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LUGAR DE FALA – AS HIERARQUIAS DE RECONHECIMENTO

POLÍTICO E O FEMINISMO NEGRO NAS REDES SOCIAIS

Larissa Meneses dos Santos1

Resumo: A comunicação oral proposta tem como objetivo trazer reflexões de uma pesquisa inicial
de doutorado sobre o feminismo negro brasileiro em suas interações recentes com as mídias
digitais. No intuito de contribuir com os estudos sobre movimentos sociais e sobre a teoria política
feminista, pretende-se problematizar as chamadas novas formas de ativismo online, tendo como
parâmetros teóricos os debates sobre interseccionalidade e consubstancialidade entre gênero, classe
e raça, bem como elementos analíticos presentes em parte da Teoria de Movimentos Sociais. A
pesquisa apresenta como parâmetros empíricos as relações das mulheres negras com espaços online
de solidariedade, identidade e disputas políticas, a saber: grupos feministas fechados ou secretos no
Facebook. O olhar para as interações nos espaços online entre mulheres aparece mediado pela ideia
de “lugar de fala”, hoje amplamente difundida nas mídias em questão.
Palavras-chave: Feminismo Negro; Redes Sociais Online; Lugar de Fala; Interseccionalidade;
Ativismo.

Feminismo nas redes sociais online: Facebook e “lugar de fala”

Nos últimos anos, e por diversas frentes de análise, é possível dizer que o feminismo
vivencia um notável crescimento e uma multiplicação de seus espaços de atuação (Hawesworth,
2006, p. 739; Alvarez, 1998 apud Ribeiro, 2006, pp.2-3). No Brasil, a presença do feminismo nas
mídias sociais tem ganhado maiores proporções que são reconhecidas também em meio ao senso
comum e nos veículos de comunicação de grande alcance2. Trata-se de uma presença que trouxe à
tona diversos questionamentos à teoria política feminista, bem como colocou em evidência novas
apropriações de conceitos e vertentes das teorias para uma suposta “democratização” ou
“instrumentalização” de categorias clássicas dos estudos feministas para a militância online.
Estes questionamentos e apropriações suscitaram um aumento significativo da produção
acadêmica brasileira que tenta articular teoria e ação política feministas e a análise das redes sociais
1
Larissa Meneses dos Santos é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas), Campinas – SP. Também é animadora sociocultural do Sesc SP, na unidade
Pompeia.
2
Ver:“Jovens fizeram feminismo crescer em quantidade e qualidade” – Rede Brasil Atual, 2016. Disponível em
http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/02/2018jovens-fizeram-o-feminismo-crescer-em-quantidade-e-qualidade2019-afirma-
pioneira-2127.html (acesso em 07/09/2016).
“As mulheres brasileiras dizem basta” – El País, 2015. Disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/03/politica/1446573312_949111.html (acesso em 07/09/2016).
“Feministas tomam a internet e as ruas em protesto e são alvos de ataques” – G1- Globo, 2015. Disponível em:
http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2015/12/feministas-tomam-internet-e-ruas-em-protestos-e-viram-alvo-de-ataques.html
(acesso em 07/09/2016).

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online3 na última década. E com redes sociais online, mídias sociais, ou ainda, mídias digitais,
referimo-nos a alguns dos espaços e tempos criados, reproduzidos e experienciados mediante o uso
da internet, tais como: blogs, Facebook, Twitter, Tumblr, Instagram, entre muitos outros – “A
expressão ‘redes sociais online’, nesse sentido, refere-se a um número considerável de formas de
interação entre indivíduos a partir da construção de páginas ou de perfis. Cada um desses, assim
como cada uma das redes, tem suas próprias características e, por conta disso, permite tipos
diferentes de interação” (Martino, 2015, p. 74).
Ainda segundo o autor (Idem, Ibidem), ao analisar a obra de Pierre Merklé (2004), é
possível identificar algumas das principais especificidades das redes sociais online:
“(1) possibilidade de criar um espaço pessoal de apresentação de si mesmo, onde se pode
colocar à disposição de todos as imagens e os textos que se escolher. (2) A possibilidade de
acessar perfis de outras pessoas (...). (3) Chance de estabelecer relações com outros
participantes da rede, na observação de seus perfis, a partir de interesses e afinidades
comuns.
As redes sociais permitem a criação de ‘identidades transparentes’, estabelecidas em
conexões interpessoais desenvolvidas a partir da interação entre perfis. Ao mesmo tempo,
convivem também com ‘identidades carnavalescas’ – no sentido das máscaras de carnaval e
das mudanças de identidade – nas quais projeções de si mesmo e as relações desconhecidas
ou propositalmente falsas, os perfis fake, garantem tipos diferentes de exposição de si e,
consequentemente, de interação” (Idem, Ibidem).

Dentre as redes sociais online mais populares no Brasil, encontra-se o Facebook4. De acordo
com dados liberados no início deste ano pela empresa em um grande evento de tecnologia, o
Facebook comporta 99 milhões de usuários brasileiros ativos mensais e 89 milhões de usuários
brasileiros móveis ativos mensais5. E, tendo em vista o grande número de usuários, não é de se
espantar que os usos políticos cotidianos dessa rede social online salte aos olhos. E estes usos são
os mais variados; desde a criação de páginas, perfis, grupos, postagens (textuais ou imagéticas),

3
Ver, por exemplo: “Feminismo e redes sociais na Marcha das Vadias no Brasil” (Ferreira, 2013, Revista Artemis),
“Feminismo e Preconceito no Facebook: uma análise das relações dialógicas” (Ferreira e Ludovice, 2016, Revista
Investigação), “(Re)definições e (des)construções identitárias em comunidades ativistas do Facebook: contribuições das
epistemologias pós-feminista e queer” (Biondo e Signorini, 2015, Delta).
4
“O Facebook é um sítio eletrônico no qual as pessoas criam um perfil pessoal, adicionam outros usuários como
amigos e trocam mensagens e conteúdos de forma geral. A plataforma foi criada em 2004, por Mark Zuckerberg,
Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. Atualmente, qualquer indivíduo pode participar desta rede social, a
partir dos interesses pessoais e profissionais. (...)oferece uma vasta lista de ferramentas e aplicativos que permitem aos
usuários comunicar e partilhar informações, adicionar fotografias, vídeos, comentários, ligações, enviar mensagens,
integrar com outros websites, dispositivos móveis e outras tecnologias. Ainda, permite o controle de privacidade, ao
selecionar qual informação e com quem deseja compartilhar” (Educause Learning Initiative - ELI. (2007). 7 things you
should know about Facebook II. Recuperado de http://net.educause.edu/ir/library/pdf/ELI7025.pdf apud BOUSSO,
Regina Szylit et al.Facebook: um novo locus para a manifestação de uma perda significativa. Psicol. USP [online].
2014, vol.25, n.2, pp.172-179).
5
Disponível em: http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2016/01/facebook-revela-dados-do-brasil-na-cpbr9-e-
whatsapp-vira-zapzap.html (acesso em 08/09/2016).

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eventos, extensos diálogos em comentários, até a reprodução parodiada e o compartilhamento
exaustivo destes conteúdos criados, os chamados memes. Toda esta miríade de atividades online
permitidas pelo Facebook pode ser e é apropriada politicamente por ativistas e militantes, sejam
eles de partidos políticos, movimentos sociais, causas ou campanhas.
No caso do ativismo feminista, e no do ativismo das feministas negras que nos importa aqui
destacar, a criação de grupos de mulheres secretos ou fechados no Facebook, bem como a ampla
adesão de perfis que possuem, são fenômenos latentes6 ainda não abordados diretamente pelas
pesquisas em Ciência Política no Brasil. Os grupos no Facebook operam como um fórum temático:
a partir de um tema específico que o denomina, perfis de usuários interessados em dialogar e/ou
compartilhar informações, dúvidas, relatos, imagens e vídeos sobre ele, podem entrar ou serem
convidados a entrar no grupo. Os grupos podem ser: i. abertos – visíveis e acessíveis à participação
a todos os membros do Facebook; ii. fechados – visíveis a todos os membros do Facebook, porém
acessíveis à participação apenas de acordo com avaliação e crivo de uma ou mais figuras
mediadoras (denominadas pelo Facebook como administradores); iii. secretos – invisíveis a todos
os membros do Facebook, exceto a aqueles que destes grupos fazem parte, e a participação é
possível somente mediante convite de um dos membros integrantes, seguida pela avaliação e crivo
de mediadores/administradores.
Em um pré-campo que realizamos a partir de 2014 até hoje, pudemos constatar os
vertiginosos surgimento e crescimento de grupos de mulheres e meninas no Facebook, entre o final
de 2014 e o início de 2016. Neste ínterim, foi possível inferir a relevância desses grupos para o
fortalecimento e a permanência do debate sobre feminismo nesta rede, bem como sobre suas
relações com debates sobre racismo e pobreza entre mulheres. Quanto a esta relevância é necessário
dizer que ela está embasada pela dinâmica de interação construída nos grupos:
“Essa mistura de vozes e verdades sobre identidades de gênero e sexualidade no mundo
virtual reflete, em certa medida, a intensificação das transformações sociais de nossos
tempos, que têm se acelerado e tornado mais exacerbada a convivência de culturas e de
estilos de vida. No caso das comunidades do facebook aqui focalizadas, vemo-nos diante de
práticas socioculturais de letramento digital nas quais há infinita expansão de relações
sociais, convidando-nos, como destaca Moita Lopes (2010, p.395), a "co-participar da vida
de pessoas que não conhecemos, que desarticulam nossas concepções de mundo e
ideologias, e que multiplicam os discursos a que temos acesso de forma ilimitada". Desse
modo, "a tela do computador deixa de ser somente um local onde se busca informação e

6
A saber (acessos em 08/09/2016):
http://mdemulher.abril.com.br/cultura/elle/como-grupos-no-facebook-contribuiram-para-o-meu-feminismo;
http://www1.folha.uol.com.br/paywall/adblock.shtml?origin=after&url=http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/0
5/1766587-grupos-secretos-em-rede-social-viram-comunidades-de-apoio-entre-mulheres.shtml;
http://hojeemdia.com.br/almanaque/grupos-secretos-na-web-ajudam-a-tirar-d%C3%BAvidas-e-a-empoderar-as-
mulheres-1.382409;

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passa a ser principalmente um lugar de construção, de disputa, de contestação de
significados" (Moita Lopes, 2010, p. 398)”. (BIONDO, 2015, p. 211).

A dinâmica de interação nos grupos de mulheres no Facebook remete a esta ideia de “co-
participação” da vida, pois está pautada pelo constante diálogo entre elas – mulheres em geral
desconhecidas, interessadas em compartilhar experiências e conhecimentos, em pedir auxílios,
aconselhamentos, visibilidade, ou em simplesmente estar entre mulheres.
E estar entre mulheres propicia, em vários casos, interpretar os grupos fechados ou secretos
como ambientes seguros, nos quais se pode falar abertamente sobre temas como sexualidade,
aborto, recuperação de transtornos alimentares, casos de violência, entre muitos outros. Todos estes
temas, nesse contexto, aparecem mediados pelas noções de vivência ou experiência, e são tais
noções que garantem a autenticidade e a legitimidade das interlocutoras para abordarem
determinado tópico de debate.
Ao observar as interações nesses grupos, é possível evidenciar que ter vivido uma situação
de opressão específica garante, a algumas mulheres, reconhecimento político para abordar certos
temas em seus discursos e nos diálogos que estabelecem online. E a este reconhecimento atribui-se
a denominação lugar de fala. Ou seja, quando, nestes grupos, aborda-se uma situação de racismo, a
legitimidade e o reconhecimento público ficam logrados às mulheres negras participantes para
debaterem sobre; quando se traz uma situação de LGBTfobia, apenas às mulheres lésbicas,
bissexuais ou trans cabe falar com legitimidade sobre a questão, e assim por diante. Ademais, é
possível dizer que se uma mulher soma em suas vivências mais de uma experiência de opressão – a
exemplo: racismo, homofobia e pobreza – seu lugar de fala nos espaços online é tido como mais
elevado, e suas possibilidades de debater com legitimidade e reconhecimento político das outras
integrantes do grupo, muito maiores.
Neste sentido, a dinâmica de debates, construída pelas mulheres nos espaços online, atribui
novos e diferentes pesos e medidas para os discursos sobre poder e opressão, a depender dos lugares
de fala de seus interlocutores. Novos porque são parâmetros que tentam inverter a lógica de
reprodução das opressões que as mulheres vivenciam fora das redes sociais online. E diferentes
porque criam uma diversidade de hierarquias de fala e escuta, raras ou não presentes em outros
espaços de discussão.
Trata-se, então, de um processo criativo e coletivo de construção de novos parâmetros de
legitimidade e reconhecimento dos discursos políticos entre mulheres nas mídias sociais. Sendo
importante destacar que compreensão destas dinâmicas de interação pode auxiliar no

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aprofundamento das pesquisas sobre formação política e recrutamento de ativistas e militantes
mediante os usos da internet.
Entretanto, o principal recorte de nossa investigação é apreender centralmente as interações
iniciadas ou fomentadas por mulheres negras nos grupos do Facebook. Pois, para grande parte
delas, o advento da ideia de lugar de fala em meio à militância online foi relevante para
conquistarem uma ampliação da escuta de suas vozes e de espaços de destaque nas mídias sociais.

Debate bibliográfico: o que pode estar por trás da ideia de lugar de fala nas redes sociais online

Para tentarmos analisar quais os conceitos e significados que preenchem de conteúdo a ideia
de lugar de fala, é preciso criar paralelos entre os debates que ela suscita nas redes e elementos
teóricos de diversas fontes que sugerem suas interpretações mais recorrentes. Segundo Braga (1997,
p. 107), o conceito “lugar de fala” deve ser retratado como um lugar de significação que “se
constrói na trama entre a situação concreta com que a fala se relaciona, a intertextualidade
disponível, e a própria fala como dinâmica selecionadora, atualizadora de ângulos disponíveis e
construtora da situação interpretada”. Como visto, a apropriação do conceito pelo ativismo online se
relaciona com os elementos citados pelo autor, ao analisarmos a importância das experiências ou
situações concretas que balizam as dinâmicas de fala, de escuta e de construção de interpretações
políticas no interior dos grupos de mulheres. No entanto, esta apropriação é uma dentre outras,
referentes a conceitos e elementos de reflexão caros à teoria política feminista e à teoria dos novos
movimentos sociais, por exemplo.
A ideia de lugar de fala, como ponto de partida para criação de patamares de
reconhecimento entre ativistas no debate político nas mídias sociais, evoca uma serie de discussões
teóricas fundamentais que consideraremos aqui e que são o panorama analítico indispensável à
nossa pesquisa; a saber: relações e limiares entre esfera pública e privada, identidade e
reconhecimento, formação política de militantes, interseccionalidade e consubstancialidade entre
gênero, classe e raça.
A teoria política feminista está atrelada à reflexão crítica sobre a dualidade entre esfera
pública e esfera privada. Biroli (2014, p. 31) atribui essa dualidade a compreensões restritas da
política, que tem como premissa a universalidade da esfera pública, e que elencam uma série de
assuntos e experiências como privados e assim, não políticos: “é uma forma de isolar a política das

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relações de poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das
relações de trabalho, e das relações familiares” (Idem, Ibidem). O argumento central da autora é que
este isolamento da política e das relações de poder na esfera privada traz profundas perdas no
âmbito da teoria política. Pois, não apenas deixa na sombra experiências da vida dos indivíduos,
mas torna deficitária a compreensão do que ocorre na esfera pública; já que há conexões
importantes entre posições e relações de poder na vida doméstica, no mundo do trabalho, e na esfera
dos debates, na produção de decisões políticas. Ou seja, trata-se de compreender, que há
consequências políticas dos arranjos privados (Idem, p.33).
Para Martino (2014, p.94), a divisão entre esfera pública e esfera privada decorre de outra
segmentação, referente à formação de espaços públicos e de espaços privados. Estes espaços seriam
diferenciados por sua visibilidade: o espaço público é o campo em que tudo é potencialmente
visível, já o espaço privado seria o campo das ideias, coisas e práticas que não devem ser vistas; o
campo, então, da intimidade, que deve estar protegido do olhar público e no qual só entra aquele
que for convidado. Ainda segundo o autor, a internet traz a necessidade de um novo olhar para esta
diferenciação, pois ela “introduz uma outra dimensão nessa questão, mesclando, em muitos casos,
as questões públicas e privadas por conta da exposição, cada vez maior de detalhes da vida
particular no espaço público digital” (Idem, Ibidem).
Logo, não é difícil inferir que o encontro entre a crítica feminista e a internet tenha sido, e é
bastante fortuito. A ideia de espaço público digital cria meios empíricos para que as fronteiras
teóricas entre esfera pública e privada sejam problematizadas. Quando as redes sociais online são
ocupadas por muitas mulheres que levam a público conteúdos tidos como da vida doméstica,
privada ou ainda da ordem dos afetos, esta exposição traz impactos à compreensão destas mulheres,
e de outros indivíduos presentes nas redes, sobre a relevância de tais conteúdos e seu pertencimento
também a uma esfera pública.
A internet aparece, assim, como um campo em que as relações entre as duas esferas –
pública e privada – podem se tornar mais evidentes, e como uma oportunidade à reflexão crítica
feminista, tal como propõe Biroli (2014, p. 33), na qual esfera pública e privada devem ser
discutidas “como um complexo diferenciado de relações, de práticas e de direitos –
permanentemente imbricados, uma vez que os efeitos dos arranjos, das relações de poder, e dos
direitos garantidos em uma das esferas serão sentidos na outra” (Idem, Ibidem).
Esta dinâmica complexa entre público e privado, potencializada pelas redes sociais online, é
perpassada ainda pelas relações entre gênero, sexualidade, classe e raça dos inúmeros perfis que

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interagem em tais espaços. Como temos visto, as múltiplas experiências de opressão – advindas do
âmbito tido como privado, ou não – garantem uma diversidade de reconhecimentos políticos entre
mulheres nos grupos de Facebook, através da ideia de “lugar de fala”.
Em meio à teoria feminista, é possível identificarmos as potenciais origens da construção do
“lugar de fala”, tal como compreendido pelas militantes online. E estas origens se encontram no
debate sobre interseccionalidade e consubstancialidade entre gênero/sexualidade, classe e raça. Um
primeiro ponto para o aprofundamento desse debate – segundo Hirata (2014, p. 1) – é a análise dos
conceitos de “conhecimento situado” ou de “perspectiva parcial”. Formulados no interior da
epistemologia feminista, estes conceitos trazem a “ideia de um ponto de vista próprio à experiência
da conjunção das relações de poder de sexo, de raça, de classe (...), pois a posição de poder nas
relações de classe e de sexo, ou nas relações de raça e de sexo, por exemplo, podem ser
dissimétricas” (Idem, Ibidem).
Nesse sentido, os pontos de vista próprios à experiência informam à teoria política feminista,
sendo parte de seus constructos teóricos. No que concerne ao debate entre interseccionalidade e
consubstancialidade, cabe destacar que ele remonta a trabalhos de duas autoras emblemáticas para
reflexão quanto à experiência e à interdependência entre relações de poder de gênero, classe e raça:
Kergoat (1978) e Crenshaw (1989). O que ambas proposições tem em comum é a tentativa de não
hierarquização entre as formas de opressão. Porém, oriundas de preocupações distintas presentes
nestas obras, as conceitualizações em torno da interseccionalidade ou da consubstancialidade
trouxeram também impactos diferentes para interpretações em meio à prática política de feministas.
Ainda de acordo com Hirata (2014, p. 3), é possível identificar que a preocupação que orienta as
formulações de Kergoat é a dinâmica coextensiva das relações sociais de classe e de gênero, já a
preocupação de partida de Crenshaw perpassa a intersecção entre raça e gênero, deixando as
questões de classe em uma condição analítica menos visível.
Entretanto, sem avançar nas minúcias da crítica a ela, é esta ideia de intersecção como
preocupação teórica que nos importa destacar. Isto, pois, interseccionalidade se tornou um conceito
extremamente mobilizado a partir da segunda metade dos anos 2000 e pode ser compreendido
também como um instrumento de luta política (Idem, ibidem), muito aparente nos debates sobre
feminismo junto ao ativismo online.
As fontes para a conceitualização da interseccionalidade se situam no feminismo negro,
principalmente norte-americano, da década de 1970, denominado por parte da bibliografia como
Black Feminism. No confronto tanto ao predomínio masculino no movimento negro, quanto à

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predominância branca e burguesa no feminismo, as feministas negras figuram apresentando novas
pautas de reivindicação e um novo enquadramento teórico para a compreensão dos problemas da
dominação. Entre as autoras, destacam-se Angela Davis, Bell Hooks, Patricia Hill Collins, Audre
Lorde e Barbara Smith (Miguel, 2014, p.89).
No entanto, segundo Hirata (2014, p. 4), as formulações sobre interseccionalidade,
desenvolvidas principalmente a partir dos anos 1990 tem na definição de Sirma Bilge, uma boa
síntese:

“A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a


complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque
integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da
diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade,
deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples
reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas
categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais”
(BILGE, 2009, p. 70 apud HIRATA, 2014, p. 4).

Em um primeiro e rápido experimento de transpor a perspectiva teórica da


interseccionalidade acionada pelas militantes feministas online e suas práticas de debate no
Facebook, vemos que a construção dos “lugares de fala” advém da tentativa de trazer ao centro do
espaço público digital a ideia de “conhecimento situado” e da importância de tornar visível um
conjunto complexo de relações de poder, opressão e dominação.
Contudo, a dinâmica das redes que promove buscas incessantes por recursos políticos como
curtidas e seguidores faz com que essa complexidade possa ceder espaço a uma hierarquização das
experiências de opressão, com vistas a gerar maior identidade e reconhecimento de demais
interlocutores, sejam militantes ou não.
E, justamente, um último aspecto concernente ao debate teórico que propomos à nossa
pesquisa diz respeito ao conceito de identidade como preceito à mobilização política e à formação
de militantes para ação coletiva. A identidade emerge como crucial em discussões sobre a teoria
política feminista e, também, em parte da teoria dos movimentos sociais. Porém este emergir
ocorre, em cada campo teórico, por vias distintas. A ideia de identidade foi e tem sido
problematizada por feministas negras e marxistas, que analisam se tratar de uma terminologia muito
abrangente e até mesmo essencialista. Pois não levaria em conta, pensando em uma condição
feminina, elementos como raça, classe, renda ou orientação sexual, silenciando assim a
multiplicidade de experiências específicas entre mulheres (Miguel, 2014, p.89).
Já em obras da teoria dos movimentos sociais, a identidade e/ou a variedade delas dá corpo e
explica, mesmo que parcialmente, a coesão entre militantes e lideranças nas ações coletivas (cf.

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Melucci, 1989; Mische, 2008). Dentre algumas das teóricas feministas, também fica demarcada a
importância da identidade para a mobilização política. Brah (2006) destaca a conformação de uma
identidade coletiva como um processo em que se formam bases para identificação em um
determinado contexto econômico, cultural e político. E Spivak (1985 – apud Miguel, 2014, pp.83-
4), propõe um “essencialismo estratégico”, ou seja, um uso estratégico das categorias tidas como
essencializadoras, como identidade, tendo em vista a importância vital da produção da identificação
para a mobilização política.
Sem dúvida, a questão da criação e da manutenção da identidade política é um marco do
debate sobre ação coletiva, tanto no interior da teoria feminista como na teoria dos movimentos
sociais. E nos parece crucial para compreensão da ideia e dos usos dos lugares de fala nas redes
sociais online. Embora aparentemente oculta das discussões e trocas entre mulheres nas redes
sociais, a necessidade de construção de identidade atravessa as dinâmicas de interação online para
que indivíduos e grupos sejam mais vistos, mais acessados, mais curtidos e para que assim estejam
em posições mais centrais na rede, atribuindo cumulativamente maior visibilidade àqueles
conteúdos e discursos políticos que pretendem replicar amplamente.

Lugares de fala e hierarquias de reconhecimento político: primeiros aspectos

É preciso ter em conta que há uma natureza dinâmica e volátil nas redes sociais online que
precisa ser considerada nas escolhas metodológicas de pesquisa (Braga e Cruz, 2014, p. 146).
Apesar de haver hoje uma série de métodos quantitativos de captação dos dados em redes sociais,
nossas primeiras análises tem enfoque qualitativo. Porque, em primeiro lugar, temos tentado
apreender dinâmicas de debate político e interação; e, em segundo lugar, porque o Facebook não
possui, diferente de outras mídias, uma ampla base de dados disponível à pesquisa. Sendo assim,
embasamos nossa análise empírica na observação participante e na etnografia em mídias sociais, em
sintonia com os debates metodológicos trazidos por Polivanov (2013), Agrosino (2011, apud
Fragoso, Recuero e Amaral, 2011, p. 168), e Hine (2000).
No interior destes primeiros olhares etnográficos para as interações entre mulheres negras
nos grupos fechados ou secretos no Facebook, é possível destacarmos já alguns dentre os
parâmetros mais importantes que circundam a ideia de lugar de fala e os variados reconhecimentos
políticos a ela atrelados. De início, faz-se visível que a dualidade entre sofrimento e privilégio é a

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marca e a régua mensuradora para que a determinação de lugares de fala aconteça. A mobilização
de determinadas narrativas de sofrimento amplamente compartilhadas determina, em cada
ambiência online, o que é uma narrativa de privilégio e qual audiência daquela postagem detém
privilégios frente a outras. E quanto menos privilégios identificados na mensuração junto aos
sofrimentos, maior a legitimidade da fala, e maior a possibilidade de veto à fala de outra pessoa
vista como privilegiada em relação a uma experiência vivida.
Um segundo parâmetro específico destas dinâmicas de interação diz respeito a como a
mobilização das narrativas de sofrimento é peça chave para criação de categorias de identificação
que são vivificadas para manter o debate sobre o feminismo negro nas pautas das redes sociais
online e aumentar a militância em seu entorno. E neste caso, as narrativas de sucesso e superação –
marcadas pela ideia de empoderamento, também surtem o mesmo efeito. Reproduzir postagens com
elementos do que é ser empoderada ou com elementos vividos das experiências com um, ou mais
de um tipo de opressão, dão forma a laços de solidariedade, identidade e reconhecimento político
nas redes. Isto, quando em meio a um público informado sobre o que é a ideia de lugar de fala.
Um terceiro e último parâmetro para reflexão pode ser atribuído à inevitável busca das
militantes feministas por recursos políticos quando no meio online. Inevitável porque esta busca
também ocorre nas organizações e movimentos sociais offline. Mas também, porque as redes
sociais atribuem novos sentidos a estes recursos, através das curtidas, seguidores, visualizações e
ampliação do espectro de alcance de ideias, narrativas e ações em ambientes muitas vezes hostis e
competitivos. E neste sentido, a ideia de lugar de fala contribui para ampliação destes recursos para
aquelas mulheres que acumulam vivências de opressão. No entanto, estes recursos tendem a estar
limitados em meio aos perfis de mulheres e coletivos com vivências próximas e similares de
opressão. Ao mesmo tempo em que a tensão entre as construções do que é sofrimento e do que é
privilégio, tal qual vista nas redes sociais online, tende a potencializar conflitos e diminuir as
chances de criação de laços de solidariedade entre mulheres com experiências muito diversas de
opressão. Ou seja, trata-se de adquirir novos recursos políticos nas redes, mas com eles não
conseguir ampliar diálogos e visibilidades políticas suficientes para fomentar a ação coletiva.

Referências

ALVAREZ, Sonia. “Feminismos latinoamericanos: reflexiones teóricas y perspectivas


comparativas”. In: RÍOS TOBAR, Marcela (Org.). Reflexiones teóricas y comparativas sobre los
feminismos en Chile y America Latina. Santiago: Notas del Conversatorio, 1998. p. 4-22.

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________________. “Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos”, Estudos
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PLACE OF SPEECH – THE HIERARCHIES OF POLITICAL RECOGNITION AND


BLACK FEMINISM IN SOCIAL NETWORKS

Abstract: The proposed oral communication aims to bring reflections of an initial doctoral research
on Brazilian black feminism in its recent interactions with digital medias. In order to contribute to
the studies on social movements and on feminist political theory, we intend to problematize the so-
called new forms of online activism, having as theoretical parameters the debates about
intersectionality and consubstantiality between gender, class and race, and analytical elements of
part of the Theory of Social Movements. The research presents as empirical parameters the relations
of black women with online spaces of solidarity, identity and political disputes, namely: closed or
secret feminist groups on Facebook. The look at interactions in online spaces between women
appears mediated by the idea of "place of speech", now widely used in the online medias in Brazil.
Keywords: Black Feminism; Online Social Networks; Place of Speech; Intersectionality; Activism;

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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