...] O
resto são comentários.» Dizem que todas as grandes tradições religiosas
incluem a regra de ouro (em linguagem corrente, «Trata os outros como
desejarias que te tratassem»). O antropólogo britânico E. E. Evans-Pritchard
classificava «a eliminação do eu, a negação da individualidade, o facto de esta
não ter significado, nem sequer existência, excepto como parte de algo maior,
diferente do eu», como um «fundamento psicológico» das chamadas religiões
primitivas.
Os filósofos podem franzir o sobrolho ante a minha confiança nas
concepções de moral laicas e religiosas, como se eles nada tivessem a dizer sobre
o assunto. E os problemas associados com o utilitarismo, o imperativo
categórico de Kant e todos esses dilemas morais cuidadosamente engendrados
que confundem a nossa intuição? Tal como com o nosso sentido da beleza,
parece existir um senso comum da moral, captado pela regra de ouro, e outra
coisa qualquer a que chamamos sofisticação. Tal como com a nossa análise da
beleza, precisamos de começar por explicar o equivalente moral da arte de
calendário e de anotar o que realizámos se formos bem sucedidos. Uma coisa é
afirmar que a moral é unicamente humana e nada tem a ver com a evolução.
Outra coisa é afirmar que há aspectos da moral considerados «comuns» que são
fáceis de explicar em termos de evolução, restando qualquer coisa a que
chamamos «sofisticado». É a forma «faz aos outros» do bem e do mal que pode
ser encontrada sempre que existe vida. A forma de vida mais simples na Terra é
um vírus, que se pode dar ao luxo de ser simples porque parasita o mecanismo
muito mais complexo dos organismos que vivem livremente. Quando um vírus
penetra numa célula, os seus genes dão instruções aos genes da célula para que
façam produtos que possam ser associados para a construção de mais vírus.
Estes produtos espalham-se pela célula, criando uma espécie de caldo para a
replicação viral. A célula acaba por rebentar, libertando centenas de
descendentes virais que procuram e invadem outras células.
Por vezes acontece uma partícula viral perder alguns dos seus genes e
transformar-se num parasita ineficaz. Este já não consegue levar a célula a fazer
os produtos para a sua replicação, mas pode continuar a usar os produtos
fornecidos por outras partículas virais na mesma célula. Na realidade, o seu
genoma mais curto pode replicar-se mais depressa que os genomas de
comprimento normal. Em termos económicos, o vírus normal está a fornecer
um bem público, ao contribuir para o caldo de produtos genéticos que podem
ser usados por todos os vírus dentro da célula. O vírus mutante está «a fazer
batota», ao lucrar com o bem público sem contribuir para ele. É culpado do
quarto pecado mortal, a preguiça.
Uma partícula viral batoteira colhe benefícios à custa dos cidadãos
decentes, o seu próximo dentro da mesma célula, mas o que acontece quando a
descendência é libertada no ambiente para procurar novas células? Os
descendentes podem continuar a lucrar com a sua indolência se entrarem numa
célula que também contém cidadãos decentes, mas não têm sorte nenhuma se
entrarem em células sozinhos. Por conseguinte, o seu êxito a longo prazo
depende do número médio de partículas virais que infectam uma dada célula.
Os biólogos chamam a isto «co-infecção» e esta pode ser facilmente manipulada
no laboratório. Se diminuirmos a concentração de partículas virais, a maioria
das células será infectada por uma única partícula. Os batoteiros não terão
ninguém a quem explorar e reduzir-se-ão para uma frequência muito baixa na
população. Se aumentarmos a concentração de partículas virais, a maioria das
células será infectada por muitas partículas. Em geral, os batoteiros terão
cidadãos decentes para explorar e aumentarão para uma frequência elevada na
população. À semelhança dos deuses gregos no alto do monte Olimpo, que
muitas vezes se mostravam indiferentes e mesmo desdenhosos com os mortais,
podemos alterar o curso da batalha entre o bem e o mal, a preguiça e a
diligência, bastando para tal modificar a concentração de partículas virais no
tubo de ensaio.
As bactérias contam-se entre os organismos mais simples que vivem em
liberdade. No capítulo 8 descrevi como uma taça de sopa que se deixou no
parapeito da janela se assemelha a uma ilha isolada como o Havai no que diz
respeito à evolução bacteriana. Com os seus períodos de geração ultracurtos, as
primeiras bactérias a colonizar a «ilha» diversificam-se numa questão de dias
para ocupar um certo número de nichos ecológicos. Paul Rainey, um
microbiologista que divide o tempo entre a Universidade de Oxford, em
Inglaterra, e a Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, estuda a evolução
bacteriana em condições laboratoriais cuidadosamente controladas. Fornece a
«sopa» sob a forma de um meio de cultura líquido estéril e introduz nela uma
única espécie bacteriana, a Pseudomonas fluorescens. A população cresce
rapidamente, até ficar sem oxigénio suficiente, criando uma vantagem para um
tipo mutante que pode formar um tapete na superficie, com acesso ao oxigénio
proveniente de cima e a nutrientes provenientes de baixo. À forma ancestral
chama-se «lisa» (SM, do inglês «smooth») e à forma mutante chama-se
«enrugada» (WS, do inglês «wrinkly spreader»), com base no aspecto das
colónias quando cultivadas em placas de agar.
O WS cria um tapete produzindo quantidades abundantes de um polímero
adesivo que cola as bactérias umas às outras. O polímero é dispendioso de fazer;
o que dá origem a outro dilema social. As mutações dentro do tapete criam
preguiçosos cujo lema é: «Façam meninos e não cola!» Os preguiçosos alastram
à custa dos cidadãos decentes até o tapete se desintegrar e toda a gente cair para
o fundo da taça, como a cidade perdida da Atlántida. E assim a cola da
civilização é dissolvida pela preguiça!
Estes dois exemplos do bem e do mal entre os micróbios podem ser
repetidos indefinidamente porque se baseiam em factos incontornáveis da vida
social. Muitas vezes os indivíduos vivem em grupos, quer queiram quer não, e os
esforços que desenvolvem em seu próprio beneficio são vulneráveis à
exploração, como no nosso exemplo viral. Os indivíduos podem com frequência
trabalhar juntos para criar algo maior do que qualquer pessoa poderia ter
conseguido sozinha, como no nosso exemplo bacteriano; mas, mais uma vez, o
esforço conjunto é vulnerável à exploração por parte de indivíduos que
partilham os beneficios sem partilharem os custos. Estes problemas existirão
onde quer que exista vida social. São entendidos como problemas morais na
nossa espécie, mas, enquanto evolucionistas, precisamos de compreender a
industriosidade e a preguiça, o bem e o mal, como estratégias alternativas que
são bem sucedidas e fracassam de diferentes maneiras. Não há um abandono da
moral, mas um prelúdio para pensar sobre a natureza da moral de uma
perspectiva evolutiva. De momento, precisamos de adoptar a perspectiva
distanciada dos deuses gregos, observando a tragédia e a comédia da vida que se
desenrola lá em baixo. Há os preguiçosos, que tiram partido dos cidadãos
decentes de cada grupo. Há os cidadãos decentes que funcionam bem enquanto
grupos, pelo menos até serem corrompidos pelos pecados mortais. A luta é
eterna, embora possamos fazer pender a vantagem para o lado que bem
entendermos.
Talvez o exemplo mais notável de virtude microbiana seja o bolor mucoso
celular Dictyostelium discoideum, conhecido pelo simpático diminutivo de
Dicty pelas centenas de cientistas que o estudam. O Dicty conta-se entre o grupo
de elite dos «organismos-modelo» seleccionados pela comunidade científica
para nele centrarem a investigação. A ideia é estudar um pequeno número de
espécies em extremo pormenor a fim de clarificar os processos básicos de vida
comuns a muitas espécies. Enquanto organismo-modelo, o Dicty recebeu muito
mais atenção do que teria recebido com base na sua história natural fascinante.
Todo o arsenal de tecnologia científica moderna se tem centrado nele, desde a
sequenciação genética até aos métodos inteligentes de visualizar as interacções
químicas que têm lugar dentro de uma única célula. Pode maravilhar-se com
algumas destas técnicas vísitando dictyBase, um site onde os cientistas que
estudam o Dicty se reúnem para trocar informações, imagens e outras coisas
(http://dictybase.org). Isto pode parecer o máximo da carolice, mas
experimente uma vez e aposto que voltará lá!
O Dicty é uma amiba, um ser unicelular que muda continuamente de
forma, deslocando-se e absorvendo o alimento por meio de extensões informes
de si próprio, chamadas pseudópodes (falsos pés). No site podem ver-se vídeos
de amibas, incluindo uma extraordinária imagem lateral obtida com um
microscópio confocal, que usa raios laser e uma quantidade de processamento
computacional para construir imagens tridimensionais de objectos minúsculos,
O Dicty não é apenas uma amiba. Quando outras espécies de amibas ficam sem
alimento ou sem humidade, assumem a forma de cápsulas protectoras
chamadas «cistos» até as condições melhorarem, O Dicty reage pedindo auxílio
aos vizinhos. Especificamente, liberta AMP cíclico (AMPc), uma molécula que
também é importante em muitos processos intracelulares. Além de libertar
AMPc, a superfície de cada Dicty está crivada de milhares de receptores que são
sensíveis ao AMPc. Quando o Dicty encontra um gradiente de concentração de
AMPc, os seus receptores são mais estimulados numa extremidade do seu
minúsculo corpo do que na outra, indicando para onde deve deslocar-se em
direcção ao vizinho.
Uma vez que um Dicty em apuros está no centro do seu próprio gradiente
de concentração de AMPc, poder-se-á perguntar como consegue detectar o
gradiente produzido por um vizinho. Engenhosamente, ele produz o seu próprio
AMPc de um modo pulsado, que se afasta do corpo numa onda em espiral. Os
seus receptores estão sincronizados para só se tornarem sensíveis ao AMPc
durante as depressões da sua própria onda em espiral, permitindo-lhe sentir as
ondas emanadas dos vizinhos. Os cientistas que investigam o Dicty
desenvolveram maneiras engenhosas de visualizar tanto as ondas como os locais
receptores em videoclips que se podem ver no site. As ondas saem em espiral de
cada indivíduo, como arte produzida por computador, e os receptores acendem-
se como minúsculos faróis, conduzindo cada Dicty na direcção dos seus
vizinhos. Quando eles começam a agregar-se, sincronizam os seus sinais para
produzir uma onda em espiral maior que passa busca ao mundo inteiro como o
feixe de luz em rotação proveniente de um farol. Os aglomerados mais pequenos
são atraídos para aglomerados maiores, culminando em agregados enormes,
que podem atingir os cem mil indivíduos.
Agora que o clã está reunido, transforma-se num objecto semelhante a
uma lesma, que consiste em células inseridas numa matriz gelatinosa que elas
segregaram. A lesma é capaz de percorrer distâncias que podem chegar aos
vinte centímetros. Considerando o tamanho de um Dicty, é como uma pessoa
percorrer sessenta quilómetros. A lesma não só consegue mover-se, mas
consegue ver suficientemente bem para se deslocar em direcção à luz! O modo
como estes prodígios de coordenação são realizados foi descoberto com um
pormenor igualmente prodigioso pelos cientistas que estudam o Dicty. Num
videoclip, as células das lesmas foram marcadas com corantes fluorescentes que
brilham com diferentes cores, consoante o estádio de desenvolvimento da
célula. A extremidade anterior da lesma é verde, a extremidade posterior é
laranja, e todas as células giram dentro da matriz gelatinosa como um tornado
deitado de lado, enquanto a lesma avança.
Depois de esta se ter deslocado até um ponto conveniente, tem lugar uma
transformação ainda mais notável. Ela coloca-se na vertical, como um pino de
bowling, com as células ainda a girarem no seu interior. Algumas das células
verdes da ponta — agora o cimo — separam-se do resto e descem em espiral até
formarem uma base adesiva resistente. As outras células verdes formam um
pedúnculo esguio, enquanto as células laranja migram para o cimo para formar
uma elegante esfera de esporos. A estrutura final tem uma delicadeza que está
em contraste com a lesma, como o patinho feio transformado num cisne.
O objectivo deste poderoso esforço de grupo é percorrer uma distância
mais longa do que aquela que qualquer Dicty isolado seria capaz de percorrer
sozinho. Não só a lesma se assemelha a uma locomotiva a atravessar um país,
mas é provável que os esporos elevados se colem ao corpo de um insecto que
passa para um voo transcontinental. Este esforço de grupo exige um grau de
coordenação que talvez nunca tivéssemos esperado encontrar num ser tão
«simples», mas também exige um certo grau de sacrifício. As células que
formam a base e o pedúnculo da estrutura perdem a capacidade de se
reproduzir. Em termos darwinistas, sacrificaram a vida a fim de que outros
membros do seu grupo se possam reproduzir. Se, numa situação comparável,
uma pessoa se comportasse dessa maneira de livre vontade, postumamente
seria indigitada para receber a Medalha de Honra ou para ser beatificada.
Do nosso posto de observação desapaixonada no monte Olimpo, não
estamos aqui para louvar o Dicty, mas apenas para nos maravilharmos com o
modo como uma tal divisão do trabalho pôde evoluir quando os batoteiros que
insistem em tornar-se esporos teriam uma enorme vantagem sobre os cidadãos
decentes que cumprem o seu dever de se tornarem células do pedúnculo e da
base. Uma das possibilidades é que uma dada célula não tenha alternativa.
Talvez tudo isso a rodopiar dentro da lesma seja como uma tômbola a misturar
bilhetes de lotaria, de modo que os vencedores (as células que se tornam
esporos) dependam da sorte da extracção. Talvez todas as células que se juntam
para formar uma lesma sejam geneticamente idênticas e derivem de um único
antepassado muitas divisões de células atrás. Infelizmente, nenhuma destas
respostas está inteiramente correcta. É frequente as lesmas conterem células de
diferentes linhagens e algumas delas conseguem fazer pender a lotaria a seu
favor. O bolor mucoso celular é um modelo acabado de virtude microbiana, mas
mesmo o Dicty não é isento de pecado.
O conflito que definimos em termos de bem e de mal existe em todos os
seres que interagem com o seu próximo. Não depende da complexidade nem da
actividade mental do organismo, e neste momento até já deve estar a perguntar-
se o que significam estes termos. Podia ter deliciado o leitor com histórias de
santos e de pecadores entre leões, elefantes e chimpanzés, mas não era
necessário. Os micróbios oferecem centenas de histórias invisíveis, em nós e à
nossa volta.
18
Grupos até lá abaixo
Consta que William James foi certa vez abordado depois de uma
conferência por uma senhora idosa que partilhou com ele a sua teoria de que a
Terra está apoiada nas costas de uma tartaruga gigante. Delicadamente, James
perguntou-lhe em que estava assente a tartaruga. «Numa segunda tartaruga,
muito maior!», replicou ela, segura de si. «Mas em que está assente a segunda
tartaruga?», insistiu William James, na esperança de revelar como o argumento
dela era absurdo. «É inútil, Mr. James», insistiu ela toda ufana, «são tartarugas
até lá abaixo!»
Está a surgir algo estranhamente semelhante a uma progressão infinita de
tartarugas na nossa compreensão dos indivíduos e dos grupos. Os primeiros
parecem-nos muito mais reais do que os segundos. Os indivíduos são
fisicamente diversos, enquanto os grupos parecem abstracções indistintas.
Dotamos os indivíduos de propriedades mentais como intenções e interesse
pessoal e consideramos os grupos apenas uma palavra conveniente para o que
os indivíduos fazem uns aos outros com vista a satisfazer o seu interesse
pessoal. Em boa verdade, na época de James era mais comum pensar na
sociedade como um organismo por direito próprio, mas durante o último meio
século os indivíduos ocuparam o centro do universo intelectual. A primeira-
ministra britânica Margaret Thatcher deu voz ao seu tempo quando, num
discurso de 1978, afirmou que «sociedade é uma coisa que não existe. Só
existem indivíduos e as suas famílias».
Ao mesmo tempo que Thatcher proferia estas palavras, uma bióloga
celular chamada Lynn Margulis fazia a afirmação oposta — que os indivíduos
são coisa que não existe, que tudo o que existe são as sociedades. As células de
todas as plantas e animais (chamadas eucariotas) são muito diferentes e mais
complexas do que as células das bactérias (chamadas procariotas). O seu ADN
encontra-se armazenado dentro de um núcleo e o resto da célula (o citoplasma)
é habitado por outras estruturas complexas, como as mitocôndrias (que
produzem energia), os cloroplastos (que captam e produzem energia a partir da
luz nas plantas) e uma rede de canais chamados «retículo endoplasmático».
Praticamente todos os biólogos partiam do princípio de que as células
eucariotas tinham evoluído por meio de pequenos passos mutacionais a partir
das células procariotas — indivíduos a partir de indivíduos. Lynn afirmava que
as células eucariotas evoluíam a partir de associações simbióticas de bactérias —
indivíduos a partir de grupos. Hoje existem muitas associações simbióticas,
como as bactérias e as algas, que vivem nos tecidos dos protozoários. Lynn pôs a
hipótese de que, quando os membros de uma associação simbiótica se tornam
suficientemente dependentes uns dos outros, fazem uma transição de
organismos para órgãos e essa associação se torna um novo organismo de um
nível mais elevado.
A ideia não era inteiramente nova. Tal como os primeiros cartógrafos
observaram que as linhas costeiras da África e da América do Sul pareciam
encaixar-se como peças de um puzzle e propuseram uma teoria da deriva dos
continentes, os primeiros biólogos celulares observaram que as mitocôndrias se
assemelhavam a células bacterianas. Contudo, ambas as teorias foram rejeitadas
como absurdas, deixando a missão de as ressuscitar às almas corajosas do
futuro. Lynn ressuscitou a teoria simbiótica da célula eucariota contra a feroz
oposição dos seus colegas. Embora eu tenha descrito a ciência como um
processo tão simples como fazer girar uma manivela, as questões realmente
importantes como esta suscitam paixões que evocam mais uma guerra religiosa.
No entanto, a manivela gira e hoje em dia nenhuma pessoa razoável duvidaria
da evidência quer da deriva dos continentes, quer da origem simbiótica das
células eucariotas. Em 1983, Lynn foi eleita para a Academia Nacional das
Ciências dos Estados Unidos, a mais alta honra que os Estados Unidos
concedem aos seus cientistas.
Alguns aspectos da teoria simbiótica continuam a ser controversos, como a
origem dos flagelos e dos cílios, as estruturas semelhantes a um chicote e a um
pêlo que fazem mover as células eucariotas. Lynn pensa que estas derivam de
bactérias móveis chamadas «espiroquetas», que evoluíram para deslocar as
comunidades simbióticas como rebocadores a puxar um barco através de um
porto. Também pensa que as estruturas filamentosas internas da célula derivam
das espiroquetas, incluindo os axónios das nossas células nervosas. Lynn
provavelmente não se sentiria feliz se não pudesse atormentar os seus colegas
conservadores com afirmações como: «Tudo o que peço é que comparemos a
consciência humana com a ecologia das espiroquetas.» Embora não tenha razão
no que respeita a alguns pormenores, continua a ser válido que os organismos
unicelulares eucariotas dos nossos dias, que não nos deixam dúvidas quanto à
sua individualidade, eram comunidades de bactérias no passado distante. Foi
ultrapassado um limiar de integração que nos permitiu ver o todo em vez das
partes.
Prosseguindo em sentido ascendente, os organismos multicelulares como
o leitor e eu somos grupos sociais de células eucariotas. No sentido descendente,
as bactérias são grupos sociais de genes. Como uma pilha infinita de tartarugas,
tudo o que reconhecemos como um indivíduo é também uma população de
subunidades. Chamamos a essas subunidades órgãos, em vez de organismos,
por elas trabalharem tão bem em conjunto em nome do todo.
O conceito de organismos como sociedades é mais do que uma simples
metáfora interessante. Já vimos que a vida social é uma competição entre
«cidadãos decentes» que funcionam bem como grupos e «pecadores» que
lucram à custa dos cidadãos decentes dentro dos grupos. Existe a mesma
competição entre as partes de um único organismo. Cada vez que os genes se
replicam no interior das células e as células se dividem no interior de um
organismo multicelular, existe potencial para algum ganho à custa dos outros e
do bem-estar do grupo como um todo. Quando isto acontece, o todo torna-se
menos um organismo e mais um mero grupo, Os subelementos tornam-se
menos órgãos e mais organismos antagónicos com os seus programas distintos.
A harmonia de um organismo não pode ser considerada dado adquirido. Exige a
evolução de mecanismos que impedem a subversão vinda do interior.
Pensar em indivíduos como grupos sociais expandiu imenso o domínio do
comportamento social para além das interacções entre indivíduos, até à
organização interna de indivíduos. Por que motivo existem os cromossomas? Se
os genes existissem como unidades independentes, poderiam replicar-se
diferencialmente no interior da célula, como os vírus e as bactérias descritos no
capítulo anterior. Ligá-los numa única estrutura que se replica como uma
unidade resolve muito bem o problema da replicação diferencial. Porque são as
regras da meiose tão elaboradas? A meiose é o processo de divisão celular que
dá origem à formação de espermatozóides e óvulos (gâmetas). Este estádio do
ciclo da vida é particularmente vulnerável à replicação diferencial, pelo que a
meiose está elaboradamente concebida para dar a cada gene uma hipótese igual
de se tornar um gâmeta. Porque há uma divisão entre células que estão
destinadas a reproduzir-se (a linha germinal) e células que estão destinadas a
construir o corpo do organismo (a linha somática), que ocorre muito cedo no
desenvolvimento? Para minimizar o número de divisões celulares que produzem
mutações na linha germinal e para garantir que a linha somática é
exclusivamente seleccionada devido à sua capacidade de aumentar a fitness do
organismo como um todo, em vez da competição para formar gâmetas. Porque
estão tantas células somáticas destinadas à autodestruição após um número
finito de divisões? A fim de impedir as estratégias de batota de evoluir ao longo
de um período de muitas divisões celulares.
Por vezes chama-se leis a estes factos da genética e do desenvolvimento
por eles serem tão generalizados, mas a palavra «lei» adquiriu recentemente um
outro significado — um contrato social destinado a promover o bem comum. O
uso que faço das palavras extraídas da vida social humana, como «cidadão
decente» e «pecador», não é apenas uma liberdade poética para agradar a um
público leigo. É assim que os especialistas falam uns com os outros. Num único
artigo de revisão, intitulado «The Social Gene», o seu autor, o biólogo de
Harvard David Haig, uma autoridade reconhecida na matéria, usava as
seguintes expressões: «bajular», «borlistas», «cabala», « coerção»,
«colectivos», «coligação», «comércio», «compromissos vinculativos»,
«comuns», «conspirar», «contrato social», «corrupto», «custos de transacção»,
«defraudar», «desentendimento», « disposições contratuais», « embuste», «
enganar», «equipa», «estrategas», «exploração», «extorsão», «facções»,
«firma», « fraude», «malfeitor», «igualitário», «inadequado», «instituições»,
«interesse pessoal», «jogo limpo», «lealdade», «licenciamento», «lotaria»,
«manipular», «mercado», « monopólio», «motivação», «não autorizado»,
«pandilha», «parceria», «parlamento», «polícia», «política», «roubar»,
«sabotagem», «sistema de segurança», «sociedade aberta», «subornos»,
«vendedor de banha da cobra», «vigarista e «vigilância». Há cinquenta anos,
ninguém teria sonhado que estas palavras seriam usadas para descrever as
interacções que ocorrem num único indivíduo ao nível genético, fisiológico e do
desenvolvimento.
Mostrei que os grandes organismos, como o leitor e eu, são grupos de
células que por sua vez são grupos de bactérias, que por sua vez são grupos de
genes. Cada nível da hierarquia defronta-se com os factos inelutáveis da vida
social: os benefícios a nível de grupo de trabalhar em conjunto e os benefícios a
nível individual de explorar o grupo. O nível superior só se considera um
organismo porque os problemas que associamos com egoísmo e imoralidade aos
níveis inferiores foram substancialmente resolvidos. Mas serão de facto grupos
até lá abaixo? O nível mais baixo a que podemos chegar é a própria origem da
vida.
Se as primeiras formas de vida eram indivíduos, então provavelmente
eram filamentos nus de moléculas semelhantes a ARN, que diferiam na
sequência de nucleótidos (ACGU), as famosas quatro letras do alfabeto genético
(o uracilo é substituído pela timina no alfabeto de quatro letras do ADN). Cada
filamento (como AAACCGUU) cria o seu filamento complementar
(UUUGGCAA) a partir de nucleótidos disponíveis no meio ambiente, o que, por
sua vez, recria o filamento original. Sequências de aminoácidos diferentes
podem variar na eficácia de replicação, conduzindo a uma forma primitiva de
selecção natural. O problema com esta hipótese — que foi ensaiada no
laboratório — é que a replicação do ARN não é muito eficaz na ausência de
enzimas altamente específicas que não podiam estar presentes na sopa
primordial. A fidelidade de cópia por nucleótido provavelmente não
ultrapassava os noventa e nove por cento, o que pode parecer elevado até nos
apercebermos de que um filamento de 100 nucleótidos sofre quase de certeza
uma mutação algures ao longo do seu comprimento em cada replicação. O
resultado é um caldo de filamentos de ARN muito curtos, consistindo numa
única sequência dominante e num halo de sequências estreitamente
relacionadas, que sofreram uma mutação muito longe do que quer que
possamos chamar vida.
Para avançar, é necessário postular que a vida começou como uma
comunidade de reacções moleculares cooperantes. Por exemplo, a replicação do
ADN e do ARN nas formas de vida modernas torna-se eficaz devido a outras
moléculas a que chamamos «replicases», mas estas moléculas ajudantes
também têm de ser replicadas para o sistema como um todo permanecer
intacto. Mal pensamos numa rede de interacções moleculares cooperantes
deparamo-nos com os mesmos factos inelutáveis da vida social com que se
confrontam as formas de vida superiores. As reacções moleculares não
cooperantes também ocorrem e acabam por destruir a rede. Como o biólogo
húngaro Eörs Szathmáry escreveu num artigo recente, «Fornecer apoio
catalítico numa rede catalítica molecular de controlo retroactivo é um
comportamento altruísta condenado a ser explorado por moléculas parasitas e
por fim à extinção». O que reconhecemos como bem e mal em termos humanos
estende-se mesmo ao domínio das reacções químicas!
Tal como com as formas de vida superiores, a solução (parcial) para a
exploração primordial era provavelmente a existência de muitos grupos de redes
catalíticas de controlo retroactivo, algumas das quais trabalhavam melhor do
que outras, exactamente como na minha hipótese da ilha deserta do capítulo 5 e
em exemplos de virtude microbiana do capítulo 17. Talvez os primeiros grupos
estivessem organizados em torno de partículas de argila ou de vesículas de
lípidos com auto-organização. A origem da vida continua a ser um profundo
mistério, embora eu esteja convencido de que este vai acabar por ser vencido
pela compreensão científica. Se assim for, resolver o mistério não o fará perder a
sua grandiosidade. Acho impressionante pensar que a vida apareceu sob a
forma de confrarias moleculares minúsculas. Se assim foi, como na teoria da
senhora idosa sobre a pilha infinita de tartarugas, são grupos até lá abaixo.
19
Divididos soçobramos
20
Mentes aladas
Tom foi então duplamente inspirado pelo seu amor pelas abelhas e pelo
estímulo intelectual fornecido por Ed. Munido de uma licenciatura em Química
pelo Dartmouth Coliege e dos conhecimentos de um apicultor experiente, Tom
candidatou-se a um curso de pós-graduação na Universidade de Harvard para
trabalhar com Ed e com Bert Holldobler, seu colaborador de sempre no estudo
das formigas. Foi a única universidade a que se candidatou.
«Isso não foi arriscado?», perguntei durante a minha visita.
«Eu era bom aluno», respondeu Tom, com uma pontinha de arrogância.
A sorrir, tentei imaginar Ed a ler a candidatura de Tom e a obter
informações sobre esse estudante brilhante e com uma dedicação monacal às
abelhas. Como é evidente, Tom foi aceite. Tal como os apicultores transportam
as colmeias para os campos e os pomares a fim de recolherem mel e de
contribuírem para a polinização das culturas, Tom empilhou as suas colmeias
na parte de trás da carrinha que conduziu até Cambridge, no Massachusetts,
onde as depositou no telhado do Museu de Zoologia Comparada de Harvard.
Isto foi há um quarto de século. Agora Tom é um conceituado especialista
no modo como uma colónia de colmeias toma decisões inteligentes enquanto
unidade colectiva. Numa experiência que realizou, transportou uma colmeia
para as profundezas de uma floresta com muito poucas flores para as abelhas
visitarem e forneceu-lhes as «flores» de que dispunha sob a forma de dois
comedouros, localizados a quatrocentos metros de cada lado da colmeia.
Primeiro, num dos comedouros foi colocada uma solução de açúcar mais
concentrada do que no outro e daí a horas a colónia enviava para aí a maioria
das suas obreiras. Em seguida, as concentrações foram trocadas e daí a horas a
colónia enviava a maioria das obreiras para o outro comedouro. Como
conseguia a colónia monitorizar os seus recursos e responder às modificações
tão rapidamente? Tom sabia a resposta, porque ele e os seus assistentes tinham-
se dado ao trabalho de marcar os quatro milhares de abelhas da colónia
colando-lhes nas costas minúsculos discos numerados, o que permitia
identificá-las como indivíduos. Com um assistente em cada comedouro e Tom a
observar o interior da colmeia através de uma placa de vidro, foi possível
monitorizar em pormenor todo o processo de tomada de decisões. A maioria das
abelhas visitou apenas um comedouro, pelo que não dispunha de um quadro de
comparação para a sua tomada de decisão. Em contrapartida, quando as
abelhas regressavam à colmeia de um dos comedouros e dançavam a fim de
indicar a sua localização às companheiras, a duração da dança era proporcional
à concentração de açúcar. As outras abelhas não comparavam a duração das
diferentes danças, embora dispusessem dessa informação. Em vez disso,
limitavam-se a escolher uma dançarina ao acaso e iam ao comedouro
correspondente. O facto de algumas abelhas dançarem mais tempo do que
outras criava um desvio estatístico que dirigia mais abelhas para o melhor
comedouro. As abelhas que dançavam durante mais tempo atraíam seguidoras
simplesmente porque passavam mais tempo «em cena» do que as
companheiras que dançavam durante menos tempo. Nenhuma abelha
estabelecia uma comparação entre as duas zonas, quer visitando ambas as
zonas, quer comparando as danças das abelhas que o tinham feito, mas as suas
interacções sociais permitiam estabelecer a comparação ao nível da colmeia.
Outro exemplo de inteligência descentralizada é o facto de a colónia actuar
como se tivesse fome quando as reservas de mel se tornam escassas, enviando
mais obreiras para os campos a fim de recolherem néctar, embora a fome da
colónia não possa ser relacionada com a fome de qualquer abelha considerada
individualmente. Pelo contrário, quando uma abelha colectora regressa a
colmeia, regurgita a sua carga de néctar, que é recolhida por uma segunda
abelha, que, por sua vez, a armazena nos favos de mel. Quando há poucas flores
e as reservas de mel são escassas, as colectoras que regressam podem transferir
imediatamente a sua carga para uma força de trabalho ociosa de
armazenadoras. Quando as flores são abundantes e a maioria dos favos está
cheia, as colectoras que regressam têm de esperar até poderem transferir a sua
carga para as armazenadoras afadigadas. A quantidade de tempo que têm de
esperar fornece um sinal fiável da necessidade de recolher mais néctar. Tom
descobriu que quando as colectoras podem transferir imediatamente a sua carga
(reservas de mel baixas), são estimuladas a dançar durante mais tempo, o que
recruta mais obreiras para se tornarem colectoras. Quando têm de esperar para
transferir a sua carga (reservas de mel altas), dançam durante menos tempo e
interrompem a sua actividade de recolha de alimento. A experiência decisiva
consistiu em remover uma parte da força de trabalho armazenadora, o que
levou as colectoras que regressavam a esperar, embora as reservas de mel
estivessem baixas A colonia respondeu ao falso sinal reduzindo a actividade de
recolha de alimento, como se os favos estivessem cheios.
Estes e outros exemplos de inteligência descentralizada são descritos com
grande entusiasmo de pormenores no livro de Tom The Wisdom of the Hive:
The Social Phisiology of Honey Bee Colonies. O título deriva de uma obra
famosa, intitulada The Wisdom of the Body, publicada por Walter B. Cannon na
década de 1930 e que descrevia os extraordinários processos fisiológicos dos
organismos individuais. A sabedoria da colmeia, tal como a sabedoria do corpo,
é surpreendente quando compreendida em pormenor. Durante a sua breve vida,
uma colónia de abelhas monitoriza centenas de zonas com flores ao longo de
muitos quilómetros quadrados. Além do néctar, as colectoras têm de recolher
pólen e água e têm mecanismos para distribuírem sabiamente os seus esforços
em resposta a circunstâncias em mutação. A temperatura da colmeia é regulada
com precisão: uma colónia de abelhas é um animal de sangue quente! A
temperatura é aumentada por meio de vibrações e reduzida recolhendo água e
aspergindo com ela a superfície da colmeia, o que é equivalente à nossa
transpiração. No interior da colmeia são executadas inúmeras tarefas, como
construir os favos, cuidar da rainha e da progenitura e remover as obreiras
mortas. Todas estas funções são executadas por meio de processos de controlo
retroactivo, semelhantes aos que descrevi para a recolha do néctar. Não há
inteligência centralizada, nenhuma abelha isolada a conduzir a operação, e
muito menos a rainha. É o padrão das interacções sociais que cria a sabedoria
da colmeia, tal como é o padrão das interacções neuronais e hormonais que cria
a sabedoria de um único organismo individual.
Durante a minha visita, Tom estava ansioso por descrever a sua mais
recente investigação sobre um momento determinante no ciclo de vida de uma
colónia, quando esta se divide para formar uma nova colónia. A rainha e cerca
de metade das obreiras saem da colmeia e formam um aglomerado, mais ou
menos do tamanho de uma bola de futebol, sobre o ramo de uma árvore das
imediações, deixando as restantes obreiras criarem uma nova rainha,
alimentando uma das larvas com um produto especial chamado geleia real. As
batedoras deixam o enxame e voam pelos campos em busca de uma cavidade
numa árvore que possa servir de novo lar. É costume encontrarem dez ou vinte
locais potenciais, o que exige uma decisão, uma escolha. Tom tem andado a
estudar se o enxame é capaz de fazer uma escolha sensata e a maneira exacta
como isto se processa. Está entusiasmado porque o processo de tomada de
decisão é muito semelhante às interacções entre neurónios que permitem aos
organismos individuais tomar decisões acertadas.
Tom explicou todo este processo descrevendo experiências que os
neurocientistas realizaram com macacos rhesus treinados para observarem um
conjunto de pontos a deslocarem-se num ecrã. Alguns pontos deslocam-se para
a direita e outros para a esquerda. Os macacos foram treinados para olharem na
direcção em que a maioria dos pontos se está a deslocar. Se acertarem, são
recompensados com umas gotas de sumo de frutos. Se errarem, são castigados
com umas gotas de água salgada. Os animais depressa se tornam eficientes no
desempenho da tarefa, embora ainda cometam erros quando o número de
pontos que se desloca em cada direcção é quase igual. Enquanto tudo isto
acontece, os cientistas registam a actividade de neurónios individuais dentro do
cérebro dos macacos, tal como Tom observa a actividade de abelhas individuais
dentro de uma colónia.
Veio a revelar-se que alguns neurónios só disparam quando um ponto se
desloca para a direita. Outros só disparam quando um ponto se desloca para a
esquerda. Estas duas classes de neurónios disparam a velocidades diferentes,
consoante o número de pontos que se desloca em cada direcção. Mal a
velocidade dos disparos de uma das classes atinge um dado limiar, o macaco
toma a sua decisão e mexe a cabeça na direcção correspondente. A decisão do
macaco baseia-se num processo competitivo simples entre neurónios.
As experiências de Tom com os enxames de abelhas têm lugar numa ilha
sem árvores ao largo da costa do Maine, o que lhe permite controlar por
completo a disponibilidade dos ninhos artificiais que criou. Alterando as
propriedades dessas cavidades, determinou que as abelhas batedoras estão
atentas a nada menos do que sete factores: o volume da cavidade, o tamanho do
orifício de entrada, a altura desse mesmo orifício, a sua orientação, o sítio onde
o orifício penetra na cavidade (no topo ou na base), a presença de favos (é
frequente as colónias morrerem de fome durante o Inverno e as cavidades
podem ser reutilizadas), a distância em relação ao enxame, havendo uma
preferência pelos locais mais distantes em relação aos mais próximos a fim de
evitar a competição com a colónia-mãe. As batedoras regressam ao enxame e
realizam uma dança na sua superfície cuja duração é proporcional à qualidade
da cavidade-ninho, como já descrevi para as colectoras que indicam a
localização e a qualidade das fontes de néctar. Desde modo, são recrutadas mais
batedoras para partirem em reconhecimento das melhores cavidades.
Acontece que a decisão final não é tomada no enxame, mas nas diferentes
cavidades-ninho. Quando uma batedora penetra numa cavidade, não regressa
imediatamente, permanece lá durante cerca de uma hora. Mal o número de
batedoras numa dada cavidade ultrapassa um certo limiar, elas regressam ao
enxame e desenvolvem um novo comportamento designado por «tocar flauta»,
que assinala o fim do processo de tomada de decisão. Tom mostrava-se
particularmente exultante em relação a esta sua descoberta mais recente, que
realizou por meio de uma experiência inteligente. Colocou cinco cavidades-
ninho idênticas mesmo ao lado umas das outras, ou seja, demasiado próximas
para as batedoras as distinguirem. As abelhas batedoras recrutadas para o local
entraram nas cinco cavidades de forma aleatória e, por esse motivo,
acumularam-se no interior de cada uma delas a um quinto da velocidade
normal. O processo de tomada de decisão prolongou-se de forma
correspondente, demonstrando que a avaliação final tem lugar nas cavidades-
ninho e não no enxame.
Aproximadamente uma centena de abelhas, ou sej a, uma pequena fracção
da totalidade do enxame, toma parte neste processo de tomada de decisão. As
outras abelhas (incluindo a rainha) permanecem passivas, formando a
superfície sobre a qual dançam as companheiras que tomaram a decisão. Mal as
batedoras que regressam do local escolhido começam a tocar flauta, todas as
abelhas aquecem os músculos de voo e, dentro de sessenta segundos, a massa
expande-se, formando uma densa nuvem mais ou menos do tamanho da sala de
estar da nossa casa.
«Que acontece a seguir?», perguntei de respiração suspensa.
Tom deitou-me uma olhadela desconsolada. Observou este processo
muitas vezes, mas não consegue descobrir como há-de estudá-lo com a precisão
que desejaria. Pensa que as batedoras voam repetidamente através da nuvem
em direcção ao local escolhido, indicando às outras qual o caminho a seguir.
Lentamente, a nuvem vai ganhando ímpeto, como um comboio que se afasta de
uma estação, e pode percorrer dois quilómetros antes de abrandar e de parar
nas irnediações no novo local. Nesta altura, as batedoras reúnem-se à volta da
entrada da cavidade, que pode ser tão pequena como um orifício aberto quando
se retira um nó da madeira, e emitem uma feromona que guia o resto do
enxame até ao seu novo lar.
Mesmo desconhecendo os pormenores desta viagem final, Tom mostrou
que o processo de tomada de decisão de um enxame de abelhas quanto à
localização do seu novo lar encerra uma misteriosa semelhança com o processo
de um macaco rhesus a decidir em que direcção deve virar a cabeça. Em ambos
os casos, uma decisão inteligente pela unidade de nível superior é causada por
um processo mecânico que tem lugar entre as unidades de nível inferior. O
processo envolve uma competição organizada entre facções que representam
escolhas alternativas, cujo desfecho se baseia em qual a facção que atinge
primeiro um limiar. A inteligência da unidade de nível superior não se pode
encontrar em nenhuma das partes, mas, pelo contrário, surge da interacção
entre ambas. Cada mente é uma mente de grupo e cada mente de um organismo
disperso tem de incluir interacções sociais além de interacções neuronais.
O meu encontro com Tom terminou porque ele tinha de ir extrair o mel de
algumas das colmeias com um amigo apicultor. Esse amigo tinha encontrado
um comprador que pagaria um preço exorbitante por mel não filtrado para o
mercado de alimentos saudáveis. «Completamente não filtrado, incluindo as
partes do corpo das abelhas mortas», explicou Tom com um sorriso. Além de
explorar algumas das interrogações mais fundamentais que é possível fazer
sobre a natureza da mentalidade, Tom continua a ser um apicultor.
21
O macaco igualitário
22
Atravessar a divisoria da cooperaçao
23
A primeira gargalhada
25
O Dr. Doolittle tinha razão
Quem não fica encantado ao pensar no Dr. Doolittlea conversar com o seu
papagaio, Polynesia, em inglês e com outros animais nas suas próprias línguas?
Claro que isto é apenas uma história. Não é verdade que a linguagem e a
capacidade de pensamento simbólico são as jóias da coroa da singularidade
humana? Talvez, mas num mundo em que os macacos não apontam e em que os
bebés conseguem inferir as intenções dos adultos há espaço para um papagaio
que é capaz de pensar simbolicamente e de falar sobre isso em inglês.
A nossa história começa com Terrence Deacon, um polímata cuja obra The
Symbolic Species é uma estimulante mistura de evolução, neurociência e
desenvolvimento. A última vez que o ouvi falar, ele conseguiu mesmo incluir a
formação dos flocos de neve na conferência. Terry acredita que o pensamento
simbólico é mesmo exclusivo dos seres humanos mas que, apesar disso, evoluiu
directamente a partir do pensamento não simbólico dos símios. Isto é como
tirar um coelho da cartola. Como pode uma coisa exclusiva derivar de um
processo que exige continuidade? Para ver como Terry explica isso, temos de
considerar a natureza do pensamento simbólico em comparação com outras
maneiras de pensar. Imagine que eu digo repetidamente a palavra «queijo» a
um rato enquanto lhe dou a comer um bocado de queijo. Depressa o animal irá
associar a palavra ao objecto, tal como os cães de Pavlov associavam o som de
uma campainha à comida. Agora imagine que eu continuo a repetir a palavra
«queijo», mas sem dar queijo ao mesmo tempo. Será tão certo o rato deixar de
associar a palavra ao objecto como ter formado a associação na situação inicial.
Agora imagine que uma pessoa perversa lhe diz a si a palavra «queijo» um
milhão de vezes sem lhe oferecer queijo. Pode ficar com vontade de o esmurrar,
mas continuará a associar a palavra ao objecto, ainda que eles não existam em
simultâneo no seu meio ambiente. Acontece mesmo todos associarmos a
palavra «fantasma» a uma coisa que provavelmente nunca vimos na vida!
É isso que o pensamento simbólico tem de especial. Com o
condicionamento pavloviano, as associações mentais correspondem às
associações que de facto existem no meio ambiente. Mas com o pensamento
simbólico as associáções tornam-se desligadas das associações ambientais, o
que permite que adquiram uma vida própria.
Passemos agora ao floreado imaginativo que permitiu a Terry tirar o
coelho da singularidade humana da cartola da continuidade evolutiva. O
pensamento simbólico não é necessariamente difícil em termos computacionais.
É possível que não exija um cérebro maior ou sequer diferente do que as outras
espécies possuem. O problema com o pensamento simbólico é que ele não é útil.
De que serve criar associações mentais permanentes que não existem no mundo
real quando a sobrevivência e a reprodução dependem de descobrir as
associações que existem?
Por conseguinte, o truque para explicar por que motivo somos a única
espécie que pensa simbolicamente consiste em mostrar como o pensamento
simbólico se tornou útil para os nossos antepassados, ao contrário de
praticamente todas as outras espécies. A resposta já foi dada no capítulo 22. O
pensamento simbólico é fundamentalmente comum e exige a travessia da
divisória da cooperação. Tem o seu lugar em paralelo com os nossos olhos, a
nossa capacidade de apontar e a nossa natureza artística, como uma semente
que só aguarda o ambiente social apropriado para crescer.
O truque mágico de Terry tem uma implicação extraordinária: se os
rudimentos do pensamento simbólico não forem difíceis em termos
computacionais, talvez possam ser ensinados aos outros animais. Isto não seria
uma questão de descobrir como eles já pensam das maneiras insondáveis que
lhes são próprias, mas de os ensinar a pensar mais como nós do que como a sua
própria espécie, como um urso a andar de bicicleta. Para ver se isto se tinha
concretizado, Terry avaliou as numerosas tentativas de ensinar os nossos
parentes macacos a usarem a linguagem. Os símios não têm a capacidade de
produzir sons que lhes permitam falar (outra coisa que evoluiu na nossa espécie,
paralelamente à nossa capacidade de comunicar com os olhos), por isso os
esforços centraram-se em ensinar-lhes linguagem dos sinais ou um sistema de
simbolos numa consola de computador que pode ser activado em sequência, tal
como as palavras são proferidas em sequência. O método do computador é
usado por Sue Savage-Rumbaugh e Duane Rumbaugh na Georgia State
University e tem a vantagem de registar cada vez que se carrega numa tecla, o
que fornece um registo detalhado do processo de aprendizagem e do sistema de
pensamento dele resultante. Por exemplo, algumas teclas referem-se a verbos
como «comer» ou «beber», enquanto outras se referem a nomes como
«banana» ou «sumo». As sequências correctas como «comer banana» ou
«beber sumo» são recompensadas, enquanto as frases incorrectas como «beber
banana» ou «sumo comer» não o são. Os macacos tornam-se competentes em
aprender as combinações certas, embora alguns se revelem muito melhores do
que outros e sejam necessárias muitas centenas de tentativas mesmo para
aqueles que conseguem. A questão consiste em saber se eles se limitaram a
aprender um grande número de associações específicas ou se começaram a
compreender um sistema mais geral de relações representado pelos símbolos. O
teste consiste em introduzir alguns novos símbolos para um novo objecto, como
«uva». Se o macaco estiver a pensar simbolicamente, compreenderá que uma
uva se inclui na categoria de «alimentos sólidos» e dirá imediatamente
(carregando nas teclas na sequência apropriada) «comer uva». Não há nada a
aprender porque uma uva se inclui num sistema de categorias e de relações que
já foi aprendido — é nisso que consiste o pensamento simbólico. Se o macaco se
limitou a aprender um grande número de associações específicas, apenas
repetirá coisas como «beber uva» e «uva banana» antes de aprender que
combinação é recompensada. Segundo Terry, só algumas experiências com
linguagem de macacos conseguiram ensinar pensamento simbólico e essas
exigiram técnicas de treino muito especializadas. Contudo, mesmo que isso só
tivesse acontecido uma vez, demonstraria a extraordinária possibilidade de uma
espécie não humana poder ser ensinada a pensar simbolicamente.
De longe, o campeão do pensamento simbólico entre os símios é um
bonobo chamado Kanzi. Em bebé, Kanzi foi criado por uma mãe de
substituição, uma chimpanzé chamada Matata. Esta foi submetida a uma
experiência de aprendizagem de linguagem, com Kanzi ainda bebé a gatinhar à
volta dela e sempre a incomodar. Porém, Kanzi ultrapassou em muito a mãe
sem nenhum do treino formal que ela estava a receber, tal como as crianças
muito pequenas aprendem a falar espontaneamente com os adultos, enquanto
estes só com dificuldade aprendem uma segunda língua. Kanzi tornou-se tão
bom que aprendeu a perceber inglês embora só soubesse falar através dos
símbolos da consola do computador.
Kanzi tem aparecido em muitos documentários científicos, incluindo um
episódio de uma série da Nature da Public Broadcasting Corporation intitulado
«Macaco ao Espelho». A sequência abre com ele num piquenique,
acompanhado por dois dos seus tratadores humanos, a cortar uma maçã às
fatias com grande habilidade, a enrolá-las em folha de alumínio e a pô-las ao
lume. «Fecha-as bem!», disse um dos tratadores a Kanzi. E o bonobo enrola
bem as maçãs no alumínio. Ao pedido «Podes pôr as maçãs ao lume?», ele, sem
se apressar, põe o embrulho na frigideira. De regresso ao laboratório, Kanzi
senta-se entre um conjunto de objectos com uma tratadora à sua frente, com o
rosto tapado por uma máscara de soldador a fim de ocultar quaisquer sinais que
pudessem ser transmitidos inadvertidamente através de expressões faciais.
«Podias pôr sabonete na bola?», pede ela, e Kanzi responde espremendo um
pouco de sabonete líquido para uma bola de basquete, embora até então nunca
lhe tivessem pedido que o fizesse. Kanzi continua a responder correctamente a
uma série de pedidos cada vez mais bizarros, como: «Podes pôr as agulhas de
pinheiro no frigorífico?» Quando ela lhe pede que despeje a água Perrier na
gelatina, ele escolhe correctamente a garrafa de água Perrier e não o jarro com
água normal. Quando lhe diz que vá buscar as agulhas de pinheiro que estão no
frigorífico, ele ignora as agulhas de pinheiro que estão ao seu lado e vai buscar
as que tinha metido no frigorífico. A sequência termina com o pedido mais
bizarro de todos: «Leva o aspirador lá para fora.» Kanzi começa por pegar no fio
eléctrico do aspirador, mas pára e olha para a tratadora com a máscara, como
que a dizer «Queres que eu faça o quê?» Ela repete o pedido e ele puxa o
aspirador pelo fio até à porta do recinto onde se encontra, ao lar livre, pega nele
e fá-lo passar a porta. Estas e outras demonstrações fornecem uma prova
inquestionável de que Kanzi compreende o inglês falado e já ultrapassou em
muito a aprendizagem de associações específicas.
Os papagaios dispõem do equipamento vocal necessário para falar a
linguagem dos seres humanos. Será possível ensiná-los a pensar
simbolicamente, permitindo-lhes falar connosco como o papagaio do Dr.
Doolittle? Esta possibilidade não é tão ridícula como poderia parecer à primeira
vista. Em primeiro lugal a inteligência não é uma escala linear, com os seres
humanos numa extremidade, os símios a seguir e qualquer coisa como um
papagaio muito mais para baixo. Até os evolucionistas cometem este erro.
Ficamos extasiados quando vemos um chimpanzé usar um pauzinho para ver se
há térmitas num buraco ou quando um gorila pega num ramo para se apoiar ao
atravessar um rio, como se estivéssemos a ver o dealbar do uso de utensílios na
nossa própria espécie. Depois esfregamos os olhos de incredulidade quando os
corvos da ilha de Nova Caledónia do Pacífico (mas não de outros locais) fazem
ganchos para tirar larvas de escaravelhos dos buracos e fendas das árvores.
Descobriu-se que muitas aves da família dos psitacídeos (que inclui os
papagaios) e dos corvídeos (que inclui os corvos) possuem o mesmo tipo de
inteligência flexível que associamos aos primatas, em parte porque vivem no
mesmo tipo de grupos sociais e procuram o mesmo tipo de alimentos. Em
segundo lugar, não estamos necessariamente a pressupor que os papagaios, tal
como os macacos, evoluíram no sentido do pensamento simbólico. A questão é
se podem ser treinados para pensar mais como nós do que como a sua espécie.
Em terceiro lugar, se Terry Deacon tiver razão, o pensamento simbólico não é
assim tão complicado, desde que se saiba para o que se vai treinar.
Foi preciso uma não especialista como Irene Pepperberg para tentar algo
tão escandaloso como ensinar mesmo um papagaio a falar. Irene era uma filha
única que cresceu num apartamento por cima de uma loja em Nova Iorque,
onde passava uma quantidade de tempo a falar com o seu periquito de
estimação. O pai dela queria ser bioquímico, mas tornou-se professor primário
por não ter dinheiro para pagar os estudos universitários. A mãe era uma dona
de casa que de vez em quando trabalhava como contabilista. Inicialmente Irene
tinha medo da Química, mas, encorajada pelo pai, descobriu que era boa nessa
disciplina. Licenciou-se no MIT e estava a trabalhar no doutoramento em
Química Teórica em Harvard quando começou a ver os programas sobre ciência
e sobre a natureza, como o Nova, que passavam na televisão. Até então o seu
único contacto com a biologia na faculdade tinha sido do género de «cortar em
cubos e fatias» (para usar as suas próprias palavras) e o único programa
televisivo sobre a natureza era o Wild Kingdom, com Marlin Perkins e o seu
companheiro inseparável, o robusto Stan Brock, a lutarem com anacondas e a
fazerem muitas outras façanhas.
A ideia de que era possível fazer carreira a estudar animais sem ter de os
cortar às postas foi uma revelação para Irene. Harvard era um bom centro para
esse tipo de investigação, mas isso era invisível para alguém que estudava
Química Teórica. Quando ela viu programas sobre experiências destinadas a
ensinar linguagem aos macacos, ocorreu-lhe imediatamente a ideia de usar
papagaios. Como era demasiado tarde para mudar a sua formação, passou os
últimos dois anos em Harvard a frequentar as disciplinas que queria fazer ao
mesmo tempo que prosseguia com o doutoramento em Química. Depois de
obter este grau académico, seguiu o marido até à Purdue University, onde ele
tinha um emprego e ela conseguiu um cargo, tal como Anna, a minha mulher.
Foi aí que comprou Alex, um papagaio africano cinzento, que os iria tornar
famosos a ambos. A primeira candidatura a uma bolsa que Irene redigiu a fim
de conseguir fundos para financiar a sua investigação foi rejeitada. Como ela
diz, o conteúdo dos pareceres era do género: «Que anda você a fumar?» Por fim
conseguiu financiamento e lançou-se na sua carreira, embora apenas graças a
benfeitores que consideravam o trabalho dela revolucionário e estavam
dispostos a lutar por ela.
Irene treinou Alex incluindo-o numa conversa a três em que participava
outra pessoa. Por exemplo, Irene podia pegar numa rolha e perguntar à outra
pessoa: «O que é isto?» Perante a resposta, «Rolha», Irene estendia a rolha à
outra pessoa, que, com um ar deliciado, a desfazia em bocadinhos. Depois
viravam-se para Alex e perguntavam-lhe o que era. Se ele respondesse com um
som semelhante a «rolha», recebia uma rolha para desfazer. Em vez de comida,
o objecto era a recompensa por dar uma resposta certa. Só mais tarde, quando
Alex já tinha construído um vocabulário e podia pedir outra coisa qualquer por
ter dado a resposta certa, a recompensa passou a ser comida.
Muitos anos mais tarde, Alex manifesta os mesmos indícios assombrosos
de pensamento simbólico que Kanzi, ainda mais extraordinários por serem
expressos em inglês e não a digitar nas teclas de uma consola de computador.
Numa sessão de treino mostrada num episodio de Scientific American
Frontiers, Alex aparece a identificar as formas e cores de liversos objectos, mas
mostra verdadeira inteligência quando perde interesse e declara: «Vou-me
embora!» Além desta capacidade verbal, Alex é capaz de contar até seis o
número de objectos à sua frente e domina os conceitos de maior/mais pequeno,
o mesmo/diferente e a ausência de diferença. Por exemplo, quando lhe
perguntam a diferença entre cubos vermelhos e azuis do mesmo tamanho, ele
responde: «Cor.» Quando lhe perguntam a diferença entre dois cubos azuis do
mesmo tamanho, ele responde: «Nenhuma.» Até sabe que um número (como
seis) é maior que outro (como quatro) quando lhe mostram os algarismos
árabes!
O momento alto de Alex teve lugar durante uma demonstração que Irene
estava a fazer para alguns potenciais mecenas da sua investigação. Ela estava a
mostrar que Alex tinha aprendido o som de cada letra, mas ele estava
principalmente interessado em comer nozes. Pondo-lhe à frente uma bandeja
com letras magneticas coloridas, dessas que se põem no frigorífico, Irene
perguntou: «Que som é azul?»
Alex pronunciou correctamente o som do T azul e acrescentou: «Quero
uma noz.»
Irene tentou distraí-lo fazendo outra pergunta: «Que som é roxo?»
Alex pronunciou correctamente o som do S roxo e repetiu: «Quero uma
noz!»
Irene tentou fazer-lhe outra pergunta, mas Alex perdeu a paciência e
interrompeu-a: «Quero uma noz! N-O-Z», pronunciando as três letras da
palavra!
É importante não exagerar as proezas de Alex, de Kanzi e de outros
animais que aprenderam a pensar e a comunicar simbolicamente. Isto não quer
dizer que eles tenham conversas íntimas com as pessoas que cuidam deles. Mais
de 90 por cento do que Kanzi manifesta carregando nas teclas tem a ver com
obter coisas. De igual modo, Alex fala principalmente para conseguir alimento
ou atenção. Também é importante ser modesto com o que tem sido
demonstrado cientificamente. Talvez estes animais tenham sido ensinados a
pensar mais como nós do que como a sua própria espécie, à semelhança do urso
que anda de bicicleta, ou talvez pensem e falem simbolicamente uns com os
outros utilizando linguagens que nós ainda não decifrámos. Já é extraordinário
que tenham aprendido a falar e a pensar simbolicamente, mas talvez no futuro
seja possível conceber métodos de treino ainda melhores. Nunca saberemos se
não prosseguirmos com este género de investigação, que, infelizmente, se
tornou tão precária nos Estados Unidos como a das raposas-prateadas na
Rússia, que descrevi no capítulo 7. Em 1999 Irene deixou de ser financiada por
fontes federais como a National Science Foundation, o que a forçou a lançar-se
numa busca frenética de mecenas privados e até a vender canecas com a
imagem de Alex e brincos feitos com as penas dele. Se desejar contribuir com
um donativo, visite a Alex Foundation (http://www.alexfoundation.org) na
Internet. Alex e dois outros papagaios que estão a ser treinados, Griffin e
Arthur, são forçados a partilhar um espaço comum, o que torna difícil ensiná-
los independentemente e realizar experiências controladas. No entanto, essas
condições permitem a Alex desempenhar o papel de professor mal-humorado.
Quando as aves mais novas estão a ser ensinadas pode acontecer ele
interromper com comentários como: «Fala de maneira que se perceba!»
Apesar de tudo o que não se sabe, Alex e Kanzi dão-nos uma informação
extraordinariamente importante sobre a evolução humana. Não precisamos de
pressupor a existência de uma criação mental mágica para explicar as jóias da
coroa da singularidade humana. As sementes do pensamen to simbólico existem
latentes em macacos e até em papagaios, à espera do meio ambiente propício
para serem favorecidas pela selecção natural, o meio fértil a que obtivemos
acesso atravessando a divisoria da cooperação.
26
Quantos inventores são precisos para criar uma
lâmpada?
27
Não sei como isto funciona!
Tente imaginar o meu entusiasmo depois de ler pela primeira vez este
passo e outros semelhantes. O calvinismo podia ter-se encaixado em qualquer
das grandes hipóteses evolutivas apresentadas acima, ou mesmo não se ter
encaixado em nenhuma delas, se todo o quadro evolutivo fosse desadequado
para o estudo da religião. Eu podia ter descoberto que Calvino e os seus
companheiros estavam secretamente a ocupar-se dos seus próprios ninhos, que
a religião era uma cultura parasítica que fazia toda a gente sofrer, que podia ter
feito sentido para um grupo de caçadores-recolectores mas não para uma
cidade, que era a face perniciosa de uma moeda com outra face não religiosa
benéfica. Em vez disso, descobri que o calvinismo era essencial para a
viabilidade da cidade. Além disso, aquilo não era uma interpretação esotérica da
minha parte, mas a avaliação séria dos historiadores que melhor conheciam os
factos relacionados com a questão. Agradou-me particularmente a justaposição
dos dois sentidos da palavra «moral». O termo no feminino refere-se a um
sentido do certo e do errado. O masculino tem a ver com a motivação para a
acção. McGrath sugeria que para os cidadãos de Genebra terem um moral forte
tinham de ter um sentido forte e unificado do certo e do errado. Como os grupos
muito mais pequenos de caçadores-recolecores descritos por Chris Boehm, eles
precisavam de constituir uma comunidade moral. Isso era, evidentemente, o
que a religião proporcionava, e o que mesmo um governo forte,
democraticamente eleito, não possuía.
Como exerceu exactamente a religião do calvinismo o seu poder mágico
sobre a cidade de Genebra? Para saber mais, decidi estudar o catecismo e as
Ordenanças Eclesiasticas que Calvino escreveu e insistiu que a cidade adoptasse
como condição para o seu envolvimento. Pensei que, se é possível considerar
alguma coisa como «genoma cultural», transmitindo o essencial de uma religião
de uma pessoa para outra, era esse o caso das ordenanças. Descobri que
incluíam, não só prescrições relativas ao comportamento geral, como os dez
mandamentos, mas também outras mais específicas, adaptadas ao ambiente
social genebrino. A concepção de Deus e a sua relação com as pessoas, incluindo
a transmissão de conceitos como pecado original, fé e perdão, pareciam
extraordinariamente apropriadas para cultivar uma atitude de obediência cívica.
Acima de tudo, as práticas sociais especificadas pelas Ordenanças Eclesiásticas
pareceram-me destinadas a suprimir o importante problema da impostura
vinda do interior. Martin Bucer outro reformador protestante e contemporâneo
de Calvino, exprimiu-se do seguinte modo: «Onde não há disciplina e
excomunhão não há comunidade cristã.» O que eu traduzo do seguinte modo:
«Se uma pessoa não se pode livrar da impostura excluindo esse comportamento
(disciplina) ou a pessoa se necessário (excomunhão), não se pode pensar em
criar uma sociedade cooperativa.»
Fiquei especialmente interessado na forma como esses mecanismos para
impedir a impostura se estendiam, não só à gente comum, mas também aos
líderes. O chefe da igreja não era um indivíduo único, mas um grupo de pastores
que tomavam decisões por consenso, de uma forma muito semelhante à dos
caçadores-recolectores igualitários acocorados à volta de uma fogueira. Quando
não conseguiam chegar a acordo, o círculo que tomava as decisões era alargado,
e não estreitado. Calvino partilhava todos os deveres de um pastor, apesar do
seu tremendo trabalho adicional como principal arquitecto da religião e da sua
vasta correspondência com reformadores de outros lugares. Os anciãos que
supervisionavam sectores da cidade tinham de ter a aprovação não só dos
pastores e do conselho da cidade, mas também dos residentes do sector.
Usavam-se os métodos de dupla contabilidade a fim de evitar o uso impróprio
dos fundos doados pelas organizações de caridade. Estas verificações práticas
faziam tanto parte da religião como os seus elementos espirituais. O espírito
igualitário do calvinismo é talvez mais bem ilustrado pelo dever de cuidar dos
moribundos vítimas da peste. Esta tarefa que punha a vida em perigo era tirada
à sorte. Calvino estava isento de se submeter a essa prática por decreto do
conselho da cidade, pois a sua morte teria um impacto muito maior que a dos
outros pastores sobre o destino da igreja. Quando Teodoro de Beza sucedeu a
Calvino depois da morte deste último, foi o próprio Beza a fazer pressão sobre o
conselho da cidade para ser incluído neste mecanismo, o que conseguiu que se
viesse a verificar. A segunda grande hipótese evolutiva — que as religiões se
destinam a beneficiar os líderes à custa da gente comum — pode ser rejeitada no
caso dos primórdios do calvinismo.
Não é minha intenção fazer propaganda ao calvinismo ou a qualquer outra
religião. Ele criou uma infra-estrutura social e psicológica para os seus
membros, mas não estendeu as suas virtudes a outros grupos religiosos. A
comunidade judaica de Genebra havia sido expulsa pelos católicos antes de
estes terem, por sua vez, sido expulsos pelos protestantes. Calvino acreditava
firmemente que o papa era o Anticristo. O grau de controlo social dentro da
igreja assemelha-a mais às religiões fundamentalistas islâmicas dos nossos dias
que às modernas religiões cristãs, incluindo no que diz respeito às numerosas
execuções por heresia. Na Genebra de Calvino as pessoas podiam ser multadas
por dançar de forma imprópria ou ir parar à cadeia por jogar ao domingo. O
calvinismo e praticamente todas as religiões desse período são culpados quando
julgados em termos de direitos humanos modernos ou do padrão supremo da
irmandade universal. Contudo, enquanto evolucionistas, não é nossa tarefa
julgar moralmente as religiões, mas sim explicá-las como produtos da evolução
genética e cultural. No capítulo 5 já chamei a atenção para o facto de as
adaptações nem sempre corresponderem ao que nós consideramos bom e útil.
No que toca às adaptações, é preciso ter cuidado com os desejos que se
formulam. Seja o que for que pensemos sobre o calvinismo da nossa
perspectiva, podemos concordar que, de entre as cinco grandes hipóteses
evolutivas, ele corresponde à primeira (adaptação a nível de grupo). O seu êxito
deveu-se a permitir que a cidade de Genebra funcionasse como uma unidade,
um corpo ou uma colmeia.
Enquanto palmilhava os montes e vales da vasta literatura sobre a religião,
descobri que o carácter eminentemente prático do calvinismo não era invulgar.
Um livro maravilhoso do antropólogo Stephen Lansing intitulado Priests and
Programmers mostrou como um sistema elaborado de templos na ilha de Bali
se destina a coordenar a cultura do arroz. O judaísmo parecia particularmente
adequado para a análise evolutiva. Um dos meus romancistas favoritos é Isaac
Bashevis Singer, que ganhou o Prémio Nobel da literatura em 1978. Fiquei
entusiasmado quando descobri que o seu romance histórico O Escravo
correspondia exactamente à literatura académica que eu andava a ler sobre as
comunidades de judeus na Europa e noutras partes do mundo. Jacob, a
personagem principal do romance, tem uma revelação que cito logo no início de
Darwin’s Cathedral: «Mas agora, pelo menos, ele compreendia a sua religião: a
sua essência era a relação entre o homem e os seus companheiros.»
Elaine Pagels, uma estudiosa das religiões, já é famosa pelos seus livros
sobre os primórdios do cristianismo, como The Origin of Satan e The Gnostic
Gospels. Já alguma vez perguntou a si mesmo por que motivo os quatro
Evangelhos do Novo Testamento são tão diferentes uns dos outros, embora
todos sejam apresentados como relatos factuais da vida de Cristo? Vários
estudos exaustivos determinaram que eles foram escritos independentemente
entre trinta e cinco e cem anos depois da morte de Jesus. Segundo Elaine
Pagels, são diferentes não só porque a memória se vai desvanecendo com o
tempo, mas porque se adaptavam às necessidades de diferentes comunidades
locais cristãs. O Evangelho segundo São Marcos foi escrito imediatamente a
seguir ao cerco romano de Jerusalém e à destruição do Templo, no ano 70 d. C.
Os Romanos não gostavam dos cristãos e dos judeus, mas os primeiros cristãos
encaravam os judeus que ocupavam posições de autoridade como os seus
principais inimigos e os judeus despojados dos seus privilégios como a principal
fonte de convertidos. A destruição do Templo por parte dos Romanos foi
interpretada como castigo de Deus pelos pecados dos judeus, vaticinado por
Cristo, e os judeus que detinham o poder foram considerados os principais
responsáveis pela morte de Jesus.
Para São Mateus, que escreveu apenas dez ou vinte anos depois de São
Marcos, o principal corpo do judaísmo era controlado pelos representantes de
um partido religioso conhecido como dos fariseus, que era muito menos
poderoso no tempo de Jesus. Seja como for, no Evangelho segundo São Mateus,
os fariseus tornaram-se o principal inimigo e o alvo das acusações pela morte de
Cristo. É provável que São João fosse membro de uma igreja sectária e radical
composta por judeus, que se opunha ainda mais ferozmente ao establishment
judaico do que outras comunidades cristãs. O seu Evangelho ultrapassa todos os
outros na representação do combate da Igreja como parte de uma luta cósmica
entre o bem e o mal. Desde então, segundo Elaine Pagels, as comunidades
cristãs que têm de se bater pelas suas vidas têm encontrado especial inspiração
e conforto no Evangelho segundo São João.
O Evangelho de São Lucas é provavelmente o único escrito por e para não
judeus, o que se reflecte amplamente no seu conteúdo. Quando Jesus prega na
sua cidade natal, Nazaré, é bem recebido nos outros três Evangelhos, mas no de
São Lucas é quase atirado de um penhasco por dizer que Deus trará salvação aos
gentios. Segundo São Lucas, todos os judeus clamam pela morte de Jesus, e não
apenas os fariseus ou o establishment judaico. Pôncio Pilatos, o governador
romano da Judeia, é representado como um homem sensato, que tenta o mais
que pode salvar Jesus, embora as fontes não bíblicas o descrevam como um
homem de «carácter inflexível, obstinado e cruel, cuja administração foi
marcada pela cobiça, pela violência, pelo roubo, pela agressão e por
comportamentos insultuosos, execuções frequentes sem julgamento e
ferocidade e selvajaria intermináveis». Quando Jesus morre na cruz, segundo
São Lucas um centurião romano exclama: «Sem dúvida que este homem é
inocente!» (23:47).
Ainda mais interessantes são os Evangelhos que não se encontram
incluídos no Novo Testamento. Quando o movimento cristão ganhou ímpeto
suficiente, tornou-se necessário impor a uniformidade canonizando alguns dos
ensinamentos religiosos e denunciando os restantes. No final do século II, os
bispos da igreja cristã que passara a designar-se a si mesma por ortodoxa
reuniram-se para coligir o Novo Testamento e estigmatizar tudo o resto, que,
segundo as palavras de um dos bispos, era «um abismo de loucura e de
blasfémia contra Cristo». Afortunadamente, alguns dos documentos
condenados sobreviveram e foram recuperados por estudiosos como Elaine
Pagels. Um deles é o Evangelho segundo São Tomás, que encoraja os crentes a
embarcarem numa viagem de autodescoberta em vez de ficarem inseridos num
grupo coeso. Segundo Elaine Pagels, os Evangelhos que viriam a ficar incluídos
no Novo Testamento foram escolhidos pela seguinte razão:
O autor do Evangelho segundo São Marcos oferece um modelo rudimentar para a
vida comunitária cristã. Os Evangelhos que a maioria dos cristãos adoptou seguem todos,
em certa medida, o exemplo de São Marcos. Gerações sucessivas encontraram nos
Evangelhos do Novo Testamento o que não encontravam em muitos outros elementos da
tradição de Jesus nos seus primórdios — um modelo prático das comunidades cristãs.
Pagels não usa a palavra «evolução», mas não há dúvida que está a
descrever um processo de evolução cultural. As versões do cristianismo que
construíram comunidades fortes sobrevivem enquanto outras se desmoronam.
Os elementos de uma religião necessários para a sobrevivência dependem do
ambiente social envolvente, pelo que as religiões se diversificam
necessariamente à medida que evoluem. No início da minha investigação não
imaginava que o Novo Testamento pudesse ser considerado um registo fóssil de
adaptação cultural local! Tal como com o calvinismo, não se tratava de uma
interpretação pessoal esotérica, mas da opinião de estudiosos conceituados.
Até os chefes religiosos, e não apenas os especialistas em religiões,
descrevem por vezes a religião em termos evolutivos sem usar a palavra
«evolução». Veja-se o seguinte passo de John Wesley, o fundador do ramo do
cristianismo conhecido por metodismo:
Não vejo como é possível, de acordo com a natureza das coisas, alguma renovação da
religíão continuar durante muito tempo. Isto porque a religião tem necessariamente de
produzir tanto a industriosidade como a frugalidade. E estas não podem deixar de
produzir riqueza. Mas, à medida que a riqueza aumenta, também aumentam o orgulho, a
cólera e o amor mundano em todas as suas ramificações.
Wesley está a dizer que as religiões são tão boas a proporcionar benefícios
materiais que os seus membros se tornam abastados, após o que perdem o
incentivo para cooperar e tentam afrouxar a austeridade que lhes permitiu sair
da pobreza. Além disso, as religiões não são totalmente justas na prática. Alguns
membros lucram à custa de outros (a segunda grande hipótese referida acima),
impelindo os que nada têm a partir para criar a sua própria igreja «purificada».
As religiões não só se adaptam aos seus ambientes sociais, mas também os
modificam, num ciclo infinito de corrupção e renovação que tem sido
documentado pelos estudiosos para todas as tradições religiosas, em todo o
mundo e ao longo da história.
E o perdão, esse tópico específico para o estudo do qual fui financiado pela
Fundação Templeton? O perdão cristão é muitas vezes resumido pela frase «dá
a outra face», mas esta prescrição comportamental é demasiado simples de uma
perspectiva evolutiva. Qualquer religião que se preze deve fornecer muitas
regras sobre o perdão que são empregadas de forma flexível, de acordo com a
situação. A primeira exigência é definir o grupo e isolá-lo do resto da sociedade,
de modo que os comportamentos no interior e no exterior do grupo possam ser
regulados em separado. Alguém que conheça bem os Evangelhos sabe que Jesus
exigiu um comprometimento total, que se sobrepunha não só à religião anterior
professada pela pessoa, mas também à sua família imediata. Na parábola dos
talentos (Lucas 19:12-27), Jesus conta a história de um homem que parte para
um país distante «a fim de ser coroado rei». Depois do seu regresso, exige a
morte dos que foram desleais na sua ausência: «Quanto a esses meus inimigos
que não queriam que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e matai-os na minha
frente.» Esta faceta do cristianismo está no pólo oposto do «dar a outra face» —
e tem de estar, para cumprir a sua função. Antes de poder haver um grupo
fortemente empenhado, têm de existir consequências sinistras, intuídas (ou
reais), por deixar o grupo. Saltando para o século XVI, o Deus de Calvino
concede o perdão com uma precisão numérica: aqueles que entram na fé e
depois a abandonam são amaldiçoados até à quarta geração, aqueles que
mantêm a fé são abençoados durante um milhar de gerações, e assim
sucessivamente.
Dentro do grupo, os membros não «dão a outra face» relativamente a
transgressões sociais, mas seguem um conjunto pormenorizado de regras, como
descreveu o mesmo membro da fé huterita que começou por despertar o meu
interesse pela religião descrevendo o seu grupo como um corpo e uma colmeia:
O laço do amor mantém-se puro e intacto através da punição do Espírito Santo. As
pessoas sobrecarregadas de vícios que alastram e corrompem não podem fazer parte dele.
Esta fraternidade harmoniosa exclui quem quer que não faça parte do espírito unânime
[...] Se um homem se obstina na rebelião, o passo extremo da separação é inevitável. De
outro modo, toda a comunidade seria arrastada para o seu pecado, tornando-se parte dele
[...] Por isso, o apóstolo Paulo diz: «Expulsem a pessoa perversa do vosso seio.»
No caso de transgressões menores, esta disciplina consiste numa simples reprimenda
fraterna. Se alguém agiu mal para com outra pessoa mas não cometeu um grande pecado,
uma censura e uma advertência são suficientes. Mas, se um irmão ou uma irmã resiste
obstinadamente à correcção fraterna e ao bom conselho, então mesmo essas coisas
relativamente insignificantes têm de ser levadas abertamente perante a Igreja. Se esse
irmão estiver pronto a escutar a Igreja e disposto a ser corrigido, ser-lhe-á mostrado o
caminho certo para lidar com a situação. Tudo ficará esclarecido. Mas, se ele persistir na
sua obstinação e recusar escutar mesmo a Igreja, então só haverá uma resposta para esta
situação, que é afastá-lo e excluí-lo. É melhor para alguém com um coração cheio de
veneno ser excluído do que toda a Igreja ser levada a cair na confusão ou ficar maculada.
Todavia, o objectivo total desta disciplina não é a exclusão, mas uma mudança de
atitude. Esta não é aplicada para a ruína de um irmão, mesmo quando este incorreu num
pecado flagrante, em pecados de impureza que o tornam profundamente culpado perante
Deus. Em nome do exemplo e da advertência, nesta ocorrência a verdade tem de ser
abertamente declarada perante a Igreja. Mesmo nesse caso, o referido irmão não deve
abandonar a sua esperança e a sua fé. Não deve afastar-se e deixar tudo, mas aceitar e
suportar o que lhe é imposto pela Igreja. Deve arrepender-se sinceramente, por muitas
lágrimas que isso lhe possa custar e muito sofrimento que possa envolver. Na altura certa,
quando estiver arrependido, os que estão unidos na Igreja oram por ele, e todos os que
estão no Céu rejubilam com eles. Depois de ter mostrado um arrependimento sincero, é
recebido com grande alegria numa reunião de toda a Igreja, cujos membros intercedem
unanimemente em seu favor, para que nunca mais se pense nos seus pecados, mas para
que estes sejam perdoados e apagados para sempre.
Citei este longo passo para mostrar como uma religião pode incorporar
instruções pormenorizadas quanto à maneira de medir o perdão em situações
particulares. Se conhece o ramo da matemática designado por teoria dos jogos,
reconhecerá imediatamente os elementos deste passo religioso e achá-lo-á
semelhante aos elementos das estratégias teóricas que promovem a evolução da
cooperação — retaliação condimentada com a quantidade exacta de
generosidade, contrição e perdão, condicionados por uma modificação do
comportamento.
Que papel desempenha o «dar a outra face» neste sistema complexo de
regras do tipo «se, então»? Jack Miles, vencedor do Prémio Pulitzer e autor da
obra God: A Biography, fornece parte da resposta num ensaio intitulado «The
Disarmament of God». Segundo Miles, o Deus hebraico era essencialmente um
guerreiro que comandava o seu povo para combater e lhe prometia a vitória no
futuro, por muitas derrotas que tivesse sofrido no passado. O Deus cristão
reflectia a realidade de a vitória militar já não ser possível e a única estratégia de
sobrevivência envolver uma coexistência mais pacífica. O Deus cristão pousou
as armas. Esta estratégia social era tão radicalmente diferente que era possível
afirmar que o Deus cristão era um Deus completamente distinto do Deus
hebraico, como alguns especialistas afirmaram. No entanto, como a evolução
cultural raramente envolve descontinuidades tão radicais, os cristãos
imaginaram o seu Deus a formar uma continuidade com o passado. De qualquer
modo, «dar a outra face» pode ser uma boa estratégia não militarista numa
competição intergrupos, como os acontecimentos subsequentes amplamente
confirmam. Quando os cristãos se tornaram politicamente poderosos, a
evolução cultural promoveu a retomada das estratégias militares, como durante
as cruzadas.
No final da minha viagem de três anos fiquei convencido de que os crentes
religiosos estão essencialmente correctos quando descrevem os seus grupos
como corpos e colmeias. A evolução é um processo complicado e multifactorial.
Talvez as cinco grandes hipóteses evolutivas tenham um certo grau de validade,
mas, se apenas fosse possível dizermos uma coisa sobre a religião, ela não
andaria longe da definição de Durkheim já citada neste capítulo, o que exige um
processo de selecção cultural ao nível de grupo a ser explicado em termos
evolutivos modernos. Porém, a minha viagem foi pouco organizada, motivo pelo
qual reuni o meu grupo de alunos para me ajudarem a escolher a minha
amostra de religiões ao acaso, como a deusa da justiça imparcial, de olhos
vendados. Gostaria de poder dizer que, no espaço de um semestre, os meus
alunos se tornaram uma excelente equipa de especialistas no campo da religião
evolutiva. Seria um enredo magnífico para um filme inspirador feito para passar
na televisão. Infelizmente, não atingiram os padrões exigidos em relação à parte
do curso destinada a converter a informação descritiva em forma numérica. No
entanto, escreveram textos com muitas informações de qualidade, com centenas
de referências a livros e artigos sobre as religiões da amostra, o que me permitiu
prosseguir com o estudo depois de o semestre chegar ao fim. Os resultados
foram publicados num artigo intitulado «Testing Major Evolutionary
Hypothesis About Religion with a Random Sample», que pode descarregar do
meu site. Está amplamente preparado para o desfrutar e avaliar, não obstante
ter sido escrito para profissionais. Basta dizer que a amostra aleatória confirma
as conclusões a que cheguei em Darwin’s Cathedral, baseadas na minha viagem
menos organizada. A beleza da amostragem aleatória reside no facto de, a não
ser que tenha ocorrido um acidente de amostragem invulgar, as conclusões
válidas para a amostra também serem válidas para todas as religiões do décimo
sexto volume da Encyclopedia of World Religions, do qual a amostra foi
extraída.
Desde que escrevi Darwin’s Cathedral corri mundo a falar sobre evolução
e religião a públicos de todos os tipos. Termino a minha exposição com o
seguinte passo da autobiografia de Darwin acerca de uma viagem que ele fez em
jovem com o seu professor Adam Sedgwick a um vale no País de Gales.
Passámos muitas horas em Cwm Idwal, a examinar todas as rochas com extremo
cuidado, pois Sedgwick estava ansioso por encontrar fósseis; mas nenhum de nós viu em
redor o menor vestígio dos maravilhosos fenómenos glaciares; nenhum de nós viu as
rochas visivelmente estriadas, os pedregulhos empoleirados, as moreias laterais e
terminais. Contudo, estes fenómenos são tão visíveis que [...] uma casa consumida pelo
fogo não nos contaria uma história mais clara que este vale. Se ele ainda estivesse cheio
com um glaciar os fenómenos teriam sido menos nítidos do que são agora.
29
Está alguém aí fora? Está alguém aí em cima?
Os meus gostos musicais não são muito requintados, mas sei do que gosto,
e isso inclui Ray Charles. Não me lembro como o descobri, mas enquanto os
meus amigos andavam a cantar ao som dos Beatles e das Supremes, eu gritava a
plenos pulmões interpretações de «What I’d Say» e de «You Don’t Know Me».
Há pouco dei-me ao luxo de comprar uma colecção de cinco CD que inclui
canções mais recentes, além dos velhos clássicos. Uma das minhas favoritas é
um prodigioso número de gospel intitulado «Is There Anyone Out There?». O
facto de eu ser um evolucionista não significa que não me possa comover com
gospel, e, quando a emoção pura da voz de Ray é acompanhada pelo que parece
um coro de milhares de anjos, sou invadido pelo mesmo sentimento electrizante
que assalta a média dos crentes religiosos.
Mas espere lá! O título da canção é «Is There Anyone Out There?» Não
será «Is There Anyone Up There?» Quando escuto as palavras com atenção,
descubro que a canção é inteiramente sobre a necessidade de relações sociais. À
parte um ou dois «Que o Senhor Tenha Piedade», não há uma única referência a
um poder superior, mas isso não reduz o poder da canção e a sua mensagem
subjacente.
Como acabámos de ver, as religiões podem ser imensamente eficazes na
formação de relações sociais, o que responde à pergunta de Ray: «Está Alguém
Aí Fora?» Mas a religião é intrinsecamente sobre a segunda pergunta, mesmo
que ela não esteja presente nesta canção particular. Os estudiosos das religiões
usam mesmo os termos «horizontal» e «vertical» de maneiras que
correspondem ao «fora» e «em cima» das minhas duas perguntas, como na
seguinte definição do islão da enciclopédia de Eliade:
Um nome derivado do verbo aslama («submeter-se ou render-se [a Deus]») designa
o acto por meio do qual um indivíduo reconhece a sua relação com o divino e ao mesmo
tempo a comunidade de todos aqueles que respondem com submissão. Por conseguinte,
descreve tanto a relação singular e vertical entre o ser humano e Deus como a relação
colectiva, horizontal, de todos aqueles que se reúnem numa fé e numa prática comuns.
Como pode um líder religioso como o dalai lama, cujo estatuto entre os
budistas tibetanos é equivalente ao do papa entre os católicos, sentir-se tão
pouco ameaçado pela ciência? Como ele refere, «a grandeza de Buda como
mestre espiritual não reside tanto no seu domínio de diversos campos de
conhecimento como em ter atingido a perfeição da compaixão ilimitada por
todos os seres». Noutro passo, afirma: «O principal objectivo da psicologia
budista não é catalogar a composição da mente, nem sequer descrever como
esta funciona; pelo contrário, a sua preocupação fundamental é superar o
sofrimento, especialmente os padecimentos psicológicos e emocionais, e
eliminar esses mesmos padecimentos.» Neste e noutros passos, revela uma
consciência explícita de que o objectivo último da religião é criar uma forte
dimensão horizontal, com a dimensão vertical dependente desse objectivo. Se
eu tivesse a sorte de conversar com o dalai lama, penso que em grande medida
estaríamos de acordo.
Outras tradições religiosas podem não ser tão explícitas sobre o objectivo
último da religião e o papel dependente da dimensão vertical, mas ele lá está,
mesmo abaixo da superfície. Eu não estou apenas disposto, mas ansioso, por
falar com crentes e tenho tido oportunidade de o fazer desde que escrevi
Darwin’s Cathedral. Falei em clubes do livro de igrejas baptistas, passei uma
semana idílica num retiro unitário numa ilha ao largo da costa do Maine e
participei num debate televisivo com monges beneditinos e membros do corpo
docente da St. John University do Minnesota. A ordem beneditina é uma das
mais antigas organizações sociais sobreviventes da história da humanidade,
como aprendi na preparação para a minha visita, e o mosteiro onde tiveram a
gentileza de me albergar é o mais antigo da América do Norte. A Regra
Beneditina (não regras, como me informaram em termos peremptórios) podia
ter sido facilmente incluída em Darwin’s Cathedral juntamente com o
catecismo de Calvino e as Ordenanças Eclesiásticas como um modelo para a
vida da comunidade. Toda a face norte da St. John Abbey Church está ocupada
por uma janela com vitrais com um motivo em favos de mel, o que me fez sentir
em casa.
Os meus encontros na divisória ciência-religião são invariavelmente
cordiais, não por o nosso comportamento ser exemplar, mas por termos tanto
em comum. Há muito mais na religião do que a crença nos agentes
sobrenaturais — a construção de comunidades fortes, a ajuda aos necessitados e
o sermos, por nossa vez, ajudados, a transmissão dos nossos melhores valores
aos nossos filhos e a possibilidade de modificação e transformação. É tudo isto
que constitui a dimensão horizontal da religião e que pode ser em grande
medida afirmado pela teoria da evolução, ou pelo menos pela primeira grande
hipótese descrita no capítulo 28. Se o leitor fosse crente e pudesse escolher entre
as cinco grandes hipóteses evolutivas, qual preferiria? É verdade que as religiões
são concebidas principalmente para cuidar dos seus membros, mas serão os
grupos seculares diferentes? Em Darwin’s Cathedral afirmo que criticar as
religiões por não porem em prática a irmandade universal é o mesmo que
criticar as aves por não ultrapassarem a barreira do som. Não poderemos
admirá-las por voarem tão bem como voam? Quando à algazarra criada por
interacções entre grupos religiosos, segundo a minha amostra aleatória de
religiões, a proporção que alastrou por conflito violento é de facto muito
reduzida. A maioria das religiões cresceu oferecendo um bom negócio aos seus
membros. Em comparação, o que fizeram os grupos não religiosos, como os
regimes comunistas e totalitários?
Nas minhas conferências e encontros pessoais, fico animado pelo número
de pessoas que vêem as suas religiões com clareza e permanecem firmes na sua
fé sem precisarem de se afastar da realidade factual. Veja-se o caso de Myles
Horton, um dos grandes activistas sociais do século XX. É de uma família
calvinista de Savannah, no Tennessee, não longe do local de nascimento de Sir
John Templeton e de Dayton, o local do julgamento de Scopes. A mãe era um
pilar da sua igreja, o tipo de mulher a quem toda a gente da comunidade
recorria em busca de conselhos e de apoio. Mal o pequeno Myles teve idade
suficiente para aprender o catecismo, pediu à mãe que o aconselhasse. Eis como
ele recorda o acontecimento na sua autobiografia, intitulada The Long Haul:
Um dia fui ter com a minha mãe e disse-lhe: «Não sei, mas esta coisa da
predestinação não faz sentido para mim, não acredito em nada disto. Acho que não devia
estar nesta igreja.» A mãe riu-se e respondeu: «Não te preocupes com isso que não tem
importância, isso é só conversa de pregador. A única coisa que é importante é que tens de
amar o próximo.» Não disse «amar Deus», mas sim «amar o próximo», que só isso
importava... Era uma boa base não doutrinária, e deu-me a noção do que estava certo e
errado.
30
Ayn Rand: uma fanática religiosa
Como mostrei nos dois últimos capítulos, as religiões têm tendência para
se afastarem do realismo factual no seu esforço de alcançarem o realismo
prático. Este afastamento não se limita de modo nenhum à crença em agentes
sobrenaturais. Como Elaine Pagels mostra na sua análise dos Evangelhos
cristãos, as pessoas e os acontecimentos são livremente inventados e alterados.
Quando o único objectivo de uma crença religiosa é fornecer um modelo para a
acção, é lícito que toque em todos os aspectos e mais alguns da realidade factual.
Mal começamos a pensar na religião desta maneira, torna-se evidente que
temos de alargar a nossa análise para lá dela. As histórias patrióticas nacionais
têm a mesma qualidade distorcida e movida por um objectivo que as religiões, o
que se torna óbvio logo que consideramos as histórias de países que não o
nosso. Muitas vezes os movimentos intelectuais como o feminismo e o pós-
modernismo são descaradamente abertos na forma como associam verdades
aceitáveis a consequências observadas. É isso que significa ser politicamente
correcto. As teorias científicas não ficam imunes. Com o passar do tempo, tal
como as religiões, também muitas teorias científicas do passado se tornam
sinistramente inverosímeis. Quando isto acontece elas são muitas vezes
desmascaradas, revelando-se não que estão erradas, mas também que são
movidas por um objectivo. Os meus exemplos favoritos têm a ver com as teorias
científicas que apoiam convicções convencionais sobre o papel das mulheres na
sociedade. No século XIX era aceite como teoria científica que ir para a
universidade iria interferir com o desenvolvimento dos ovários. Mesmo na
década de 1970, as mulheres eram impedidas de correr a maratona porque se
pensava que correr mais do que alguns quilómetros teria efeitos nefastos nos
seus corpos. Hoje podemos rir-nos destas teorias e considerá-las
completamente erradas mas só porque foram desmentidas pelos factos —
mulheres que correm a maratona e tiram cursos universitários com ovários a
funcionar bem. Não se pode esperar que as teorias científicas se aproximem da
realidade factual quando são propostas, mas só depois de terem sido
escrutinadas.
Estes e outros sistemas de crenças não são classificados como religiões
porque não invocam agentes sobrenaturais, mas são tal qual como as religiões
quando avaliados em termos de realismo factual e prático. Em todos os casos
funcionam principalmente como modelos para a acção e ao longo do percurso
vão-se afastando do realismo factual. A presença ou ausência de agentes
sobrenaturais — um afastamento particular do realismo factual — é apenas um
pormenor.
Temos de reconhecer com humildade que em geral as preocupações
expressas sobre a religião precisam de ser alargadas a praticamente todas as
formas de pensamento humano. Talvez mesmo os sistemas de crenças não
religiosas sejam uma maior causa de preocupação por serem mais eficazes a
disfarçar-se de realidade factual. Podemos chamar- lhes religiões furtivas.
Um bom exemplo de uma religião furtiva é a filosofia do objectivismo de
Ayn Rand. Se conhece esta autora e os seus livros, aperceber-se-á da ironia do
título que dei ao presente capítulo. Ela era uma ateia fervorosa e a sua filosofia
baseia-se na virtude do pensamento racional. Quando as pessoas a rotulavam de
individualista, ela corrigia-as afirmando-se racionalista. Por que motivo lhe
chamo zelota religiosa?
Não tomei a decisão de estudar Ayn Rand mas descobri-a como parte de
um projecto sobre linguagem. Algumas palavras, como as partes de um navio,
têm definições muito precisas. É fácil compreender que as partes de um navio
tenham definições precisas porque é importante referi-las sem ambiguidade.
Quando há uma grande tempestade e a vida de toda a gente está em perigo, não
se pode dizer: «Peguem naquela corda ali! Não! Não é essa! Aquela ali!»
Outras palavras parecem perdidas numa névoa de ambiguidade. Pensei na
palavra «egoísta»; baseia-se numa mistura nebulosa de acções e motivos que
actuam a curto e a longo prazo. Para alguns é uma maneira como não devemos
comportar-nos, enquanto para outros é um princípio que explica todo o
comportamento racional. Porque não é a palavra «egoísta» definida de uma
forma tão precisa como a palavra «adriça»? Das pessoas com quem falei,
nenhuma parecia conhecer ou sequer ter pensado na questão. Um filósofo
limitou-se a encolher os ombros e retorquiu que as pessoas acordaram em
discordar.
Pensei ter uma nova resposta para esta pergunta baseada numa analogia
com ecossistemas naturais, onde muitas espécies coexistem sobrevivendo e
reproduzindo-se de várias maneiras. Como sublinhei nos capítulos anteriores,
as pessoas são tão diversas do ponto de vista comportamental que se
assemelham mais a um ecossistema do que a uma única espécie. O ecossistema
humano inclui, não muitas espécies, mas muitos sistemas de crenças, cada um
dos quais dá instruções aos seus membros para se comportarem de diferentes
maneiras. Dentro de um dado sistema de crenças, um termo como «egoísta»
pode ter um significado coerente, como a palavra «adriça», mas não se deve
esperar coerência transversal a sistemas de crenças. Bem vistas as coisas, os
sistemas de crenças têm muitas vezes de usar as mesmas palavras em sentidos
diferentes se quiserem motivar comportamentos diferentes.
A fim de testar a minha ideia, decidi recolher e classificar usos da palavra
«egoísta» e de palavras relacionadas com ela, como um entomologista poderia
recolher e classificar espécies de borboletas. Desenvolvi uma lista de
«caracteres» associados à palavra «egoísta» pelo menos algumas vezes. Quando
se descreve um comportamento como egoísta, quais são os seus efeitos sobre a
própria pessoa e sobre os outros? Esses efeitos serão a curto ou a longo prazo?
Serão materiais ou psicológicos? Sempre que encontrava a palavra «egoísta»
nas minhas leituras, apanhava-a na minha rede como se fosse uma borboleta e
classificava-a preenchendo a minha lista. Por exemplo, eis um passo de uma
carta que o jovem William James escreveu à mãe a pedir-lhe dinheiro:
«Quando a mãe fala do aumento das suas despesas, sinto-me muito
culpado e egoísta por alimentar projectos que possam parecer, para não dizer
mais, uma extravagância.» O comportamento rotulado de egoísta (pedir
dinheiro) é bom para o próprio (James), mau para o outro (mãe), não há
distinção entre o curto e o longo prazo e os efeitos são principalmente materiais
(dinheiro). O facto de James se sentir culpado (um efeito psicológico negativo)
não alterou a sua noção do estatuto do comportamento como egoísta.
Este significado da palavra egoísta é tão comum que temos tendência a não
pensar nele, mas vejamos como a mesma palavra é usada num artigo da
Reader’s Digest intitulado «How Love Came Back». O autor confessa a si
mesmo ter sido um marido egoísta (é o emprego da palavra que eu apanho na
minha rede). O seu egoísmo manifesta-se sobretudo em pequenas coisas, como
repreender a mulher por chegar tarde e insistir em ver os seus programas de
televisão favoritos. Durante as férias decide ser simpático para ela e descobre
que isso também o torna mais feliz. A mulher fica de tal modo estupefacta com a
gentileza dele que decide que só pode ter uma doença terminal. A história acaba
com ele a abraçá-la e a dizer: «Não, querida! Não estás a morrer. Eu é que estou
a começar a viver!»
Se conseguiram reprimir o enjoo, podemos passar a classificar este
espécime particular da palavra «egoísta». Ele refere-se a um comportamento
(ser indelicado) que é bom para o marido e mau para a mulhei a curto prazo,
mas mau para ambos a longo prazo. Os efeitos são principalmente psicológicos
(felicidade). A característica mais importante deste uso e o que o distingue do
anterior é que o egoísmo deixou de ser um comportamento do tipo ganha-perde
para se tornar um do tipo perde-perde. No mundo minúsculo construído pela
história minúscula não há conflitos de interesses.
Esta «espécie de pensamento», como gosto de a referir, é extremamente
comum. No conto infantil de Oscar Wilde «O Gigante Egoísta», um gigante
impede as crianças de brincarem no seu jardim, acabando por ver o Inverno
instalar-se em permanência na sua propriedade. A Primavera regressa quando
ele autoriza as crianças a regressarem. Um slogan da Cruz Vermelha diz o
seguinte: «Faz alguma coisa por nada e obterás tudo.» A palavra «egoísta» e
vários sinónimos são usados dezanove vezes nos primeiros cinco capítulos do
manual dos Alcoólicos Anónimos. Em todos os casos, as consequências a longo
prazo são descritas como negativas para a pessoa egoísta, como no seguinte
exemplo:
«Egoísmo — viver centrado em si! Parece-nos que aí reside a raiz dos
nossos problemas. Movidos por uma centena de formas de medo, ilusões,
egocentrismo e autocomiseração, espezinhamos os nossos semelhantes e eles
retaliam. Por vezes magoam-nos, aparentemente sem que os provoquemos, mas
invariavelmente descobrimos que em qualquer altura do passado tomámos
decisões baseadas no eu que mais tarde nos deixam em posição de sermos
magoados [...] Acima de tudo, nós, os alcoólicos, temos de nos libertar do nosso
egoísmo. Se assim não for, seremos vítimas dele!
No manual dos AA, pelo menos, o termo «egoísmo» tem a mesma
coerência e exactidão que o termo «adriça». Podem fazer-se três observações
sobre esta «espécie de pensamento». Em primeiro lugar, destina-se claramente
a obter uma mudança de comportamento, levando as pessoas a orientarem-se
mais para os outros. Em segundo lugar, talvez dê bons conselhos em termos
práticos. Em terceiro lugar, consegue o seu efeito descrevendo um mundo sem
compromissos, como se a bondade fosse invariavelmente benéfica e o egoísmo
fosse invariavelmente prejudicial para o próprio e para os outros. Para alguém
que entre num sistema de crenças como este, é fácil decidir o que fazer. A
inteligência (ou outro processo de selecção) talvez tenha interferido na criação
do sistema de crenças, mas não é necessária muita para se ser guiado por ele.
Basta seguir o letreiro que diz «Por aqui».
Não é surpreendente que esta «espécie de pensamento» seja
particularmente comum em textos religiosos. O texto huterita citado do capítulo
28 é completamente polarizado quando as palavras são classificadas segundo o
meu esquema de categorização. Uma lista de palavras refere-se a
comportamentos que tanto são bons para o próprio como para os outros:
irmandade, comunidade, disciplina, fidelidade, amor, ajuda mútua, obediência,
ordem, sacrifício, renúncia, verdadeira igualdade. Estes comportamentos
produzem uma infinidade de benefícios: alimento, abrigo, «a jóia mais
preciosa», «o tesouro oculto», «a verdadeira vida», «vida e alegria duradouras»,
«felicidade genuína», «lucros multiplicados por cem» e «poder que dá vida para
produzir frutos». Não há necessidade de estabelecer distinções entre benefícios
materiais e psicológicos porque tudo intervém no negócio. Outra lista de
palavras refere-se a comportamentos que são maus tanto para o próprio como
para os outros: arrogância, avareza, cobiça, egocentrismo, ganância,
individualismo, orgulho, egoísmo, interesse pessoal, oportunismo, obstinação.
Não há palavras — nem uma única — que se refiram a comportamentos que
beneficiam o próprio à custa dos outros ou os outros à custa do próprio, a longo
prazo. O sistema de crenças huterita descreve um mundo sem compromissos,
um caminho único no qual a única decisão racional para o crente consiste em
correr em direcção à glória e para longe da ruína. O slogan da Cruz Vermelha
«Faz alguma coisa por nada e obterás tudo» é uma depuração perfeita do que o
texto huterita refere em termos mais elaborados.
Pode parecer surpreendente que as definições familiares de egoísmo
(beneficiar o próprio à custa dos outros) e altruísmo (beneficiar os outros à
custa do próprio) estejam totalmente ausentes deste texto religioso particular.
As distinções em que os filósofos adoram deter-se estão igualmente ausentes. A
ideia de que um acto «aparentemente» altruísta é «realmente» egoísta porque
também beneficia material e psicologicamente aquele que o pratica é alheia à
imaginação huterita. O que é ainda mais extraordinário é que seja alheia à
imaginação de todas as religiões. Esta afirmação tão radical não se baseia na
minha própria obra, mas num projecto ambicioso criado pela Fundação John
Templeton e posto em prática por três estudiosos da religião de fama mundial:
Jacob Neusner, Bruce Chilton e William Scott Green.
Além de se interessar pelo perdão, em que se baseou o meu projecto de que
resultou Darwin’s Cathedral, a Fundação Templeton está interessada no
conceito de altruísmo. Abordou Jack Neusner pedindo-lhe que organizasse uma
conferência sobre altruísmo e religião. Jack encarregou BilI de formular um
conjunto de perguntas sobre altruísmo para ver se se tratava de um conceito útil
e adequado para o estudo académico da religião. Em seguida essas perguntas
foram enviadas a especialistas das grandes tradições religiosas, cujas respostas
foram apresentadas numa conferência e publicadas num livro intitulado
Altruism in World Religions, editado por Jack e Bruce. A resposta enfática foi
que, quando o altruísmo é definido como «acção intencional destinada ao bem-
estar dos outros, que implica pelo menos a possibilidade de não haver benefício
ou mesmo de haver perda para quem a pratica», é alheio à imaginação de todas
as grandes tradições religiosas. O hinduísmo, o budismo, o judaísmo, o
islamismo e o cristianismo retratam mundos sem essas relações de troca através
das quais beneficiar os outros resulta num cumular de benefícios materiais,
psicológicos e extra-terrenos para o próprio. A palavra «altruísmo» foi pela
primeira vez utilizada na década de 1830 (por Auguste Comte) e representa uma
«espécie de pensamento» que, como é evidente, se limita à vida secular.
Altruism in World Religions termina com o seguinte texto de Bill:
Embora o altruísmo contemporâneo pareça não encontrar guarida nas grandes
religiões, os resultados deste projecto colectivo estão longe de ser totalmente negativos. A
inadequação do altruísmo contemporâneo a estas religiões não significa que elas sejam
bastiões de egoísmo. O que se passa é o oposto. Os diferentes estudos apresentados neste
volume manifestam com um pormenor maravilhoso como a benevolência e a caridade
actuam dentro dos valores e estruturas das religiões estudadas. Se a história do Sr. Cinco
Pecados do Talmude, as parábolas de Jesus, a história de Shaykh Abô ‘Abd Allâh, os
ensinamentos dos textos budistas em pali, as lições de Nhat Hahn, a disciplina de
Nicherin, os ensinamentos de Krishna, o ideal de amizade na filosofia greco-romana, ou o
«altruísmo graduado» do Mencius cada tradição representada neste livro revela até que
ponto uma preocupação activa com os outros se encontra inserida no seu sistema e
representa categorias fundamentais de significado. Alguns destes exemplos assemelham-
se ao altruísmo contemporâneo, outros não, mas, como vários autores sublinham, só
através de um cálculo secular rígido a benevolência é menos benevolente se aquele que a
pratica beneficia com ela. É inquestionável que as religiões são forças fundamentais para
o comportamento humano dirigido para os outros. O facto de esse comportamento operar
dentro de um quadro transcendente ou eterno não diminui o seu impacto nem reduz a
sua capacidade de melhorar a condição humana.
31
A inteligência social das nações, ou os alienígenas
maus não fazem cá falta nenhuma.
52
O Sr. Pager
33
A ecologia do bem e do mal
O objectivo original do estudo com pagers que chegou pelo correio era
responder a uma pergunta terra-a-terra, um pouco à maneira do «Como
podemos inspirar os nossos jovens?» de Sir John Templeton. Mike e os colegas
tinham obtido uma bolsa choruda da Fundação Alfred P. Sloan para estudar
como os jovens se preparam para entrar no mundo do trabalho. Foram
escolhidas doze localizações geográficas dos Estados Unidos para representar o
meio rural, urbano e suburbano, diferentes composições raciais e étnicas,
diferentes características da mão-de-obra e diferentes níveis de estabilidade
económica. Dentro de cada localização geográfica participaram no estudo
algumas escolas básicas e secundárias, num total de trinta e três escolas para a
totalidade do estudo. Participaram mais de mil alunos, não uma mas três vezes
com dois anos de intervalo, cobrindo todo o seu percurso da escola básica e
secundária. Além de serem contactados por pager durante uma semana,
também responderam a centenas de perguntas feitas uma única vez. Como se
isto não bastasse, milhares de outros alunos responderam a perguntas feitas
uma só vez sem serem contactados por pager. Toda esta informação foi
codificada num único disco compacto, um milagre moderno semelhante à
codificação da própria vida num filamento de ADN.
Quando introduzi o disco no meu portátil e examinei os ficheiros, comecei
a apreciar a tremenda quantidade de trabalho exigida para adquirir aquela
amostra da vida americana. Contactar as escolas e fazer os alunos preencherem
milhares e milhares de folhas de bloco ao longo de um período de cinco anos foi
uma tarefa árdua, mas depois as respostas tinham de ser introduzidas
manualmente no computador. As respostas a perguntas em escalas numéricas
podiam ser rápidas de introduzir, mas as respostas escritas a perguntas como
«Onde estava?» e «Que estava a pensar?» tinham de ser organizadas em
centenas de códigos numéricos. Uma equipa de pessoas tinha de ler
comentários escritos à mão como «a discutir com a minha mulher», decidir que
isso devia corresponder ao código 335 («a falar com namorada/namorado») e
depois repetir o exercício até ao infinito. Os ficheiros no CD tinham centenas de
colunas de largura e milhares de linhas de comprimento. Se eu quisesse
imprimir uma delas em papel, seria precisa uma grande parede para a expor.
Foi necessário um grande caderno para as organizar e tudo isto apenas para um
dos três períodos de amostragem.
Os resultados do estudo já tinham sido publicados em livro por Mike e
Barbara e a obra intitulava-se Becoming Adult: How Teenagers Prepare for the
World of Work. O meu desafio era usar a mesma informação para fazer
perguntas sobre o altruísmo — o quem, como, porquê, onde e quando de
pessoas que se ajudavam mutuamente, usando a teoria da evolução como guia.
Tal como para a palavra «egoísmo», também não há uma definição única para o
termo «altruísmo». Como vimos no capítulo 29, a ideia do auto-sacrifício é
alheia à imaginação religiosa. Para os objectivos do meu estudo, centrei-me na
dimensão do altruísmo orientado para o outro, incluindo tudo o que contribua
para o bem-estar dos outros ou da sociedade como um todo. Utilizo muitas
vezes o termo «pró-social» em vez de «altruísta» a fim de evitar a ideia do auto-
sacrifício necessário.
Examinando as centenas de perguntas que foram feitas apenas uma vez,
descobri dezassete que estavam estreitamente relacionadas com a minha
definição lata de altruísmo, como «Para o trabalho que esperas ter no futuro,
qual a importância de ajudar as pessoas?» e «Entre os amigos com quem andas,
qual a importância de fazer trabalho comunitário ou voluntário?». Cada
pergunta tinha de ser respondida numa escala numérica, de modo que os
números pudessem ser combinados a fim de fornecer uma pontuação única
para cada indivíduo. Em princípio, isto era bastante fácil, mas na realidade fazê-
lo envolvia manipular os ficheiros de uma maneira que achei enervante.
Algumas perguntas foram respondidas numa escala de um a três, outras de um
a cinco e outras ainda de zero a quatro. Para as tornar comparáveis, tive de as
converter numa única escala. Para algumas perguntas como «Acha que ajudar
desconhecidos é uma perda de tempo?», um número elevado a indicar
concordância implica um grau baixo de altruísmo, pelo que esta pontuação teve
de ser invertida. Quando um aluno, por engano, marcou mais de um número
para uma dada pergunta, foi-lhe atribuído um código arbitrário de «96», o que
iria aparecer como uma forma de super-altruísmo, a menos que eu o retirasse
da análise. Estas modificações foram feitas com comandos de computador que
modificaram milhares de números com um único toque na tecla «Enter». Eu
vivia no receio constante de cometer qualquer erro colossal e de converter todos
os números em lixo. Pior ainda, podia não me dar conta do meu erro e passar o
resto da vida à procura de padrões que já não existiam! Comecei a pensar que a
perturbação obsessivo-compulsiva não é necessariamente uma perturbação,
mas exactamente o tipo de personalidade necessária para uma tarefa como esta.
Por fim consegui combinar os dezassete números numa pontuação única
para cada indivíduo, a que chamei a pontuação PRO, de «pró-socialidade». A
distribuição da pontuação PRO descrevia uma bela curva de Gauss, com a
maioria dos alunos a ocuparem uma posição intermédia e uma cauda de
pontuações altas e baixas nas extremidades. Os psicólogos passam o tempo a
construir escalas como esta e desenvolveram métodos para determinar a sua
validade. Como estes métodos podem ser muito complexos, pedi a ajuda de um
especialista, chamado Jack Berry, que descreveu o que ia fazer da seguinte
maneira: imagina um teste de Latim que inclui perguntar fáceis e difíceis. A
maioria dos alunos de Latim vai responder às perguntas fáceis, mas só alguns
irão responder às perguntas difíceis. O mesmo será válido para um teste de
Grego que inclua perguntas fáceis e difíceis. Agora imagina combinar os dois
testes num único teste. Já não há um gradiente que vá de «fácil» a «difícil». Um
aluno de Latim capaz de responder a uma pergunta difícil de Latim não será
capaz de responder a uma pergunta fácil de Grego, e vice-versa, O teste não é
válido, porque aglomera inadequadamente diferentes capacidades (neste caso o
conhecimento de línguas diferentes). Jack avaliou a minha escala PRO e
determinou que as perguntas se inseriam num gradiente fácil a difícil. Parecia
estar a medir uma única capacidade (neste caso, uma orientação para ajudar os
outros e a sociedade), e não a aglomerar inadequadamente diferentes
capacidades.
A tarefa seguinte consistiu em compreender por que motivo os indivíduos
têm pontuações PRO diversas. É um mantra científico afirmar que as
correlações não implicam causalidade, mas elas fornecem um ponto de partida
para descobrir a teia de causalidade subjacente. Por conseguinte, passei a pente
fino as centenas de perguntas feitas apenas uma vez para encontrar aquelas que
se correlacionam de forma mais estreita com a pontuação PRO. Um método
estatístico chamado «análise de regressão múltipla» identificou catorze
perguntas que, colectivamente, eram responsáveis por quarenta por cento de
variação na pontuação PRO e que podiam ser agrupadas nas categorias que se
seguem.
A primeira categoria é o género. O homem médio é mais pró-social do que
a mulher média. Esta foi só para ter a certeza de que está acordado. A mulher
média é mais pró-social do que o homem médio, por uma margem muito vasta.
A segunda categoria é o apoio social. Em comparação com os PRO baixos,
os PRO elevados têm mais professores que se preocupam com eles, vizinhos
mais dispostos a ajudar e famílias mais propensas a evitar magoar sentjmentos.
A terceira categoria é o amor-próprio. Em comparação com os PRO
baixos, os PRO elevados têm mais esperança no futuro, tentam alcançar os seus
objectivos com mais energia e sentem-se pessoas de valor.
A quarta categoria é a planificação do futuro. Em comparação com os PRO
baixos, os PRO elevados passam mais tempo a fazer os trabalhos de casa depois
da escola, pensam mais que é importante ter filhos e proporcionar-lhes
oportunidades, e esperam confrontar-se com obstáculos (que também esperam
superar). Por outro lado, os PRO baixos valorizam mais do que os PRO elevados
a gratificação imediata, como ir a festas com amigos.
A quinta categoria é a religião. Em comparação com os PRO baixos, os
PRO elevados são mais propensos a indicar que a religião afecta as suas decisões
e que ela é importante entre os seus amigos.
Como podem estes resultados ser interpretados de uma perspectiva
evolutiva? No capítulo 5 descrevi as experiências imaginárias com a minha ilha
deserta para ilustrar os custos e benefícios dos traços associados ao bem e ao
mal, ao PRO elevado e ao PRO baixo. Quando são colocados juntos numa única
ilha, os PRO baixos ficam numa posição vantajosa. Quando existem em ilhas
diferentes, são os PRO elevados a ficar numa posição vantajosa. Quando a
separação não é completa, há uma combinação confusa de custos e benefícios,
com grupos de PRO elevados a saírem-se bem, ajudando-se uns aos outros,
apesar do grau de exploração dos PRO baixos que se encontram no meio deles.
O destino das estratégias comportamentais depende inteiramente da forma
como eles estão agrupados.
Os resultados sugerem que as interacções sociais nos Estados Unidos estão
muito agrupadas. Os adolescentes com PRO elevados podem dar mais (pelo
menos segundo eles próprios referem), mas também recebem mais, de
professores, vizinhos e família. A maioria dos indivíduos com PRO elevados está
abrigada no seio de um ambiente social com PRO elevado. Protegidos por um
sistema de apoio estável e reconfortante, os indivíduos com PRO elevados são
capazes de desenvolver o seu potencial e de planificar para atingir objectivos a
longo prazo, em vez de estarem na defensiva e de se preocuparem com a
refeição seguinte. O apoio social, o amor-próprio e a planificação a longo prazo
existem em concomitância.
Contudo, isto só é verdadeiro num sentido estatístico, e não para cada
indivíduo isoladamente. As experiências da ilha deserta tornam claro que um
indivíduo com um PRO elevado que se encontra numa ilha de PRO baixo tem
problemas. De igual modo, um indivíduo de PRO baixo numa ilha de PRO
elevado pode levar uma vida regalada, pelo menos até ser apanhado. Eu devia
conseguir encontrar exemplos destes resultados na minha amostragem da vida
americana. Passando de novo em revista as centenas de perguntas feitas apenas
uma vez encontrei algumas que se debruçavam sobre acontecimentos
significativos que pudessem ter ocorrido durante os últimos dois anos. Tinham-
se mudado para uma casa nova? Os pais tinham-se divorciado ou tornado a
casar? Eles ou um membro da família tinham estado doentes? Tinham
presenciado um crime violento? Alguém os tinha ameaçado ou agredido? Eram
tantos os adolescentes envolvidos no estudo que mais de uma centena
respondeu sim à pergunta «Alguém disparou contra si durante os últimos dois
anos?».
Cada uma destas perguntas era seguida por uma segunda pergunta para
aqueles que respondiam com um sim: «Qual o grau de stresse que o
acontecimento lhe provocou?» Quando correlacionei as respostas com a
pontuação PRO, deparou-se-me um resultado fascinante. Os indivíduos com um
PRO elevado eram menos propensos a experimentar acontecimentos adversos,
como serem agredidos ou assistirem a crimes violentos. Isto faz sentido, pois,
como já mostrei, a maioria deles estão no seio de um ambiente com um PRO
elevado. Todavia, quando os indivíduos com um PRO elevado se confrontavam
com estes acontecimentos, ficavam com mais stresse do que os indivíduos com
um PRO baixo. Chamo a isto o efeito do «peixe fora de água». Um tudo-nada de
pensamento evolutivo informa-nos de que nenhum comportamento é vantajoso
em todos os ambientes sociais. Um indivíduo com um PRO elevado num
ambiente social com um PRO baixo encontra-se no habitat errado, como um
peixe fora de água, e só tem quatro opções: partir, modificar o seu
comportamento, tentar modificar o ambiente social ou sofrer as consequências
de ser explorado.
No capítulo 5, tive o cuidado de falar de comportamentos, e não de
indivíduos, bons e maus. Todas as espécies têm flexibilidade para modificar os
seus comportamentos segundo regras estabelecidas pelo seu passado evolutivo,
e nós somos a mais flexível de todas as espécies. Isto conduz a uma previsão a
que chamo «mais maneiras de ser mau do que bom». Uma pessoa que tenha
uma pontuação baixa na escala PRO pode ser genuinamente centrada em si à
procura de PRO elevados para explorar. Por outro lado, pode ser uma pessoa
perfeitamente bem-intencionada que se está a confrontar com um ambiente
social de PRO baixo «desligando» a sua pró-socialidade ou restringindo-a a uns
poucos associados em quem confia. Para alguém que foi muitas vezes
maltratado no passado e está a esforçar-se por resolver o problema sozinho,
uma pergunta como «Para o trabalho que espera ter no futuro, qual a
importância de trabalhar para melhorar a sociedade?» pode parecer
ridiculamente ingénua. No que diz respeito a comportamentos com PRO baixo
(ou a qualquer comportamento), temos de avaliar o ambiente social pelo menos
tanto como o indivíduo. Quando Leão Tolstoi começou o seu romance Anna
Karenina com a frase «Todas as família felizes se parecem; as infelizes não»,
quis dizer que a felicidade exige um determinado número de ingredientes e a
ausência de qualquer deles pode fazer falhar a receita. O que se aplica às
famílias felizes também se pode aplicar à pró-socialidade em geral.
Para testar a minha hipótese de «mais maneiras de ser mau do que bom»,
comparei as extremidades superior e inferior da minha distribuição PRO. Claro
que os PRO baixos eram mais variáveis do que os elevados na sua resposta a
dezenas de perguntas feitas uma única vez relacionadas com o amor-próprio, o
vazio emocional, os objectivos a longo prazo, a eficácia, a confiança, o desvio e o
stresse. Os PRO baixos constituíam uma mistura heterogénea que tinha
alcançado a sua baixa pró-socialidade — ou sido reduzida a ela — de diversas
maneiras. Os PRO elevados eram mais homogéneos, excepto no que se referia à
religião. Para sete perguntas sobre a religião, os PRO elevados mostraram-se
mais variáveis que os PRO baixos para cada indivíduo. Se uma pessoa tem um
PRO baixo, provavelmente não é religiosa. Se tem um PRO elevado, pode ser ou
não ser religiosa. Eu sou um bom exemplo de um PRO elevado não religioso.
Enquanto grupo, os PRO baixos parecem ser um monte de oprimidos.
Sofrem de falta de amor-próprio, são pessimistas em relação ao futuro e
acreditam que a sorte é mais importante que o trabalho árduo. As suas
pontuações são significativamente mais altas nos items «Em geral sinto-me
stressado», «Em geral sinto-me maldisposto» e «Em geral sinto-me cansado».
Este perfil é muito diferente da imagem de um egoísta cheio de auto-suficiência
(muito amor-próprio), que está a fazer planos para arranjar uma casa nos
Hamptons (optimista quanto ao futuro) e não deixa nada ao acaso (acredita que
o trabalho árduo é mais importante que a sorte). O motivo pelo qual os egoístas
pretensiosos não dão mais nas vistas na análise de regressão é constituírem só
uma parte da mistura heterogénea de PRO baixos. Mal comecei a estabelecer a
distinção entre diferentes tipos de PRO baixos com uma técnica estatística
chamada «análise de agrupamentos», os egoístas pretensiosos emergiram em
toda a sua glória. A minha escolha do sexo masculino é adequada porque oitenta
por cento são homens.
Também pude usar a análise de agrupamentos para explorar diferenças
entre PRO elevados religiosos e não religiosos. Apesar de partilharem valores
pró-sociais, os PRO elevados religiosos têm mais amor-próprio, parecem
trabalhar mais para construir o futuro e submetem-se a um maior controlo
social (relativamente a coisas como tarefas domésticas e limites para verem
televisão), mas na realidade sentem que têm mais domínio das suas vidas do
que os PRO elevados não religiosos. Estes resultados afirmam os benefícios
práticos da religião, que também sublinhei nos capítulos 28 e 29.
Todos estes resultados se baseiam nas centenas de perguntas a que os
alunos responderam apenas uma vez, Os indivíduos com PRO elevado e com
PRO baixo também respondem de maneira diferente quando são contactados
por pager, aleatoriamente, durante as suas vidas quotidianas? Na realidade,
sim. Os PRO elevados referem que se estão a concentrar melhor, estão a
corresponder às expectativas, de si e dos outros, que se sentem melhor em
relação a si mesmos, são mais felizes, mais activos, com vidas sociais mais
activas, estão mais envolvidos e entusiasmados, sentem um maior desafio
perante as actividades mais importantes e difíceis, o que estão a fazer é mais
interessante e relevante para os seus objectivos futuros e estão a fazer melhor
uso do seu tempo. Não resta sombra de dúvida de que, se o leitor for um
adolescente americano, ser um PRO elevado é altamente benéfico, mas só se
estiver num ambiente social de PRO elevado. Estes resultados são fiáveis, graças
à enorme quantidade de trabalho realizado por Mike, Barbara e os seus
colaboradores, ao apoio financeiro de instituições como a Fundação Alfred P.
Sloan e a Fundação John Templeton e à beleza do método do pager.
Os resultados são descritos de forma mais pormenorizada num artigo que
escrevi em colaboração com Mike intitulado «Health and the Ecology of
Altruism», que pode encontrar no meu site. Muito mais resta por descobrir, mas
até agora estou duplamente feliz com a nossa análise. Em primeiro lugar, ela
mostra como as pessoas podem ser estudadas exactamente da mesma maneira
que os ecologistas estudam outras espécies nos seus ambientes naturais. Em
segundo lugar, as previsões evolutivas mais básicas sobre o altruísmo enquanto
estratégia social, que pode ser bem sucedida ou fracassar consoante o ambiente
social, estão a revelar o seu valor — não só em relação a assuntos elevados como
a natureza da religião, mas também em assuntos terra-a-terra, como a
experiência quotidiana da juventude americana. Ainda não é comum pensar na
diversidade comportamental humana como diversidade biológica, mas talvez
isso se vá tornar um novo senso comum.
34
Mosquitos debaixo da cama
36
O regresso do cientista amador
36
Boa viagem
Agradecimentos
Notas
Tentei tornar este livro compreensível para leitores sem formação prévia
em ciência ou evolução. O meu objectivo é despertar o interesse por estes
assuntos e convencer o leitor com todo o tipo de formação de que pode
compreender apreciar e até contribuir para o conhecimento científico de uma
perspectiva evolutiva.
Os livros académicos e os artigos para revistas científicas são muitas vezes
difíceis de ler porque se concentram muito nos pormenores, e estes podem ser
aborrecidos para quem não entende ou não se interessa pela sua relevância,
embora sejam fascinantes para quem está dentro do assunto. Os cientistas e
académicos até utilizam a frase «a beleza está nos pormenores» para descrever
o prazer de irem para além de um conhecimento superficial.
As notas finais e a bibliografia servem de portal para a literatura científica
e académica sobre os assuntos abordados nesta obra. Para além de consultarem
estas referências, o leitor deverá também fazer a sua própria pesquisa. A maioria
dos cientistas mantém sites informativos, com artigos que podem ser
descarregados gratuitamente e que se podem encontrar escrevendo o seu nome
num motor de busca como o Google. Existe um ramo especializado do Google, o
Google Scholar (http://scholar.google.com), que proporciona um acesso fácil a
literatura científica e académica. Se estiver associado a uma instituição de
educação superior, provavelmente tem acesso electrónico a centenas de revistas
com artigos que pode pesquisar e descarregar no conforto da sua casa ou
gabinete. Mas, claro, uma visita à biblioteca é sempre um prazer. Espero que
goste!
Capítulo 4: Provem-no!
Jean-Henri Fabre foi um grande escritor e um grande naturalista. A obra
Fabre’s Book of Insects (1998) continua disponível em edição brochada. Quem
tiver um verdadeiro interesse pelo criacionismo deve ler a obra de Ronald
Number The Creationists: The Evolution of Scientific Creationism (1992).
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