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Vânia Lúcia Kampff

Heidegger e o outro pensar:


Uma leitura de Que chamamos pensar?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312399/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do grau de Mestre pelo Programa
de Pós-graduação em Filosofia do Departamento
de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Edgar de Brito Lyra Netto

Rio de Janeiro
Abril de 2015
Vânia Lúcia Kampff

Heidegger e o outro pensar:


Uma leitura de Que chamamos pensar?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312399/CA

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Edgar de Brito Lyra Netto


Orientador
Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Luiz Camillo Dolabella Portella Osorio de Almeida


Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Rodrigo Ribeiro Alves Neto


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de Abril de 2015


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.

Vânia Lúcia Kampff

Graduou-se em Letras (Licenciatura Plena – Português /


Inglês) pela PUC-Rio em 1988. Cursou Teologia / Filosofia
na PUC - Rio. Foi coordenadora executiva da Cátedra Carlo
Maria Martini. Área de pesquisa em Filosofia
Contemporânea, com estudos desenvolvidos em Martin
Heidegger.
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Ficha Catalográfica

Kampff, Vânia Lúcia

Heidegger e o outro pensar: uma leitura de Que


chamamos pensar? / Vânia Lúcia Kampff ; orientador:
Edgar Lyra Netto. – 2015.

148 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia,
2015.
Inclui bibliografia

1. Filosofia – Teses. 2. Caminho. 3. Pensamento. 4.


Representação. 5. Temporalidade. 6. Metafísica. 7.
Origem. 8. Ser. I. Lyra Netto, Edgar. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento
de Filosofia. III. Título.

CDD: 100
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À Therezinha,
por ter me ensinado a sonhar.

Ao Carlos, ao Christian e ao Patrick,


por sonharem comigo.
Agradecimentos

Com a palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, Heidegger nos fala tanto da
memória quanto da gratidão. É, pois, tomada pelo espírito da letra que expresso o
coração pleno de gratidão e faço memória a todos aqueles que fizeram parte desta
trajetória:
ao professor e orientador Edgar Lyra, pela presença e cuidado constantes em
todos os momentos da caminhada;
ao professor Eduardo Jardim, por conjugar sabedoria com generosidade e, ao
acolher meu desejo em seguir na Filosofia, apontar o caminho;
aos professores Luiz Camillo Osorio, Luisa Severo Buarque de Holanda, Maria
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Inês Anachoreta, Tito Marques Palmeiro, Márcia Sá Cavalcante Schuback, Maria


Montenegro e José Trindade Santos, pelas mais variadas e tão pertinentes
palavras-caminho ofertadas ao longo do percurso;
ao meu marido, Carlos Adolfo Kampff, aos meus filhos, Christian Kampff e
Patrick Kampff, e à minha mãe, Therezinha Rey Scaldini, pelo amor,
compreensão e amparo, sem os quais o caminho não seria o mesmo;
às amigas Cláudia Lúcia Morais e Silva, Fernanda Aleman, Christina Procópio de
Castro, Andréa Salgado e Manuela Brambilla, pelo apoio e amor fraterno.
aos amigos da PUC-Rio Maria Priscilla Coelho, Victor Melo, Isabela Massa,
Paulo Barcelos, Beatriz Gross e Leonardo Reis, pela partilha de ideias, filosóficas
ou não, no decurso do trajeto;
a todos os meus professores de Filosofia da PUC-Rio, cuja inteireza e coerência
de propósito ajudaram a formar minha escuta ao caminho filosófico;
ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio, desde sempre abrigo para o livre
pensar;
ao Departamento de Teologia da PUC-Rio, lugar em que o caminho teve início;
à Edna Sampaio, à Diná Lúcia de Jesus Santos e ao Daniel, pela prontidão de
todos os dias;
à CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais esta pesquisa não
poderia ter sido realizada;
por fim, mas antes de tudo, a Deus, que pela fé foi a Luz que iluminou a
totalidade do caminho. !
Resumo

Kampff, Vânia Lúcia; Lyra Netto, Edgar de Brito. Heidegger e o outro


pensar: uma leitura de Que chamamos pensar?. Rio de Janeiro, 2015.
148p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Heidegger e o outro pensar: uma leitura de ‘Que chamamos pensar?’


busca, como o título sugere, percorrer alguns dos caminhos propostos pelo
filósofo nesse escrito central em sua obra, ainda inédito em tradução para o
português. O livro estudado compreende dois cursos ministrados por Martin
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Heidegger na Universidade de Freiburg, nos anos de 1951 e 1952. O primeiro


curso ocupa-se com a questão do pensamento representacional e delimita o fim da
metafísica ao apresentar a absolutização da vontade de poder e da temporalidade
presentes no Assim falou Zaratustra e no Eterno Retorno do Mesmo, de Friedrich
Nietzsche. O segundo curso, para o qual esta pesquisa se volta com mais ênfase,
concerne a Parmênides e aos primórdios do pensamento ocidental. Heidegger
vislumbra no momento anterior ao advento da metafísica pistas para o “outro
pensar”, e através da análise do fragmento VI do poema Da Natureza de
Parmênides o filósofo nos encaminha para o caráter primordial daquilo que então
se designou por pensar.

Palavras-chave

Caminho; pensamento; representação; temporalidade; metafísica; origem;


ser.
Abstract

Kampff, Vânia Lúcia; Lyra Netto, Edgar de Brito (Advisor). Heidegger


and the other thinking: a reading on What is called thinking?. Rio de
Janeiro, 2015. 148p. MSc Dissertation – Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Heidegger and the other thinking: a reading on ‘What is called thinking?’,


as the title suggests, seeks to follow some of the pathways proposed by the
philosopher in this central writing of his work, still unpublished in Portuguese.
The studied book consists of two courses taught by Martin Heidegger at the
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University of Freiburg, in the years of 1951 and 1952. The first course concerns
the issue of representational thinking and delimits the end of metaphysics in
presenting the absolutism of the will of power and the temporality, present
respectively in Friedrich Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra and The Eternal
Recurrence of the Same. The second course, to which this research focuses with
more emphasis, concerns Parmenides and the dawn of the Western thought.
Heidegger envisions in the moment prior to the advent of metaphysics signs of the
“other thinking”, and through the analysis of the fragment VI of Parmenides’
poem On Nature, the philosopher leads us to the primordial character of what was
then considered thinking.

Keywords

Pathways; thinking; representation; temporality; metaphysics; origin;


being.
Sumário

1. Introdução 11
1.1. “... talvez se possa aprender a pensar...” 13
1.2. Um filho do tempo 18
1.2.1. Um instante no tempo 20
1.2.2. O fio da meada 24
1.3. O dar-curso-ao-aprender 26
1.4. A caminho de Que chamamos pensar? 28
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1.5. Uma palavra sobre a palavra “interpretação” 35

2. Que Chamamos Pensar?, as preleções e o escrito 40


2.1. As preleções do inverno de 1951-1952 42
2.1.1. “O mais problemático do nosso problemático tempo...” 43
2.1.1.1. Nas raias da representação 49
2.1.2. O Zaratustra de Heidegger 57
2.1.2.1. Nietzsche e o “fim da metafísica” 65
2.2. As preleções do Verão de 1952 68
2.2.1. O chamado 69
2.2.2. O dizer das palavras 74
2.2.3. Gedanc - o pensar do coração 77
2.2.3.1. O Andenken e a lembrança fiel 85
2.2.3.2 A proveniência do pensar 88

3. O outro pensar 93
3.1. Na aurora grega do pensamento 94
3.2 Da traductio 100
3.3. O impensado de Parmênides 103
3.3.1. A !"#$%&' 103
3.3.2. O fragmento VI 105
3.3.2.1. O ()ὴ 107
3.3.2.2. O "*+%&, e o ,-%ῖ, 112
3.3.2.3. O ἐὸ, ἔµµ%,'& 119
3.3.3. O .ὸ 'ὐ.ὸ e a determinação do pensar 130

4. Considerações Finais 137

5. Referências Bibliográficas 143


5.1. Os caminhos de Heidegger 143
5.2. Os caminhos que levam a Heidegger 145
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We shall not cease from exploration


And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.

T.S.Elliot
1. Introdução

Caminante, son tus huellas


el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

Antonio Machado1

Caminhos, não obras (Wege, nicht Werke) – é o título com que Martin
Heidegger, ao organizar a publicação de suas obras completas (Gesamtausgabe)2,
define sua trajetória. Entendemos, com isso, que o filósofo quer preparar um
caminho de Filosofia que passa por um movimento que envolve o abandono da
resposta, um salto que nos coloca numa espécie de perspectiva suspensiva e
rompe com a nossa relação imediata com as coisas do mundo. Nos referimos a
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uma trajetória filosófica que descortina, diante do olhar atento, a imagem de um


andarilho que busca no caminho a permanência do encontro; um caminhante que,
no silêncio do mundo, abre pequenas veredas, caminhos fora do trajeto usual, que
fazem jorrar com uma força intempestiva um pensar extraordinário.

O caminho do pensamento de Heidegger que escolhemos trilhar percorre


a trajetória dos cursos intitulados Que chamamos pensar? (GA8), proferidos na
Universidade de Freiburg, no inverno de 1951 e no verão de 1952, e publicados
em 1954. Pensamos que a relevância desse escrito não só se prende ao fato de
situar-se na primeira seção dos livros publicados de Heidegger – fato que aponta
para a importância do texto para o próprio filósofo –, mas, sobretudo, porque
compreende o caminho trilhado pelo pensar do filósofo quando retoma a cátedra
da Universidade de Freiburg, após 6 anos de ausência, quando ficou proibido de
lecionar pela comissão de desnazificação da Alemanha. Nesse momento de
retorno à universidade vamos encontrar Heidegger questionando o que significa

1
Antonio Machado, “Proverbios y Cantares XXIX”, in: Campos de Castilla: Poesias completas,
Disponível [online]: http://www.rinconcastellano.com/biblio/sigloxx_98/amachado_prov.html
Acesso em 7/1/2015.
2
Gesamtausgabe é o título dado à publicação das obras completas de Martin Heidegger, iniciada
em 1974 por supervisão de Hermann Heidegger e originalmente publicadas pelo editorial Vittorio
Klostermann de Frankfurt am Main, Alemanha. Para este termo em alemão usaremos as iniciais
GA entre parênteses, acrescentadas ao número da ordem em que se encontra a publicação citada.
12

pensar nesse tempo de hegemonia da técnica, tempo em que a ciência adquire


estatuto de verdade. Essas preleções nos dão pistas do que seria pensar para além
da metafísica tornada tecnociência e isso significa contemplar os dois umbrais: o
fim e o começo. Consideramos, por isso, ser esse um caminho de fundamental
importância no percurso do pensamento de Heidegger, um divisor de águas no
qual é possível traçar o panorama daquilo que, para o filósofo, significa o fim da
era do pensamento representacional e o anúncio de um outro pensar – um pensar
originário. Não é à toa que os dois pensadores que pontuam o 1o e o 2o curso são
aquele que prefigura o fim da metafísica e aquele que antecede o advento da
metafísica, nomeadamente: Nietzsche e Parmênides. Que chamamos pensar? é
tão relevante que Hannah Arendt, por ocasião da publicação do livro nos Estados
Unidos, afirmou ser esse um escrito “[...] tão importante quanto Ser e Tempo, [...]
a única apresentação sistemática da filosofia tardia do pensador, [...] o mais
emocionante de seus livros.”3 Em carta a Arendt, J. Glenn Gray, tradutor de Que
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chamamos pensar? para a língua inglesa, agradece a citação e confirma com a


filósofa que o próprio Heidegger também considera esse seu mais emocionante
livro (das aufregendste meiner Buecher).4

Apesar de sua relevância, Que chamamos pensar? é um texto pouco


explorado e até mesmo negligenciado.5 Circunstância que infelizmente não nos
viabiliza um grande acervo de publicações para pesquisa, mas, sem dúvida, torna
nosso interesse e responsabilidade ainda maiores. Diante de tamanho desafio, nos
resta confessar de início que, se por um lado tivemos grande dificuldade em
encontrar material que nos ajudasse em nosso caminho de modo a aprofundá-lo,
por outro, nos colocou diante da tentativa de desenvolver um trajeto original sobre
o escrito. Não caminhamos em busca de uma compreensão absoluta do texto,
nosso olhar não seria capaz de tal alcance. Engendrar os caminhos de Heidegger é
sempre tarefa árdua. Mas, procuramos por uma compreensão que possa levar-nos
3
Cf. Harpers Collins Publishers [online]: “For an acquaintance with the thought of
Heidegger, What is called thinking? is as important as Being and time. It is the only systematic
presentation of the thinker's late philosophy and . . . it is perhaps the most exciting of his books.”
(Hannah Arendt) Disponível em:
http://www.harpercollins.com/book/index.aspx?isbn=9780060905286 Acesso em:16 abr 2014.
4
Cf. The Library of Congress [online] disponível em: http://memory.loc.gov/cgi-
bin/ampage?collId=mharendt_pub&fileName=02/020500/020500page.db&recNum=9
Acesso em: 23 abr 2014.
5
Cf. Robert Mugerauer, Heidegger’s language and thinking, Atlantic Highlands, NJ: Humanities
Press International 1988, p.192.
13

a uma visão clara do que trata o escrito e do percurso nele envolvido. Nesse
sentido, nossos passos se movem inicialmente buscando levantar o contexto, a
época e a importância do texto no pensamento de Heidegger; em seguida,
trataremos da apresentação do livro e da forma como os cursos foram ministrados;
passaremos pelo o confronto do pensar de Heidegger com a absolutização da
vontade de poder de Nietzsche, o que significará para o filósofo o ponto
culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu último
pensador; e, finalmente, caminharemos por uma das veredas do texto, buscando
explorá-la mais amiúde de modo a nos aprofundarmos numa das muitas
possibilidades por ele oferecidas: a que concerne a Parmênides e aos primórdios
do pensamento ocidental.

Temos ciência de que os fragmentos deixados por Parmênides foram lidos


e analisados por diversos estudiosos que, certamente, muito contribuíram para o
enriquecimento do pensamento filosófico. Todavia, não nos atemos aqui a essas
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interpretações. O que gostaríamos de ressaltar nesse escrito é a singularidade do


pensar de Heidegger e, nele, a capacidade de trazer à claridade o impensável,
aquilo que subjaz encoberto à espera de alguém capaz de ali encontrar a alteridade
– esse outro que se mostra apenas ocultando-se.

Antes de iniciarmos essa trajetória, no sentido de nos prepararmos para


acompanhar tamanha investida, voltemos nosso olhar para o que consideramos ser
o primeiro passo em direção ao caminho que pretendemos percorrer e que também
nos evidencia, uma vez mais, a importância de Que chamamos Pensar? – o
próprio pensar de Martin Heidegger.

1.1. “... talvez se possa aprender a pensar”

É notório o fato de que Heidegger foi um dos mais influentes pensadores


do século XX. Sua influência é reconhecida por filósofos como Hans Georg
Gadamer, Michel Foucault, Jacques Derrida, Hannah Arendt, Walter Biemel,
entre outros. A reverberação que o pensar de Heidegger exerceu sobre cada um
deles é tão relevante que julgamos importante nos atermos brevemente diante de
tal reconhecimento.
14

Gadamer o descreve como “um visionário. Um pensador que vê”6. Para


ele, o pensamento de Heidegger parecia desafiar qualquer comparação em relação
àquilo que a filosofia havia significado anteriormente, uma incomparável
renovação da tradição filosófica, um avanço, algo radicalmente novo. Michel
Foucault nos revela: “Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial. [...]
Todo o meu desenvolvimento filosófico foi determinado por minha leitura de
Heidegger”7. Jacques Derrida também confessa que seu próprio trabalho “não
teria sido possível sem a abertura das perguntas de Heidegger”8 e que mesmo seu
famoso termo “desconstrução” foi parcialmente inspirado no início da Destruktion
que Heidegger fez à tradição filosófica. Todo esse reconhecimento nos coloca
diante da grandeza de um pensar cuja a dimensão da obra soma 102 volumes.

O pensar de Heidegger é certamente grandioso. Mais do que isso, o pensar


de Heidegger é o pensar de um homem que se vê diante da condição extrema de
ser marcado e distinguido pelo destino de pensar, um pensar que o dominava de
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tal forma que, por mais de uma vez, confessara ao filho Hermann: “algo pensa
dentro de mim. Não posso defender-me disso.”9 É esse o pensar que pretendemos
encontrar, não o pensar rebuscado da coisa erudita, mas, o da coisa pensada; não o
pensar que se objetiva na esfera do cálculo, da finalidade, mas, aquele que,
segundo o próprio Heidegger, “[...] não chega a um resultado; não produz
efeito”10, todavia tece caminhos para a própria questão do pensar.

Muitas são as visadas oferecidas para o pensar de Heidegger. Entretanto,


nossos olhos para essa tarefa serão os de Hannah Arendt; um olhar que evidencia,
através do texto “Martin Heidegger faz 80 anos”11, não só o percurso do seu

6
Hans-Georg Gadamer, Heidegger’s ways, Albany, NY: State University of New York Press,
1994, p.17.
7
Michel Foucault apud Lee Braver, Heidegger’s later writing – A reader’s guide, New York, NY:
Continuum International Publishing Group, 2009, p.127.Tradução nossa.
8
Jacques Derrida apud Lee Braver, ibidem, p.127. Tradução nossa.
9
Rüdiguer Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo:
Geração Editorial, 2005, p.372.
10
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e Escritos
Filosóficos; (tr.) Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370.
11
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras,1987, p.221.
“Martin Heidegger faz 80 anos” foi escrito em 26 de setembro de 1969. Este manuscrito serviu
como base para um discurso de Hannah Arendt no dia 25 de setembro de 1969, em Nova York,
transmitido no “estúdio noturno” da estação de rádio da Baviera. A versão escrita foi publicada
inicialmente na revista Merkur (caderno10, 1969) e, posteriormente, na edição brasileira de
Homens em tempos sombrios, em que exclui-se o capítulo sobre Waldemar Gurian e incluiu-se a
15

pensar, mas também a sinuosidade desse percurso. O escrito em comemoração aos


oitenta anos do pensador tem um belíssimo tom celebrativo, mas é, sobretudo,
uma síntese do trajeto do seu pensamento. Nele, Arendt nos conta do rumor sobre
um professor que chegara a Freiburg e que havia alcançado as “coisas mesmas”12
que Husserl havia proclamado; um professor que dizia que tais coisas não eram
coisas do mundo acadêmico, mas, desde sempre, coisas do desejo do homem
pensante. A filósofa nos fala de um pensar pulsante, de um questionar constante,
que, por conta dessa indagação, havia rompido o fio da tradição e redescoberto o
passado. Um pensamento que não se restringia à releitura de textos, porém, se
colocava em profundo diálogo com o legado deixado trazendo à tona os tesouros
do passado de forma totalmente revitalizada, de tal modo, que o que emerge é
totalmente outro. Segundo a pensadora, a tradição faz uma ordenação da história
da filosofia de modo a torná-la uma sucessão de etapas, uma ordenação
cronológica das coisas. Ao romper com esse fio, Heidegger faz com que a história
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da Filosofia fique desobrigada da visão do autor em uma perspectiva histórica e


pode, com isso, trazer as questões para a contemporaneidade. Essa ruptura é de
certa forma inquietante, mas, ao mesmo tempo, libera o contato direto com o
pensar. Arendt nos adverte: “há um mestre: talvez se possa aprender a pensar.”13

Safranski nos conta que todo esse rumor gerou a imagem do rei secreto,
uma reputação que tomou vulto muito antes da publicação de Ser e Tempo (GA2),
em 1927. Desde o início da década de 1920, em Marburg, Heidegger já era
considerado secretamente o rei da filosofia na Alemanha. Todavia, esse rei não se
movia no mundo das aparências, seu trajar era simples como o de um zelador ou
um técnico, seu reino é o do pensamento; um reino totalmente oculto ao mundo,
mas que, ao mesmo tempo, se estende sobre o pensar de tantos outros e determina
tão marcadamente a fisionomia espiritual do séc. XX. Arendt mesmo indaga:
“Pois como se poderia explicar de outra forma a influência única, muitas vezes

importante homenagem a Martin Heidegger. A versão que Hannah Arendt transmitiu no rádio e
enviou a Heidegger por carta por ocasião de seu aniversário diverge de forma insignificante da
versão publicada. (cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger:
Correspondência 1925/1975, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 p.259.)
12
Grifo da autora.
13
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, 1987, p.223.
16

subterrânea do pensar e ler pensante heideggerianos que se ultrapassa tão


amplamente o círculo dos alunos e o que geralmente se entende por filosofia?”.14

Para a pensadora, o pensamento heideggeriano não se situa na dimensão


contemplativa buscando um fundamento último, mas lança-se na profundeza
abissal para buscar caminhos. Trata-se de um pensar que é atividade pura e, por
certo, põe tarefas para si, não metas e fins; um pensar que teve como único
resultado o fato de ter desmoronado a cristalizada estrutura da metafísica que jazia
descrente há muito tempo.

O aprender a pensar, ao qual Hannah Arendt se refere, se põe para


Heidegger como uma experiência que acontece não pela vontade ou necessidade
de saber, mas como um movimento vivificante, onde pensar e viver se unificam.
A autora nos fala de um pensar apaixonado que se presentifica pelo simples fato
de estar no mundo e que pensa sobre tudo que é, sem, com isso, se prender a
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conceitos e sistemas, mas no sentido de deixar marcas para o caminho do


pensamento, trilhas que indicam e apontam novas direções para o pensar – um
pensar que quebra a visão habitual das coisas e nos libera a uma nova visão, uma
nova paisagem.

Referimo-nos, por fim, com Arendt, a um pensar que se espanta diante do


simples, como dizia Platão no Teeteto, e que permite fazer do espanto uma
morada. Um habitar sereno e silente que torna o que estava ausente, presente; o
que estava distante, próximo. O espanto como morada envolve uma tomada de
distância do nosso envolvimento imediato com as coisas, não de forma a demarcar
uma sina, mas, a possibilidade de um caminho. Em comunicação posterior a
Heidegger, a filósofa ainda acrescenta:
[sua] vida e sua obra nos ensinaram o que é PENSAR e [...] os
escritos permanecerão paradigmáticos para tanto. Paradigmáticos
também para a coragem de se arriscar no interior do
extraordinário ainda não desbravado, de se expor
completamente ao ainda impensado que precisa ser peculiar
àquele que não se dedicou senão ao pensamento e a sua
profundeza.15

14
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, 1987, p.223.
15
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.140. Maiúscula da autora.
17

O pensamento de Heidegger é, de fato, tão paradigmático para Hannah


Arendt que alguns anos mais tarde, em A vida do espírito16, obra publicada
postumamente em 1978 – Arendt faleceu em 1975, antes de concluir o livro –,
vemos a epígrafe que abre o primeiro volume, com mais de 160 páginas dedicadas
ao pensar, com os dizeres de Heidegger nos apontando caminhos para o
pensamento. Caminhos esses que já estavam bem demarcados em Que chamamos
pensar?. Diz Heidegger:
O pensar, à diferença das ciências, não produz nenhum saber. O
pensar não traz nenhuma sabedoria de vida utilizável. O pensar
não soluciona nenhum mistério do mundo. O pensar não
empresta imediatamente quaisquer forças ao agir.17

Ali, a orientação para o pensamento proposta por Heidegger nos


descortina uma visão do pensar como uma experiência que se dá livre de um solo
seguro, uma definição que somente é vislumbrada “quando já não lhe atribuímos
alguma função cognitiva ou instrumental ou quando já não esperamos dele uma
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resposta ou uma norma para a vida prática”, diz Eduardo Jardim no prefácio à
edição brasileira de A vida do espírito. A mesma citação encontramos na palavras
de Rüdiger Safranski: “Heidegger está convencido de que seu pensar é desse tipo.
Ele não conduz a um saber como as ciências, não traz nenhuma sabedoria útil de
vida, não resolve enigmas do mundo, não confere diretamente forças para agir,”18
mas se move em uma transitividade direta, o que significa dizer que Heidegger
pensa algo e não sobre algo.19 Nos arriscaríamos mesmo a falar de um pensar
intransitivo, na medida em que nos referimos a um pensar que se move em sua

16
O livro A vida do espírito foi publicado em 1978, entretanto, o capítulo sobre “O Pensar” foi
apresentado de forma abreviada nas Gifford Lectures, na Universidade de Aberdeen na Escócia,
em 1973. (Cf. Mary McCarthy, “Nota da Editora”, in: Hannah Arendt, A vida do espírito, Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000, p.xix.) Sabemos que a reflexão sobre o pensar proposta por
Arendt neste escrito tem como motivação inicial a investigação da relação entre o mal e a ausência
de pensamento – relacionados aos crimes de Eichmann – mas, há também o interesse em fazer
uma análise do estatuto do pensamento, atividade entendida pela tradição como pura
contemplação. Eduardo Jardim nos coloca: “em desacordo com essa posição, Hannah Arendt
entendeu que pensar é uma atividade. Porém, essa atividade não se confunde com nenhuma outra.
Por essa razão, um dos propósitos de A vida do espírito foi examinar o caráter singular da
atividade do pensar.” (cf. Eduardo Jardim, Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo
início, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.116.)
17
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?, (tr.) [em elaboração] Edgar Lyra, a partir de Was
hei!t Denken?, Tübingen: Max Niemeyer, 1954. p.134 e Hannah Arendt, A vida do espírito, 2000,
“Introdução”, [numeração não demarcada].
18
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p. 413.
19
Cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.133.
18

própria questão, que está sempre a caminho do próprio pensar – um pensar que
pensa.

Além da importância do pensar de Heidegger evidenciada através dos


escritos de Hannah Arendt, essa breve visada também tornou possível vislumbrar
o caminho filosófico que este pensar sempre buscou trilhar: o de um outro pensar;
fato que nos encaminha para uma compreensão da trajetória do pensamento de
Heidegger ao dialogar com Nietzsche e Parmênides em Que chamamos pensar?.
Nos direcionemos, pois, ao tempo dos cursos em questão.

1.2. Um filho do tempo

Os anos que antecedem o período do curso Que chamamos pensar? foram,


por certo, extremamente difíceis para Heidegger. Com o fim da Segunda Grande
Guerra Mundial, não só a pátria, mas a própria vida e reputação do filósofo
encontravam-se em ruínas. Heidegger estava proibido de lecionar, e apesar de
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discutir-se uma espécie de aposentadoria com direito a ensinar, havia uma grande
resistência na universidade de Freiburg quanto ao seu retorno ao mundo
acadêmico. Houve até mesmo a ameaça de confiscarem sua biblioteca particular
para suprir a biblioteca da Universidade de Münster. Além disso, seus filhos Jörg
e Hermann encontravam-se prisioneiros de guerra do regime Soviético, servindo
de mão de obra na reconstrução do país de Stalin. O espírito alemão, que vivera
há pouco a esperança de uma hegemonia, encontrava-se apático, sem vida.

No ano de 1946, Heidegger decidiu se retirar para sua cabana em


Todtnauberg por alguns meses. Consumido pelo interrogatório do comitê de
desnazificação no ano anterior, o filósofo sofreu um colapso mental e chegou a se
internar por três semanas no Instituto Baden, em Badenweiler, para se tratar.
Heidegger, por certo, pagou caro por seu envolvimento com o Partido Nacional-
Socialista, em 1933. Todavia, mesmo recluso e oprimido, o pensar de Heidegger
não se deteve. Enquanto para muitos, o filósofo “estava colhendo o que
semeou”20, segundo Safranski, sua semeadura filosófica haveria de ressurgir
poderosamente. É nesses longos anos de ausência da vida acadêmica – sabemos
que Heidegger foi privado de lecionar por seis anos – que o filósofo escreveu, por

20
Grifo do autor, ao citar a forma como Robert Heiss, colega de faculdade de Heidegger, se refere
ao filósofo em carta a Jaspers.
19

exemplo, a carta “Sobre o humanismo” (GA9), uma resposta à pergunta


fundamental elaborada por Jean Beaufret: Comment redonner une sens au mot
“Humanisme”?. Uma resposta tão fundamental que, segundo Emmanuel Carneiro
Leão,
a discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão
do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência
Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica,
redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de
questioná-la em seus fundamentos.21

Em verdade, essa carta deve muito de seu conteúdo a Sartre que declarara
seu pensamento completamente destituído de qualquer amparo metafísico, sendo
o seu existencialismo um novo humanismo, o que levou Heidegger a refletir se no
humanismo e existencialismo sartreanos haveria mesmo um desamparo
metafísico. Na carta, Heidegger se refere a algo da ordem de uma ética original
que dispensa qualquer fundamento normativo, mas é capaz de direcionar o
homem a um novo modo de viver. Um pensar que lança um outro olhar sobre o
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mundo – um pensar que deixa o ser, ser – e, neste sentido, é esteio para todo o
comportamento. Para Safranski, apesar de Heidegger não se considerar um
orientador político, mas apenas um pensador, a carta “Sobre o humanismo” serve
“[...] como tentativa de recapitular seu próprio pensar e determinar o seu lugar
atual, como abertura de um horizonte onde se visualizam certos problemas da vida
em nossa civilização.”22

Outro abrigo para o pensar de Heidegger teve lugar ao norte da Alemanha,


nas conferências proferidas no Clube de Bremen, em 1949. Essas conferências
foram organizadas por influência da família de seu aluno e historiador Heinrich
Wiegand Petzet e serviram como precursoras do pensamento posterior de
Heidegger, quando o filósofo adentrou mais incisivamente a questão da técnica.
Além do clube de Bremen, as noites de quarta-feira no sanatório de Bühlerhöhe,
logo acima de Baden-Baden, e a academia da Baviera, no início de 1950, em
Munique, também foram palco para Heidegger exercer o seu mais alto pensar. Um
período em que o isolamento imposto ao seu pensamento foi quebrado. Como se
esses lugares e o público, muitas vezes com pouca ou nenhuma tradição

21
Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.)
Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.9.
22
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, pp.425-426.
20

intelectual, possibilitasse a ousadia do pensamento do filósofo em meio aos


tempos sombrios do pós-guerra. Segundo Safranski,
Heidegger escolhera aquele fórum onde sentia um ar livre para
iniciar ali o projeto-piloto de sua futura filosofia [...]. Um relato
[publicado] poucos dias depois da primeira conferência, diz que
a cidade podia sentir-se orgulhosa porque Heidegger viera a
Bremen “para ousar a mais audaciosa manifestação já feita do
seu pensar”.23

Uma particularidade ainda em relação a esse período encontramos em


Petzet, que menciona uma carta de Heidegger agradecendo o vinho recebido de
Bremen como uma forma de celebrar o retorno do filósofo às salas de aula em
1951. Enfatiza-se, com isso, o quanto aquela acolhida em Bremen tinha
significado para o filósofo. Diz Heidegger:
[...] obrigado pelo presente e pelo pensamento por trás dele. Hoje
me lembrei particularmente dos amigos de Bremen, que podem
afirmar serem os primeiros a terem arriscado deixando-me falar
em público há alguns anos atrás. Mais uma vez, torna-se claro
para mim o quão essencial é a palavra falada, mesmo que esta
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palavra seja recebida por poucos – e, de fato, desconhecidos –


entre tantos.24

1.2.1. Um instante no tempo

Voltemos nosso olhar agora para outro aspecto que o retorno à


universidade e o próprio texto nos trazem. Sabemos que esse é um momento
importante na vida do filósofo. Heidegger, por certo, amargou suas escolhas,
chegando mesmo a reconhecer sua empreitada política como um “erro” e seu
reitorado, “uma grande besteira”25. No entanto, o filósofo nunca veio a público
para falar sobre esse capítulo de sua vida. Sabemos também, por outro lado, que
seu pensamento, apesar de se ocupar com a questão do ser, nunca se afastou do
seu tempo, pois é no homem que o destino do ser se cumpre. Há, portanto, uma
imbricada relação entre o ser, a história e o homem bastante presentes nos
caminhos do pensar do filósofo, o que nos leva a indagar se não haveria alguma
relação do texto Que chamamos pensar? com o tempo e a história do próprio
Heidegger.

23
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.456.
24
Heinrich Petzet, Encounters and dialogues with Martin Heidegger 1929-1976. Chicago: The
University of Chicago Press, 1993, p.63. Grifo do autor. Tradução nossa.
25
Cf. François Fédier, Anatomia de um escândalo, Petrópolis: Vozes, 1989, p.164.
21

Como vimos há pouco, as conferências no Clube de Bremen, em


Dezembro de 1949, se situam já na esfera do que estaria no porvir do pensar do
filósofo. Não só isso, é ali que pela primeira vez encontramos explicitamente uma
relação direta da fala de Heidegger com os acontecimentos do seu tempo. No
primeiro ciclo de quatro conferências intituladas “Visão do que é” (Einblick in das
was ist), diz o filósofo na palestra denominada “Ge-stell” (Das Gestell):
A agricultura é agora uma indústria alimentícia motorizada – em
essência o mesmo que a fabricação de cadáveres nas câmaras de
gás e campos de extermínio, o mesmo que a fome das nações, o
mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio.26

Segundo Timothy Clark, essa afirmação aparentemente se insere na conferência


de forma improvisada.27 Todavia, ainda que Heidegger tenha falado
espontaneamente, ao afirmar que a agricultura moderna, o holocausto e a bomba
de hidrogênio têm a mesma essência, o filósofo estaria se referindo ao fato de que
esse conjunto de coisas revelam um mundo em que a tecnologia fundamenta a
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maneira como as coisas aparecem. Esse entendimento nos aponta para o germe da
questão sobre o “mais problemático do nosso problemático tempo”28, temática
enfaticamente trabalhada por Heidegger nas primeiras preleções de Que
chamamos pensar?.

Todavia, nem todos vão entender a fala de Heidegger como uma crítica ao
Nazismo. De acordo com Julian Young, todo o criticismo à filosofia do pós-
guerra de Heidegger pode ser associado ao silêncio em relação ao seu
envolvimento com o Partido Nacional-Socialista. Para o autor, o silêncio de
Heidegger não é um silêncio significativo, daquele que por vezes diz mais do que
as próprias palavras podem dizer. Mas, nas palavras de Jean-François Lyotard:
“Um silêncio mudo que não deixa nada ser ouvido. Um silêncio de chumbo.”29
Para Young, esse silêncio poderia ser facilmente identificado como teimosia,
orgulho e, até mesmo, “uma ‘psicologia nacionalista’ de um homem que recusa a

26
Martin Heidegger apud Timothy Clark, Martin Heidegger, Nova York, NY: Routledge, 2002,
p.124.Tradução nossa.
27
O autor sugere o improviso baseado no fato de que, mais tarde, quando o texto reapareceu a
frase havia sido cortada.
28
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6. Grifo do autor.
29
Jean-François Lyotard, Heidegger and "the jews”, Minneapolis: University of Minnesota Press,
1990, p.52. Tradução nossa.
22

ceder à correção política da ‘moralidade do vencedor’”30. De acordo com Lyotard,


o silêncio de Heidegger tomou essa proporção, exatamente, por se tratar de um
grande pensador. Uma proporção direta entre a grandeza do pensar e o tamanho
do erro. Todavia, segundo Fédier, esse não é o silêncio estéril de um homem
desonrado. Pelo contrário, seu comportamento denota o de um homem que se
sentiu genuinamente caluniado e seu pensar se torna extraordinariamente mais
fecundo.

Apesar dessas conferências terem gerado controvérsias, o silêncio de


Heidegger foi quebrado na conhecida entrevista ao Der Spiegel, acontecida em
1966, mas somente publicada postumamente, a pedido do próprio filósofo. Ali,
Heidegger explicou o porquê do seu envolvimento com o Partido Nacional-
Socialista e o motivo que o levou a assumir a reitoria. A justificativa encontrava-
se na falta de autonomia da universidade, entendida como uma organização
meramente técnica. O filósofo diz que “[...] pretendia que a universidade se
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renovasse por meio de uma reflexão própria e assim conquistasse uma posição
firme diante do perigo da politização da ciência [...]”.31 Safranski acrescenta que,
naquele tempo, Heidegger acreditava que na discussão com o nacional socialismo
haveria espaço para uma renovação, para novos rumos. Todavia, segundo Fédier,
a partir do momento em que Heidegger percebeu que o caminho do regime de
Hitler seguia em direção oposta ao seu pensar, o trabalho do filósofo teria buscado
enraizar ainda mais o nexo entre a história e a filosofia, de modo a criticar as
ideologias do regime. É o próprio Heidegger que, se referindo ao período
posterior à sua renúncia, corrobora esse pensamento. Diz o filósofo:
após a renúncia, limitei-me às minhas tarefas de ensino. No
semestre de verão de 1934, lecionei “Lógica”, no semestre
seguinte 1934/35 dei as primeiras preleções sobre Hölderlin. Em
1936 começaram as preleções sobre Nietzsche. Todos que
souberam escutar, ouviram que se tratava de uma tomada de
posição frente ao nazismo.32

30
Julian Young, Heidegger, Philosophy, Nazism, Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1997, p.173. Tradução nossa. O autor se refere a Carl Schmitt, que justifica seu próprio silêncio
como o de alguém que se comportou honradamente e não se retrataria diante daqueles inclinados a
apenas o destruírem.
31
Martin Heidegger, “Heidegger e a política. O caso de 1933”, in: Revista Tempo Brasileiro,
N°50, julho-setembro, 1977, p.71.
32
Ibidem, p.76.
23

Um testemunho que reforça essa atitude do filósofo é o de Walter Biemel,


aluno de Heidegger de 1942 a 1945, que diz:
Heidegger era um dos muito raros professores a jamais começar
seus cursos pela “saudação alemã” (“Heil Hitler”), apesar de ser
administrativamente obrigatória. Seus cursos... faziam parte dos
muito raros realizados onde se arriscavam observações contra o
nacional-socialismo. Tive muitas conversas naqueles tempos
com Heidegger que nos teriam custado a cabeça. Está totalmente
fora de dúvida que ele era um adversário declarado do regime.33

E acrescenta mais adiante:


[...] quando fui convidado à sua casa de Zähringen, a conversa
girou em torno da situação política e militar. Heidegger falou da
direção do partido como direção de criminosos; a continuação da
guerra era um absurdo. A seguir, vim a conhecer outros
professores. Em nenhum deles encontrei uma rejeição tão clara e
nítida do regime. Quanto a mim, eu não ousava falar com
ninguém tão abertamente contra o nacional-socialismo.34

Mas, qual seria a relação entre o que foi exposto e o que ora buscamos
retratar? Segundo George Pattison, o escrito Que chamamos pensar? oferece não
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só uma retrospectiva sobre a vida pregressa de Heidegger, como também esboça


parte daquilo que será interesse do filósofo até sua morte, em 1976. Para Pattison,
o erro político do envolvimento de Heidegger com o nacional-socialismo é
decisivo para o entendimento de sua filosofia posterior. Não que sua filosofia se
torne política, mas sua inaptidão política, por certo, reverbera em seu pensamento.
Essa ideia é reforçada por Fédier quando diz:
falar de seu reitorado, que ele foi “a maior estupidez” de sua
vida, isto não significa precisamente que Heidegger minimiza
seu erro, mas ao contrário, que ele lhe dá sua dimensão filosófica
extrema: é um erro filosófico – em que a própria filosofia está
em jogo. A consequência rigorosa disso é que, uma vez
reconhecido o erro, o trabalho deve primeiro retratar aquilo que
tornou o erro possível – em outros termos: Heidegger deve
mudar seu pensamento.35

Ainda segundo Fédier, não se pode atribuir a mudança de pensamento à


questão política. Todo esse pensar já se encontrava latente desde antes de Ser e
Tempo e já começara a surgir com a conferência “Sobre a essência da verdade”
(GA9).36 Todavia, a experiência do reitorado teria sido fundamental para

33
Walter Biemel apud François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.161.
34
Ibidem, p.161.
35
Ibidem, p.164. Grifos do autor.
36
A primeira edição de “Sobre a essência da verdade” foi impressa em 1943 e encerra o texto de
uma conferência pública que foi proferida diversas vezes com o mesmo título desde 1930. (cf.
24

Heidegger compreender que ele foi longe demais e assumiu riscos acima do
“razoável”.37

1.2.2. O fio da meada

Fica clara para nós a posição de Heidegger quanto ao equívoco político do


regime político nazista e a medida do seu real envolvimento com o ideário
nacional-socialista de Hitler. Mas, e em relação a si próprio? Haveria em
Heidegger uma motivação outra do que a de tornar a universidade uma trincheira
do pensamento como ele mesmo justificara?

Será através das palavras de Hannah Arendt que encontraremos novas


pistas. A filósofa nos alerta para a relação perigosa entre o reino do pensamento e
o “mundo das coisas humanas”. Fala-nos das idas de Platão à Sicília “a fim de
ajudar o tirano de Siracusa” e da tendência para a tirania, à exceção de Kant, de
quase todos os grandes filósofos. Para a Arendt, Heidegger também se inseriu
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nesse modo destrutivo ao se associar a Hitler e


se deixou levar certa vez pela tentação de mudar sua morada e de
se ‘interligar’ com o mundo das coisas humanas. E o que
aconteceu com ele foi pior do que com Platão, porque o tirano e
suas vítimas não se encontravam no além-mar, mas na sua
própria terra. [...] O que veio à tona para ele através daí foi a
descoberta da vontade enquanto vontade de vontade e com isso
da vontade de poder.38

Em Safranski também encontramos o questionamento sobre a suscetibilidade de


Heidegger ao poder. Para o filósofo e historiador,
[...] o problema do silêncio heideggeriano não reside em ter
calado sobre Auschwitz. Ele silenciou filosoficamente sobre
outra coisa: sobre si próprio, sobre a sedução do filósofo pelo
poder. E – como tantas vezes na história do pensamento – ele
não faz a pergunta: Quem sou afinal, quando penso? O pensante
tem pensamentos, mas às vezes é o inverso: os pensamentos o
tem. O quem do pensar se transforma. Quem pensa as grandes
coisas pode facilmente cair na tentação de julgar-se um grande
acontecimento.39

Ernildo Stein, Nota do Tradutor, in: Martin Heidegger, Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.149.)
37
Grifo do autor.
38
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.139.
39
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.489.
25

Aprendemos com o próprio Heidegger que a vontade de poder é uma


essência que se opõe ao pensamento. Sobre isso, Arendt acrescenta que o próprio
filósofo percebeu, antes de nenhum outro, a incongruência dessa essência em
relação ao pensar e o quanto ela atuava de forma destrutiva sobre si mesmo. O
pensar habita uma outra morada, se assim podemos dizer. A filosofia mesma,
desde seus tempos mais remotos, nos fala que a morada do pensamento é
silenciosa e distante do mundo. Lembremo-nos da imagem de Tales de Mileto que
cai dentro de um poço enquanto contemplava as estrelas, fazendo, com isso, que
nos acostumássemos com a ideia de que os filósofos se cercam apenas de
pensamentos improdutivos, que os afastam das coisas do mundo. Todavia, como
vimos anteriormente, o pensar de Heidegger não estava fora do mundo. Seu
pensar fervilhava exatamente sobre as coisas que, estarrecido, o mundo acabara de
ver.

De fato, a sedução pelo poder é uma questão que se põe se pensamos nos
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caminhos que Heidegger escolheu trilhar. Todavia, não encontramos uma


concordância deliberada do próprio filósofo quanto a isso. Sua explicação ao Der
Spiegel, como vimos, prende-se a uma motivação nobre. Mas, parece-nos possível
pensar que ao se voltar para a vontade de poder de Nietzsche, Heidegger
estivesse não só querendo fazer frente ao nazismo, mas também reconhecendo
essa força como a armadilha que enredou seu próprio pensar. Segundo Arendt:
“No entender de Heidegger a vontade de governar e de dominar é uma espécie de
pecado original, do qual ele mesmo se achou culpado quando tentou lidar com o
seu breve passado no movimento nazista.”40 Seria, então, possível falarmos em
uma reverberação entre a obra e a vida de Heidegger?

De acordo com Fédier, essa ressonância é de fato complexa, mas não tão
dissonante a ponto de falar-se em uma incongruência, o que nos faz assentir para a
possibilidade de alguma relação entre ambas. Safranski nos conta que a vida e a
obra estão tão imbricadas que mesmo rejeitando tal ligação, Heidegger desejava
“viver para a filosofia e talvez até desaparecer na própria filosofia.”41 Como
entender, então, essa primazia da obra? Para Fédier,

40
Hannah Arendt, A vida do espírito, 2000, p.316.
41
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.27.
26

quando se trata de um autor [...] que deliberadamente coloca a


obra acima de sua própria vida – supondo-se que por “obra”
entenda-se bem aquilo a que chega a possibilidade
essencialmente humana de fazer vir a ser aquilo que sem ela
jamais se realizaria – não somente a “vida” passa para segundo
plano, mas a relação do biógrafo com a obra é uma relação
imediata [...].”42

Sobre isso, o próprio Heidegger nos adverte: “Não é acaso sobretudo a obra que
torna possível uma interpretação da biografia?”43

É, pois, com esse pano de fundo que vamos encontrar Heidegger no ano de
1951, quando finalmente lhe será concedido o direito de retornar às salas de aula
da Universidade de Freiburg. Nos encaminhemos agora, mesmo que brevemente,
para algo que julgamos digno de nota nesse retorno à universidade – o ofício de
ensinar.

1.3. O dar-curso-ao-aprender
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As aulas que perfazem o texto Que chamamos pensar? têm um sentido


particular na carreira de Heidegger, pois, como dissemos, foi o primeiro curso
dado pelo filósofo na universidade depois da interdição imposta pelo programa de
desnazificação, como também, o último como professor assalariado antes da sua
aposentadoria, marcando formalmente o fim da sua carreira acadêmica.
Entendemos que esse retorno deva ter reverberado muitíssimo no espírito de
Heidegger. Afinal, lecionar era um grande prazer para o filósofo. Glenn Gray na
introdução à tradução para a língua inglesa de Que chamamos pensar? diz:

o que este longo período de interrupção na atividade docente


deve ter lhe custado não é difícil de imaginar, pois Heidegger era
acima de tudo um professor. Não é por acaso que quase todas as
suas publicações desde Ser e Tempo (1927) foram primeiramente
aulas ou seminários. Para ele a palavra falada era muito superior
44
à escrita [...]”.

Entendemos, com isso, que apesar da ebulição do pensamento de Heidegger não


ter cessado no período do pós-guerra em virtude de sua suspensão, e mesmo
ministrando palestras, era a sala de aula que lhe trazia grande satisfação. Sobre o
retorno de Heidegger à universidade, Hugo Ott descreve:

42
François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.34.
43
Martin Heidegger apud François Fédier, ibidem, p.33.
44
J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, New York, NY:
Harper & Row, 1968, p.xvii. Tradução nossa.
27

quando Heidegger lecionou, novamente e em público [...] – um


triunfo silencioso – o auditório encheu-se de alunos. Um desejo
acumulado de saber, bem como a curiosidade e a saudade da
expressão filosófica de Heidegger, tornaram-se notórios. Devia-
se ter ouvido Heidegger quando perguntava: o que é pensar?”.45

Vários são os relatos de ex-alunos, tais com Gadamer, Arendt, Petzet,


entre tantos outros, que falam da presença, do olhar e do pensar penetrantes que
Heidegger exercia sobre todos. Karl Rahner credita a Heidegger o título de
“mestre”, o único a quem poderia chamar reverentemente “professor”, e aquele
que o “ensinou a ser capaz de procurar em todas as coisas o ‘segredo
inefável’[...].”46 Walter Biemel descreve que Heidegger incitava os alunos a
pensarem por conta própria e de maneira profunda, não só se preocupando com a
questão filosófica, mas com toda a época e suas diferentes dimensões.
Encontramos o seguinte relato de Biemel:
aqueles que conheceram Martin Heidegger somente através de
seus escritos, não podem ter uma ideia do seu estilo único de
ensinar. Mesmo com os iniciantes, ele era capaz de rapidamente
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colocá-los no pensamento, não para que aprendessem vários


pontos de vista ou reproduzissem o que leram, mas para que
entrassem no movimento do pensamento. Parecia que, como se
por algum milagre, a prática socrática viesse à vida novamente.47

Para Biemel, foi graças à habilidade pedagógica de Heidegger que ele aprendeu o
significado de “entrar na mente de um filósofo” ou “filosofar-com”, um modo de
caminhar no texto filosófico no sentido de entendê-lo em sua plenitude e
abrangência.48

Permitimo-nos este desvio em nosso caminho, não só porque é nosso


desejo enfatizar a importância do retorno de Heidegger ao mundo acadêmico, mas
também porque o ofício de “dar-curso-ao-aprender” foi lugar para o pensamento
de Heidegger nas aulas inaugurais de Que chamamos pensar?. Ali, o filósofo
debruça-se sobre a tarefa do professor e nos fala que “ensinar é ainda mais difícil

45
Hugo Ott, Martin Heidegger - A caminho de sua biografia, Lisboa: Instituto Piaget, 1992,
p.341. Entendemos que a frase final de Ott seja a própria pergunta que nomeia o curso Was hei!t
Denken?, aqui traduzido por Que chamamos pensar?.
46
Paul Edwards, Heidegger’s confusions, Amherst, NY: Prometheus Books, 2004, p.13. Grifos do
autor. Tradução nossa.
47
Walter Biemel, Martin Heidegger: An illustrated study, New York, NY: Harcourt Brace
Jovanovich, 1976, p.7. Tradução nossa.
48
Cf. Walter Biemel, “Le professeur, le penseur, l’ami”, in: Michel Haar (ed.), Cahier de L’Herne
no. 45: Heidegger, Paris: Editions de L’Herne, 1983, p.128. Grifos do autor.
28

que aprender”49, porque o autêntico professor não ensina nada que não seja o
próprio aprender; ideia que faz ressonância com o relato de Biemel na questão da
autonomia que Heidegger buscava de seus alunos.

O dar curso ao aprender deve se ater a um constante convite ao aprender:


aprender a deixar os alunos aprenderem e aprender a deixar a aprendizagem
acontecer. O deixar aprender circunscreve-se a um acontecimento que se dá na
genuína relação professor-aluno e que se atém, sobretudo, a um consentimento,
uma abertura para que o aprender se instale. Diz Heidegger:
na relação entre o professor e aqueles que estão aprendendo,
quando verdadeira, não entra em jogo nem a autoridade do sabe-
tudo, nem a influência autoritária daqueles que detém cargos. Por
isso, permanece uma grande coisa tornar-se um professor, algo
que é totalmente diferente do que tornar-se um docente famoso.50

Há, pois, nesse deixar aprender, algo de um conceder, de “deixar a coisa


acontecer”51 por parte do professor, que se põe como fundamental e que
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possibilita uma apropriação autêntica – o aprender em si mesmo. É nesse sentido


que entendemos o dar curso ao aprender de Heidegger: lugar para o despertar de
um pensar que, exatamente por sua relevância, inicia o curso que ora nos
propomos a examinar.

1.4. A caminho de Que chamamos pensar?

O que encontramos na trajetória das preleções de Que chamamos pensar?,


além do encaminhamento para as questões filosóficas ligadas à dinâmica interna
do pensamento de Heidegger – que serão abordadas no capítulo seguinte –,
também nos remete diretamente às necessidades do momento histórico.
Concordamos com as palavras de Otto Pöggeler de que o silêncio de Heidegger
não significa que o filósofo tivesse se tornado incapaz de se relacionar com a
realidade, muito pelo contrário, o pensar solitário do filósofo buscava “encontrar
as pegadas da dinâmica arrebatadora dos novos tempos e com isso o motivo mais
profundo do fracasso das próprias ambições político-filosóficas.”52

49
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.16.
50
Ibidem, p.16.
51
Grifo nosso.
52
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.346.
29

Como vimos anteriormente, o próprio Heidegger confessara haver em sua


filosofia uma crítica velada ao regime de Hitler. Safranski acrescenta que mesmo
sabendo que estava sob a vigilância da Gestapo e que suas críticas causariam
entraves na publicação de seus escritos, Heidegger não se deteve. Mas, de que
forma podemos entender essas críticas? Para Heidegger, a vontade de poder se
manifesta como uma força que se intensifica e arrasta o homem para uma
realidade embotada, totalmente à mercê da ideologia dominante, que acaba por
reforçar a própria personificação do niilismo. Com isso,
a vontade de poder reivindicada pelos ideólogos nazistas não é
superação, mas, aperfeiçoamento do niilismo [...]. Assim, as
conferências sobre Nietzsche se tornam um ataque frontal à
metafísica decadente do racismo e do biologismo. Heidegger
admite a aplicabilidade parcial de Nietzsche para a ideologia
dominante – e com isso afasta-se dela. De outro lado, tenta ligar-
se com Nietzsche, mas de modo a apresentar seu próprio pensar
como uma superação de Nietzsche – nas pegadas de Nietzsche.53

Essas pegadas o direcionam a Assim falou Zaratustra, escrito de Nietzsche que


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compõe as preleções de inverno de 1951 de Que chamamos pensar?.54 Heidegger


entende que ali Nietzsche manteve para si suas melhores ideias, uma vez que o
mundo ainda não estava pronto para acolhê-las. Segundo Safranski, o desejo de
Heidegger é não somente compreender Nietzsche melhor do que o próprio
Nietzsche se compreendeu, mas, sobretudo, ultrapassá-lo em direção ao
pensamento do ser.

A relação de Heidegger com Nietzsche nos evidência ainda um outro


aspecto importante. Além de ajudar a formular críticas ao sistema político de
Hitler e suas consequentes maquinações tecnológicas, Nietzsche trazia ainda a
vivificação da mais pura identidade alemã. O dilema deixado por Nietzsche, de

53
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.356. Em
acréscimo à compreensão de Safranski, encontramos em Sluga que: “o Nietzsche de Heidegger
seria um político “anti-política” e as lições políticas a serem derivadas dele deveriam ser, por sua
vez, anti-políticas por natureza. Onde Baeumler e Jaspers tinham usado Nietzsche para falar a
favor ou contra o nacional-socialismo, Heidegger buscou separar o nacional-socialismo realmente
existente da nova e idealizada alternativa de Hitler. Através do exame de Nietzsche, o filósofo não
só tentou atacar o sistema vigente, comprometido apenas com uma vontade de poder vazia e com a
conseqüente corrida em direção à maquinações tecnológicas, mas também, com a ajuda de
Nietzsche, procurou ao mesmo tempo proclamar a mais pura identidade nacional e social alemã.”
Tradução nossa. (cf. Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A
companion to Heidegger, 2005, p.113. Tradução nossa.)
54
Heidegger, no “Prefácio” escrito em 1961 à edição de Nietzsche I, declara: “esta publicação
pode propiciar ao mesmo tempo um olhar sobre o caminho de pensamento que percorri desde
1930 até a Carta sobre o humanismo [...]”, em 1946. (cf. Martin Heidegger, in: Nietzsche I. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.4.)
30

que a questão do ser é um mero “vapor e erro” para o homem moderno, estava de
alguma forma ligada ao tema da identidade alemã, e Heidegger entende que
Hölderlin é o único que pode ajudar nesse ponto.

Para o entendimento da questão da identidade alemã percebida por


Heidegger, Hans Sluga nos esclarece que “Nietzsche, ou melhor, Nietzsche em
conjunto com Hölderlin , foram para Heidegger em meados dos anos 1930 e 1940,
os guias a uma concepção mais profunda do que significa ser alemão.”55 Para o
autor, essa questão já estava presente em Heidegger desde seu discurso de posse à
Reitoria e, ainda mais abertamente, desde o escrito Introdução à metafísica
(GA40). Nesse último trabalho, Heidegger argumentou que o dilema da vida
moderna e ocidental manifestou-se mais severamente na Alemanha, “a terra do
meio”. O filósofo teria declarado dramaticamente que o povo alemão estando no
centro, sofria a pressão mais intensa. Diz Heidegger:
[...] o nosso povo, as pessoas mais ricas em vizinhos e, portanto,
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as pessoas mais ameaçadas de extinção, e por tudo isso, as


pessoas mais metafísicas. [...] Se a grande decisão sobre a
Europa não é a de percorrer o caminho da aniquilação – então,
esta decisão pode surgir apenas através do desenvolvimento de
novas forças espirituais do centro.56

O filósofo continua,
tal desenvolvimento exige o reconhecimento de que Nietzsche
diagnosticou corretamente a questão do ser como um mero vapor
e erro para o homem moderno. [...] O julgamento de Nietzsche, é
claro, entende-se em um sentido puramente desdenhoso [...].
Nós, por outro lado, devemos recuperar essa questão contra toda
a tradição metafísica.57

Para Sluga, Heidegger estava convencido de que só dessa forma poderia ser salva
a terra do meio e o dilema do homem moderno ser resolvido. A questão do ser e a
questão da identidade alemã pertenciam, assim, misteriosamente juntas. Nesse
sentido, o confronto entre Nietzsche e Hölderlin torna-se recorrente e necessário58,

55
Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to
Heidegger, 2005, p.113. Tradução nossa.
56
Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.113. Tradução nossa.
57
Ibidem, p.113. Tradução nossa.
58
Sobre a ordem dos cursos sobre Nietzsche e Hölderlin, Sluga nos aponta: Hölderlin’s Hymns
“Germania” and “The Rhine”(1934-1935); Nietzsche: The Will to Power as Art (1936 -1937);
Nietzsche’s Basic Metaphysical Position in Occidental Thought: The Eternal Recurrence of the
Same (1937); On the Interpretation of Nietzsche II: Untimely Meditations: One, The Use and
Abuse of History (1938-1939) ; Nietzsche’s Doctrine of the Will to Power as Knowledge (1939) ;
Nietzsche: European Nihilism (Second Trimester 1940); Announced but not given: Nietzsche’s
Metaphysics. Instead: Hölderlin’s Hymn “Remembrance”(1941-1942); Hölderlin’s Hymn “The
31

não só na medida em que recoloca a questão do ser, mas também porque aponta
caminhos para um novo e mais profundo modo de ser alemão.

Segundo o intérprete, o que interessava a Heidegger era a poesia real de


Nietzsche e seu diagnóstico para a falta de moradia moderna encontrados no
poema filosófico Assim falou Zaratustra. Assim, se Nietzsche diagnosticou a
condição moderna, Hölderlin, por outro lado, foi o poeta do regresso à casa, e
Heidegger entende que “[...] este retorno é o futuro da essência histórica dos
alemães”59. Todavia, não devemos entender essa falta de moradia como algo que
se prende a um território específico. Para o filósofo, a “a-patridade”60 do homem
moderno não diz respeito apenas ao povo alemão, mas fala de uma perspectiva
mais abrangente – do homem que vive o abandono do ser, longe de sua origem, e,
portanto, sem moradia. Esquecido do ser, o homem moderno não habita sua pátria
essencial – a proximidade ao ser. Diz Heidegger referindo-se ao poema Regresso
de Hölderlin:
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o “Alemão” não é dito ao mundo, para o mundo se restabelecer


ao modo de ser alemão. É dito aos alemães para que eles, em
virtude do destino, que os faz pertencer aos outros povos,
integrem, juntamente com eles, a História do mundo. A pátria
dessa morada Histórica é a proximidade ao Ser.61

As preleções voltadas para Nietzsche acontecem entre os anos de 1936 e


1941 na universidade Freiburg62. Essas preleções foram reunidas em dois volumes
– Nietzsche I e Nietzsche II – apresentados na Gesamtausgabe como GA6.1. e
GA6.2., respectivamente. Dessa época, ainda encontramos o ensaio “A Palavra de
Nietzsche ‘Deus está Morto’” de 1943, incluído em Caminhos de floresta (GA5).
No pós-guerra, Heidegger volta seu olhar para Assim falou Zaratustra,
apresentado na preleção de 1951 intitulada Que chamamos pensar? (GA8), e, por

Ister” (1942); Announced but cancelled: Introduction to Philosophy: Thought and Poetry (1944-
1945) . (cf. Hans Sluga,“Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A
companion to Heidegger, 2005, p.113ss.)
59
Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.114.
60
Grifo nosso.
61
Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1967, p.62. Maiúsculas do autor.
62
Segundo Casanova, Heidegger teria retomado, entre os anos de 1944-1946, alguns dos
principais pontos apresentados em Nietzsche I e acrescentado em Nietzsche II, no capítulo VI
intitulado “A metafísica de Nietzsche”. Ali, Heidegger retoma a “Vontade de poder” e “O eterno
retorno do mesmo”, além de outras questões. (cf. Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in:
Martin Heidegger, Nietzsche II, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.v.)
32

último, o texto “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” escrito em 1953 e publicado


em Ensaios e conferências (GA7).

Por outro lado, a relação de Heidegger com a Grécia já vinha se


fortalecendo em seu pensar desde a década de 1920. Marlène Zarader nos diz que,
no entanto, por volta dos anos de 1930 vamos encontrar em Heidegger “algo
como uma gênese da prevalência concedida aos pré-socráticos tomando forma.”63
O filósofo nomeia “pensadores originários”64, aqueles que pensam no âmbito da
origem e fazem a experiência do início do pensamento.65 Em carta de 1932 a
Elisabeth Blochmann, o próprio Heidegger reconhece que o tempo primevo é
caminho do seu pensar. Diz o filósofo:
quanto mais intenso meu trabalho, mais sou forçado a voltar ao
grande início com os gregos. E muitas vezes vacilo sem saber se
não será mais essencial deixar de lado todas as outras tentativas e
trabalhar apenas para que aquele mundo fique novamente diante
dos nossos olhos, não apenas para que o aceitemos, mas pela sua
excitante grandeza e exemplaridade.66
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Hannah Arendt também aponta para essa característica no pensar de Heidegger ao


afirmar que
[...] a tempestade que atravessa o pensamento heideggeriano [...]
não é fruto do nosso século. Ela vem do tempo primevo e o que
deixa para trás é algo levado ao acabamento; algo que, como
tudo o que provém de um acabamento, pertence também ao
âmbito primevo.67

Heidegger entende esse início da filosofia grega, origem de toda a cultura


ocidental, como o âmbito da liberdade, o domínio da indeterminidade e o espaço
da questionabilidade, um estar no mundo muito distante daquele presente
opressivo atravessado pelas maquinações da técnica. Nesse sentido, nos últimos
meses da guerra, estarrecido diante dos acontecimentos, Heidegger volta-se para
Parmênides e Heráclito como uma saída para aquele mundo caótico.68 Safranski
relata que “enquanto os acontecimentos disparam para seu fim catastrófico, e os

63
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann (ed.), Martin
Heidegger: Critical assessments, London/New York, NY: Routledge, 1992, p.21. Tradução nossa.
64
Grifo nosso.
65
Martin Heidegger, Heráclito, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.18.
66
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.261.
67
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.140.
68
Cf. François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.163.
33

crimes do regime de Hitler atingem um ápice horrendo com o assassinato dos


judeus, Heidegger enterra-se cada vez mais fundo no inicial (Anfängliche).”69

Este inicial grego nos fala de um mundo que é palco para que tudo possa
se tornar visível. Nele, o homem “expressa com especial pureza o traço cósmico
fundamental de tudo que quer aparecer e por isso é ponto da mais alta
visibilidade.”70 Para Heidegger, existe uma ali uma riqueza que vai muito além do
que os próprios gregos compreenderam, uma visão de mundo extraordinária que
permite a atenção à presença daquilo que se faz presente. Por outras palavras: o
lugar aberto do ser. O filósofo nos fala de um lugar que “deixa os entes
aparecerem no seu ser, e mostra cada vez a totalidade de sua condição.”71

Essa mesma questão nos é apresentada por Michael Watts em uma relação
imediata com a linguagem. Segundo o autor, Heidegger considerava a língua
grega arcaica como a língua primordial e original de toda Europa, uma linguagem
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que se fundava na experiência do ser e que estava intrinsecamente atrelada àquilo


que nomeia. De acordo com Watts, Heidegger entendia a língua alemã como
descendente direta do grego arcaico. As outras línguas europeias ou derivavam do
alemão, ou haviam se contaminado pelo latim, fato que as teriam afastado de sua
origem, de sua proximidade com o ser. Segundo o autor, para o filósofo, “a
Alemanha possuía este recurso nacional de acesso privilegiado à experiência
grega do Ser”72, uma vez que através da palavra grega arcaica estaríamos na
presença da própria coisa e não de um signo; como se o grego arcaico fosse uma
“extensão da memória do Ser”73. Nesse sentido, ao reavivar o uso desses
vocábulos, a essência e energia dessa experiência original poderia ser recapturada.
Watts ainda nos conta que Heidegger esperava, ao reavivar essa linguagem,
instaurar um outro começo, uma nova era, um outro pensar. Este outro começo
(andere Anfang), segundo Zarader, constitui o movimento do pensar de Heidegger
ao se voltar para as palavras inaugurais pronunciadas na alvorada do pensamento,
as quais, ao resguardarem em si os traços de um começo originário, são

69
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.387.
70
Ibidem, p.349.
71
Martin Heidegger, Parmênides, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2008, p.132.
72
Michael Watts, Heidegger: a beginner’s guide, London, UK: Hodder and Stoughton, 2001,
p.68. Maiúscula do autor. Tradução nossa.
73
Ibidem, p.69. Maiúscula do autor. Tradução nossa.
34

portadoras de abertura para um outro começo que será evocado pelo filósofo.
Neste sentido, voltar às palavras pré-socráticas não significa uma releitura, mas a
busca de uma significação originária para o pensar desses primeiros pensadores.

O olhar de Heidegger se volta para os pré-socráticos com as preleções de


verão de 1932 intituladas “O Início da Filosofia Ocidental (Anaximandro e
Parmênides)” (GA35); alguns anos mais tarde, no semestre de verão de 1935,
Heidegger se deterá sobre Parmênides no curso nomeado Introdução à metafísica
(GA40); encontraremos novamente Parmênides nas preleções de inverno de
1942/43, que darão forma ao livro Parmênides (GA54); logo em seguida, no
verão de 1943, Heidegger se debruça sobre Heráclito em “A Origem do
Pensamento Ocidental – Heráclito” e, no de verão de 1944, sobre a “Lógica” e “A
doutrina heraclítica do lógos”, que formarão o livro Heráclito (GA55); em 1946
encontramos o escrito “A Sentença de Anaximandro”, publicado em Caminhos de
floresta (GA5); em 1951, “Lógos” (Fragmento 50 de Heráclito); em 1951/52,
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“Moira” (Parmênides, Fragmento 8); e, em 1954, “Alétheia” (Fragmento 6 de


Heráclito), os três publicados em Ensaios e conferências (GA7), em 1954;
Parmênides aparecerá novamente no verão de 1952 nas preleções intituladas Que
chamamos pensar? (GA8) e publicadas sob o mesmo título em 1954 ; por fim,
encontraremos Parmênides na conferência “O princípio de identidade”,
pronunciada por ocasião do quingentésimo jubileu da universidade de Freiburg
em 1957 e publicada no livro Identidade e diferença (GA11).74

Através dessa breve exposição percorremos o caminho do pensamento de


Heidegger entre anos 1930 e 1950, percurso que, certamente, nos conduz às
preleções de Que chamamos pensar?. Segundo Glenn Gray, as preleções de
inverno de 1951 nos apontam para uma espécie de momento decisivo no
pensamento de Heidegger. O tradutor nos assinala que o confronto de Heidegger
com a absolutização da vontade de poder de Nietzsche significará para o filósofo
o ponto culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu
último pensador. Quando do retorno para o curso do verão de 1952, Heidegger
dirige seu olhar para as origens do pensamento grego: Parmênides e o poema

74
Nos detivemos aqui aos escritos mais importantes de Heidegger dedicados a Anaximandro,
Parmênides e Heráclito. Todavia, é do nosso entender que devam existir outras ocasiões em que
Heidegger revisite os pré-socráticos. (cf. George Joseph Seidel, Martin Heidegger and the Pre-
Socratics: An Introduction to his thought. Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1964, p.58.)
35

filosófico Da Natureza.75 Aqui, Heidegger estará mais diretamente relacionado


com a forma em que a linguagem se relaciona com o pensamento e sua resposta
ao chamado do pensamento. Glenn Gray entende que, nesse sentido, Que
chamamos pensar? é um sinalizador para o caminho posterior do pensamento de
Heidegger.76

1.5. Uma palavra sobre a palavra “interpretação”

Uma última palavra ainda se faz necessária, antes de encerrarmos esta


primeira parte de nosso caminho. Por inúmeras vezes vimos falando de um pensar
que se volta para os textos filosóficos não como uma interpretação dos mesmos,
mas como uma forma de ressignificar o que foi pensado, como um pensar que se
põe sobre a filosofia de modo a buscar o impensado e, neste salto, apropria-se do
que foi dito e torna-lhe próprio. Hannah Arendt nos conta que no pensar de
Heidegger irrompem inúmeras tempestades. Mas, as tempestades aí encontradas
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são compreendidas metaforicamente como um ciclo natural que se manifesta na


medida em que tudo o que atravessa esse pensar passa por uma profunda
transformação, que ocorre justamente por conta do distanciamento que o pensar
deve tomar da coisa a ser pensada, de forma a tornar o que está ausente, presente.

Marco Antônio Casanova, na apresentação da tradução para o português


do livro Nietzsche I, adentra essa questão mais profundamente e nos fala da
hermenêutica heideggeriana como um distanciamento que aponta para uma
aproximação, mas, um aproximar-se que revela a si próprio salvaguardando-se de
uma perspectiva meramente interpretativa. Perguntamos: como isto se dá? Para o
autor, essa hermenêutica acontece a partir do termo alemão Auseinandersetzung,
cuja riqueza semântica impõe uma grande dificuldade na tradução, mas pode ser
entendido a partir da palavra confrontação. Trata-se de um encontro que
pressupõe uma inserção no pensamento do outro filósofo e que possibilita,
sobretudo, uma abertura a determinações próprias. O vocábulo alemão infere
também um afastamento que estabelece uma tensão necessária para que algo
possa surgir, pois é sempre necessário um distanciamento para que se possa ver
algo em sua identidade mais própria. Não nos referimos aqui, portanto, a um

75
Herman Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin: Weidmannsche
Verlagsbuchhandlung, 1960.
76
Cf. J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, 1968, p.xviii.
36

afastamento que permite uma neutralidade sobre aquilo que é observado, mas a
um distanciamento que aproxima, no sentido que traz à tona o próprio de cada um.
Acompanhemos o pensamento de Casanova:
de acordo com um velho princípio hermenêutico, interpretar
implica incessantemente ver mais do que aquilo que se acha
expresso no texto e mesmo do que aquilo que o próprio autor
estava em condições de formular com suas intenções
específicas.77

O autor nos aponta que essa compreensão hermenêutica já estava


formulada em Friedrich Schleiermacher, cuja “arte da interpretação”, expressa no
escrito Hermeneutik und Kritik mit besonderer Beziehung auf das Neue
Testament, publicado postumamente em 1838, representou para a hermenêutica
moderna um grande legado. Entende-se, a partir de Schleiermacher, que o
objetivo da hermenêutica é a compreensão do texto em seu sentido mais amplo e
isso significa compreender o autor melhor do que o próprio autor se
compreendeu.78 Quanto a essa questão, Friedrich Schlegel já havia ressaltado
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anteriormente que os textos “clássicos” expressam muitas vezes significados


inconscientes que abrangem “uma profundidade infinita” de sentido, em grande
parte desconhecida para o autor.79 Para Heidegger,
dizer que um pensador pode ser “melhor” compreendido do que
ele mesmo se compreendeu não é atribuir-lhe nenhuma falta,
mas, bem ao contrário, assinalar a sua grandeza. Pois somente o
pensamento originário esconde de si um tesouro que sempre
permanece impensável e que pode, a cada vez ser melhor
compreendido, isto é, ser compreendido de maneira diferente do
seu significado literal.80

O filósofo entende que somente aquilo que é pensado em sua verdade pode ser
compreendido de novo e melhor do que aquilo que foi anteriormente pensado.
Todavia, esse novo e melhor não se atém à competência de quem interpreta, mas
simplesmente à dádiva daquilo que se interpreta.

De acordo com Casanova, não é possível descobrir a verdade de um


escrito somente pela da letra do texto. Qualquer confrontação demanda um
horizonte próprio para sua compreensão. Mas, de que horizonte nos fala

77
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.viii.
78
Cf. Friedrich Schleiermacher, Hermeneutics and criticism, 1998, p.228.
79
Cf. Stanford Encyclopedia of Philosophy [online]. Disponível em :
http://plato.stanford.edu/entries/schleiermacher/#4 Acesso em 12/4/2014. Grifos do autor.
80
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, pp.78-79. Grifo do autor.
37

Casanova? O autor nos coloca que, para Heidegger, é o mundo que estabelece o
horizonte em que toda a interpretação se realiza. Entretanto, nossa concepção de
mundo não é a mesma de Heidegger. Entendemos por mundo o lugar em que as
coisas se apresentam como aquilo que são – coisa, objeto, utensílio –, lugar de
manifestação do conjunto de entes. Para Heidegger, esse vocábulo não fala desse
conjunto de coisas. O entendimento heideggeriano de mundo ultrapassa o
conjunto dos entes presentes à vista e, por isso, não pode se reduzir a uma parte
desse conjunto, mas deve abranger a totalidade de tudo que é, ou seja, algo que
ultrapassa a medida ôntica. O filósofo nos fala daquilo que transcende a cada vez
essa totalidade, um campo de manifestação que nos encaminha para uma abertura
de mundo que somente pode ser determinada a partir de um horizonte que é a
“medida ontológica dos entes em geral”81: o ser do ente – aquilo que é na
totalidade. Sobre isso, é o próprio Heidegger, em Que chamamos pensar?, que
nos adverte: “pensador não depende de pensador: liga-se, quando pensa, à coisa a
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pensar, ao ser. Só na medida em que se une ao ser é que pode estar aberto ao
influxo dos pensadores e do que foi por eles pensado.”82

Nesse sentido, o texto filosófico fala tão somente a partir de um apropriar-


se que se deu primeiro83 e que abre um campo de possibilidades capaz de transpor
esta distância, uma condição prévia que acontece de forma a liberar a visão para
um “ver-através”84. Segundo Casanova, é este o mundo que, para Heidegger,
engloba em si todas as possibilidades de uma interpretação: uma determinada
condição prévia que nos coloca diante de inúmeras possibilidades interpretativas,
de novos horizontes hermenêuticos que se deram a partir de algo que preserva o
inicial – aquilo que foi essencialmente e guarda em si algo que não foi formulado
– o originário que deve ser novamente elaborado de maneira a fazer aparecer o
que ainda não se revelou. O autor acrescenta:
um horizonte de constituição de certos acontecimentos
intrinsecamente articulados com possibilidades fundamentais,
retidas naquilo que um dia se deu de modo tão essencial, que
efetivamente nunca chega a se perder no passado, mas sempre

81
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xi.
82
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], pp. 80-81. Grifo nosso.
83
Nossa compreensão, a partir da citação de Heidegger, é a de que somente a partir do
acontecimento da união ao ser, entendido pelo filósofo como apropriativo (Ereignis), é que haveria
uma abertura própria para a hermenêutica heideggeriana sobre o ser.
84
Grifo nosso.
38

continua viabilizando a cada vez, no instante, uma decisão


quanto ao modo de ser daquilo que está por vir.85

Mas, como é possível alcançar esse horizonte compreensivo? Será por


meio de um salto que esse horizonte de compreensão se abre para os pensadores.
Segundo o intérprete, trata-se de um salto para dentro do horizonte histórico onde
é possível compreender os pensadores como voz da História86, pois é a História
que dá voz aos pensadores e não o contrário. Nesse sentido,
[...] pensar historicamente para Heidegger significa aprender a
escutar aquilo que é decisivo no passado, e aquilo que é decisivo
no passado não passa, mas [...] arrasta para si o futuro de um tal
modo que tudo que possa acontecer, tudo aquilo que possa vir a
se dar no futuro precisa necessariamente se articular de alguma
87
forma como o passado.

Como vemos com Casanova, para Heidegger, o primado dado às aberturas


anteriores do ser do ente na totalidade não fala de uma nostalgia, da contemplação
de algo que ficou no passado, mas, ao contrário, “o que fala nesse primado é,
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antes, a percepção de que o modo como o ser historicamente se abre, delimita as


possibilidades de constituição de novos campos de manifestação do ente na
totalidade.”88 Isso significa, por outras palavras, que a confrontação histórica com
a abertura do ente na totalidade pode determinar os acontecimentos que estão por
vir.

Este será o lugar do pensamento de Heidegger em Que chamamos


pensar?: um salto hermenêutico que se coloca em uma dinâmica de confrontação
histórica com Nietzsche e Parmênides, que, todavia, “não se atém ao passado
como aquilo que se encontra distante do presente e do futuro, mas se liga
incessantemente àquela dimensão do passado que continua decisiva para o

85
Cf. Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=XFipFGfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013.
86
A respeito da palavra “história” Casanova nos esclarece: “Heidegger estabelece uma distinção
fundamental entre os dois termos normalmente tomados como sinônimos na língua alemã e
traduzidos consequentemente com o auxilio da palavra ‘história’: o termo latino Historie e o termo
germânico Geschichte. Enquanto o primeiro designa para ele a história concebida em sua
dimensão ôntica, como a instância relativa aos acontecimentos que se dão no interior de um
âmbito subsistente chamado tempo, e funciona para o que podemos denominar historiografia, o
segundo é reservado apenas para a dinâmica existencial de temporalização característica do Ser-aí
em sua relação originária com o mundo e com o ser.” (cf. Marco Antônio Casanova, nota do
tradutor, in: Martin Heidegger, Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.2).
Doravante a palavra história será grafada com maiúsculas todas as vezes em que estiver no escopo
semântico de Geschichte.
87
Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=XFipFGfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013.
88
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xiv.
39

presente e que encerra em si as possibilidades do futuro.”89 Passemos, agora, à


apresentação das preleções propriamente ditas.
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89
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xiii.
2. Que chamamos pensar?, as preleções e o escrito.

Denken ist die Einschränkung auf einen


Gedanken, der einst wie ein Stern am Himmel
der Welt stehen bleibt.

Martin Heidegger90

Voltemo-nos, então, ao ano de 1951 e às preleções sobre Que chamamos


pensar?, quando do retorno de Heidegger à Universidade de Freiburg.
Encontramos no livro organizado por Úrsula Ludz algumas cartas em que o
filósofo menciona a relevância do texto para a trajetória do seu pensamento.
Como esses são os únicos relatos do próprio Heidegger que encontramos sobre o
período, consideramos valioso citá-los na íntegra, na medida em que nos
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evidenciam a forma como os cursos se deram e a relação que o pensar de


Heidegger estabelece com Parmênides, acentuando, com isso, a significância
desse escrito.

Em carta à Hannah Arendt em dezembro de 1951, Heidegger relata:


Entrementes voltei a ler o texto Que chamamos pensar?.91 O
seminário acontece uma vez por semana durante uma hora:
sextas-feiras das 5 às 6. O auditório principal já começa a ser
ocupado à 1 hora e às 4 horas não entra mais ninguém: eu
mesmo tenho dificuldade para entrar. A preleção ainda é
transmitida para outros dois anfiteatros. No todo, 1.200 ouvintes
suportam até o fim. Dentre esses, a preleção toca com certeza de
modo simples, imediato. Isso exige de mim contudo muito mais
empenho na preparação, onde tive aliás a oportunidade de
exercitar a arte de cortar. Muitos ouvintes se deixarão iludir pela
simplicidade: pois somente agora chego à correta proximidade
em relação às coisas propriamente dignas de serem pensadas.92

Um ano depois, em dezembro de 1952, em outra carta à Arendt, Heidegger


se refere ao texto uma vez mais. O filósofo estaria preparando para impressão a
90
Martin Heidegger, Aus der Erfahrung des Denkens, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,
1983, p.76. Em tradução livre: “Pensar é a limitação a um pensamento que chega, um dia, a fixar-
se como uma estrela no céu do mundo.”
91
No livro de correspondências organizado por Úrsula Ludz, encontramos o título Was hei!t
Denken? traduzido por O que significa pensar?. Entretanto, no sentido de manter uma coerência à
tradução que vimos utilizando para o português, optamos por modificá-lo aqui para Que
chamamos pensar?.
92
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.96. Itálicos do autor.
41

preleção de verão de Que chamamos pensar? e rememora que Arendt teria


participado de algumas seções. Diz Heidegger:
Só apresentei parcialmente no curso a difícil interpretação de
Parmênides, com a qual termina a preleção. No entanto, essa
interpretação estará integralmente no texto impresso. Penso que
me aproximei uma vez mais da coisa mesma. Em verdade tudo é
inesgotável. Não obstante, continua difícil manter presente para a
representação dominante esta riqueza simples.93

Mais um ano, mais uma carta. Nela, a percepção do caminho que se abre
no diálogo travado com os pré-socráticos:
Por ora estou novamente com Heráclito. Quanto mais fica claro o
diálogo que tenho com ele e com Parmênides, tanto menos
consigo me livrar deles. Nosso diálogo está pautado na
percepção de uma delimitação fundamental e na compreensão do
modo como ao mesmo tempo perguntamos diferentemente o
mesmo. Neste sentido, sempre se entende mal os meus diálogos
com os dois quando são tomadas como “interpretações”.94

Essas citações se põem para nós como uma memória viva daquele período,
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por isso, o desejo de aqui reproduzi-las. Através delas, foi possível vislumbrarmos
que Heidegger retoma o ofício de ensinar com o pensar voltado para os primeiros
pensadores gregos, e que, apesar de ciente da grande dificuldade que esse pensar
impõe, o filósofo está convencido de que, seguramente, havia ali algo de grande
relevância. Sigamos os passos de Heidegger no sentido de mostrar como as aulas
foram organizadas e o escrito apresentado.

As preleções intituladas Que chamamos pensar? aconteceram, como


dissemos, em dois momentos: no inverno de 1951-1952 e no verão de 1952. O
escrito integral, somente publicado em 1954, traz o texto inalterado das aulas do
inverno que foram apresentadas em dez lições, e as do verão, em onze, totalizando
207 páginas. Acrescenta-se a ambos os períodos, aulas de passagem, nas quais
Heidegger oferece uma espécie de resumo da aula anterior e, ao mesmo tempo,
uma transição para o assunto a seguir. Todavia, percebemos que raramente o
resumo é feito nas bases do que foi tratado anteriormente. De uma semana para
outra, Heidegger adensa o seu próprio pensamento trazendo acréscimos
significativos; como se, ao reformulá-lo, pudesse depurar ainda mais a
compreensão daquilo que foi apresentado. Glenn Gray nos aponta que “para um
93
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.96.
94
Ibidem, p.101.
42

homem que põe tamanha ênfase como Heidegger no caminho em que qualquer
coisa é dita e que reflete sobre o que ele mesmo pensou na semana anterior, a
repetição de um pensamento é algo significante.”95

Quanto às traduções da obra em questão, temos conhecimento de que o


escrito Que chamamos pensar? foi traduzido para o francês, o inglês, o italiano e
o espanhol. Qu’appelle-t-on-penser? foi o título francês dado ao escrito de
Heidegger, publicado em 1967 e traduzido por Aloys Becker e Gerard Granel,
com introdução de Gerard Granel. A língua inglesa ficou com o título What is
called thinking? que foi publicado em 1968 e contou com a tradução de Fred D.
Wieck e J. Glenn Gray, sendo a introdução deste último. A tradução para o
italiano intitulada Che cosa significa pensare? veio em dois volumes: o primeiro,
em 1978 e o segundo, em 1979. Ambos os volumes contaram com a tradução de
Ugo Ugazio e Gianni Vattimo, com o prefácio escrito por Vattimo. Por fim, as
traduções para o espanhol de ¿Qué significa pensar?: a primeira, feita em Buenos
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Aires por Haraldo Kahnemann e Pedro de Moura Sá, em 1958; e a segunda, em


Madri, por Raúl Gabás, em 2005.96 As preleções de inverno foram traduzidas para
o português por Paulo Schneider, e estão inseridas no volume O outro pensar:
sobre Que significa pensar? e A Época da Imagem do Mundo, publicado em
2005. A tradução integral para o português encontra-se em elaboração por Edgar
Lyra. Voltemos, agora, nosso olhar para o desenvolvimento do curso.

2.1. As preleções do inverno de 1951 - 1952

Nas preleções do inverno de 1951-1952, Heidegger volta sua atenção para


Nietzsche e o poema filosófico Assim falou Zaratustra97. Todavia, a construção
deste pensar não se coloca a perscrutar os caminhos de Nietzsche de imediato.
Essa primeira parte do livro, apresentada em 10 lições, pode ser dividida em dois
95
J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What’s called thinking?, 1968, p.xviii.
Grifo do autor. Tradução nossa.
96
A tradução para o espanhol realizada por Raul Gabás não conta com prefácio. Quanto à tradução
argentina, não tivemos acesso ao seu conteúdo.
97
Assim falou Zaratustra é o poema filosófico de Friedrich Nietzsche escrito entre 1883 e 1885.
Hans Sluga nos esclarece que, já nas preleções de 1936, Heidegger se volta para a doutrina da
“Vontade de Poder”. Em 1937, com o crescente interesse na doutrina do eterno retorno e seu
desenvolvimento, Heidegger começa a prestar atenção em Assim falou Zaratustra, escrito que
torna-se decisivo para o filósofo, especialmente por conta da concepção nitzschiana do super-
homem e da possibilidade deste levar o homem a assumir a sua verdade. (cf. Hans Sluga,
“Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger, 2005,
pp.108-109.)
43

blocos temáticos: o filósofo nos conduz a Nietzsche através de uma demorada


discussão sobre a relação entre o pensamento, a ciência e a poesia. Vejamos como
se dá esta discussão.

2.1.1. “O mais problemático do nosso problemático tempo...”

Heidegger inicia a sua longa caminhada pela vereda do pensamento


partindo da afirmação: “Chama-se homem justamente aquele que pode pensar – e
com correção.”98 Essa afirmação nos fala de uma atividade que nos distingue
como seres humanos, um genuíno privilégio da nossa condição humana. Todavia,
apesar do homem ser capaz de exercer tal atividade quando quiser, no que tange o
pensamento ao qual Heidegger se dispõe a investigar, o querer pode muito pouco.
Segundo o filósofo, mesmo a Filosofia que se ocupa com esmero e erudição no
desenvolvimento de grandes tratados, não garante a disposição para o pensar.
Apenas aquilo que desejamos verdadeiramente é que podemos alcançar com o
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pensamento. A esse desejar, Heidegger acrescenta Aquilo que também nos deseja
e se dirige à nossa essência “de modo a dentro dela nos guardar.”99 O filósofo
entende que há em nosso âmago um desejar que nos chama a guardar na memória
aquilo que é digno de pensamento e somente quando desejamos esse desejar, ou
seja, quando desejamos aquilo que nos guarda em nossa essência, somos capazes
de pensar. O pensar está, nesse sentido, ligado de alguma forma ao desejo.

Paulo Schneider, em O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A


época da imagem do mundo, nos coloca que há um elo de reciprocidade entre o
pensar, o desejo, a memória e a essência do homem, cuja a intenção fundamental
é “reunir conservando o pensado na memória pela recordação dadivosa, que nos
apetece e nos mantém na essência.”100 O autor nos mostra que a tradução da
palavra alemã Wesen aponta para a essência, mas igualmente reporta a ser, deter-
se, acontecer. Derivada de wesan significa ainda demorar-se, morar, passar a
noite. Schneider entende que aquilo que diz respeito ao mais próprio do homem, a
sua essência, é um habitar no acontecimento do pensar. Marlène Zarader, em
Heidegger e as palavras da origem, acrescenta que é na passagem do sentido

98
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.5.
99
Ibidem, p.5. Maiúscula do autor.
100
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.76.
44

nominal ao sentido verbal que wesen evoca a demora ou duração que rege toda a
vinda à presença (an-wesen), um movimento essencial de algo que não é evocado
por nós, mas que, ao contrário, ao abrir-se no que é, nos chama, dirige-se a nós,
nos atravessa e nos diz respeito.

Sendo esse o caminho proposto por Heidegger para o pensar, o fato de o


pensamento e o homem estarem ligados desde o mais remoto tempo, e da coisa-a-
pensar se colocar para o homem na sua forma mais íntima, isso não impede a
constatação de que “o mais problemático no nosso problemático tempo é que
ainda não pensamos”101. Com isso, o que Heidegger quer inferir é que apesar de o
homem se dispor a pensar, ainda não o fazemos de modo apropriado; a coisa-a-
pensar escapa ao pensamento, pois o mais problemático e aquilo que nos dá a
pensar afastou-se do homem desde o princípio.102 Devemos, pois, aprender a
pensar de modo próprio. Mas, o que significa aprender a pensar de modo próprio?
O que é da essência do aprender a pensar?
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O modo como o homem do nosso tempo pensa, segundo Heidegger, é o


responsável por toda a problematização dessa questão. Para Schneider, a
dificuldade ao pensar se põe na medida em que nos atemos a resultados teóricos
que nos concedem garantias objetivadas do saber, as quais nos outorgam apenas
um ilusório estatuto de certeza. Ao afirmar que “a ciência não pensa”103,
Heidegger se propõe a discutir a dimensão em que a ciência se move em relação
ao pensamento. O filósofo entende que na seara da ciência o pensamento se retrai.
Essa afirmação não se dá como uma censura, mas apenas como uma constatação,
uma observação sobre a essência da ciência, sua estrutura interna. A ciência não
pensa porque a sua essência é a do método, do passo-a-passo. Segundo Vattimo,
em As aventuras da diferença, Heidegger faz essa afirmação, não porque a ciência
não tenha a capacidade que a filosofia tem no sentido de fundamentar o seu
próprio objeto e discurso, mas porque responde rapidamente ao apelo da razão
com a investigação e a captação, que atuam como fundação e doação de

101
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6.
102
Zarader nos fala que, por volta dos anos de1930, o pensamento de Heidegger sofre uma
mudança. Para a autora, o que ocorre com Heidegger nesse momento é a percepção de que o ser
“torna-se esquecido, precisamente porque o ato de ocultar-se pertence ao ser mesmo enquanto tal
[...]”. (cf. Marlène Zarader, “The Mirror with a triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin
Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.20.)
103
Martin Heidegger, op. cit., p.9.
45

estabilidade. O autor nos explica que durante toda a tradição metafísica, a ciência,
assim como a própria filosofia, fundou-se na lógica. Segundo Vattimo, a
contagem e o cálculo da ciência não são mera enumeração; contar significa
“contar com”104, em outras palavras, ter certeza sobre um número cada vez maior
de coisas.

Simplesmente pelo fato de cultivarem somente um dos lados daquilo com


que lidam, Heidegger compreende que as ciências exaurem a possibilidade de
contemplar a essência do seu saber. Preso ao tangível da ciência, o homem se
encontra refém do domínio técnico que o interdita e o afasta das questões
essenciais que falam à sua alma, às suas esferas do saber – a história, a arte, a
poesia, a língua, a natureza, o homem, Deus.105 O que reforça ainda mais essa
problematização é a questão da homogeneidade do pensamento. Há um
nivelamento de ideias e opiniões que põe o “pensamento sobre trilhos”106, numa
univocidade de conceitos e significação predeterminados pela essência da técnica.
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Para o filósofo, as ciências de hoje pertencem ao domínio da técnica moderna,


cuja potência submete e destina o homem a uma total falta de liberdade.

Segundo Heidegger, o homem deve-se por a caminho, deve aprender a


pensar. O aprender a pensar é, para o filósofo, “levar o que se faz e deixa de fazer
à sintonia com o que cada vez, essencialmente, se dirige a nós.”107; um aprender
que torna-nos próprios ao saber. Schneider entende que, na medida em que se liga
à essência do homem, o aprender a pensar estabelece-se numa relação em que não
existe o aprendiz e o objeto de aprendizagem, não nos encontramos à parte do
objeto. Por isso, devemos suspender todas as possibilidades de explicação para
esse aprender provenientes da cisão sujeito-objeto, pois o aprender a pensar ao
qual Heidegger se refere não se põe como algo separado, à parte do homem. Mas,
ao contrário, como algo muito próximo. Heidegger nos coloca que devemos
buscar “aquilo que não se deixa encontrar por meio de nenhuma descoberta.”108
Nesse caminho, o homem defronta-se com uma tarefa árdua, pois a coisa-a-pensar

104
Grifo do autor.
105
Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.31.
106
Grifo do autor.
107
Martin Heidegger, op. cit., p.15. Ao entrar na questão sobre o aprender a pensar, Heidegger se
volta também para o ofício de ensinar, ao qual nos detivemos brevemente no subcapítulo intitulado
“o dar-curso-ao-aprender”.
108
Ibidem, p.9.
46

escapa-lhe ao pensamento, recusa o encontro. Essa recusa, no entanto, não é


menos, é mais. É, nas palavras do filósofo, Acontecimento109 – “a mais presente
de todas as coisas presentes”.110

Chegar à região do pensamento só é possível através de um salto, um salto


em direção ao abismo que desconcertantemente eleva e desnorteia o homem em
direção à terra da liberdade de juízos, do aberto, para além das cercanias da
opinião comum; um salto que “nos leva de súbito para lá onde tudo é outro”.111
Para Schneider, chegar ao âmago do pensar exige, daquele que trilha o caminho
do pensamento, uma “disposição para a tentativa de uma jornada rastreadora em
direção a um centro que a respeito de nós mesmos desconhecemos”.112 Todavia,
Heidegger nos aponta que a simples referência ao que resiste, já faz o homem
estar em movimento ao apelo pleno de mistério. Para o filósofo, Sócrates
manteve-se nesse movimento. Durante toda a sua vida expôs-se ao vento do
pensamento sem nada ter escrito, sendo considerado, por isso, o mais puro
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pensador do Ocidente. A escrita é entendida por Heidegger como um refúgio para


o pensar, e o fato de todos os grandes pensadores depois de Sócrates terem se
refugiado na escrita, acabou por decidir o destino do pensamento ocidental, na
medida em que as ciências se fundaram a partir da Filosofia assim circunscrita.

Neste momento das preleções, Heidegger se acerca de Hölderlin e da


poesia como uma forma de nos mostrar, não só a contraposição entre o pensar
poético e o pensar científico, mas, sobretudo, por entender que o poetar, assim
como o filosofar, percorrem os caminhos outros do pensar. O filósofo nos coloca
que o movimento em direção àquilo que escapa indica um caminho, mas, nesse
movimento, o homem é apenas um signo, um sinal para Algo que não fala a nossa
língua. Aí, nesse lugar, diz Hölderlin em seu projeto de hino: “Somos um signo,
sem referência, / Somos sem dor e quase / perdemos a linguagem na terra

109
No original alemão, Ereignis. De acordo com Inwood, o termo acontecimento é o termo mais
geral para Ereignis, porém, seus derivados, tanto nominais quanto verbais, também se
circunscrevem à: evento; acontecimento-apropriador; ser-apropriado, pertencer; apropriar-se; (o
seu) próprio. (cf. Michael Inwood, Dicionário Heidegger, Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 2002, p.2.)
110
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.10.
111
Ibidem, p.14.
112
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.74.
47

estranha.”113 Entendemos, a partir desses versos, que o poeta esteja a nos revelar
que o homem encontra-se sem rumo, perdido de si mesmo. Anestesiado e iludido,
fala e nada diz. Encontra-se ainda na diáspora, longe de casa, em terra estranha ao
pensar. Schneider nos fala que o homem encontra-se suspenso no nada da falta de
sentido, preso somente àquilo que maquinou e produziu. Desaprendeu a trilhar o
caminho do pensamento e esqueceu-se que esse se faz na medida em que
perguntamos por ele. O intérprete compreende que o pensar enquanto sinal, só
pode ser decifrado pelo pensar e o decifrar desse sinal só se dá tornando-se
pensar.

Segundo Heidegger, “Mnemosyne” – nome dado por Hölderlin a um de


seus projetos para o hino – pode ser traduzido por memória. Para o filósofo,
memória é a reunião do pensamento em torno do que, em geral,
já de antemão, apreciaria de ser considerado. Memória é a
reunião das lembranças (des Andenkens). Ela abriga em si, e
dentro de si oculta, aquilo em que previamente e a cada vez tem-
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se que pensar, em tudo o que vem-a-ser e que, como algo


consubstanciado, sopra à alma de forma substantiva […].114

No caso do hino, Mnemosyne (Memória) é filha do Céu e da Terra, noiva de Zeus


e mãe das musas. No mito, ela é a memória da coisa-a-pensar, a reunião do pensar
sobre aquilo que desde sempre deseja ser pensado. É, também, fonte profunda do
poetar. Para Heidegger, a poesia é como um voltar para casa, é como um “leito
d’água que reflui para a fonte, para o pensamento como rememoração”115, pois a
beleza do dizer poético circunscreve-se ao domínio da verdade, na medida em que
revela e faz brilhar o que se encobre. Essa compreensão nos aponta para a relação
do homem com o mais problemático, com aquilo que dá a pensar. Todavia,
segundo o filósofo, nosso entendimento para toda essa questão encontra-se
comprometido, enquanto crermos que a lógica possa nos dar conta do que seja
pensar.116

113
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.18.
114
Ibidem, p.12. Em nota do tradutor, Lyra nos esclarece que na memória, “[...] o pensamento
reúne-se em torno de algo, debruça-se sobre algo. A lembrança é [...] em alemão das Andenken,
inversão de denken an, “pensar em”. Equivaleria a dizer: a memória como ato de pensar em algo,
promove a junção dos pensamentos.” (cf. Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Ibidem, p.12.)
115
Ibidem, p.12.
116
Heidegger se refere ao fato de, no Ocidente, o pensar sobre o pensamento ter se desdobrado
como “lógica”. O filósofo faz menção ao fato de Kant assim como Hegel terem reconhecido a
esterilidade da possibilidade de uma determinação conceitual do pensamento.
48

O pensador nos afirma que o dizer de Hölderlin “[...] repousa na sua


própria verdade. Chama-se beleza. A beleza é uma destinação (Geschick) da
essência da verdade, onde verdade significa: o desencobrimento do que se
encobre.”117 Compreendemos, a partir dessa colocação, que a verdade é entendida
aqui como desvelamento e a poesia é a experiência de um vir a ser, o passar da
não presença à presença, o pôr-se-em-obra da verdade.118 Para Schneider, o dizer
do poeta se circunscreve à própria verdade e não carece de uma explicação que a
aprisione numa interpretação. O intérprete entende que a verdade que
encontramos na arte e na poesia tem o seu brilho, a sua própria luz. Além disso, a
arte e o dizer poético não tem aspirações científicas direcionadas à dominação,
mas apenas um caráter expressivo e meditativo como um de seus atributos.

Toda essa discussão, proposta por Heidegger nestes primeiros capítulos, se


mostra para nós como um pensar que se põe em exercício, uma etapa no processo
que continuamente se refaz no caminho do aprender a pensar. Esse é um processo
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lento e paciente, não há como avançar para a solução do “mais problemático do


nosso problemático tempo”. Schneider nos faz entender que o demorar-se na
questão vai totalmente na contra-mão da pressa desmedida em que o sistema de
comunicação se dá. Para o autor, Heidegger perfaz o caminho-pensamento na
perseverança da pergunta e na experiência de que nesse caminho subjaz o
impensado. Nesse sentido, permanecer na questão do pensar é a demora do
caminho. Não há construtos ou bases sólidas para esse caminhar, mas apenas o
seguir o fluxo do pensamento que amplia, mas não esgota, a possibilidade de
chegar a si enquanto pensar, pois trata-se, segundo Schneider, de “se estar
inevitavelmente dentro do/junto a/permanecendo com o pensar, sem a mínima

117
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.20.
118
Entendemos a densidade do dito de Heidegger. Todavia, não é nossa intenção adentrarmos na
questão da verdade e tudo o que dela possa advir, mas, apenas buscar entendimento para o texto. O
por se em obra da verdade foi tema do livro A origem da obra de arte (GA 5). O escrito é fruto de
três conferências realizadas em 1936 e publicadas em 1950. Maria da Conceição Costa, tradutora
do livro para a língua portuguesa, nos apresenta que: “perguntando ainda e sempre pela dádiva
misteriosa do ser e da verdade, Heidegger visita-a através da natureza da obra de arte. A
experiência profunda da obra de arte revela e esconde a verdade daquilo que é, de tal modo que a
podemos ver. A verdade é artística e a arte poética, na sua essência fundadora. Através da obra,
abre-se um mundo que indicia, que desprende o olhar cativo para o outro lado das coisas.” (cf.
Maria da Conceição Costa, “Advertência da tradutora”, in: Martin Heidegger, A origem da obra de
arte, Lisboa: Edições 70, 1977, p.9.)
49

possibilidade de sua auto-objetificação ou auto-atropelamento reflexivo.”119 A


dificuldade do percurso é acentuada pela preocupação central de Heidegger: o fato
de que ainda não pensamos de modo próprio. Preocupação expressa pela palavra
alemã Bedenklichste, traduzida por o mais problemático.120
A longa discussão entre pensamento, ciência e poesia, que se estende por
mais de três aulas e suas respectivas recapitulações, acabam por evidenciar, de
forma contundente para o leitor, a questão do “mais problemático do nosso
problemático tempo”. Trata-se de uma temática que se põe para Heidegger em
ressonância com o “deserto cresce”121 de Nietzsche, na medida em que aquilo que
escapa permanece impensado em nosso tempo; não só pelo fato de “a-coisa-a-
pensar”122 escapar ao pensamento, mas, sobretudo, pelo fato da “vontade de agir,
quer dizer, de fazer e efetivar, ter atropelado o pensamento”123. A manipulação
técnica impede uma aproximação e acaba gerando uma subtração do pensar.
Tempos sombrios, obscuros e ameaçadores na medida em que a desertificação
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interdita o pensamento – uma aridez que elimina e impede futuras germinações. A


frase nitzschiana “o deserto cresce: ai daquele que abriga desertos!”124 reverbera
no pensar de Heidegger em função do caminho que o pensamento tomou: o da
representação.125 Todavia, antes de adentrarmos o pensamento de Heidegger sobre
Nietzsche, julgamos necessário um desvio em nosso percurso, no sentido de
compreendermos esse rumo que o pensamento tomou.

2.1.1.1. Nas raias da representação

A questão da representação é tão fundamental que Heidegger dedica toda


uma aula, assim como a devida recapitulação, sobre o tema. Nessa parte, o

119
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.103.
120
Schneider nos fala que a tradução desse vocábulo fica circunscrita ao mais preocupante de tudo
e traz, portanto, consequências profundas. O autor entende que “esse gravíssimo não pode ser
entendido como resultado de alguma decisão autônoma por reflexão, pois o que preocupa é algo
que ocorre no imediato do seu advento. [...] O que se impõe e o que se doa não é alcançável, nem
manipulável, mas exerce uma influência em nós, que não é casual: ela faz parte de uma condição,
que nos determina essencialmente como seres humanos”.(cf. Ibidem, p.91-92.)
121
Grifo do autor.
122
Grifo nosso.
123
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.25.
124
Grifo do autor.
125
Schneider nos apresenta que a advertência de Nietzsche é feita a partir da devastação
promovida pelo cristianismo, mas também a frase “o deserto cresce” pode ser pensada como o
“deserto do pensar por representação”. (cf. Paulo Schneider, op. cit., p.107.)
50

filósofo analisa a concepção há muito concebida de que há uma correlação entre


verdade e representação. Para Heidegger, de tudo o que existe temos em nossa
consciência, em nossa alma, uma representação. Robert Mugerauer, em
Heidegger’s language and thinking, nos apresenta que a representação é o modo
pelo qual formamos as ideias, e que estas são elaboradas através da nossa
capacidade de deter e guardar um aspecto da realidade que tenhamos apreendido.
Segundo o autor, esse processo não se apresenta como uma mera ordenação de
ideias. À representação junta-se, também, o julgamento, ou seja, o juízo no
sentido de formar ideias corretas e adequadas. Segundo Mugerauer, o pensar
assim compreendido se circunscreve à formação de ideias que representam o que
é pensado de maneira que a ideia se conforme com o objeto corretamente, ou
melhor, essa correção e conformação devem partir, por sua vez, de um
pressuposto lógico, não contraditório. Seguindo nessa esteira, podemos concluir
que, se aquilo que formamos a partir de nossas ideias deve partir de um
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pressuposto lógico, podemos facilmente afirmar que a lógica determina o


pensamento. Mas, como podemos entender que a lógica esteja a ordenar o pensar?
E, mais, como isso se deu?

Heidegger nos explica que decidiu-se, de maneira bem própria e nada


evidente, que por trás do nome “lógica”126, o pensamento é entendido como
!"#$%.127 Para o filósofo, nessa inaparente equiparação, há milênios
desconsiderada pelo pensar, subjaz o destino do pensamento ocidental. Zarader
nos coloca que examinar o nexo entre o pensamento e a lógica significa apenas
evidenciar e relatar a nossa história, e não a torná-la compreensível tomando-a
como questão. De acordo com a autora, esse questionamento é levantado por
Heidegger ao nos indagar: “o que isso significa, para o destino e curso do próprio
pensamento, que desde há muito tempo, senão desde a origem, é justamente algo

126
Grifo do autor.
127
Heidegger nos chama a atenção para o fato de que o !"#$% e o µ&'$% terem sido usados pelos
primeiros pensadores da Grécia com o mesmo significado. Para o filósofo, !"#$% e µ&'$% só
deixam de se relacionar a partir de Platão, quando a lógica atravessa o pensamento. Heidegger nos
esclarece que a ideia de que o µ&'$% foi destruído pelo !"#$% tem a ver com um prejulgamento,
dado pela Filologia e pela História, herdado do racionalismo moderno com base no platonismo.
(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11.)
51

como a lógica que se apresenta no pensamento ocidental, como a doutrina do


pensamento correto?”128

Segundo o pensador, a questão do pensamento ter sido compreendido


como lógica remonta o início do pensamento ocidental. O filósofo nos aponta que,
desde Platão – e, com ele, o início da metafísica – inicia-se a correspondência
entre o pensamento e o que veio a chamar-se “lógica”129. Heidegger nos explica
que a ἐ()*+,µ- !$#)., nasceu na escola de Platão e foi essencialmente
desenvolvida por seu maior discípulo, Aristóteles. Zarader complementa essa
afirmação, dizendo que a Lógica nasce da tripartição da filosofia em lógica, física
e ética. Para a autora, mais importante do que essas considerações históricas são
as consequências que daí resultam para o saber do !"#$%. A intérprete nos coloca
que, de acordo com Heidegger, quando isso acontece a filosofia chega ao fim e se
torna assunto de organização e técnica. Isso se dá porque com a tripartição
nascem as disciplinas que, por sua vez, se relacionam diretamente com seus
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objetos, e, nessa relação, a determinação se dá da disciplina para o “objeto da


disciplina”.130 Isso significa que é a disciplina que determina aquilo que a coisa é
e, consequentemente, a medida da sua verdade. Nos encontramos, pois, em meio a
uma inversão da relação de determinação. Essa inversão é evidenciada por
Heidegger quando afirma que o que vem à linguagem é mediado pelo
equipamento metodológico determinado pela disciplina, ou seja, é a disciplina a
instância que decide o como e o porquê um objeto é conhecido. Segundo o
filósofo, as disciplinas funcionam como verdadeiros filtros para o conhecimento,
na medida em que só revelam determinados aspectos de seus objetos de estudo.

Heidegger, em Heráclito (GA55), nos aponta que sob o título de Lógica


compreende-se “a doutrina do pensamento correto.”131 A isso, entende-se a
correção do pensar segundo um critério de construção, formas e normas que
regem o pensamento de maneira a ordená-lo. Mas, por que encontramos nessa
doutrina o título de Lógica? Há nesse título algo da essência da linguagem? De
acordo com o filósofo, o !"#$% é para a lógica o enunciado de algo sobre algo, e

128
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.205.
129
Grifo do autor.
130
Grifo da autora.
131
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.199.
52

isto aconteceu porque, no período romano e na Idade Média, entendeu-se o !"#$%


como uma proposição da justa determinação do correto juízo sobre conceitos que
se propõem a serem conclusivos. Assim, “como doutrina da enunciação, isto é, do
juízo, a lógica é também doutrina do conceito e da conclusão”132. Entendida desse
modo, a lógica diz respeito ao sujeito do dizer, e é este, segundo Heidegger, o
traço essencial do pensar segundo a lógica: enunciar algo sobre algo. Encontramos
aqui a determinação do pensar como um falar, cujo o traço essencial assenta-se no
enunciado, e isso, segundo o filósofo, determina um fechamento ao campo
original da palavra, pois se pensar é enunciar algo sobre algo, nesse enunciar
sonega-se algo desse pensamento na medida em que algo é dado como verdadeiro.

Heidegger nos coloca que o lógico pode denotar uma coerência com seus
pressupostos, exprimindo, com isso, algo da ordem do racional: um pensamento
correto e em acordo com os princípios fundamentais. Entretanto, uma mesma
coerência correta pode se manifestar de muitas maneiras, e, nesse sentido, falta ao
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lógico o peso do verdadeiro. Nos encontramos, aqui, no âmbito da ideia de


verdade por correspondência e o filósofo procura escapar desse campo
gravitacional.133 Diz Heidegger: “o que milhões de vezes se chama de ‘lógico’
nunca oferece ou fundamenta o verdadeiro.”134 Para o filósofo, o apelo do lógico
como obrigatoriedade por toda a parte é sinal de um pensamento que não pensa e
não entende que o lógico pode ser a norma que se molda ao pensar, todavia,
aquilo que fundamenta a norma, nunca pode constituir o domínio do verdadeiro.

Para o pensador, o próprio pensamento ocidental-europeu moderno


percebeu que o pensar como lógica não é suficiente para tudo o que precisa ser

132
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.234.
133
Entendemos que a questão da verdade permeou o pensar de Heidegger desde o início, tendo,
inclusive, tratado dessa questão em algumas conferências, tais como: “Sobre a essência da
verdade”, de 1930, e “A doutrina de Platão sobre a verdade”, de 1931-1932, publicadas em
Marcas do caminho (GA9). Todavia, encontramos uma compreensão sucinta para a questão da
verdade na conferência intitulada “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” (GA14),
apresentada em 1966. Ali, o filósofo nos fala que a verdade, entendida como retitude da
representação e da enunciação, fica reduzida ao sentido de orthótes e não ao de alétheia. A
alétheia, compreendida pelos gregos como o sentido da certeza e da confiança do que se pode ter,
não pode ser identificada à palavra verdade, pois, segundo Heidegger, compreende-se a verdade
como concordância e adequação – o acordo da representação pensante e da coisa – sempre
relacionadas ao conhecimento como ente. (cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do
pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, pp.106-107.)
134
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.126.
53

levado em conta135, chegando inclusive a indagar se a representação do pensar


corresponderia, ou não, a algo fora de nós; ou ainda, se a totalidade do real
existiria enquanto representado por nós. Apesar de combatido, Schopenhauer
resume na sentença “o mundo é minha representação”136 o pensamento de seu
século sobre essa questão. Suspeita-se, com isso, que pensar e representar possam
ser o mesmo e que a essência do pensamento tenha sua origem no representar. De
acordo com Heidegger, nossa maneira de pensar ainda se atém ao representar,
ainda não nos encontramos no que é o mais próprio ao pensar. Segundo o
filósofo, a essência do pensar encontra-se oculta, e talvez só na medida em que
nos voltarmos para lá onde a essência do pensar escapou, não mais ludibriados
pela lógica, é que poderemos nos aproximar do que seja pensar.137 Vemos, assim,
que o pensamento ao qual o filósofo circunscreve seu questionar nada tem a ver
com o pensamento representacional e que a lógica, de alguma forma, encobre o
que é próprio do pensamento.
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Zarader avança na análise do pensamento representacional e nos conduz


ao pensamento calculador, sendo esse último, uma forma de representação
intrínseca ao modo da técnica. A autora nos coloca que, com base no pensamento
representacional, o pensamento calculador é aquele que afastou-se do seu
elemento original, ordenou-se de outra forma e sujeitou-se a algo que não lhe é
próprio. De acordo com Zarader, para Heidegger: “Quando o pensamento, ao
afastar-se de seu elemento, entra em declínio, compensa essa perda procurando
valorizar-se como +/01-, como instrumento de formação[...].”138 Este desvio é

135
Schneider nos faz entender que essa seria a crítica de Hegel a Kant. Para o autor, “Hegel critica
a pretensão kantiana de afastar-se do pensamento para estipular, diagnosticar e descrever a
suposição das suas condições e possibilidades.” Segundo Schneider, para Hegel, alargar a
compreensão de um conceito não questiona as bases com que este conceito foi construído. (cf.
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.101.)
136
Grifo nosso.“O mundo é minha representação” são as palavras com que Schopenhauer inicia
sua principal obra filosófica intitulada O mundo como vontade e representação, composta por
quatro livros e publicada em 1819. “A tese básica de sua concepção filosófica é a de que o mundo
só é dado à percepção como representação: o mundo, pois, é puro fenômeno ou representação. O
centro e a essência do mundo não estão nele, mas naquilo que condiciona o seu aspecto exterior,
na “coisa em si” do mundo, a qual Schopenhauer denomina “vontade” (o mundo por um lado é
representação e por outro é vontade)” Cf. [online] Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Mundo_como_Vontade_e_Representação Acesso em:20/6/2014.
137
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.41.
138
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.143.
54

nomeado pelo filósofo como “interpretação técnica do pensamento”139, um pensar


que encontra-se em ação por toda a parte. Origina-se com a lógica e tem a sua
realização máxima na ciência do mundo moderno, ou seja, nos reportamos aqui ao
pensamento científico. Mas, como traçar um paralelo entre +/01- e ἐ()*+,µ-? E,
mais, como entender a relação entre +/01- e pensamento?

Heidegger nos coloca que, desde o mundo grego, fundou-se o nexo entre
todo o saber e a +/01-. A Ἐ()*+,µ- compreendida como o “entender-se com
alguma coisa” e a +/01-, como o “reconhecer-se em alguma coisa” tem um
parentesco tão próximo, que muitas vezes usamos uma palavra pela outra.140
Zarader nos mostra que, para Heidegger, “o coração da ciência moderna é a
ἐ()*+,µ-, e isto tão originariamente que o que está encerrado, de maneira
embrionária, na ἐ()*+,µ-, só vem à luz na figura da ciência moderna”.141 A partir
disso, entendemos que, se no centro da ciência moderna encontramos a ἐ()*+,µ-,
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e se essa tem um parentesco antigo com a +/01-, é possível pensarmos que a +/01-
está de alguma forma ligada à ciência moderna. O próprio Heidegger nos diz que
ninguém é capaz de perceber de imediato a indicação de que na composição da
técnica moderna “[...], a +/01- se mostra como uma forma fundamental,
confessada ou inconfessada de saber entendido como ordem do cálculo”.142
Zarader explica esta conexão da seguinte forma: “Se a ciência moderna é [...] de
essência técnica, é porque a ἐ()*+,µ-, de onde deriva, é estreitamente aparentada
com a +/01- e não pode ser pensada fora dessa conexão”.143 Busquemos alguma
compreensão para esta afirmação.

A autora nos coloca que, para Heidegger, “a ciência é a teoria do real”144.


Isso significar dizer que a ciência incide o seu pensar sobre o real, uma
modalidade particular da presença que resulta de uma realização, uma ação que se
deu para trazer algo à luz. Diz a intérprete: “a coisa presente, enquanto real, é a
que foi trazida à presença como um efeito, à luz da causalidade. Mas, é mais
ainda. Com o início da época moderna, [...] ela é objeto para uma

139
Grifo da autora.
140
Cf. Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.215. Grifos nossos.
141
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.150.
142
Martin Heidegger, op. cit., p.216.
143
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, op. cit., p.205. Grifo da autora.
144
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.144.
55

representação”.145 Segundo a autora, a representação objetivada da coisa presente


constitui aquilo que Heidegger nomeia por teoria. Por outras palavras: teoria é a
elaboração do real, aquilo que busca captar o objeto como ele é. Todavia, sendo a
época moderna a consumação do reino da objetividade, a teoria acaba por
corresponder, como uma espécie de resposta, a esse tipo de comportamento.
Nesse sentido, para Heidegger, o modus operandi que o pensamento científico
moderno responde ao real é o da “representação que segue a pista e que garante
para si todo o real na sua objetividade [...]”.146 Trata-se de uma representação que,
segundo Zarader, se escora sobre uma elaboração prévia do real, efetivada através
de métodos, cálculos e delimitação de domínios distintos, e tem por consequência
o seguinte fato: aquilo que aparece não é mais aquilo que por si mesmo
desabrocha. Para a autora, esse determinado tipo de orientação também serve de
paradigma para o pensamento em sua acepção habitual.

Estamos aqui circunscritos ao horizonte da técnica que, de acordo com


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Zarader, é uma produção que nada tem a ver com a ($2-*)% grega, que
simplesmente permitia o ser das coisas desabrocharem por si mesmos, ao
contrário, no âmbito da investigação objetivada pela técnica, nos acercamos de
uma interpelação manipuladora que envolve o homem e o real em uma única
função na qual ambos são apenas partes complementares. Por outras palavras: o
homem guiado pelo domínio do pensamento representacional, ao se colocar
diante do real, o faz de modo a corresponder a um apelo objetivado que subjaz,
segundo Heidegger, à técnica. Assim, tanto o real – que desvelado pelo modo
tecnicista corresponde apenas a fundos disponíveis de material e de energias – ,
quanto o homem – que, nas palavras de Heidegger, nada mais é do que um
zelador desses fundos – aparecem como parte desta engrenagem que é a técnica.

Para Zarader, essa compreensão é fundamental, pois dela derivam tanto a


ciência moderna, como o pensamento que dela se origina – o pensamento
calculador –, ou seja, é a técnica que se encontra por traz da ciência moderna e seu

145
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.144. Zarader, nesse momento de
sua análise, adentra o modo de desvelamento que rege a essência da técnica moderna: Ge-Stell.
Através da autora, buscaremos entendimento para essa difícil questão na medida em que a mesma
é entendida como primordial ao desenvolvimento da análise do pensamento calculador, todavia,
sabemos, de antemão, da complexidade do pensamento de Heidegger sobre o tema.
146
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.145.
56

pensamento, mesmo sendo a ciência da natureza anterior ao aparecimento da


técnica. Assim, a Ge-Stell é, grosso modo, a reunião de dois domínios
aparentemente distintos – a ciência e a técnica –, o lugar em que ambos possuem
uma mesma essência e, por isso, devem ser compreendidos através de um único
termo. Daí a compreensão de que o pensamento calculador já se encontrava
presente tanto na razão clássica, como no mundo grego tardio. Para a autora, ao
abandonarmos a cronologia, com o interesse de enxergarmos aquilo que
veladamente se destinou na história, é possível percebermos que a ciência se
funda a partir da essência da técnica, e que o pensamento ocidental está submetido
à ciência.

Toda essa compreensão nos leva ao entendimento de que na ciência


encontramos vigente a “prevalência da lógica, (a) dominação da representação,
(as) categorias de causalidade e do fundamento, (o) reino do conceito, (a)
utilização da explicação, (a) vontade de rigor concebida como exatidão”147, traços
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que, segundo Zarader, regem e definem também o pensamento filosófico já, – e


desde Platão –, dominado pela representação. Assim, sendo a época moderna a
consumação do reino da objetividade, para a autora, a assim chamada
“interpretação técnica”148 do pensamento se funda em última análise no cálculo,
um tipo de pensamento que está destinado a prestar contas no sentido de garantir
o real – aquilo que é – e tem como característica principal o fato de estar
totalmente centrado sobre o ente. Por outras palavras: o pensamento calculador é
um pensamento do ente, sobre o ente e para o ente e tem como traço fundamental
tudo dominar a partir de uma lógica própria. Neste sentido, de acordo com
Zarader, o pensamento calculador condena-se a ser aquele que se fixa no ente, um
pensamento de mão única, incapaz de se relacionar com o mistério, com aquilo
que se deixa entrever senão furtando-se – lugar de onde se instaura a linguagem e
a poesia. Certos estamos de que o pensar é um representar, mas ainda não
chegamos ao que é o mais próprio do pensamento, “no único elemento em que o
pensamento pode ser ‘essencial’: o ser”.149

147
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.151.
148
Grifo da autora.
149
Marlène Zarader, op. cit., p.152. Grifo da autora.
57

Voltemos, agora, nossos passos ao caminho proposto por Heidegger para o


pensar de Nietzsche, o qual nos evidencia o destino árido do pensamento
caracterizado pela representação.

2.1.2. O Zaratustra de Heidegger

No segundo bloco temático das preleções de inverno, Heidegger


rememora a questão do pensamento na linguagem de Nietzsche. Segundo o
filósofo, é o pensamento de Nietzsche o mais estimulante para esta questão, pois
esse “diz na linguagem tradicional aquilo que é.”150 Para Heidegger, o pensamento
de Nietzsche concilia, na sua verdade própria, todo o pensamento do Ocidente.
Todavia, seu pensamento não está à vista, não o encontramos facilmente ao lançar
dos olhos. Temos que buscá-lo. Sua linguagem impronunciada, aquilo que subjaz
por trás das palavras, deve ser ouvida de modo a nos conduzir ao pensamento no
seu destino mais essencial.
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Ao tomar a frase de Nietzsche: “O deserto cresce: ai daquele que abriga


desertos!”, Heidegger faz referência ao caminho pelo qual anda o pensamento, ela
é expressão do que vai dentro do homem. Nela, Nietzsche nada mais quer do que
dizer do atual estado do mundo. Seu grito está no livro intitulado Assim falou
Zaratustra, obra em que o último pensador do Ocidente – nas palavras de
Heidegger – pensa o eterno retorno do Mesmo.151 Ao retomar Nietzsche,
Heidegger nos rememora a modernidade inacabada do pensamento do filósofo
que ainda não foi vislumbrado e a necessidade de descobri-lo, pois somente
absorvemos o impensado de um pensador quando nos aproximamos da sua
verdade original. E a grande verdade é que o pensamento de Nietzsche foi
refutado antes mesmo de ser compreendido.

Encontramos em Schneider a compreensão de que, para Heidegger,


Nietzsche percebe visivelmente, antes do que qualquer outro de sua época, a
imposição de se refletir de forma radical a essência do homem pensante. Segundo
Heidegger, para Nietzsche, há algo na história do homem ocidental que
permanece inacabado e necessita de acabamento uma vez que já chegou ao fim.

150
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.42.
151
Maiúscula do autor.
58

Nietzsche nomeia como “último homem”152 esta espécie que não consegue
enxergar além de si mesmo, elevar-se acima de si mesmo, pois ainda não alcançou
a sua própria essência. O pensamento de Nietzsche deseja ir além do homem de
sua época, deseja alcançar a plenitude da essência desse homem. Nesse sentido,
aquele que parte em travessia para além de si mesmo é, segundo Nietzsche, o
“super-homem”153. É ele que poderia guiar a essência do último homem à sua
verdade e a assumir no sentido de tomar posse de si mesmo e de toda a Terra, para
a partir daí conformar a técnica e o fazer humano a essa nova realidade. Para
Heidegger, esse que parte só pode ser alguém em decadência, pois é a partir do
declínio que o caminho do super-homem começa. O super-homem é, pois, aquele
que atingiu o seu declínio, o declínio do último homem que parte em travessia,
mas, ao mesmo tempo, é passagem, é ponte.

Schneider entende que repensar o último homem é fundamental para abrir


espaço ao homem do porvir. Zaratustra é este que possui o “poder-de-dizer” e
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diz. Em suas primeiras palavras, logo no prólogo, Zaratustra rememora


inversamente o centro da metafísica de Platão, que será, pois, a chave para o
entendimento do livro, mas logo reconhece que ainda não era tempo, nem hora de
falar sobre o mais elevado. Afinal, o povo encontrava-se subjugado ao ainda-não-
pensar, encontrava-se dominado pelo império da representação. O pensamento de
Nietzsche aponta para o fato de que o homem de então, em sua essência
metafísica, não estaria preparado para assumir e gerenciar o poder da Terra como
um todo, e segue ainda trôpego “atrás daquilo que há muito é [...], (pois) [...] a
representação dos objetivos, fins e meios, efeitos e causas à qual todos aqueles
esforços se filiam, é, antecipadamente, incapaz de se fazer aberta ao que é.”154

Schneider coloca que, ainda que circunscrito ao domínio da metafísica, é


Nietzsche quem denuncia a delimitação que tem por característica a definição do
homem como animal racional, animal da representação; uma forma de pensar que
busca explicar e delimitar o homem da mesma maneira que o faz com a totalidade
das coisas. Encontramos em Mugerauer semelhante ponderação. Para esse último,
está para além do escopo de intenções de Heidegger em Que chamamos pensar?

152
Grifo nosso.
153
Grifo nosso.
154
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.56.
59

se deter no desenvolvimento histórico da lógica iniciada no pensamento de Platão,


ou mesmo da lógica como dialética. Mas, conforme vimos, ao buscar respostas
para a atual determinação do pensamento pela lógica fica claro que essa
determinação parte da ideia de que “o homem é um animal racional e o
pensamento é um processo subjetivo pelo qual percebe-se ou apreende-se objetos
pela razão, e, no qual, forma-se ideias de modo a representar mentalmente esses
objetos e a formar proposições sobre eles”155. O autor compreende que esse traço
fundamental do pensamento tradicional nos trouxe ao atual modo de pensar; uma
forma que persiste e resiste através dos tempos a qualquer tentativa de mudança e
elucidação. Schneider complementa a ideia afirmando que o pensamento
representacional tem uma extraordinária propensão a se perpetuar no tempo, uma
vez que o homem, na qualidade de animal rationale, aceita e conforma-se às
regras determinadas pelo jogo da representação.

A representação recebe de Nietzsche a metáfora do piscar. É, pois, o que


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brilha e cintila, uma aparência totalmente superficial, tudo aquilo que se relaciona
com a representação. Para Nietzsche, o último homem pisca. A metáfora do piscar
é entendida por Schneider como uma situação em que o homem, enredado pelo
jogo da representação, se vê diante do brilhoso simulacro que lhe é oferecido: o
labirinto inextricável da “sala de espelhos que por representação reflexiva
continuamente lhe fornece a verdade proposicional objetiva [...]”.156 O autor nos
afirma que o cintilar e o piscar se conformam a um jogo já iniciado que se
estabelece com as cartas devidamente marcadas, cujo o resultado já está
previamente determinado e definitivamente consumado, sem nenhum acerto ou
reflexão anteriores.

De acordo com Heidegger, não encontraremos o super-homem de


Nietzsche na opinião pública, no poder, nos meios de comunicação, ali
encontramos somente a representação dominante e, junto a essa, o bom senso –
abrigo dos que invejam o pensamento. Tudo isso acaba por deixar o pensamento
numa situação conflitante com a sua essência, pois este, o pensamento, vive no
reino do original, do não-pensado, ou, como o próprio filósofo diz, do “im-

155
Robert Mugerauer, Heidegger’s language and thinking, 1988, p.70. Tradução nossa.
156
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, pp.108-109.
60

pensado”157. Nesse sentido, quanto mais singular, mais rico será o pensamento;
quanto mais próximo à representação, mais superficial, pois aqui fica-se preso ao
pensamento vigente. Schneider nos adverte que o regime da representação se
enraíza de modo inevitável e inconteste nas mais diversas áreas da cultura e da
linguagem. Segundo o intérprete, o pensamento do representar inibe qualquer
possibilidade de reflexão profunda sobre as coisas, afetando o juízo quanto ao
certo e ao errado, ao legítimo ou ilegítimo. É justamente a representação que
determina e estabelece o quadro que compõe a realidade, onde fulgurosamente
tudo se apresenta numa trama administrada e engendrada, incapaz de nos fazer
lembrar a conjuntura na qual se instalou tamanho engodo.

Dessa forma, para Heidegger, manter-se no caminho – ou a caminho –


torna-se mister, pois é o caminho que vai conduzir o pensador ao diálogo interno
com o pensamento. Esse diálogo travado no pensamento deve levar,
indubitavelmente, à questão do ser. Segundo o filósofo, toda a doutrina pensante
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sobre a essência do homem já é intrinsecamente uma doutrina do ser do ente.


Quanto mais único e genuíno, mais esse pensamento nos desconcertará e nos
abrirá para o seu impensado. Para Heidegger, é o impensado o maior presente que
um pensamento pode nos ofertar, e lançar-se ao ainda não pensado de um
pensador exprime o desejo de tornar o que ali subjaz ainda maior. O filósofo
entende que no caminho do pensamento o relacionamento entre ser e essência do
homem acontecem naturalmente, esse é um caminho interno natural, estamos já
em essência abertos para o apelo do ser. Todavia, só isso não basta, se faz
necessário “[...] rasgar a névoa que se põe diante do ente como tal, [...] e cuidar
para que esse rasgo não seja encoberto.”158

Heidegger passa, então, a perscrutar como o ser foi compreendido na


modernidade. O filósofo nos explica que vários filósofos da era moderna
pensaram o ser como vontade. Schelling, em sua Investigação filosófica sobre a
essência da liberdade humana e correspondentes objetos159, nos fala que não
existe outro ser que não o querer. É o querer a expressão suprema que reúne em si
os predicados do ser primordial, tais como a eternidade – independência do tempo

157
Hífen do autor. Grifo nosso.
158
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.76.
159
Friedrich Schelling, Über das Wesen der menschlichen Freiheit. Stuttgart: Reclam, 1964.
61

–, e o caráter incondicionado – ausência de fundamento. Heidegger nos coloca,


em “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” (GA7), que Schelling encontra na
vontade todas as qualidades que o pensamento metafísico atribuiu ao ser. O
pensador também nos lembra, que toda essa questão já estava histórica e
precisamente colocada nas formulações de Leibniz, quando esse pensou e
determinou o ser dos entes a partir da mônada e essa como uma unidade de
perceptio e appetitus: o apetite que, enquanto vontade, nos impele continuamente
de uma percepção à outra. Assim como Schelling na esteira de Leibniz, Kant e
Fichte se referiram ao querer racional, também perscrutado por Hegel.
Schopenhauer, como vimos, nos fala em vontade e representação, e Nietzsche
pensa o ser do ente como vontade de poder. Na linguagem da metafísica moderna,
“vontade” e “querer”160 não se referem apenas ao fato da capacidade da alma
humana se expressar pela vontade do querer, mas que o ser em sua totalidade
possui a sua essência através da vontade. Essa manifestação do ser como vontade
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só pode ser compreendida através do pensar.

De acordo com Heidegger, no caso de Nietzsche, a vontade de poder se


volta para a redenção face ao espírito da vingança, aqui entendida pela repulsa
contra o tempo e o seu “foi”161. Mugerauer nos conta que a história de Zaratustra é
a história de como o pensar por representação compreende o pensamento em
relação ao tempo. No que tange a representação do tempo, temos em nossa mente
a seguinte concepção: o presente se refere a tudo o que é, o futuro é ainda o
ausente e o passado é o já ausente; esse escoar sucessivo do tempo é o legado
mais certo que o tempo nos concede. Trata-se para Mugerauer, de uma
representação aristotélica da ideia de tempo: o constante passar que demarca uma
contínua sucessão de “agoras” que transformam o “agora ainda não” no “agora
não mais”.162 Miguel de Beistegui, em Thinking with Heidegger: Displacements,
também faz semelhante ponderação, o autor nos fala da essência do movimento
do pensamento que está sempre entre a possibilidade de algo que ainda vai se dar
e a memória de algo que já se deu. Essa compreensão do tempo como um escoar
sucessivo possui sempre um caráter transitório que, para ambos os autores,
caracteriza o modo típico de representação do tempo da metafísica ocidental.
160
Grifo nosso.
161
Grifo do autor.
162
Grifos do autor.
62

No que diz respeito à vontade, para Heidegger, tudo o que foi não é mais e
fica, portanto, de fora da esfera do querer. Diante do que passou, a vontade nada
mais tem a dizer. Neste sentido, torna-se impossível uma representação de algo
que não é mais, mas quer continuar sendo. Isto significa que o querer, ao esbarrar
em algo que foi, carrega em si uma contrariedade: a vontade que deseja se
eternizar no tempo, deseja continuar querendo, mas esbarra com o tempo que
passou. Nasce, com isso, a essência da vingança, essa repulsa no interior da
própria vontade “contra o tempo e seu ‘foi’”163; nasce o repúdio contra a sucessão
de “agoras” que ao se transformarem em “agora não mais” fazem perecer a
vontade que não pode mais querer. Heidegger nos coloca que, se pudesse ficar
livre da passagem constante do tempo, a vontade estaria liberta da vingança. Isto
significa dizer que a vontade, livre do tempo, torna-se capaz de eternizar-se.
Assim, fazer a travessia significa a própria redenção em face da vingança, uma
vez que nela fica-se liberto do ressentimento de que padece o último homem: a
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liberdade da necessidade da vingança contra o tempo e seu “foi”. Isto quer dizer
que a vontade não inclina mais o seu querer em direção ao temporal, pois há uma
presença já presente no homem. Há algo que se encontra primeiro – a vontade que
quer eternamente a vontade de querer. A vontade, uma vez liberta da repulsa, quer
constantemente o retorno do Mesmo164 e, dessa forma, quer a eternidade do que
quis, a vontade de si mesma como fundamento de si mesma. Esse é, segundo
Heidegger, o ápice da metafísica de Nietzsche.

Todavia, Heidegger nos confessa que a doutrina do eterno retorno do


Mesmo não se distingue pela clareza e permanece envolvida em obscuridade para
todos nós, inclusive para o próprio Nietzsche. Antes de encerrar suas preleções
sobre Assim falou Zaratustra, Heidegger levanta ainda uma última questão: na
medida em que considera-se o ser como presentificação, como ficam ser e tempo,
uma vez que este último fica representado como passar e o primeiro como
eternidade na presença? Há, segundo o filósofo, uma contradição nessa questão,
pois se toda a tradição metafísica pensa o ser como eternidade, isso significa que o
tempo concebido como transitório, como um contínuo passar, não pode ser
fundamento do eterno. Busquemos alguma luz para este pensar.

163
Friedrich Nietzsche apud Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.79.
164
Maiúscula do autor.
63

Sabemos com Zarader que, para Heidegger, em toda a história do


pensamento ocidental, o ser está marcado pela chancela da presença. Essa
afirmação heideggeriana é tão frequente que, segundo a autora, adquiriu estatuto
de evidência. Zarader nos rememora, em breves palavras, que essa afirmação não
sinaliza para o fato do ser ter sido pensado165 desta forma, mas, sim, para o modo
como foi compreendido, interpretado, experimentado. A autora nos explica que a
perspectiva que guiou essa compreensão ao pensamento permanece oculta, mas,
sem a mesma, nada seria possível ou inteligível. A única forma que se manteve e
que adquire algum sentido para se referir ao ser, tem como pano de fundo a
presença e, consequentemente, o tempo. Portanto, a relação entre ser e presença é
a primeira que se dá na história do pensamento ocidental. Todavia, segundo a
autora, embora o ser tenha sido experimentado como presença, essa não é
considerada na sua dimensão temporal, na sua pertença ao tempo. Neste sentido,
Zarader nos coloca que não só o ser mas, também, o tempo continuam
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impensados. Em entrevista a Richard Wisser, Heidegger nos dá algumas pistas


para essa questão. Diz o filósofo:
Os gregos definiam o ser como presença (Anwesenheit) do que
está presente. A noção de presença lembra a de atualidade
(Gegenwart), a atualidade é um momento do tempo, a definição
do ser como presença refere-se, pois, ao tempo. Se tento, agora,
determinar a presença a partir do tempo, e se busco na história do
pensamento o que foi dito sobre o tempo, descubro que desde
Aristóteles a essência do tempo é determinada a partir de um Ser
já determinado. Então: o conceito tradicional de tempo é
inutilizável.166

Vemos que, segundo Heidegger, a ideia de tempo que conhecemos não é


suficiente para nos acenar esse horizonte sobre o qual o ser se insere. Trata-se de
uma medida entitativa que se circunscreve a uma presença, ou seja, uma
permanência que não pode ser representada pela transitoriedade do passar do
tempo. Schneider nos explica que o entendimento de tempo que estava presente
em Aristóteles ainda é o mesmo a representar o tempo de Nietzsche. O intérprete
segue nos explicando que, no que diz respeito à experiência temporal, devemos
nos ater ao fato de que o ser deve ser pensado dentro de um horizonte mais
original, uma vez que possui uma temporalidade própria. Por isso, segundo

165
Itálico da autora.
166
Martin Heidegger, “Entrevista ao Professor Richard Wisser”, in: O que nos faz pensar?, 1996,
pp.15-16. Grifo do autor.
64

Schneider, a pergunta essencial heideggeriana seria sobre uma possível concepção


de tempo mais fundamental subjacente àquela tradicional; pergunta essa não
elaborada pela tradição metafísica. Para Heidegger, toda a metafísica repousa
sobre esse impensado, e a contemporaneidade mal tem condições de formular a
questão do ser do ente.

Nos encontramos, pois, face à questão do impensado da metafísica, na


relação do pensador com o ser do ente, uma questão que permanece difícil. A
problemática reside, precisamente, no fato de que a essência da representação
precisa da linguagem para que se possa conhecer o pensamento, e, além da
dificuldade imposta pela representação, que sofre uma forma de redução e
decomposição, somos ainda incapazes de nomear essa experiência do
pensamento, a saber, essa presença que se faz presente, de forma própria e
adequada. Assim, mesmo a mais elevada tentativa de representação, como no caso
de Nietzsche, não garante que tenhamos nos envolvido com o que é dito, ou que o
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dito será compreendido. Nossa capacidade de ouvir, iludida pelos os ecos da


história, nos impede de reconhecê-lo. O filósofo reconhece que “na tentativa de
Nietzsche de pensar o ser do ente torna-se claro para nós, contemporâneos, de um
modo quase inconveniente, que todo o pensar, isto é, relação com o ser,
permanece difícil.”167 Trata-se de uma dificuldade que perseguiu toda a tradição
metafísica, uma dificuldade que reverbera ainda em nosso tempo.
Ao finalizar suas preleções de inverno Heidegger rememora Aristóteles,
dizendo:
Assim como os olhos dos pássaros da noite se comportam diante
da luz resplandecente do dia, também a percepção que é própria
da nossa essência se comporta diante do que a partir de si mesmo
– segundo seu presentificar-se – é o mais resplandecente de
todos.168
Através desse dizer, Heidegger nos reafirma a compreensão de que, ainda que o
ser do ente seja luminoso e resplandecente, continuamos cegos à luz do ser; não o
enxergamos senão através de um extremado esforço. Concluímos, com isso, a
primeira parte de Que chamamos pensar?.

167
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.92.
168
Aristóteles apud Martin Heidegger, ibidem, p.92. À exceção do trecho entre travessões que,
segundo Lyra, seria um comentário de Heidegger e, portanto, não faz parte do fragmento de
Aristóteles. (cf. Nota do Tradutor, ibidem, p.92.)
65

2.1.2.1. Nietzsche e o fim da metafísica

Consideramos relevante voltarmos nosso olhar, nesta parte de nossa


caminhada, para uma questão que julgamos de extrema importância para a
compreensão dos desdobramentos que a hermenêutica heideggeriana sobre o texto
de Nietzsche nos traz: o entendimento de que a filosofia de Nietzsche é
considerada por Heidegger como o fim da metafísica. Todavia, vejamos primeiro
aquilo que o termo metafísica suscita para o pensar do filósofo.

Casanova, na apresentação ao segundo volume do escrito de Heidegger


sobre Nietzsche, nos coloca que, para Heidegger, a metafísica não significa a
mera cisão da realidade no mundo sensível e supra-sensível e nela a ideia de que
num dos lados encontramos “o conjunto de entidades que não se imiscuem na
lógica do mundo dos fenômenos”.169 De acordo com o autor, metafísica é um
termo compreendido por Heidegger como um modo distinto de instaurar a questão
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acerca do ser, uma vez que, para o filósofo, o ser mesmo não é questionado. Em
Heráclito, Heidegger se refere a um tipo de pensamento concebido pela tradição
como a “questão do ser”170 que firma-se como um pensar sobre o ser, mas basta
apenas um olhar atento para se depreender que o que está em jogo é o ente e
aquilo que o ente é. O filósofo nos adverte que em relação à “questão do ser”
questiona-se, de imediato e às cegas, o ente e, por assim procederem, quando a
questão do ser e de sua verdade é colocada de maneira distinta “o ouvido não
consegue lhe dar acolhida, porque esse ouvido só escuta o que fala para si
mesmo.”171 Como é possível compreendermos essas afirmações do filósofo?

É o próprio Heidegger que nos coloca, em Introdução à metafísica


(GA40), que a situação da “questão do ser” é confusa uma vez que correntemente
investiga-se o ente enquanto tal e, nessa investigação, não se entra na temática do
ser, mas deixa-o esquecido. Isto significa que, para o filósofo, falar do ente
enquanto tal não nos orienta para a questão do ser. Heidegger entende que na
tentativa de compreender o ente em seu ser, a tradição metafísica, esquecendo-se
da diferença ontológica entre ser e ente, perguntou pelo ser e respondeu

169
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche II, 2007, pp.vii-
viii.
170
Grifo do autor.
171
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.91.
66

entitativamente, ou seja, o questionamento sobre o ser partiu sempre de um


horizonte de compreensão determinado pelo ente, e, nesse sentido, a questão
mesma do ser não foi colocada. Para o filósofo, a questão do ser tem a tendência
a se identificar com a questão do ente, exatamente porque a sua proveniência
continua na obscuridade. Por outro lado, falar do ser enquanto tal, tampouco seria
correto, uma vez que isso nos orientaria para uma ordem superior, transcendental,
que não corresponde às exigências do ser pensadas por Heidegger.

Segundo Casanova, Heidegger percebe que toda a história do pensamento


ocidental, desde Platão até Nietzsche, é determinada pelo esquecimento do ser.
Trata-se, como vimos, de um esquecimento que se consolida na própria ausência
sobre a questão acerca do ser. Benedito Nunes, em O Nietzsche de Heidegger,
também entende que a história do ser, pensada ao longo de toda a tradição
metafísica, nos deixa como legado uma grande lacuna. Para o intérprete, ao pensar
o ser, mas deter-se no ente, equipara-se ambos, esquecendo-se do diferencial que
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os separa. Nunes também compreende que, para Heidegger, a história do


esquecimento do ser inicia-se com Platão e termina com Nietzsche. O autor nos
mostra que o esquecimento do ser em favor do ente é apresentado ao longo de
toda a história do pensamento ocidental através de uma diversidade de modos, tais
como: a ἰ3/4 de Platão; a $ὐ*24 de Aristóteles; o ens criator da época medieval;
na modernidade, o sujeito pensante – Ego Sum – de Descartes; a relação da
vontade ao saber, com Schelling; Hegel, com o saber absoluto; o eu penso
desdobrando-se no eu quero, em Fichte; e a vontade – Ego Volo – como vontade
de poder, em Nietzsche. Segundo o intérprete, a história do ser passa ainda pela
coisa em si kantiana, reduzida por Schopenhauer à vontade universal. O intérprete
nos coloca que o que há de comum entre essas configurações, ainda que uma ou
outra se articule, é o esquecimento da diferença entre ser e ente.172

No que diz respeito ao pensar de Nietzsche, Hans Sluga, em “Heidegger’s


Nietzsche”, entende que, assim como todos os outros pensadores na busca das
principais causas de todo o pensamento metafísico, Nietzsche também não

172
Apesar de termos nos detido anteriormente à questão do ser na modernidade através da análise
de Heidegger sobre a vontade, entendemos que se faz necessária uma visão mais alargada,
esboçada aqui em suas linhas essenciais, sobre os diferentes princípios ordenadores invocados pela
metafísica, no sentido de caracterizar a história do ser.
67

conseguiu enfrentar a questão e, por isso, permaneceu na abrangência do


esquecimento do ser. Casanova avança nessa compreensão ao colocar que, para
Heidegger, Nietzsche não entende mais a tarefa da filosofia como a de buscar uma
maneira isenta para definir “o ser do ente enquanto tal [...]”.173 Segundo o autor, o
filósofo compreende que essa pergunta nem mesmo é formulada criticamente por
Nietzsche. Para Heidegger, o ser tornou-se um mero vapor na filosofia de
Nietzsche, tão desvalorizado que desaparece diante da vontade de poder. Por
outras palavras: Nietzsche não equipara mais ser e verdade como valores
supremos, para ele a verdade é apenas tolerada na medida em que é considerada
como um valor indispensável à manutenção da vontade de poder.174 Casanova nos
chama atenção para o fato de que, para Heidegger, subjaz à filosofia de Nietzsche
a ideia de que o ser e a verdade são concebidos “em função da concepção do
caráter soberano do devir e do pensamento da vontade de poder como o fato
último da realidade”175, i.e., ser e verdade se dariam em uma dimensão derivada da
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vontade de poder, sendo essa última uma disposição e conformação do mundo


ôntico. Entendido por Nietzsche como um valor de segunda grandeza, o ser fica
ligado à vontade de poder que é o princípio originário da configuração da
realidade. Com isso, a pergunta pelo ser desaparece do pensamento nietzschiano e
cai no esquecimento radical. O fim da metafísica significa, pois, a dissolução
completa da presença do ser em um produto da vontade que quer sempre a si
mesma e controla tudo o que é e pode ser.

Benedito Nunes também apresenta semelhante colocação. O autor entende


que, através do texto de Nietzsche, ficam evidenciados para o pensar de
Heidegger, o declínio e a decadência da época como traços do niilismo e da total
perda de valores. Segundo o autor, para Heidegger, Nietzsche escreve o último
capítulo da história da metafísica ao afirmar que o ser é vapor, erro e ilusão. Este
término se dá, concomitantemente, ao mais profundo esquecimento do ser.
Segundo Nunes, Nietzsche inverte as lentes do platonismo, jogando para o mundo
das aparências aquilo que Platão havia reservado apenas para o mundo inteligível:
o real verdadeiro. Isto significa que a certeza e a verdade, assim como as leis

173
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Matin Heidegger, Nietzsche II, 2007, p.viii.
174
O autor nos coloca que essa compreensão heideggeriana é apresentada na preleção “O niilismo
europeu”, em 1940. (cf. Ibidem, p.ix.)
175
Ibidem, p.ix.
68

lógicas e científicas, são dadas por medidas e parâmetros de nossas compreensões


do real. A este declínio do mundo subsiste somente o ser como vontade de
potência, e é a vontade que dá a medida para a dominação e determina que só é
real aquilo que pode ser objetivado. O intérprete compreende que a vontade de
potência é apontada por Heidegger como a vontade que continua querendo a si
mesma, a vontade de vontade. Nesse sentido, o eterno retorno do Mesmo seria “o
suprassumo do niilismo”176, pois perpetuaria a vontade de poder que busca
eternizar-se querendo a si mesma. O autor ainda nos coloca que a vontade de
poder, o eterno retorno e o niilismo são peças fundamentais no pensar de
Heidegger sobre Nietzsche, uma vez que expressam a consumação da metafísica e
o fechamento da história do ser.

Concluímos, com isso, a metade do nosso percurso, porém, antes de


iniciarmos as preleções do verão de 1952, ainda uma questão se põe para nós:
qual seria o propósito de Heidegger ao iniciar as preleções sobre Que chamamos
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pensar? com Nietzsche, para só então voltar-se para Parmênides? Não apresenta
essa escolha uma inversão histórica? Entendemos, com o que até aqui esforçamo-
nos em apresentar, que a trajetória do pensar heideggeriano busca evidenciar o
caminho que o pensamento ocidental seguiu a partir de Platão – momento em que
se cunhou a identidade entre pensamento e lógica –, chegando até a temporalidade
nietzschiana e o fim da metafísica, para com o retorno à aurora grega, neste caso,
Parmênides e alguns fragmentos do poema Da Natureza, buscar uma nova vereda,
perscrutar um novo caminho em direção ao pensamento do ser. Busquemos, pois,
seguir as marcas do caminho deixadas por Heidegger.

2.2. As preleções do verão de 1952

A segunda parte do escrito Que chamamos pensar? nos leva, como


anunciamos, à análise de alguns fragmentos do poema Da Natureza de
Parmênides. Todavia, essa segunda parte do livro, dividida em onze capítulos, não
adentra o pensamento de Parmênides de imediato. Heidegger, em sua dinâmica
própria, nos conduz ao pensar de Parmênides através de uma longa reflexão sobre
a pergunta: O que é que nos chama a pensar?.Vejamos com isto se dá.

176
Benedito Nunes, O Nietzsche de Heidegger, 2000, p.55.
69

2.2.1. O chamado

Heidegger retoma a questão “Que chamamos pensar?”177 ciente de que esta


apresenta uma multiplicidade de sentidos possíveis em sua formulação, a saber:
qual é o significado da palavra “Pensar”178?; qual é o traço fundamental da
doutrina do pensar, i.e., segundo a lógica?; qual é a exigência para o bem pensar?;
e, por último, que é isso que nos chama a pensar? Segundo Schneider, a
justificativa para suscitar tais possibilidades para a pergunta resulta do fato de que
a perscrutação heideggeriana sobre a questão do pensar se orienta, em grande
parte, por aquilo que as próprias palavras sugerem e indicam. Nesse sentido,
palavras como – pensar, desejo, memória, cuidado, reflexão, recordação, destino –
se circunscrevem dentro do campo semântico das quatro perguntas levantadas
pelo filósofo. É, para Heidegger, na mútua pertença desses sentidos que a
pergunta pode ser feita e que podemos vislumbrar uma resposta. Com isso,
indagamos: de que forma podemos pensar essa multiplicidade de sentidos em uma
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unidade? Haveria uma hierarquia nesses modos de forma a enunciar as partes de


um todo?

O pensador entende que essa unidade é expressa a partir do sentido da


última pergunta, é ela que nos dá a medida: o que é que no pensar nos chama a
pensar?, ou melhor dizendo, que é “Aquilo que no pensar nos solicita (verweist) e
desse modo nos orienta (anweist)”179, não apenas no impulso, mas, sobretudo, no
desejo de pensar? Schneider compreende que nessa requisição haveria uma
exigência, uma inevitabilidade no pensar, algo que se manifesta como uma graça
a acontecer de forma inevitável. Todavia, Heidegger nos lembra que essa
solicitação não tem, de forma alguma, apenas o sentido do impulso para a
efetivação do pensamento. Para o filósofo, aquilo que nos solicita faz com que
desejemos o pensar e, assim, sejamos pensantes. A pergunta “Que nos chama a
pensar?” surge, pois, como uma forma de delinear um caminho, uma diretriz.

Num primeiro momento, Heidegger nos mostra que podemos


inadvertidamente achar que, apesar de envolver o homem, essa pergunta o faz
apenas na medida em que é nele que esse processo acontece, é nele que realiza-se
177
Grifo do autor.
178
Grifo do autor.
179
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.95. Maiúscula do autor.
70

o pensar. Entendido dessa maneira, o pensar é visto como objeto de uma pesquisa,
e o homem em sua natureza, aquele que realiza o pensar, fica fora da pergunta,
pois não é coisa que uma pesquisa sobre o pensar deva se deter. Por outro lado, se
na pergunta “Que chamamos Pensar?” nos direcionarmos para Aquilo que de fato
acontece em nós, então, estamos nós mesmos enredados na trama dessa questão e
a pergunta deixa de se relacionar diretamente com o objeto, deixa de ser
genuinamente um problema da ciência, uma vez que nós, em nossa essência,
somos interpelados. Segundo Schneider, a frase “Que nos chama a pensar?” está
intrinsecamente relacionada ao homem. Essa frase nos remete a nós mesmos, uma
vez que não temos como saber o que seja pensar sem que já estejamos inseridos
na própria experiência de pensar. Estamos no âmbito daquilo que nos interpela em
nossa essência. Não há no pensar, como vimos no início do capítulo, uma cisão
entre sujeito e objeto. Trata-se, nas palavras de Zarader, de “reconduzir o
pensamento ao seu elemento, lembrando a sua pertença ao ser”.180 Mas, o que esse
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chamado nos diz?

Segundo Heidegger, quando enunciamos a pergunta “Que chamamos


pensar?” imediatamente nossa atenção se dirige à representação que fazemos do
nome “pensar”, por isso, num primeiro momento, chamar significa nomear, ser
nomeado. Entretanto, quando perguntamos por Aquilo que nos convoca a pensar,
então, não mais nos referimos ao significado primeiro, mas a um significado
novo, a uma solicitação, uma exortação que nos dispõe a sermos alcançados por
algo; um chamado que sutilmente nos interpela a uma sintonia com algo que pode
acontecer. Apesar de nos parecer estranho, chamar pode, então, ter o sentido de
“orientar, cobrar, deixar-se alcançar, trazer ao caminho, en-caminhar (be-wegen),
prover caminho”181.

Mas, por que o sentido habitual de chamar, o de ser nomeado, nos parece
natural e preferencial em nosso pensamento? Heidegger entende que fazemos essa
escolha inconscientemente. O filósofo nos orienta para o fato de que é justamente
aquilo que soa o mais estranho, o mais próprio da palavra, que, exatamente por ser
único, é capaz de originar as demais possibilidades de sua acepção. Essa
orientação nos leva, então, à compreensão do chamar como um chamamento, uma
180
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.152.
181
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.98.
71

solicitação que se deixa alcançar, um sopro na alma que nos envolve por sua
chegada e presença. Por outras palavras: a pergunta “Que chamamos pensar?” nos
remete diretamente ao questionamento daquilo que nos dirige a palavra a fim de
que pensemos, e isso é, no entender de Heidegger, o inabitual. Não estamos de
forma alguma acostumados a esse dizer da palavra.

Para Heidegger, a essência da língua possui a capacidade de jogar com o


nosso dizer, de tal modo, que há um esforço enorme no sentido de
compreendermos o que é o mais próprio da palavra. Por conta dessa dificuldade, o
homem se vê sempre rendido ao seu sentido habitual, ao dizer corrente, tomando-
o, até mesmo, como o único padrão. Assim, segundo Heidegger, o que seria o
sentido mais próprio torna-se uma transgressão, algo fora do padrão, uma vez que
não atende ao conceito corrente. Schneider acrescenta que aquilo que se mostra
apenas conceitualmente esconde a sua origem. Segundo Heidegger, estamos tão
embriagados pelo sentido habitual das palavras, escorados no uso do senso
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comum, que nada percebemos do jogo superior traçado pela essência da língua.
Somente quando prestamos atenção, quando nossos ouvidos estão aguçados,
podemos, de forma cautelosa, nos aproximar daquilo que é o mais próprio do seu
dizer.

Heidegger percebe que “dar nome a alguma coisa”182 – sentido corrente e


habitual da palavra “chamar”183 – não está tão distante do seu sentido mais próprio
e original. Todavia, o filósofo nos adverte que quando nomeamos alguma coisa,
estabelecemos uma relação entre nome e coisa. Nessa relação, o nome passa a ser
considerado como um objeto, assume um caráter objetivo, pois “[...]
representamos a relação entre nome e coisa como uma correlação entre dois
objetos diferentes”.184 Nos encontramos, assim, no reino da representação.
Segundo Heidegger, essa correlação entre a coisa e seu nome acaba por vedar
qualquer outra possibilidade de compreensão.

Para além do nomear, o vocábulo “chamar” pode ser compreendido como


evocar na palavra, e aquilo que é evocado no chamar-a-vir, presentifica-se e, por

182
Grifo do autor.
183
Grifo do autor.
184
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.100.
72

fim, “chama-se”185. Chamar repousa, então, numa evocação. O filósofo entende


que quando compreendemos a palavra “chamar” em seu sentido próprio, “no
sentido da pergunta por aquilo que a nós apela e, com isso, chama-nos a
pensar”186, a questão “Que chamamos pensar?” pode ser, enfim, formulada como
deveria ser e as três outras vias de formular a pergunta podem ser alcançadas.
Mas, o que realmente nos chama a pensar? O que, nas palavras de Heidegger,
“apela a nós para que pensemos e assim sejamos, como pensantes, aquilo que
somos?”187

Para Heidegger, há no pensar um resgate da nossa essência que é evocada


e que precisa do pensar para ser considerada; o que nos chama a pensar reivindica,
através do pensar, o cuidado com a própria essência. O filósofo nomeia como o
mais problemático Aquilo que nos dá a pensar. Assim, é o problemático por
excelência aquilo que nos determina essencialmente e que, antes de tudo, torna-
nos mais próprios ao pensar. Schneider nos coloca que “o procurado que se
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procura elucidar determina de alguma maneira a quem o procura [...]”.188 Para o


intérprete, a maneira pela qual o ser se manifesta requer um caminho de
descoberta, que se firma pelo aprofundamento daquele que o percebe pré-
compreensivamente. Todavia, Schneider nos coloca que essa pré-compreensão
nos leva a conceber o ser a partir de uma reflexão que já se encontra presente na
esfera do pensar, objetivada pelo pensamento representacional, e não aquilo que
torna possível o próprio pensar. O intérprete ressalta que o ser não é
fundamentado e nem gerado ou realizado pelo pensamento. Mas, ao contrário, o
ser desvela-se no pensar, de tal forma que ao fazê-lo dá ao homem o que pensar.
Com isso, consuma “a sua relação com a essência do homem pela oferta de si na
compreensão por meio da linguagem”.189

Por isso, no entendimento de Heidegger, pensar é uma dádiva, a maior


riqueza que possuímos em nossa essência, e na pergunta “Que nos chama a
pensar?” indagamos não só pelo que nos agracia com essa dádiva, como por nós

185
Grifo do autor.
186
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.101.
187
Ibidem, p.101.
188
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.14.
189
Ibidem, p.15.
73

mesmos em nossa essência, pois somente somos capazes de pensar “na medida
em que somos agraciados com o mais problemático, presenteados com o que
desde o princípio e a perder de vista gostaria de ser pensado”190. Uma vez
agraciados, o desejo de pensar torna-se também crucial para que possamos pensar
de modo próprio.

Heidegger percebe que raramente nos envolvemos com o pensar. O


chamado ao pensar é totalmente livre. Nesse chamado, Aquilo que nos chama, o
faz em liberdade para que ali possa existir o humanamente livre, e é nessa
evocação que a essência original da liberdade oculta-se, visto que dá ao homem
algo de sua essência. Mas, o que é para Heidegger a essência original da
liberdade? Em “Sobre a essência da verdade” (GA9), Heidegger volta seu olhar
para a questão da essência da liberdade em sua relação essencial com a verdade.
Essa conexão, segundo o filósofo, nos levará ao domínio no qual se essencializa
originariamente a essência da liberdade. A liberdade assim compreendida é aquilo
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que deixa que o ente seja o que ele é. Segundo o filósofo, não há nisso uma
omissão ou indiferença, mas, ao contrário, um “entregar-se ao aberto [...] que cada
ente traz, por assim dizer, consigo”.191 Zarader nos esclarece que a questão da
essência da liberdade é pensada por Heidegger a partir de “uma verdade ‘mais
original’”192. A autora ressalta que não se trata de uma liberdade do homem em
relação às coisas, aos entes. Mas, trata-se da “liberdade do ser no duplo sentido
deste possessivo: liberdade concedida pelo homem ao ser, e, de uma certa
maneira, liberdade concedida pelo ser ao homem – liberdade de ser na verdade”.193
De acordo com a intérprete, a liberdade assim compreendida é o traço de união
entre o ente e o ser, e não é porque ela ocupa um lugar intermediário entre ambas
as verdades – de ser e ente –, que ela é apenas passagem de uma à outra, mas
porque participa de forma enigmática de uma e de outra. Segundo a intérprete, “é
só por esta dupla participação de essência que ela pode ser uma função de
articulação de uma com a outra”.194

190
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.106.
191
Martin Heidegger, “A essência da verdade”, in: Marcas do caminho, Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2008, p.200.
192
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.70.
193
Ibidem, p.72. Grifo da autora.
194
Ibidem, p.75. Grifo da autora. Ainda no que diz respeito a essa posição intermediária entre a
verdade do ente e a verdade do ser, Zarader acrescenta que este “traço de união é o que separa e
74

Segundo Heidegger, no sentido de uma compreensão da palavra “pensar”,


somos remetidos, mesmo que de forma imprecisa, a algo da ordem do espírito
humano: diz-se tanto da ordem de atos de vontade quanto de atos de pensamento.
Neste sentido, na pergunta “Que nos chama a pensar?” indagamos não somente
para o lugar de onde parte o chamamento ao pensar, mas igualmente sobre o
que195 ao pensar nos chama. Denota-se, neste movimento, não só uma evocação,
mas também algo já nomeado, compreendido, mesmo que de modo aproximado.
Heidegger nos coloca que, de um modo geral, a aproximação dada pela língua
habitual é suficiente para o uso corrente. Todavia, o filósofo entende que, nesse
caso, deve-se buscar a palavra como palavra. Assim, na pergunta: o que é
nomeado na palavra pensar?, faz-se necessário nos aventurarmos no jogo da
língua, de forma a compreendermos o que, em nossa essência, o pensar tem a
dizer.

2.2.2. O dizer das palavras


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Heidegger concede ao pensar e ao poetizar, ambos com essências


singulares e distintas, o estatuto do dizer essencial. Para o filósofo, a língua é
pensada habitualmente apenas como um meio de expressão. Porém, o pensar e o
poetizar “nunca se valem de antemão da língua para com sua ajuda se manifestar;
são, ao contrário, em si mesmos o falar original, essencial e, por isso,
simultaneamente derradeiro, aquele que a língua fala por meio do homem.”196
Segundo Zarader, os poetas e os pensadores são os únicos que cumprem e
realizam o seu destino, são os que se devotam ao ofício de zelar pela linguagem.

O filósofo entende que o pensar e o poetizar dizem palavras, não termos.


Para o pensador, “as palavras aparecem primeira e superficialmente como
termos.”197 Os termos são da ordem do sensível, do som, algo que nos é dado
imediatamente, na medida em que aparecem como verbalmente ditos na nossa
fala. À palavra une-se o sentido e o significado, algo da ordem do não sensível.
Heidegger nos coloca que é no ato doador de sentido que o termo se abastece e se

que une o Da-sein no meio deste. A liberdade é, no sentido estrito, o que permite ao ‘ser’ ter um
‘aí’, ao Sein ter um Da. E é precisamente porque ela é esta permissão, dada ao ser, de ser ‘aí’, que
em troca define e clarifica a essência do Dasein [...].” (cf. Ibidem., p.72.)
195
Itálico do autor.
196
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.107.
197
Ibidem, p.108.
75

torna significativo, torna-se palavra. Para o filósofo, os termos são preenchidos ou


esvaziados de sentido, da mesma forma que colocamos ou tiramos água de um
balde. Assim, à simples vista, aquilo que se mostra é sempre o habitual, algo que
nos retira do habitar essencial198 da palavra. De acordo com Zarader, estamos
ancorados em ideias preconcebidas que nos delimitam o campo de qualquer
investigação sobre a linguagem, sendo o principal pressuposto o de que é o
homem quem fala e o faz por meio da língua. Dessa forma, ficam estabelecidos
de imediato o estatuto da linguagem e a sua função199. O primeiro, entendido
como instrumento, e a segunda, como exteriorização do pensamento; uma função
de expressão, apenas. Por conta disso, Zarader entende que quando se quer falar
algo sobre a linguagem, o escopo do discurso está logo delimitado por uma
concepção prévia. Diz a intérprete: “Determina-se (a linguagem) como reflexão
de um sujeito sobre um objeto, exigindo um método apropriado, com vistas a
chegar ao único objetivo concebível a partir dessas premissas: o isolamento da
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essência do objeto”.200 Para a autora, em se tratando de Heidegger, tudo isso deve


ser abandonado, pois, para o filósofo, a linguagem não pode ser, de forma alguma,
objeto para o pensamento. Na contramão de tudo isso, Heidegger compreende
que é o homem que se encontra a serviço da linguagem. Mas, como entender isso?

Entendemos com Zarader que, para Heidegger, a relação tradicionalmente


determinada entre o homem e a linguagem, expressa na frase “o homem fala”201,
deve ser invertida. Não é o homem que fala, mas a linguagem em si que se serve
do homem para falar. Há, segundo o filósofo, uma correspondência entre o falar
humano e o falar da língua; correspondência entendida no sentido múltiplo do
termo alemão Entsprechen e que define o dizer do homem como uma resposta.
Todavia, “o homem só pode falar na medida em que ‘escuta’ a linguagem.”202
Zarader nos aponta que o dizer dos homens é essencialmente uma resposta.
Todavia, somente aquele que prestou atenção ao chamado e o ouviu é que pode
restituí-lo na palavra.

198
Itálico nosso.
199
Itálicos da autora.
200
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.237.
201
Grifo da autora.
202
Marlène Zarader, op. cit., pp.239-240.
76

Segundo Heidegger, entre aquilo que escutamos e a palavra em sua


essência, em seu habitat original, há um abismo enorme.203 Zarader nos aponta que
a escuta à qual o filósofo se atém é a escuta em seu sentido triplo: de audição, de
obediência e de pertença. Assim, para o filósofo: “falar, é antes de mais escutar
[...]. Não falamos apenas a linguagem, falamos a partir dela [...]. Só a ouvimos
porque lhe pertencemos”.204 É, pois, exatamente nesse lugar do jogo da língua,
nessa relação de correspondência entre o que é “falado” e o que é “escutado”205,
que se abre a possibilidade para que as palavras possam se expressar, possam vir-
a-dizer, pois estas não são como baldes,
são poços que o dizer cava, poços novos a achar e cavar de
tempos em tempos, que facilmente se fecham, mas de vez em
quando também jorram. Sem essa ida contínua aos poços, os
baldes e tonéis ou permanecem vazios ou seu conteúdo
estagnado.206

Nesse sentido, para que alcancemos o jogo da língua faz-se necessário uma
atenção ao dizer das coisas, faz-se necessário nos desprendermos do habitual, o
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que, segundo Heidegger, é muito difícil em nossos tempos. No entender do


filósofo, qualquer tentativa de atenção, como a ora deferida aos verbos pensar e
chamar, será tomada como uma análise parcial e improdutiva, uma vez que não
nos remete ao âmbito do concreto das coisas. Daí, a necessidade de um
envolvimento com a história da língua para acercar-se do espaço de jogo do dizer.

A história da língua abre, por certo, uma possibilidade de caminho.


Entretanto, o filósofo entende que a filologia é uma ciência que não pensa como a
filosofia. O caminho do pensar direcionado e mediado pela atenção ao dizer das
palavras é o caminho da filosofia, mas este é um caminho de conhecimento

203
Heidegger debruçou-se sobre a questão da essência da linguagem em várias conferências e
cursos reunidos na obra intitulada A caminho da linguagem (GA12), publicada em 1959. Todavia,
na conferência nomeada Língua de tradição e língua técnica (GA80), proferida em 1962 na
Academia de Combourg, Heidegger aborda a questão da língua e da técnica, tão presentes em Que
chamamos pensar?, e que serve para uma compreensão daquilo que aqui desejamos esboçar. Para
o filósofo, é necessário que através do pensamento tenhamos a experiência daquilo que é, pois, do
contrário, estaremos presos ao peso de uma ortodoxia acadêmica que não nos coloca em vantagem
em relação à força da era industrial. Segundo Heidegger, é preciso nos direcionarmos em sentido
oposto ao que possui caráter utilitário e prático, para, com isso, nos aproximarmos do vazio, do
inútil, do lugar onde habita o sentido das coisas. Devemos, pois, nos aproximar das palavras não
no sentido de suas representações, daquilo que nos é dado, mas sim, de forma a torná-las próprias,
harmoniosamente na nossa fala e na nossa mente, com aquilo que é. (cf. Martin Heidegger,
Língua de tradição e língua técnica, Lisboa: Passagens, 1995, pp.7ss. Grifos do autor.)
204
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.240.
205
Grifos nossos.
206
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.109.
77

suprahistórico, que reclama para si uma certeza incondicional, diverso dos


conhecimentos da história que se atém a fatos contingentes. Para Heidegger, é
determinante o fato de que a filosofia não se fundamenta sobre nenhuma ciência,
mas o contrário – que todas as ciências fundam-se na filosofia. Na medida em que
as ciências fundam-se na filosofia, esta fica impossibilitada de obter qualquer tipo
de fundamentação através da elucidação do significado das palavras. Então,
perguntamos: como podemos lançar alguma luz sobre o dizer das palavras?

Segundo Zarader, na interrogação sobre a linguagem, Heidegger não parte


de um pressuposto, “mas de uma proveniência assumida”207. Diz a autora: “porque
se abriu na luz do ser, a linguagem não pode ser compreendida como simples
atividade humana; nesta medida, a única formulação possível é: a linguagem
fala”.208 Todavia, para que a linguagem fale é necessário o falar do homem, e isso
só é possível na medida em que o homem ouve o chamado e lhe responde na
linguagem. De acordo com Zarader, para Heidegger, não nos damos conta da
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essência da linguagem, a não ser na medida em que ela nos olha. Nesse sentido, a
linguagem não pode ser de forma alguma objeto do pensamento. No entendimento
do filósofo, não ser possível conhecer a essência da linguagem através dos
conceitos do conhecimento utilizados na representação, não significa uma falta,
mas, pelo contrário, é um “privilégio pelo qual somos reenviados a um domínio
insigne, aquele onde nós, que somos aqueles que somos precisos (die
Gebrauchten) para falar da linguagem, habitamos enquanto mortais”.209 Dessa
forma, no jogo da língua aventado por Heidegger, entendemos com Gadamer, em
Verdade e método, que “o verdadeiro sujeito do jogo não é o jogador, [...] mas o
próprio jogo. É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e o
mantém no jogo.”210

2.2.3. Gedanc – o pensar do coração

Heidegger passa, então, a jogar o jogo da língua na perscrutação das


palavras pensar, pensado e pensamento. De acordo com o filósofo, embora a
filologia não pense como a filosofia, essa pode produzir algum sinal dado pela

207
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.240.
208
Ibidem, p.240.
209
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.240.
210
Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p.181.
78

história da língua, algo que indique um caminho. Assim, interrogamos com


Heidegger: que sinal as palavras pensar, pensado e pensamento nos dão? Ou
melhor, a quê, propriamente, essas palavras nos remetem?

Abre-se com as perguntas uma nova vereda para o pensar. Sob o escopo da
história dessas palavras, mesmo presumidamente insuficiente, Heidegger encontra
na palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, uma pista para o dizer original
desses vocábulos. O sentido inferido pelo pensador para o termo funda-se tanto na
memória como na gratidão, algo que essencialmente se avizinha, se assenta e está
presente em nós. Indaga-nos o próprio filósofo:
É o pensar um agradecer? Que designa aqui agradecer? Ou é a
gratidão que repousa no pensar? A memória é apenas um
recipiente para o pensado do pensar, ou será que o pensar
repousa ele próprio na memória? Como se relacionam o pensar e
a memória?211

Segundo Heidegger, nessa palavra alemã encontramos algo que se reúne


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na memória, algo que também diz respeito ao ânimo, ao encorajamento, ao


coração.212 O filósofo nos diz que no Gedanc se consubstancia a memória e a
gratidão. Memória aqui entendida não no mero sentido de capacidade de
recordação, mas no “ânimo como um todo, na acepção da permanente reunião
íntima em torno daquilo que sopra à alma, essencialmente, todo o sentido”213. A
esse estado de perene união do ânimo em torno de algo que dá sentido, junta-se o
traço de um reter que nada deixa escapar do essencial, um enlevamento que dura.
Heidegger nos diz que é “a partir da memória, e em seu interior, (que) a alma
derrama [...] o seu tesouro de imagens”214 que, ali retido, é exumado na memória
pelo relembrar. Essa difícil compreensão, acrescentada da palavra alemã Gemüt –
alma, coração –, também entendida por Heidegger como medida para o pensar, é
analisada por Zarader como “a alma reunida em si mesma”215. Segundo a autora,
não se trata de uma recordação específica, mas de nos voltarmos em fidelidade

211
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.116. Segundo Lyra, em nota do
tradutor, “não há como restituir em português os nexos etimológicos que em alemão ligam o
pensar ao rememorar e ao agradecer. (cf. Nota do tradutor, ibidem, p.116.)
212
Nas aulas de passagem, Heidegger ainda acrescenta ao significado de Gedanc: “o ânimo, o
coração, o fundo afetivo (Herzensgrund), o mais interno ao homem, o que mais amplamente se
estende para fora, até o limite mais extremo, e isso de forma tão categórica que, pensada
corretamente, não sobra apoio para a representação desse dentro e fora”. (cf. Ibidem, p.121.)
213
Martin Heidegger, op. cit., p.117.
214
Ibidem, pp.117-118.
215
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.:
Stanford University Press, 2006, p.68.Tradução nossa.
79

para com aquilo que nos chama, “para essa voz silenciosa do ser que fala na
linguagem.”216 Para a intérprete, é por este motivo que o pensamento fiel será
inseparavelmente a lembrança e a memória desse dom que vigora nas palavras.

Heidegger explica que o termo Gedanc une-se também ao sentido de


gratidão (dank), quando visita em rememoração aquilo em torno do que
permanece reunido. Assim, na memória que nos aproxima de nossa essência,
agradecemos na medida em que pensamos o mais problemático. Com a memória,
diz o filósofo, “o ânimo se pensa em relação Àquilo de que faz parte e
depende”217, não como uma sujeição, mas como algo que ouve e atende em
reconhecimento e gratidão por si mesmo. O filósofo nos faz entender que o pensar
nos é concedido como um dote, e, por isso, devemos ter gratidão por aquilo que
possuímos através de uma dádiva. Heidegger compreende que recebemos muitas
dádivas, sendo, a mais digna de todas, a nossa própria essência que na gratuidade
nos faz ser o que somos.
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A partir da pista obtida no dizer da palavra Gedanc, Heidegger nos dá a


medida daquilo que vem à fala no jogo da língua para o “pensar”, o “pensado” e o
“pensamento”218. Foi possível, com isso, nos aproximarmos da origem inaudita
daquilo que “memória” e “gratidão”219 inferem. Todavia, Heidegger nos adverte
que ainda não somos capazes de perceber essa unidade essencial presente.
Segundo o filósofo, esse pensar habitando o seio da memória é tão difícil que
raramente dele nos aproximamos. Zarader nos coloca que mesmo sendo a
pertença ao ser a constituição da essência mais próxima do pensamento, essa não
é nada evidente. Para a autora,
o que é mais simples e mais essencial é sempre, por causa dessa
própria simplicidade, o que não pode ser verdadeiramente
habitado senão no termo de um longo caminho; e é, pelo
contrário, o que é mais aviltado, mais afastado da origem
autêntica.220

216
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.:
Stanford University Press, 2006, p.68. Tradução nossa.
217
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.118.
218
Grifos do autor.
219
Grifos do autor.
220
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.152-153.
80

Mais à frente, Zarader conclui dizendo que: devolver o pensamento ao seu lugar
mais próprio e mais inaudito é permitir-lhe o retorno ao lugar aonde sempre
esteve, mas que, apesar disso, nunca se edificou.

Sabemos, a partir de Heidegger, que aquilo que foi trazido à luz pelo
gedanc é muito mais precioso do que o significado habitual das palavras em
questão. É, pois, segundo o filósofo, a atenção e o cuidado concedidos ao nomear
da palavra “pensar”221 que nos levam ao quarto modo da formulação da questão
como doadora de medida. Assim, na pergunta – que é isso que nos chama a
pensar? – fazemos memória e agradecemos por algo que nos é dado, uma dádiva
concedida que nos faz ser o que somos, a nossa própria essência: o pensar que dá
a pensar o mais problemático. Heidegger compreende que a gratidão aqui
suscitada não é um ressarcimento, mas um acolhimento, um “trazer a coisa a sua
pertença e aí então deixá-la”.222 Nas palavras de Zarader: “se o pensamento deve
ser fiel ao ser, é em primeiro lugar e antes de tudo porque, situando-se no ser,
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deve guardar a memória de si mesmo, permanecer ordenado pela dignidade da sua


própria essência.”223

Heidegger passa, então, à compreensão da palavra ânimo, também


presente na memória. Essa, não compreendida na acepção moderna do lado
sentimental da consciência humana traduzida por animus, mas, no sentido daquilo
“que é essencial na natureza humana como um todo”.224 O filósofo nos coloca que
o sentido de natureza humana, aquilo que determina o homem a partir de sua
essência, tampouco tem a ver com o sentido dado por anima. O vocábulo grego
nos fornece o fundamento de determinação de cada ser vivo, mas, ao mesmo
tempo, situa o homem na ordem das plantas e dos animais, sem levar em conta a
evolução natural concedida pela razão.225 O pensador entende que mesmo quando

221
Grifo do autor.
222
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.123.
223
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154.
224
Martin Heidegger, op. cit., p.124.
225
A partir do escrito Da Alma de Aristóteles, nos parece não ser possível afirmar que o homem
possua alguma faculdade que o distinga de todos os demais viventes. De fato, uma vez que o
homem possui todas as faculdades explicitadas por Aristóteles, parece haver uma relação de
continuidade entre o homem e todos os outros viventes no que se refere às faculdades de sua alma.
De um lado, o intelecto não poderia ser dito sua distinção, pois este é também faculdade de seres
análogos ao homem, como também de Deus. As palavras de Aristóteles, “ [...] outros detentores da
faculdade pensante e o intelecto, que é o caso do ser humano e de qualquer outro ser,
possivelmente existente, de condição análoga ou superior à humana” parece confirmar-nos isso a
81

esse é compreendido a partir da racionalidade, desconsidera-se o homem em sua


essência. Segundo Heidegger, essa é a concepção há muito tempo usada pela
antropologia filosófica. O filósofo nos aponta que no sentido de pensar o homem
como natureza humana226 temos, antes de mais nada, que perceber que o homem é
“aquele ser que se consubstancia ao apontar para aquilo que é, [...] (e) aquilo que
é, não se esgota imediatamente no que é real ou fático.”227 Todavia, esse traço
essencial do homem jamais foi percebido. Dessa forma, nem a palavra grega
anima e nem o vocábulo latino animus, entendido como sentido e roupagem da
natureza humana, são doadores de medida daquilo que é o traço fundamental da
natureza do homem.

No sentido de adentrarmos algo ainda mais essencial, Heidegger nos


coloca que devemos nos direcionar, a partir do que é nomeado por Gedanc, ao
domínio daquilo que se mostra não apenas como palavra, mas na própria coisa-a-
pensar. A partir dessa pista, precisamos nos encaminhar para aquilo que ela
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aponta. A memória, como algo que acolhe e oculta aquilo que nos dá a pensar,
tem a sua essência no resguardar. Ela aponta para o âmago do que cobre tudo o
que nos dá a pensar e é, por isso, nomeada pelo filósofo como salvaguarda. O
filósofo nos coloca que
somente a salvaguarda dá como livre dádiva a coisa-a-
considerar, o mais problemático. A salvaguarda não é, todavia,
nada vizinho e exterior ao mais problemático. Ela é ele próprio,
sua essência, a partir e no interior da qual o mais problemático
dá-se a pensar, a saber, sempre o Mesmo, tempo após tempo.228

A salvaguarda é, pois, aquela que na gratuidade nos doa o mais problemático, que
no mais intrínseco de si mesma oferta sua essência, a partir da qual dá-se a pensar
sempre o Mesmo.229 Entendemos, com Heidegger, que somente aí onde a
salvaguarda do mais problemático existe é que o pensar do coração – o surgir de
cada coisa-a-considerar – se abre para o seu acontecimento.

Considerando a questão da salvaguarda, Zarader nos rememora o dizer de


Heidegger na carta “Sobre o Humanismo”(GA9). Ali, diz o filósofo: “o homem

que Heidegger se refere. (cf. Aristóteles, Da Alma, (tr.) Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2011,
p.78.)
226
Itálico do autor.
227
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.124.
228
Ibidem, p.126. Maiúscula do autor.
229
Maiúscula do autor.
82

não é o senhor do ente. O homem é o pastor do ser.”230 Para Heidegger, entretanto,


ser o pastor do ser é um menos que é mais, na medida em que aproxima o homem
da verdade do ser; um menos que firma a sua grandeza no fato de ser o próprio
ser231 que chama o homem a este destino – o destino da guarda da verdade do ser.
A salvaguarda, nesse sentido, protege e preserva a coisa-a-considerar do perigo do
esquecimento. Todavia, como vimos, não é o homem que gera a salvaguarda, ele
apenas convive com aquilo que lhe dá a pensar. Se assim fosse, o mais
problemático não se encontraria originalmente e, desde sempre, retraído nesse
esquecimento. Zarader, em “The mirror with the triple reflection”, nos esclarece
que a partir dos anos de 1930 Heidegger percebe que,
o esquecimento do ser, anteriormente atribuído ao pensamento,
volta-se para o próprio ser: é o próprio ser que se “faz esquecer”,
mais precisamente porque o ato de retrair-se pertence a seu
desvelar-se como tal, ou melhor, constitui seu único meio de
desvelamento.232

Entende-se, pois, com Heidegger, que a ocultação do ser é parte de seu modo de
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desvelar-se. Todavia, como vimos anteriormente, a partir de Platão e ao longo de


toda a tradição filosófica, além do fato de ocultar-se e retrair-se, o ser é esquecido.
Zarader nos mostra, com isso, que a história do pensamento ocidental é o domínio
de uma dupla ocultação, além de ser local do esquecimento do ser, é, também, o
local de sua retirada – mesmo sendo esse último entendido como inerente ao
próprio ser.

Heidegger compreende que a história do pensamento ocidental não se


inaugura com o pensamento do mais problemático, mas, ao contrário, inaugura-se
com o esquecimento do ser. À luz do esquecimento do mais problemático, a
origem também ficou oculta no pensamento inaugural. O filósofo nos adverte que
“o começo do pensar ocidental não é o mesmo que a origem”233. Segundo Zarader,

230
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e escritos
filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.361.Segundo Carneiro Leão, a
discussão dos pressupostos da carta “Sobre o ‘Humanismo’” “[...] abre toda uma outra dimensão
de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do
humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de
questioná-la em seus fundamentos”. (cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: ibidem, p.9.
Maiúsculas do autor.)
231
Grifo nosso, no sentido de diferenciar o uso verbal, do nominal.
232
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin
Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.20. Tradução nossa.
233
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.127.
83

isso significa que as palavras “origem” e “começo”234 nos remetem a dois pontos
de partida. Diz a autora: “Um, inaugura o nosso destino, sem no entanto poder ser
definido como começo do pensamento (visto que não pertence à sua ordem), o
outro inaugura a história do pensamento, sem no entanto ser a fonte a que se
destina”.235 De acordo com a intérprete, Nietzsche já havia acentuado esse outro
ponto de partida reconhecendo Heráclito e Parmênides como filósofos autênticos
e a Ideia platônica como início de um declínio. Todavia, em Nietzsche, o fio
condutor histórico ainda é um só. Com Heidegger, o ponto de partida tradicional
também é deslocado, entretanto, o termo “pré-socráticos”236 desaparece, dando
lugar às expressões “pensadores matinais ou inaugurais”237 para aqueles que
recebiam apenas o estatuto preliminar do pensamento ocidental. Com isso,
instaura-se um duplo registro de inauguração: por um lado, o começo inconteste
com Platão que levará a questão do ser ao esquecimento, e por outro, “um ‘outro
começo’ – escondido, encoberto, desconhecido – que tinha ocorrido com os
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primeiros gregos”238. Para Zarader, ambos os registros tem função de inauguração,


mas distinguem-se em pensável e impensável, ou seja, aquilo que nos foi trazido
pelos pensadores matinais não foi mais pensado desde de Platão. Portanto, não há
uma continuidade histórica entre um momento e outro, mas, dois momentos
inaugurais.

Heidegger nos coloca que o inevitável encobrimento da origem nos fez ver
o esquecimento do ser sob uma outra luz. O filósofo retoma a questão do !"#$% e,
além das razões elencadas no início do capítulo, nos fala que se não
questionarmos o que nos levou a pensar segundo o !"#$% enunciativo, não
conseguimos vislumbrar a historicidade do nosso destino. Permanecemos cegos,
acreditando que o !"#$% é a única determinação do nosso pensar. Soma-se a isso,
o fato de sabermos claramente que o caminho do pensar ocidental é atravessado
pela fé cristã; que por ser fé, não carece de fundamento e, tampouco, questiona o
pensar regulado pelo !"#$%, Entendemos, com isso, que o reino da fé não depende
de nós e, como dom ofertado, nada questiona. Para o pensador, foi essa a razão

234
Grifos nossos.
235
Marlène Zarader, A dívida impensada: Heidegger e a herança hebraica, Lisboa: Instituto
Piaget, 1990, p.48.
236
Grifo da autora.
237
Grifo da autora.
238
Marlène Zarader, op. cit., p.48.
84

que também nos levou à circunstância de não enxergarmos o destino da nossa


essência, e, consequentemente, não refletirmos sobre o chamado ao pensar
atravessado pelo !"#$% enunciativo.

Segundo Heidegger, a historiografia universal, que ordena os


acontecimentos e descreve o mundo em suas particularidades, igualmente não foi
capaz de fazer-nos ver o nosso destino essencial.239 É, pois, neste sentido, que o
filósofo nos indaga: “não temos então, quando perguntamos pela requisição ao
pensar regulado pelo !"#$%, também que retornar aos primórdios do pensar
ocidental para avaliar qual requisição instruiu esse pensar em seu começo?”240. De
acordo com Heidegger, fica claro que na origem do pensamento não houve a
pergunta por aquilo que nos chama ao pensar. O que distingue a aurora do
pensamento é o fato desses pensadores terem acolhido o apelo ao chamado
respondendo a ele em pensamento.241 Heidegger entende que o pensar é um
caminho e correspondemos ao caminho somente quando ali permanecemos. O
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caminho do pensamento começa não só quando enxergamos o horizonte para o


qual o caminho se descortina, mas, sobretudo, quando nos entregamos ao caminho
num questionamento constante de forma a torná-lo caminho. É somente nessa
dinâmica própria do movimento do pensar, envolto por uma solidão plena de
mistério, que o caminho se abre. Ainda assim, sendo esse movimento um
constante indagar, “a resposta à questão “Que chamamos pensar?” é,
propriamente, sempre apenas o questionar, o permanecer no caminho”.242 Mas, o

239
Ao sentido de história (Geschichte), Heidegger acrescenta o de destino (Ge-schick). De acordo
com Carneiro Leão, Heidegger pensa a dinâmica da essência da história como destino. Diz o
autor: “a essencialização da História é o Ge-schick, (“o destino”) do Ser, [...] em sua Essência, a
História é o destinar-se do Ser no homem. Isso quer dizer: é no destinar-se do Ser que o homem se
hominiza – isto é, que o homem se constitui como homem – ao articular o destino do Ser, e isso
significa: ao dar lugar ao conjunto de referências de ser e ente. Essencialmente pensar não é,
portanto, exercer uma faculdade da consciência, entendida como sujeito, nem falar é exprimir
atividade e o conteúdo desse exercício. Pensar e falar é articular o destino do Ser. Por isso só o
homem pensa. Só o homem fala. Só o homem é histórico. E é histórico, enquanto faz e é feito pela
História.” (Cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o
Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, 1967, p.15. Maiúsculas e grifo do autor.)
240
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.140.
241
Na tradução de Que chamamos pensar? para a língua inglesa, Glenn Gray se refere a uma
experiência. Diz o tradutor: “What distinguishes the beginning is rather that those thinkers
experienced the claim of the calling by responding to it in thought.” (cf. Martin Heidegger, What is
called thinking?, 1968, p.167). A mesma questão da experiência será aventada por Zarader em
Heidegger e as palavras da origem.
242
Martin Heidegger, op. cit., p.143.
85

que vislumbrou Heidegger na aurora do pensamento grego? Permaneçamos,


portanto, no caminho buscando algum entendimento para essa questão.

2.2.3.1. O Andenken e a lembrança fiel

No sentido de trilharmos com Heidegger o caminho do seu pensamento ao


voltar-se para a aurora grega, faz-se necessário, a essa altura de nossa caminhada,
a compreensão do vocábulo alemão Andenken, que significa lembrança,
recordação, memória. Vimos no início do capítulo, na discussão sobre
pensamento, ciência e poesia, que Heidegger já havia se referido à memória como
a reunião das lembranças (des Andenkens). Lyra, aprofundando esse
entendimento, nos coloca que a inversão do vocábulo alemão seria denken an,
“pensar em” – o que equivaleria dizer: “a memória como ato (de) pensar em algo,
promove a junção dos pensamentos.”243 Também vimos com Heidegger, que “a
memória, no sentido da lembrança humana, habita o seio do que recobre tudo que
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dá a pensar.”244 Entendemos, com isso, que a lembrança, a reunião dos


pensamentos, habita a memória e nela encontramos a salvaguarda daquilo que dá
a pensar: a rememoração do ser.

Schneider em concordância com Zarader também compreende que, para


Heidegger, o esquecimento do ser provém “da própria essência do ser, [...] (uma
vez que) se retrai e se oculta da, ou até, na movimentação do pensar”.245 Para o
autor, a tarefa da rememoração e da lembrança do ser é um reconhecimento do
pensar de Heidegger sobre a questão do esquecimento. Então, perguntamos: se
entendemos, a partir de Heidegger, que o ser mesmo se oculta e retrai e, além
disso, foi esquecido num determinado tempo histórico, como é possível lembrar
esse esquecimento? É possível rememorar o ser?

Gianni Vattimo, em As aventuras da diferença, nos coloca que


o esquecimento do ser, característico da metafísica, [...] não se
pode entender como contraposto a um “recordar o ser”, que seja
um agarrá-lo como presente. [...] O esquecimento do ser de que
fala Heidegger não remete em nenhum sentido para uma possível

243
Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração],
p.12. Grifo do tradutor.
244
Martin Heidegger, ibidem, p.126.
245
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.19.
86

condição inicial ou final que seja, de relação com o ser como


presença desdobrada.246

Vemos, também com o autor, que é próprio do ser esse retraimento em favor do
ente. Para o autor, o ser subtrai-se como dom, como gratuidade. O intérprete nos
concede essa compreensão nas próprias palavras de Heidegger: “Um dar que dá
apenas a sua oferenda e que, ao fazê-lo, contudo se retrai e se subtrai a si
mesmo”.247 De acordo com Vattimo, entender que o ser se doa em favor do ente
como dádiva, mas nesse dar-se permanece em si mesmo, sempre como um dom e
nunca como possibilidade de captura do próprio ser, é fundamental para
aproximarmos o pensamento meditativo, daquilo que nos chama para além desse
apelo. Para Heidegger, o pensamento meditativo é o único capaz de pensar o ser.

Vattimo nos coloca que, desde os gregos, o pensamento se volta para o ser
como presença. Pensar o ser como presença significa, segundo o autor, uma
petrificação metafísica que teve como grave consequência o trágico destino do
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domínio técnico e da objetificação do ser. Para o autor, a objetividade do


pensamento do ser como presença, não só exclui a dimensão da ausência que se
plenifica como dom no retrair-se, mas também encobre a possibilidade do “fazer
estar presente”248, ou seja, o desvelamento do ser. O intérprete nos explica que o
que faz com que o pensamento metafísico se torne inaceitável “[...] não é o fato de
o ser se dar como presença, mas a petrificação da presença na objetividade”.249
Segundo Vattimo, o olhar de Heidegger para os pensadores da aurora grega, tais
como Heráclito e Parmênides, se dá exatamente por perceber que em seu pensar
poetizante ressoa ainda o apelo da presença como esse “presentificar-se do que se
faz presente”250. Ressoa ainda o chamamento do ser como desvelamento em seu
caráter eventual, contrário à ideia de pura presença petrificada no curso da história
da metafísica. O autor entende que o pensamento que pretenda superar a

246
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.123. Grifo do autor. Itálico nosso.
247
Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.122.
248
Vattimo usa a expressão Anwesen-lassen para esse caráter da presença. Segundo o autor, para
Heidegger ,“o fazer estar presente quer dizer desvelar, trazer à luz do dia. No desvelar atua um
dar-se, e é precisamente aquele dar que, no fazer estar presente, dá o estar presente, isto é, o ser”.
(cf. Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.125). Entendemos, a partir de Vattimo, que
o Anwesen-lassen se aproxima do termo Lichtung, o aberto da clareira, o lugar que garante ser e
pensar e que possibilita a presença se fazer presente. Mais à frente, no 3o.capítulo, retomaremos a
questão da alétheia. Grifo nosso.
249
Ibidem, p.125.
250
Grifo nosso.
87

metafísica não pode “procurar sair do esquecimento agarrando o ser como algo de
presente, [...] mas não pode também voltar a colocar-se na condição do
pensamento dos primórdios”251, uma vez que ali não se pensou o ser como
desvelamento.

Vattimo nos diz que, para Heidegger, somente um salto para um


pensamento do ser sem fundamento (Ab-grund) poderia nos aproximar desse
pensar; somente o pensamento alternativo ao princípio da razão suficiente252
saberia dar o salto. Apesar de ser um salto para o Ab-grund – ausência de
fundamento –, o salto não se dá em direção ao nada, ao vazio, mas, ao contrário,
ele encontra um solo, um Boden. O autor nos aponta para o fato de que Boden
(solo) é compreendido diferentemente do vocábulo Grund (fundamento). O
Boden, segundo Vattimo, remete diretamente à ideia de desvelamento, pois,
ao aludir a um fundo donde qualquer coisa pode ‘nascer’ (não:
derivar casualmente), ele nomeia a presença no seu caráter de
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proveniência. É um termo [...] que conduz o pensamento para


aquele modo de se relacionar com o ser que sem superar o ‘traço
fundamental’ da Schickung, a sua epocalidade, não esquece
também o seu aspecto, pensando-a como aquilo que retrai e
subtrai no dar do ‘Es gibt’.”253

Entendemos, com isso, que o pensamento que faz o salto em direção ao Boden é
este que deixa de pensar o ser como fundamento e o faz em resposta ao chamado
do ser como um desvelar-se. É isso que, de acordo com o intérprete, Heidegger
entende por memória e rememoração, como Andenken. Não se trata, portanto, de
um mero recordar, mas de um pensamento capaz de pensar o ser como Ab-grund.
O pensamento que se atém ao fundamento é aquele que se detém apenas no ente e
o no seu ser como presença constante, sem pensar a sua proveniência, a sua
origem. Para Vattimo, o ser só pode ser pensado em sua diferença para com a
presença, e o pensamento que pensa sempre “como dádiva em que o dar-se já está
sempre subtraído”254 é a memória, o Andenken.

251
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.125.
252
O princípio da razão suficiente é uma temática abordada por Gottfried W. Leibniz no escrito
Princípios da natureza da graça fundados na razão, de 1714. Segundo o filósofo, este princípio é
baseado na ideia de “que nada sucede sem que seja possível [...] fornecer uma razão suficiente
para determinar porque é assim, e não de outro modo.” (cf. Gottfried Leibniz, Princípios da
natureza da graça fundados na razão, §7, [online] Acesso em 25/08/2014. Disponível em:
http://www.lusosofia.net/textos/leibniz_principios_da_natureza_e_da_gra_a.pdf )
253
Gianni Vattimo, op. cit., p.128.
254
Ibidem, p.129.
88

A memória que não se resume à capacidade de presentificar aquilo que


está ausente é, segundo Vattimo, essencialmente o encontro do pensar com aquilo
de mais particular e constitutivo de si mesmo, e, no encontro do pensar com o ser,
a memória é “o recolher-se do ânimo”.255 Em relação a isso que a memória
encontra no recolhimento, a conduta do pensamento se caracteriza como um
agradecimento, como Dank. Compreendemos a partir do autor que, para
Heidegger, o Andenken é entendido como o agradecimento do pensar que no
encontro com o ser, e mesmo sustentado por esse, não o dispõe; e é exatamente
porque não o dispõe, que não pode jamais presentificá-lo como um objeto da
representação.

2.2.3.2. A proveniência do pensar

Assim compreendido o Andenken, Zarader nos coloca que se o


esquecimento do ser pode ser desfeito, Heidegger só pode fazê-lo através da
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memória, e “de onde poderia o pensador redescobrir a memória, se não a partir


deste momento inaugural em que o ser, enquanto já está acontecendo em sua
retirada, ainda não tinha assumido o véu do esquecimento?”256 Esse é, no
pensamento de Zarader, o privilégio da “aurora grega”257, uma retirada que foi
perdida mais tarde na história, isto é, esquecida e sempre mais decididamente
encoberta.

O ser é certamente entendido como retraído, assim como esquecido.


Todavia, segundo a intérprete, Heidegger parece pensar que não foi assim desde o
início. Entende-se, com a autora, que o ser tenha se revelado em si mesmo, ao
menos como retirada que é, e, nesse ato decisivo, ao menos por um instante, como
um relâmpago258, a verdade do ser tenha tido lugar no registro de uma experiência.
A autora nos diz que, movido por uma estrutura prévia de compreensão da própria
história, Heidegger entende que
é provável que a essência da coisa em si tenha sido dada na
origem (e que possa então ser reencontrada nas palavras

255
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.130.
256
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin
Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.21. Tradução nossa.
257
Grifo da autora.
258
Cf. Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, p.65.
Em nota, a autora nos fala da temática do “raio inaugural” presente no artigo “Logos” (GA7). (cf.
Ibidem, p.215.)
89

inaugurais), como inversamente também é provável, que as


palavras inaugurais quando interrogadas, possam dizer a essência
da coisa em si.259

Entendemos, a partir da intérprete, que o Andenken estaria circunscrito


dentro dessa hermenêutica e seria então compreendido como o movimento
retrospectivo do pensamento que se volta para trás como memória. Todavia, como
vimos, não nos referimos aqui ao movimento singular de olhar para o passado em
lembrança, mas um olhar que se põe em direção àquilo que, “na medida em que
ainda não foi pensado, continua proposto ao nosso futuro – mesmo se não
podemos esperar atingir esse futuro senão pelo ‘passo atrás’”260. A autora também
mostra aquilo que seria o movimento inverso a ser explorado pelo pensar de
Heidegger após o movimento do Andenken: o Vordenken. Se o primeiro se
caracterizava por um salto retrospectivo, esse se caracteriza por um movimento
prospectivo, um pensamento que caminha para o futuro. Todavia, o Vordenken
não é um avanço livre, onde o pensamento está totalmente desconectado do
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passado, mas uma prospecção que se dá a partir daquilo que nos foi dado pelo
Andenken. Ambos os movimentos são, nesse sentido, complementares e se
orientam para o pensamento futuro. Dito por outras palavras: o Andenken é um
salto retrospectivo em direção aos primórdios do pensamento, que nos afasta do
pensamento da tradição na medida em que busca nesse passado algo que ainda
não foi pensado. Zarader nos coloca que o Andenken “tem como finalidade a
apropriação da nossa herança grega”261. Por outro lado, o movimento que nos
orienta para o futuro é o Vordenken, um pensamento prospectivo que, ao buscar
na origem o impensado, separa-se dessa em proveito de um outro pensamento
ainda a ser pensado. Esse movimento significa, aos olhos da autora, “a superação
da herança grega”262. Entendemos, assim, que os movimentos do pensar
orientados pelo Andenken e pelo Vordenken nos levam, num primeiro momento, à

259
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, pp.65-66.
260
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.34. Em nota, a autora apresenta
uma citação do próprio Heidegger que julgamos pertinente, no sentido de nos ajudar na
compreensão desse movimento. Diz o filósofo: “Se o pensamento, lembrando-se daquilo que foi
(das Gewesene), lhe deixa a sua essência e não altera o seu reino usando-o apressadamente como
presente, descobrimos então que o que foi, pelo seu retorno no Andenken, se estende para lá do
nosso presente (Gegenwart) e vem até nos como um futuro (ein Zukünftiges). Bruscamente, o
Andenken deve pensar o que foi como algo de ainda-não-desdobrado (als ein Nochnicht-
Entfaltetes)”. (cf. Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.34.)
261
Ibidem, p.35.
262
Ibidem, p.35.
90

apropriação de um pensar que depois será superado em nome de um pensamento


porvir.

Esse duplo movimento do pensamento heideggeriano – Andenken e


Vordenken – ajuda-nos, também, a esclarecer a noção de um outro vocábulo
alemão, sem o qual não poderíamos entender o movimento do pensar de
Heidegger ao voltar-se para a aurora grega: o Anfang. Como vimos brevemente no
primeiro capítulo, o Anfang corresponderia, então, ao início primordial, ao
começo originário. Mas, como entender esse vocábulo no sentido proposto por
Heidegger?263 Segundo Zarader, a compreensão do termo se dá pelo fato de que o
Anfang tem um caráter pontual, evoca o ponto de partida, a “primeira captura”264
de algo, e, por isso, diferencia-se de Beginn, outro termo alemão que, também
entendido por “começo”265, aponta para algo temporal, uma extensão de tempo
ainda que mínima. Enquanto o primeiro se refere a um ponto inicial específico, o
segundo tem o caráter de um início que se estende temporalmente, dura. O próprio
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Heidegger nos coloca que Anfang e Beginn não são idênticos266, apesar de
transitarem dentro do mesmo escopo semântico. Zarader nos explica, nas próprias
palavras de Heidegger, que o Anfang seria, então, algo que precede qualquer
começo. Diz Heidegger:
O começo é aquilo com o que alguma coisa se ergue, o Anfang é
aquilo de onde alguma coisa jorra. [...] O começo é
imediatamente abandonado, desaparece na sequência dos
acontecimentos. O Anfang, a origem (Ursprung) pelo contrário,
só se torna claro no decurso do processo, e só no fim deste
plenamente.267

O Anfang é, assim, entendido como algo que antecede o começo, como uma fonte
velada de onde jorra algo que permanece impensado à espera de um futuro.

Através da leitura de Zarader, fica claro para nós que o pensamento de


Heidegger não é, de forma alguma, um retorno aos gregos no sentido de reacender
263
Em nota, Zarader nos coloca que o termo Anfang se circunscreve ao campo semântico mais
extenso da inicialidade “onde se pode fazer prevalecer, segundo os casos (e Heidegger não se priva
disso), o registro de origem ou do começo”. Fato que, por vezes, acaba por gerar uma certa
ambiguidade. (cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.207.) Apenas a
título de diferenciação, usaremos como tradução para o Anfang as palavras origem ou princípio.
264
Grifo da autora. Zarader rememora as palavras de Beaufret para definir o Anfang: “o pontapé de
saída”. (cf. Ibidem, p.31).
265
Grifo nosso.
266
Heidegger enfatiza por duas vezes ao longo do texto Que chamamos pensar? que Anfang e
Beginn não são idênticos. (cf. pp.102 e 127.)
267
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, op. cit., pp.31-32.
91

ali a chama do que foi pensado, mas sim, o de um pensar que, dentro de uma
dinâmica temporal própria, relaciona-se com a língua que inaugurou a nossa
história. Diz a autora:
Porque a nossa história é grega. Somos descendentes. Ingratos
talvez, cegos à sua mais secreta proveniência, mas herdeiros
contudo. Não [...] (somente) herdeiros de um pensamento, como
de uma língua, até de algumas “palavras”. Palavras nunca
meditadas propriamente na sua carga de impensado, e que
permanecem, contudo, o único território susceptível de encerrar
o mistério do nosso destino”.268

Segundo a intérprete, a palavra alemã Anfang entendida como origem,


apesar de manter-se problemática dada à ideia de fundo que permanece269, se
mantém necessária no sentido de dissociar o começo do pensamento ocidental
daquilo para o qual o pensar de Heidegger aponta e que preserva como inaugural.
Isso significa separar o começo, da origem, na intenção de, uma vez ultrapassada
essa fronteira, buscar realizar ali os movimentos do pensar orientados primeiro
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pelo Andenken e depois pelo Vordenken, caracterizando, de fato, um outro


começo, o andere Anfang. Esse outro começo, de acordo com Zarader, nos
assinala dois caminhos: se nos direcionamos para trás, nos deparamos com o
“começo originário”270, o momento inicial da história do ser; se nos direcionamos
para frente, encontramos a possibilidade de um outro começo, com a abertura de
uma nova história, pois “se permite, num percurso de retorno, iluminar o já-
pensado, permite também, num percurso de prospecção, explorar “o que pode ser
pensado.”271 Por outras palavras: essa expressão tanto pode significar a origem
como também algo que, mesmo tendo acontecido posteriormente, é primeiro na
medida em que ressignifica o que veio antes. Fica, assim, entendido o duplo
desígnio proposto como “apropriação” e “superação”272 dos gregos, que se
instaura com o Andenken e o Vordenken no andere Anfang.

Este é, segundo Zarader, o caminho proposto pelo pensar de Heidegger na


segunda parte de Que chamamos pensar?: parte-se da memória, entendida a partir
do termo alemão Gedanc, no sentido de encontrar a essência da coisa em si no
logos original. Segundo a autora, o caminho desse pensar nos sinaliza, por um
268
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.33.
269
Nos reportamos à questão levantada por Vattimo sobre o Grund e o Boden.
270
Grifo nosso.
271
Marlène Zarader, op. cit., p.358.
272
Grifos da autora.
92

lado, o logos original – um caminho que nos mostra como a essência do


pensamento foi experimentado na aurora da história ocidental – e por outro, a
escuta à língua alemã, que repousa sobre as palavras diretoras de caminho,
Gedanc, Denken, Germüt. E, mesmo sendo as duas vias aparentemente distintas,
ambas se dirigem à coisa em si, tal como ela mesmo se apresenta. São, portanto,
duas vias que no final dizem o mesmo. De acordo com a intérprete, não poderia
ser diferente, e isso, porque “a coisa em si está sempre abrigada nas palavras
inaugurais, e as palavras inaugurais nunca dizem nada mais (na medida em que as
deixamos falar) do que a coisa em si.”273

Mas, como podemos pensar o logos original na esteira do Gedanc?


Zarader nos coloca que, no “sentido de escutar na palavra logos, o eco da
memória e do agradecimento, precisamos [...] partir de um horizonte do
pensamento que não tem origem nesta palavra [...]”274. A autora nos fala de um
horizonte próprio do pensamento de Heidegger, o qual, fiel à escuta da língua
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alemã, é capaz de perscrutar o logos no Gedanc. Segundo Zarader, para o


pensador, a etimologia nos dá apenas sinais. Todavia, nos adverte o próprio
Heidegger: “Para notar um sinal, é preciso já ter penetrado no domínio a partir do
qual ele provém.”275 Nos encontramos, pois, dentro da complexa hermenêutica
heideggeriana do salto, e será com Vattimo que encontraremos algum
entendimento para essa questão. O autor nos diz que o Andenken, compreendido
como pensamento hermenêutico, destrói os nexos históricos relacionados com
determinadas palavras-chave, remetendo e sujeitando essas palavras a uma análise
infinita, algo que nos aponta para uma inesgotabilidade na compreensão dos
termos. Para Vattimo, “o regresso hermenêutico in infinitum inverte as prescrições
da lógica, e jamais possui fins ‘construtivos’”276, e isso, segundo o autor, remete
ao caráter de não-fundamento (Ab-grund) tão buscado pelo filósofo.

Nos direcionemos, sem mais, às palavras inaugurais de Parmênides,


procurando, na permanência do caminho, corresponder ao pensar proposto por
Heidegger nesta segunda parte do escrito Que chamamos pensar?.

273
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, p.65.
Tradução nossa.
274
Ibidem, p.66. Tradução nossa.
275
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.66. Tradução nossa.
276
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.135.
3. O outro pensar

A língua é o espelho da existência, mas também da alma


[…]. Somente renovando a língua é que se pode renovar o
mundo. Devemos conservar o sentido da vida, devolver-lhe
esse sentido, vivendo com a língua. [...] O que chamamos
língua corrente é um monstro. A língua serve para
expressar ideias; mas a língua corrente expressa apenas
clichês e não ideias; por isso está morta e o que está morto
não pode engendrar ideias. […]

João Guimarães Rosa277

Neste momento do escrito Que chamamos pensar? somos lançados pelo


pensar de Heidegger para a aurora grega do pensamento. O filósofo entende que o
destino do pensar deve nos remeter aos primórdios do pensar ocidental como
questão preliminar. Devemos nos colocar diante da história a questionar o que
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determinou esse pensar em seu início. Será na perscruta do fragmento VI do


poema Da Natureza278 de Parmênides que Heidegger buscará o sentido mais
condizente a essa questão. O filósofo compreende o pensar como um caminho e
somente permanecendo no caminho é que correspondemos a ele. Devemos, pois,
demorar-nos no caminho no sentido de construí-lo, diferentemente daqueles que
de fora se põem a representá-lo e discuti-lo. Mas, como um caminho se torna
caminho? Por qual caminho nossos passos devem caminhar para que este se
converta em caminho? Sabemos que o caminho do pensamento não se dispõe
numa via, de um ponto a outro como algo preexistente. Com Heidegger, sabemos
também que esse se perfaz “numa solidão plena de mistério”279, um percurso que
jamais permite que nenhum outro invada a sua solidão. Mas é, na visão do
filósofo, com o questionar pensante que o caminho-pensamento se abre. Que
chamamos pensar? é uma dessas veredas que o pensar de Heidegger trilhou. Mais
do que isso, o escrito é um convite à constância do caminho. Demoremo-nos,
pois, um pouco nessa paragem.

277
Günter Lorenz, Diálogo com a América Latina, São Paulo: E.P.U., 1973. Entrevista a João
Guimarães Rosa, conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos em
janeiro de 1965 e publicada em seu livro Diálogo com a América Latina.
278
Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin: Weidmannsche
Verlagsbuchhandlung, 1960.
279
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.142.
94

3.1. Na aurora grega do pensamento

O que sabemos sobre esses primeiros pensadores? Seriam eles, de fato,


os primeiros? Temos conhecimento que Parmênides e Heráclito são pensadores
contemporâneos um do outro, que viveram entre os anos de 540 a 460 a.C.; e são
eles que, juntamente a Anaximandro (610 a 547 a.C.), são considerados por
Heidegger como as figuras centrais da aurora do Ocidente. Antes desses, outros
trilharam a senda do pensar, mas, para o filósofo, apenas os três podem ser
considerados pensadores originários. Nos detivemos no capítulo anterior, através
da análise de Zarader, na questão da diferença entre início ou começo (Beginn) e
origem ou princípio (Anfang). Sabemos, com Heidegger, em Parmênides (GA54),
que “o início pensa o iniciar-se deste pensar num determinado ‘tempo’, [...] funda
um lugar para a verdade no interior de uma humanidade histórica [...], (e que a
origem) é o digno de ser pensado e o pensado neste pensar primordial”.280 Para o
filósofo, aquilo que é digno de ser pensado na origem é o pensar do ser281, pois o
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“ser é a origem”.282 Todavia, nem todo pensador que pensa o ser pensa a origem.
No entender do filósofo, somente Anaximandro, Parmênides e Heráclito pensaram
a origem. Segundo Heidegger, são eles que, na aurora do pensar ocidental, “[...]
pensam o verdadeiro, (e) pensar o verdadeiro significa experimentar o verdadeiro
na sua essência e, em tal experiência essencial, saber a verdade do verdadeiro.”283

Já demos a conhecer, também, que o olhar de Heidegger não se volta para


os pensadores originários no sentido de interpretá-los, mas, ao contrário, nos
coloca que neste pensar tão longínquo – cronologicamente datado de mais 2.500
anos – esconde-se um pensamento jamais pensado, um pensar que precede e
determina toda a história. Esse pensar é, segundo o filósofo, um pensar que se faz
novo na medida em que oferta aquilo que lhe é o mais próprio e se desdobra como

280
Martin Heidegger, Parmênides, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2008, p.21.
281
Itálico do autor.
282
Martin Heidegger, op. cit., p.21.
283
Ibidem, p.13. A questão da verdade, que no poema de Hölderlin encontrava seu desvelar junto à
beleza, vê-se aqui envolta naquilo que diz respeito a uma experiência. Faz-se, portanto, necessário
algum clareamento a título de avançarmos no texto. Conforme vimos anteriormente, Heidegger
nos coloca que a alétheia foi compreendida pelos gregos como “retitude da representação e da
enunciação” e foi, por isso, “experimentada como orthótes”. O filosofo compreende que é na
escuta da palavra alétheia que podemos “intuir algo da essência da ‘verdade’ experimentada pelos
gregos” (cf. Ibidem, p.32). Essa colocação nos encaminha para a compreensão heideggeriana do
vocábulo alétheia, que será tratada mais a frente quando adentrarmos propriamente o poema de
Parmênides.
95

uma dádiva para o seu tempo. Heidegger nos fala que a sentença “o princípio é o
último”284 pode parecer um contra-senso para o pensamento calculador. Todavia, a
compreensão de que algo que se deu no princípio possa vir depois sugere apenas
que esse princípio surge em seu início de forma oculta e, por isso, permanece
inacabado aguardando sua realização num porvir.285

Encontramos desses pensadores apenas vestígios. No entanto, para


Heidegger, não podemos nos desviar do caminho que, mesmo difícil, nos leva a
perscrutar o legado por eles deixado. Encontramos em Jean Beaufret, em
Dialogue avec Heidegger, que o poema de Parmênides parece ser datado do início
do quinto século a.C e teve seus fragmentos reunidos por Teofrasto, na época de
Aristóteles, e por Simplício, no tempo de Justiniano. Segundo Heidegger, esse
poema revela-se em versos ou sequências de versos e expressam uma “doutrina
filosófica”, por isso, diz-se um “poema doutrinário”.286 No entanto, o filósofo
entende que a densidade do que é enunciado é tão significativa que não se deve
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circunscrevê-la a uma doutrina, nem mesmo a uma poesia, pois o que vem à fala
no dito revela-nos o todo do pensar de Parmênides, revela-nos um saber essencial.
Mas, o que é um saber essencial? E, como esse saber desvela-se no pensar?

Para Heidegger, o pensar essencial é aquele que se volta para o ser.287


Não há, segundo o filósofo, um domínio desse saber, apenas se é tocado por ele.
Nesse pensar não se “agarra”288 uma coisa no sentido de um proceder científico,
cujo caráter objetivado visa um produto final. Não há, de forma alguma, um
construto, uma produção organizada pelo pensamento, mas, ao contrário, no saber
essencial “é a origem que origina algo por meio destes pensadores [...]. Estes
pensadores são originados (An-gefangenen) pelo princípio (Anfang), são colhidos
por ele, para dentro dele e reunidos a partir dele”.289 Por isso, Heidegger nos pede
uma recusa à compreensão banal das interpretações acadêmicas. O filósofo

284
Grifo do autor.
285
Entendemos que Heidegger faz aqui referência à dinâmica própria dos movimentos do
Andenken e do Vordenken e toda a discussão do andere Anfang levantada no capítulo anterior.
286
Grifos do autor. No original Gedicht Lehr. Segundo o dicionário, Lehr é o que instrui, ensina e
forma. Cf. [online] Disponível em:
http://pt.pons.com/tradução?q=Gedicht+Lehr&l=dept&in=&lf=de Acesso em: 5/1/15.
287
Cf. Martin Heidegger, Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.16.
288
Grifo nosso.
289
Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.22. Compreendemos que essa frase de Heidegger nos
remete à sua hermenêutica: um horizonte de compreensão em que o pensador é aquele que ouve o
chamado do ser para, com isso, dar voz à História.
96

entende que somente a partir da atenção dada a essa exigência da origem é que o
dito de Parmênides terá algum sentido. Segundo o pensador, perdemos
completamente o saber ouvir das coisas simples que esses pensadores deixaram.
O que, então, vem à fala nesse pensar?

Lembremo-nos que o início (Beginn) do pensamento ocidental tem por


característica a separação entre !"#$% e µ&'$%, quando, a partir de Platão, a lógica
atravessou o pensamento. Todavia, segundo Heidegger, na origem (Anfang) o
!"#$% e o µ&'$% se relacionavam de tal forma, que ambos eram usados com o
mesmo significado, tanto na poesia quanto no pensamento grego. Isso denota que,
na aurora grega, o pensar de Heráclito e de Parmênides ainda se orientava pelo
poético, pelo não-científico, e, nesse pensar, a relevância era dada ao próprio
pensamento que na meditação sobre o ser encontrava medidas próprias.290 Diz
Heidegger: “(&'$% é o que se consubstancia (das Wesende) no seu [próprio] dito:
o que aparece no desvelamento (Unverborgenheit) do seu apelo (seines
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Anspruchs) [...]. )"#$% diz o mesmo”.291 Como vemos, para o pensador, o !"#$% e
o µ*+'$% se co-pertencem e, por isso, é possível considerar que nas primeiras
tentativas de pensar o ser, aqueles pensadores ainda encontravam-se circunscritos
ao mítico. Heidegger nos coloca que µ&'$% e !"#$% estão ligados à essência da
linguagem e se circunscrevem ao campo da palavra eloquente, e que o mítico é o
que guarda, na essência da palavra, aquilo que se manifesta primordialmente
revelando-se e ocultando-se, ou seja, o próprio ser.292 Michel Haar, em Heidegger
et l’essence de l’homme, acrescenta que o mythos é a linguagem que traduz a
conversa inabitual do ser com o homem. Para o autor, o !"#$% está enraizado no
µ&'$% e, uma vez que o !"#$% é muito mais do que a linguagem como habilidade
de fala, é o homem que se encontra no interior do !"#$%. É o !"#$% que possui o
homem e não o contrário. Haar nos rememora a maneira rigorosa com que
Heidegger circunscreve o !"#$% no curso sobre Heráclito. Ali, o autor nos coloca
que, para Heidegger, o !"#$% não diz respeito a uma faculdade do homem, nem
tampouco à razão e, muito menos, a uma afirmação ou proposição como foi
entendido mais tarde.293 O !"#$% é aquilo que unifica os seres, os traz à sua

290
Cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.168.
291
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11.
292
Cf. Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.106.
293
Já em Ser e tempo, no §7, Heidegger se volta para o conceito de !"#$% e toda a dificuldade para
se “apreender devidamente o conteúdo primordial de sua significação básica”. Ali, o filósofo nos
97

identidade mais própria, é a Ver-sammlung294 original. É a linguagem que ainda


não foi dita, mas que reúne em si o mistério de todas as coisas.

De acordo com Heidegger, tudo isso se perdeu quando, na interpretação


romana, o !"#$% torna-se ratio e perde sua essência e seu fundamento para a
razão. Com isso, o dizer do !"#$% que, assim como o µ&'$%, expressava a
experiência da essência primordial da palavra como aquilo que convida, que
chama cada ser humano ao pensamento daquilo que se consubstancia e aparece,
deixa de salvaguardar a relação do ser com o homem e torna-se uma coisa da
linguagem, um fenômeno de expressão295 desdobrado em !"#$% enunciativo.
Desse modo, o !"#$% perde a sua capacidade de acolher e expressar
essencialmente aquilo que nos convoca e nos chama a pensar – essa experiência
que os pensadores da origem fizeram.

Mas, como Heidegger chega a esse pensamento? Zarader nos fala que o
caminho-pensamento de Heidegger se faz em círculos. Uma circularidade que
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parte do mais aberto dessa circunferência e busca retroceder em espiral ao seu


âmago, buscando aí encontrar aquilo que foi a experiência grega do ser em sua
origem. Para a autora, sempre envolto pela questão do ser, Heidegger reconhece a
necessidade de retornar ao destino inaugural do ser, à forma como nos foi
concedido na alvorada do pensamento ocidental. Todavia, como vimos, esse
retorno não apenas revisita o pensamento desses pensadores. Segundo Zarader,
Heidegger pretende trazer à luz as experiências (Erfahrungen) inaugurais que
esses pensadores tiveram, experiências que se desdobraram na linguagem grega e
ali foram guardadas e preservadas em algumas palavras fundamentais
(Grundworte).296

coloca que desde Platão e Aristóteles o conceito de !"#$% é polissêmico e, de tal modo, que acaba
por dispersá-lo de seu significado fundamental. Heidegger nos explica que entendermos o !"#$%
como fala não nos remete ao seu conteúdo primordial. Tampouco, suas interpretações posteriores,
tais como: razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação e proporção traduzem o que é o
!"#$%. Nesse parágrafo, Heidegger delimita os descaminhos que o !"#$% seguiu ao longo da
história da filosofia e nos explicita o porquê deste entendimento. (cf. Martin Heidegger, Ser e
tempo, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2012, p.71ss.)
294
Ver.samm.lung Sf, 1. reunião, […]. Cf. [online] Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/index.php?lingua=alemao-
portugues&palavra=Versammlung Acesso em: 06/10/14.
295
Cf. Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.104.
296
Cf. Marlène Zarader , Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.28. Itálicos da autora.
98

Hans-Georg Gadamer, no texto intitulado “Destruktion und


deconstruktion”, também compreende que o interesse de Heidegger teria sido o de
buscar encontrar nos pensadores da origem uma experiência que desse conta da
questão do ser, não mais como pura presença, mas uma experiência do ser envolta
pelo selo do velamento e do desvelamento. O autor nos revela que Heidegger
procurava em Anaximandro, Heráclito e Parmênides “a experiência originária do
Ser, um testemunho da comum pertença entre ocultação e revelação”.297

De acordo com Zarader, a questão mesma da experiência (Erfahrung)


mereceria uma longa e demorada atenção. Também nós assim entendemos.
Apesar de não ser o nosso caminho, entendemos que é necessário um pequeno
desvio, a fim de elucidarmos o estatuto que a palavra experiência ocupa no
vocabulário heideggeriano. Primeiramente, não nos atemos aqui àquela
experiência orientada pelo escopo da ciência. Apesar de todo o histórico sobre
essa questão nos orientar para uma objetivação, o método e o passo-a-passo
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passam ao largo da experiência pensada por Heidegger. Gadamer reconhece, em


Verdade e método, que há mesmo uma precariedade em relação a uma teoria da
experiência que se projete para fora da objetivação do método científico. O autor
nos coloca que o próprio Husserl, que dedicou-se a uma genealogia da
experiência, acaba por deter-se na dificuldade de se voltar para a sua essência na
medida em que faz da percepção, compreendida como externa e relacionada à
corporalidade, o fundamento último de toda a experiência. O segundo ponto que
gostaríamos de elencar, é que a experiência pensada por Heidegger também não
trata de uma vivência (Erlebnis) como aquela entendida por Dilthey, cujos estados
internos, sobre os quais estamos conscientes, não podem ser conhecidos senão
através de nexos mediados pelo mundo.298 De que forma, então, o filósofo
compreende a experiência? A julgar pela descrição que Heidegger nos oferece, em
A caminho da linguagem (GA12), entendemos que a experiência à qual ele se

297
Hans-Georg Gadamer, “Destruktion and Deconstruction”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall,
Heidegger reexamined: Language and the critique of subjetivity, vol.4, New York, NY:
Routledge, 2002. p.75. Tradução nossa. Maiúscula do autor. Entendemos que o pensar de
Gadamer, em acordo com o de Vattimo, move-se aqui no domínio da clareira, o lugar que,
segundo Heidegger, permite-nos saber a respeito do ser, assim como sobre o ser e o pensar. Nos
deteremos à questão da clareira mais adiante quando adentrarmos a análise do fragmento de
Parmênides.
298
Cf. Charles Bambach, Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism, Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1995, p.153.
99

refere abarca o homem em sua totalidade e diz respeito ao espaço de abertura ao


próprio ser. Diz o filósofo:

Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um
ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela,
vem ao nosso encontro, chega até nós, nos avassala e transforma.
“Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos
produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o
sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro,
harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele.299

Através dessas palavras, vemos que, para Heidegger, uma vez alcançados pela
experiência não há controle, é ela que nos conduz e governa. Estabelece-se, dessa
forma, uma relação em que se sofre a ação ou o efeito de experimentar, e, a partir
desse encontro, algo novo é gerado pela experiência em si. Mas, de que forma
essa compreensão se desdobra na relação do filósofo com os pensadores da
origem?

Zarader nos coloca que a questão da experiência ganha significado para


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Heidegger a partir da relação direta com o pensamento e a língua.300 A autora nos


diz que, ainda que a experiência preceda o pensamento e muitas vezes
transborde-o não possibilitando uma apreensão, o experimentar desdobra-se na
linguagem. No caso dos pensadores da aurora grega, Gadamer nos fala que a
íntima relação e unidade entre a palavra e a coisa era tão natural, que “o nome
verdadeiro era experimentado como parte de seu portador, e quando não, ao
representar o outro como substituto, era experimentado como ele mesmo”.301 Isso
significa que no início do pensar, palavra e nome estavam tão imbricados com a
coisa à qual se referiam que, segundo o autor, pareciam pertencer ao próprio ser
da coisa. Gadamer entende que foi a partir da compreensão de que a palavra é
somente um nome a representar uma coisa, que palavra e nome se dissociam e
perdem sua relação imediata com o ser daquela coisa. Zarader acrescenta que a
língua – e sobretudo a grega – guarda riquezas que o pensamento não é capaz de
exaurir e, por isso, permanece como um refúgio para o impensado. Para a autora,
a língua desses primeiros gregos conservou a sua “força original de nomeação”302,

299
Martin Heidegger, A caminho da linguagem, Petrópolis: Vozes, 2003. p.121. Apesar de
extensa, entendemos que a citação deve ser feita na íntegra no sentido demonstrarmos a
importância que o vocábulo tem no pensamento de Heidegger.
300
Itálicos da autora.
301
Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, 1999, p.590.
302
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.28.
100

e isso permite que o impensado seja “experimentado”303 sem que se perca, nessa
experiência, a sua rubrica de impensado. Segundo a intérprete, essas experiências,
feitas na aurora do pensar ocidental, não são sustentadas pelo pensamento e quase
não são percebidas pela consciência, por isso, duram o tempo de um “clarão”304 e
logo são recobertas. Mas as palavras ficaram. Zarader nos diz que essas palavras
chegaram até nós vazias de sua reverberação inicial, e são elas que solicitam um
interlocutor a quem possam falar da experiência que as tornou possível. A autora
compreende, com isso, que o interlocutor é aquele que se direciona à origem para
ouvir aquilo que, ainda oculto, permanece impensado, ou melhor, é o interlocutor
que se põe à escuta das palavras inaugurais, de forma a ali encontrar a experiência
contida e transmitida pelas palavras desses pensadores; palavras que ainda
permanecem à espera de um futuro. Isso implica, no caso da língua grega, numa
tradução; o que nos coloca diante de uma outra questão: como pode uma tradução
aproximar-se daquela experiência vivida pelos pensadores da manhã grega? Ou
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melhor, como um redizer pode se circunscrever àquilo que foi experienciado?

3.2. Da traductio

Nesta parte de Que chamamos pensar? Heidegger volta-se, então, para a


questão da tradução propriamente dita. E, nesse caso, para o poema de
Parmênides, um poema escrito no grego arcaico por volta do V séc. a.C., fato que
delimita uma dupla dificuldade: a de verter para o alemão um pensar do grego
antigo e, nesse pensar, encontrar aquilo que permanece oculto. Mas, vejamos
primeiro o que Heidegger entende por tradução. Voltemos nossos ouvidos atentos
às palavras do filósofo.

Sobre a tradução, Heidegger nos pede observar duas coisas, a saber, o


conteúdo do enunciado e a forma pela qual o enunciado é vertido da língua
original para a outra língua. Quanto à primeira, corremos sempre o risco de
sermos muito rápidos e acharmos que logo encontramos a palavra adequada.
Devemos, pois, estar atentos às obviedades – não há nada de óbvio no pensar de
Parmênides. No que diz respeito à segunda, o filósofo nos diz que a erudição não
nos garante nada, devemos “ouvir a sentença a partir do frescor das palavras”305 e

303
Grifo da autora.
304
Grifo da autora.
305
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.148.
101

não ficarmos presos à petrificação da forma. Para Heidegger, todas as vezes que
traduzimos um pensamento para nossa língua materna caímos na tentação da
interpretação e, com isso, submetemos aquele pensamento a um olhar atravessado
por algo previamente pensado. Contra isso, a tradução deve sempre lutar. Por
outro lado, adentrar um pensamento sem qualquer pressuposição é, no pensar do
filósofo, uma interpretação ainda mais carregada de pressupostos, pois na visão de
Heidegger, a crença de que se pode dialogar com um outro pensar a partir de uma
ausência de pensamento repousa numa teimosia infundada. A ausência de
pensamento é, neste caso, o reduto daqueles que se acercam da aparência de
parentesco e da adequação na interpretação. Como, então, devemos nos aproximar
da tradução?

Heidegger entende que devemos depositar uma certa confiança naquilo


que nos é legado sobre os pensadores da origem, pois, a cada releitura
encontramos caminhos possíveis e novas diretrizes. Todavia, aqui também
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encontramos uma dificuldade. O problema reside na impossibilidade de


reformulação dessas diferentes leituras, que estranhamente se encobrem por
generalizações que petrificam a fala. Sobre isso, Michael Inwood, em suas
palavras iniciais ao Dicionário Heidegger, acrescenta que o filósofo é aquele que
recebe a palavra por herança, mas não vive a experiência a partir da qual a palavra
se origina. O autor compreende que, não só o filósofo não vive a experiência
original, como também a palavra vai se desgastando ao longo do tempo. Assim,
para Inwood, aquilo que foi experimentado e transmitido em primeira mão perde-
se na transmissão. O autor entende que, uma vez que nessa comunicação as
palavras não emergem da experiência, aquilo que é transmitido é visto apenas
como um conceito herdado. Inwood nos mostra que assim como o vocábulo grego
,&-./, traduzido mais tarde por “natureza”306, afastou-se de seu campo original,
muitas outras palavras perderam a cifra da experiência primordial que as originou.
Por isso, conhecer a palavra do pensador não significa a sua compreensão. Nesse
sentido, para Heidegger, o perigo da tradução é ainda maior, uma vez que essa se
expressa em outra linguagem. O filósofo nos adverte sobre o perigo de, em vez de
confrontarmos a palavra grega, tomarmos o seu correspondente já traduzido
apenas porque soa familiar aos nossos ouvidos, sem nos atermos ao fato de que

306
Grifo do autor.
102

toda a tradução carrega consigo algo daquele que a traduziu. Vejamos como o
filósofo compreende essa dinâmica.

A tradução se apresenta, inicialmente, como um processo externo, técnico-


filológico. Heidegger nos coloca que a tradução é compreendida como um
transpor, o verter de uma língua em outra através de uma ordenação sintática dos
termos. Todavia, para o filósofo, além da tradução se ater a um domínio entre
duas línguas, estamos já circunscritos dentro de um outro traduzir, o da nossa
própria língua, ou seja, o nosso próprio dizer já passa por um processo de
tradução na medida em que “falar e dizer é um traduzir”307. Trata-se de uma
dinâmica que ocorre na própria linguagem, uma vez que na fala optamos por esta
ou aquela palavra para expressar este ou aquele pensamento. Segundo Heidegger,
isso já é uma transposição. O filósofo nos coloca que somente na poesia e no texto
filosófico nos encontramos circunscritos à singularidade da palavra, pois ali
segue-se apenas uma transposição do ser do poeta ou do filósofo para o horizonte
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de uma verdade. Heidegger entende que somente quando somos tomados por essa
transposição é que nos encontramos no âmbito mais próprio à palavra e estaremos
aptos à tarefa da tradução. Isso significa que, no entender do filósofo, a tradução
mais difícil é sempre aquela que se passa no interior da nossa própria língua, pois
na medida em que há o domínio de uma linguagem, julga-se compreender as
palavras de imediato sem ater-se ao fato de que essas possuem um reino original
que lhes é próprio. Por isso, a tradução deve buscar ouvir as palavras nelas
mesmas, de tal forma, que nessa recepção nos coloquemos em sintonia com
aquilo que a palavra diz. Somente aí, diz o filósofo, exercemos a atenção plena e
começamos a pensar.

Diante de tamanha dificuldade e cientes de toda essa problemática,


procuremos seguir os passos do filósofo, ou melhor, empenhemo-nos em
vislumbrar este avanço com Heidegger, que busca “através de uma circunscrição
mais e mais cerrada, possibilitar o salto para o interior do dizer da sentença”308 de
Parmênides.

307
Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.28.
308
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.144.
103

3.3. O impensado de Parmênides

3.3.1. A !"#$%&'

Nossos primeiros passos nos levam, ainda que concisamente309, àquilo que
julgamos ser fundamental para nos aproximarmos do fragmento de Parmênides: a
compreensão da palavra grega ἀ!0'1.2, que no poema é o nome da deusa.
Heidegger nos coloca que, de modo geral, na filosofia dos gregos, a palavra
ἀ!0'1.2 era traduzida usualmente por “verdade”310, e ἀ!3'0% era a palavra usada
na enunciação para expressar certeza e confiança, mas não no sentido de
desvelamento. Segundo Zarader, esse entendimento foi assumido pela filosofia
medieval que condensou na fórmula “Veritas et adaequatio rei et intellectus”311
toda uma compreensão na qual a verdade é concebida como uma adequação do
conhecimento à coisa. Como vimos anteriormente, Heidegger entende que o
círculo iniciado com Platão, cuja a história da essência da verdade é
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experimentada metafisicamente, se fecha com Nietzsche. Não há, segundo o


filósofo, nenhuma percepção de que, nesse âmbito, a verdade reine apenas como
adequação e concordância. No entender de Heidegger, a verdade experimentada
como retitude da representação e da enunciação se põe à luz do ente e fica, por
isso, reduzida ao sentido de ὀ4'"53%. A ἀ!0'1.2, pensada por Heidegger como
desvelamento, como clareira da presença, não é a verdade. Todavia, a verdade,
como certeza do saber a respeito do ser, só pode se dar no aberto da clareira, no
desvelamento. Para o filósofo, a ἀ!0'1.2 é o caminho para o qual o pensamento
se abre, é o lugar que garante ser e pensar, é aquilo que possibilita à presença se
fazer presente. É a ἀ!0'1.2 que possibilita a verdade312, é ela que a origina.313

Ernildo Stein, em Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da


interrogação heideggeriana, nos fala que a ἀ!0'1.2 é um elemento essencial e
comanda toda a atitude de Heidegger diante da metafísica ocidental. Ela é,

309
Entendemos a essencialidade da palavra ἀ!0'1.2 no vocabulário heideggeriano, todavia, nosso
intuito é o de, apenas, entendermos o caminho do pensar de Heidegger ao nos encaminhar para
Parmênides no escrito Que chamamos pensar?.
310
Grifo do autor.
311
A frase “Veritas et adaequatio rei et intellectus” pode ser traduzida livremente por: a verdade é
a adequação da coisa ao conhecimento ou a adequação do conhecimento à coisa.
312
Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores –
Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105ss.
313
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.62.
104

segundo o autor, a própria possibilidade de pensarmos o ser não só como


desvelamento, mas, como retenção e velamento; não só como presença, mas,
também, como ausência. Stein nos coloca que, para Heidegger, todo o jogo do
velamento-desvelamento só é possível de ser pensado na ἀ!0'1.2, pois é ali que
“esconde-se [...] o elemento da ausência que presentifica”.314 Isso significa,
segundo o intérprete, que é a possibilidade – elemento fundamental da clareira –
aquilo que ao mesmo tempo vela e desvela. Para Stein, Heidegger nos remete para
o domínio dos primeiros pensadores gregos, pois neles é possível encontrar aquilo
que seria o fundamento da presença, 2-!0'3. É, segundo o autor, esse “alfa
privativo que caracteriza o desvelado que deixou para trás aquilo que se retém em
favor da presença, (que) aponta para a retenção, (para) a retração, para a
possibilidade”.315 É, pois, a ἀ!0'1.2 a palavra-chave que abre, no pensar de
Heidegger, a interrogação pelo ser. Mas, como os pensadores da origem pensaram
a ἀ!0'1.2?
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Heidegger nos conta que Parmênides foi o primeiro a meditar o ser do


ente. É Parmênides que, em seu poema, nos fala da ἀ!0'1.2 referindo-se ao
“lugar do silêncio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita
desvelamento”.316 Para o filósofo, a imagem da clareira no meio de uma floresta
densa nos fornece todos os elementos necessários para pensarmos a questão
originária: um espaço onde a livre dimensão do aberto, uma vez contemplada,
venha a falar algo à nossa alma, tanto do que se faz presente como do que se faz
ausente. Na clareira tudo se evidencia, tudo se torna claro. Mas, também se fecha
e se preserva em sua originariedade, “semelhante a uma fonte que só jorra
enquanto se preserva a si mesma”317. De acordo com o pensador, somente do
âmago da clareira pode brotar a possibilidade de um comum-pertencer entre ser e
pensar, ou seja, a articulação entre presença e apreensão. Heidegger entende que
sem a experiência prévia da clareira, não há possibilidade de dizer qualquer
palavra sobre o pensamento.318 Isso significa que, toda e qualquer ideia sobre o

314
Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana,
Ijuí: Ed. Unijuí, 2001, p.85.
315
Ibidem, p.87.
316
Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores –
Conferências e escritos filosóficos, 1996, pp.104-105.
317
Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.32.
318
Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores –
Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105.
105

pensar não pode sequer ser levantada em questão, enquanto não entendermos a
ἀ!0'1.2 como desvelamento. Stein acrescenta que é a experiência grega
originária “[....], que contém em si a possibilidade de eclodir numa palavra aquilo
que a resume. Sem a compreensão da experiência grega, a etimologia da palavra
ἀ-!0'1.2 é letra morta”.319

Fica claro, a partir de Zarader, que Heidegger descarta qualquer


possibilidade de uma leitura metafísica do poema, ou seja, uma leitura à luz do
platonismo, cuja interpretação foi seguida por toda a tradição filosófica. O
filósofo não questiona o pensador da aurora grega a partir desse horizonte. Para a
intérprete, o que Heidegger pretende é compreender Parmênides à luz da origem e
daquilo que ali ficou encoberto. Não se trata, segundo a autora, de uma
aproximação “objetiva”320, mas de tentarmos compreender em que medida o
chamado do ser foi direcionado a Parmênides. Trata-se de um caminho de
questionamento bastante árduo de ser percorrido, sobretudo porque “o que é digno
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de ser questionado é assumido como o único âmbito de permanência do pensar”.321

3.3.2. O fragmento VI

Voltemos ao escrito de Heidegger e à análise do fragmento VI do poema


Da Natureza de Parmênides: 64ὴ 5" !7#1.8 51 8$1ῖ8 5᾽ἐὸ8 ἔµµ182., traduzido
habitualmente por “é preciso dizer e pensar que o ente é”322. O filósofo nos coloca
que, tão acostumados a uma tradução usual, não nos damos conta que Parmênides
esteja a nos soprar à alma aquilo que chamamos pensar. Vejamos como isto se dá.

Heidegger inicia sua caminhada partindo de uma análise bem elementar e


eliminando as obviedades contidas na estrutura desse fragmento; afinal, um
pensador da grandeza de Parmênides não se ateria a dizer algo da ordem do
trivial. Para o filósofo, dizer que “o ente é”323 pode não só enunciar o fato do ente
ser, mas, sobretudo, o fato de pertencer ao ente como traço fundamental o “é”324.
Assim, “o ente é” significa dizer que ele não-não é. Mas o que esse “é” nomeia? O

319
Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana,
2001, p.94.
320
Grifo da autora.
321
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.155.
322
Grifo nosso.
323
Grifo do autor.
324
Grifo do autor.
106

que fica encoberto nesse “é”? O pensador entende que há aí uma densidade
tamanha que mal nos damos conta. Acolhemos esse “é” tão naturalmente que,
nesse acolhimento, permanecemos no abandono da ilusão do uso regular de um
verbo auxiliar que atravessa nossa fala inúmeras vezes ao dia. Nossos ouvidos
estão tão habituados às representações desse “é” que acreditamos que nada mais
fica por dizer. Heidegger percebe que, talvez, nesse aparente vácuo de sentido
habite “a única possibilidade para os mortais de chegar à verdade”.325 Para o
filósofo, o enunciado de Parmênides encerra em si o mais absoluto mistério do
pensar e do dizer. E penetrar neste enunciado é o mais árduo, precisamente,
porque nos encontramos sempre por ele envolvidos.

Segundo Heidegger, o enunciado de Parmênides é algo que lhe é


soprado à alma, pois, logo em seguida à sentença, encontramos o pedido para que
aquele saber seja guardado no coração. Ao que, de imediato, o filósofo indaga:
quem é esse eu que faz tal demanda? Quem é esse eu que fala àquele que pensa?
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E, mais, quem é esse que, além de chamar, indica caminhos? Heidegger nos
coloca que aquele que chama a pensar nos remete a três caminhos: o caminho que
devemos seguir, aquele ao qual devemos prestar atenção e a um outro que
permanece inacessível ao pensamento. Segundo o filósofo, nos deparamos neste
dizer com uma encruzilhada: o caminho, o não-caminho e o falso caminho. Essa
encruzilhada, à qual o pensar é lançado, se faz presente a todo o instante desse
caminhar; motivo pelo qual somos eternamente levados ao caminho do
questionamento.

De forma a tornar a estrutura do enunciado de Parmênides mais precisa e


trazer à luz aquilo que ficou ensombreado, Heidegger analisa a sentença
seccionando suas partes por meio de “dois pontos”.326 Em um sentido mais livre
podemos entender o “é preciso”327 por “é necessário”328, de modo que o enunciado
fica assim disposto: “Necessário: o dizer assim como pensar: ente: ser”.329 Para o
filósofo, encontramos nos “dois pontos” um aceno da relação entre os termos. Em
grego, essa relação de ordem e posicionamento chama-se 59:.%. Todavia, não há
nesse ordenamento uma ligação, pois os termos encontram-se justapostos pelos
325
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.146.
326
Grifo do autor.
327
Grifo do autor.
328
Grifo do autor.
329
Martin Heidegger, op. cit., p.153.
107

“dois pontos”. Isto torna o ordenamento paratáxico: uma sentença ordenada a


partir do conjunto. É somente com o acréscimo dos termos de ligação que a
ordenação sintática dos termos vem a ocorrer. Segundo George Pattison, em The
later Heidegger, uma frase contém uma unidade de sentido quando expressa uma
relação de sujeito e predicado (x é y). Esta estrutura nos dá o entendimento de que
para tudo o que existe encontramos atributos ou propriedades. Para o intérprete,
em uma sentença paratáxica, os elementos da oração não se reduzem a uma
unidade formal; não há nenhum ordenamento explícito na relação dos termos e,
portanto, nenhuma predicação. Dentro de uma concepção lógica, além de soar
estranha aos ouvidos, essa oração não tem significado algum. Heidegger nos fala
que quando falta o aspecto sintático numa construção linguística, ou entendemos
que há um desvio da sintaxe, ou nos deparamos com um estágio da língua que
ainda não foi alcançado. O linguajar paratáxico é encontrado em linguagens em
que a estrutura sintática da língua não existe, como no caso dos povos primitivos
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ou, mesmo, entre crianças, cuja estrutura ainda não foi construída. Mas, como
esse tipo de linguagem pode se adequar ao pensamento de Parmênides?

Heidegger entende que a construção ; “Necessário: o dizer assim como


pensar: ente: ser”330 não é não-sintática e, muito menos, primitiva. O filósofo
concede ao paratáxico um status fora de comparação ao da linguagem primitiva
ou mesmo do falar infantil. Nesse falar, mesmo que num vislumbre, Heidegger
distingue um falar mais original, um falar com uma intencionalidade mais
abstrata. Para ele, há no espaço entre as palavras um falar e desse vazio é que
brota a fala do pensador, um pensar em si mesmo. Vejamos, então, cada uma
dessas palavras. Passemos à análise heideggeriana e busquemos encontrar nesse
pensar um abrigo.

3.3.2.1. O ()ὴ

Sabemos, a partir de Heidegger, que o vocábulo grego 64ὴ é traduzido


por “é necessário”. Apesar de não recusar essa tradução, Zarader nos aponta que o
filósofo esforça-se para entendê-la a partir de um horizonte mais original.
Heidegger nos fala que a palavra 64ὴ pertence ao verbo 649< (usar, manusear), de
onde também deriva o substantivo 61=4 (mão). Com isso – eu uso, eu manuseio –

330
Grifo do autor.
108

significa reter algo em mãos, significa precisar de algo. Jaz neste precisar uma
adaptação na medida em que quando manuseamos alguma coisa, nossa mão se
adapta à coisa manuseada e não o contrário. Em acordo com Zarader, Carol
White, em “Heidegger and the greeks”, também compreende que devemos buscar
o significado da palavra grega 64ὴ em sua raiz, segundo a qual os vocábulos 61=4
(mão) e 649< (manusear) sugerem não só o envolvimento com algo ou o alcançar
das mãos, bem como o deixar nas mãos de alguém ou o deixar algo pertencer a
alguém. É, pois, na essência desse precisar que Heidegger vai se deter.

Heidegger entende que é a partir do precisar entendido como brauchen


que nos orientamos para a sua essência. Essa forma do precisar não é criada pelo
homem e, tampouco, significa um simples utilizar (Benützen). O utilizar já é,
segundo o filósofo, uma deterioração do precisar. A tradução proposta por
Heidegger, para a palavra alemã der Brauch, se atém ao sentido de um uso que
guarda na essência e que deixa aquilo que é no seu mais próprio, que deixa ser.
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White também se atém ao sentido do termo alemão der Brauch e nos adverte a
não tomá-lo em sua forma puramente pragmática, como a do vocábulo “uso”, pois
na sua acepção verbal, brauchen também significa precisar, empregar, envolver-
se, e, segundo a autora, Heidegger toma a palavra brauchen naquilo que considera
a raiz de seu significado: o de desfrutar, estar satisfeito com algo e tê-lo em uso.
Para a intérprete, o 64ὴ indica um manusear para que nesse uso a coisa seja o que
é, “uma reunião que ilumina e abriga o que é, fazendo que isto seja o que é.”331
Zarader acrescenta que o 649< (manusear), ao qual Heidegger se detém, também
se acerca de uma entrega que deixa algo em mãos certas, no sentido de liberar a
uma pertença. Segundo a autora, na ideia de entrega, liberação e pertença
encontramos uma relação muito obscura que se anuncia a partir de “uma fruição
cuja propriedade essencial é deixar ser”.332 A intérprete nos coloca que, para
Heidegger, não há de forma alguma um abandono ou indiferença nesse deixar,
mas, ao contrário, um cuidado e apego, pois deixa o que é usado em sua essência.
Fala-nos, pois, de uma salvaguarda.

Uma análise mais aprofundada da palavra alemã der Brauch encontramos


com Michel Haar, em Heidegger et l’essence de l’homme. O autor nos apresenta

331
Carol White, “Heidegger and the greeks”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to
Heidegger, 2005, p.125. Tradução nossa.
332
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.128. Itálico da autora.
109

que o termo Brauch diz respeito não só à necessidade do ser, como também à
maneira pela qual a sua relação com o homem responde a essa necessidade,
“utilizando”333 o homem. Segundo Haar, para Heidegger, “o homem manter-se
(nesta relação) significa a mesma coisa que: o homem, como homem, ser
essencialmente, im Brauch, mantido.”334 O intérprete entende que o ser nos
mantém e, ao mesmo tempo, mantém-se em nós na medida em que somos
necessários para ele, ou seja, expressa-se no apelo do ser (Anspruch)335 uma dupla
necessidade: primeiro, a necessidade de despertar no homem uma resposta ao ser,
e segundo, a própria necessidade do ser dessa resposta. Para Haar, a manutenção
do ser em relação ao homem determina uma necessidade que “compele”336 o
homem ao ser, e que essa relação não se completa enquanto o homem não for
capaz de pensar o ser, pois é no pensar que o homem cumpre essa realização. O
autor compreende que, para Heidegger, é o pensar que realiza (vollbringt) a
relação do ser com o homem.
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De acordo com Haar, a palavra Brauch busca encontrar o sentido original


da palavra “necessidade”337, expressa tanto no 64ὴ de Parmênides, como no 5ὸ
641>8 dos fragmentos de Anaximandro. O intérprete nos explica que o 64ὴ,
normalmente associado à ideia do “é necessário”338, refere-se a uma necessidade
extrínseca. Entretanto, na medida em que Heidegger liga-o à sua raiz 61=4 (mão) e
deriva o 641>8 do verbo 649< (colocar em uso ou manusear propriamente), o “é
necessário” de Parmênides deve ser entendido como uma necessidade intrínseca,
uma necessidade interna que governa toda a presença. Haar segue esclarecendo
que esse “é necessário” relaciona-se com o fato de que na medida em que o ser se
inclina sobre os entes presentes, de algum modo ele “lida com”339 o decurso do
tempo, e que o termo alemão Brauch se circunscreve à ampla relação da presença

333
Grifo do autor.
334
Martin Heidegger apud Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.129. Tradução
nossa.
335
An.spruch Sm, [...] 2. reivindicação, exigência, reclamação. (cf. [online] Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/definicao/alemao-portugues/anspruch_40594.html
Acesso em: 27/9/2014.
336
Grifo do autor.
337
Grifo nosso.
338
Grifo do autor.
339
O tradutor utiliza o termo handle entre aspas, cujo sentido, além de nos direcionar para o “lidar
com”, “cuidar de”, “ocupar-se de”, também infere o “manusear”, trazendo, assim, ao Brauch a
ideia de “uso e manuseio” inferidos por Heidegger. (cf. [online] Disponível em:
http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/handle_1 Acesso em 27/9/2014.)
110

para com as coisas presentes. Para Heidegger, a inferência trazida pelo termo
Brauch seria, então, “o modo como o próprio ser está a ser (west) enquanto
relação com o que está presente – uma relação que diz respeito ao que está
presente enquanto tal e que o maneja: 5ò 641>8.”340 Isso significa, segundo Haar,
que o “deixar ser”341 mantém o que é na própria essência, ou seja, mantém o que é
no seu próprio e chama o homem a pensar o que lhe é o mais próprio,
conservando-o como algo presente.

Após essas análises entendemos que subjaz neste precisar um sentido de


captura muito difícil. O próprio Heidegger nos coloca que o precisar inferido pelo
vocábulo grego 64ὴ é dificilmente percebido pelos mortais, pois sua essência
nunca se deixa avistar assim facilmente. Haar nos adverte mais adiante em seu
texto que, diante da racionalidade tecnológica, o “pensamento calculador”342 não
reserva outro destino que não a morte da essência humana, e que “a não
experiência do ser afeta o ser, [...], subjuga-o de tal forma que o ser ‘precisa’ ser
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contemplado, ser pastoreado pelo homem”.343

Segundo Heidegger, ao destino dado por Parmênides à forma 64ὴ – sendo


a palavra alocada logo no início da frase – não resta outro sentido senão o de “é
preciso...”344. O enunciado “é preciso” designa uma frase impessoal que nos fala
de algo digno de questionamento. Todavia, o filósofo entende que não há no
enunciado de Parmênides nem uma premência, nem uma demanda no sentido de
uma obrigatoriedade, como comumente a expressão “é preciso” evidenciaria, mas
aproxima-se muito mais do sentido de “dá-se”345(es gibt), uma vez que conjuga
algo da ordem da essência. Daí a necessidade de entender o vocábulo grego 64ὴ
no seu sentido mais elevado. Heidegger nos rememora que tratou desse “dá-se”
em Ser e Tempo e, também, na carta “Sobre o humanismo”, onde encontramos a
frase: “dá-se o ser”.346 O que podemos dizer desse “dá-se”?

340
Martin Heidegger, Caminhos de floresta, Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian,
2012, p.434.
341
Grifo nosso.
342
Grifo do autor.
343
Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.133. Tradução nossa.
344
Grifo do autor.
345
Grifo do autor.
346
Grifo do autor.
111

Para o filósofo, ao dizer “dá-se o ser” evita-se a expressão clássica: “o ser


é”347. Nos encontramos, pois, circunscritos àquilo que o pensador nos evidenciou
anteriormente: o nomear do “é”. Heidegger entende que não se percebe que
quando dizemos que algo é, nos referimos apenas ao ente, falamos das coisas que
são. O ser não é uma coisa, não é um ente. Neste sentido, ao dizer “dá-se” o ser, o
que se dá é o ser ele mesmo. Esse dá “(...) nomeia aquilo que dá, a essência do ser
que garante a verdade. O dar-se ao aberto, com ele mesmo, é o próprio ser.”348
Seguindo na mesma esteira, Heidegger evoca a frase de Parmênides: éstin gàr
eῖnai que significa: “É, a saber, o ser”349. Esta frase, de acordo com o filósofo,
reúne em si um mistério originário para o pensar que, entretanto, permanece
impensado para a Filosofia: a própria verdade do ser. É, pois, nesse sentido, que
Heidegger, já em Ser e Tempo, diz: “dá-se” o ser. Para o filósofo, “este dá-se
impera como o destino do ser, cuja História se manifesta na linguagem pela
palavra dos pensadores essenciais. É por isso que o pensar que pensa, penetrando
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na verdade do ser, é, enquanto pensar, Historial.”350 Segundo Heidegger, não há o


pensamento sistemático que se desdobra em interpretações do ser na história.
Mas, ao contrário, o que existe é a própria História do ser que é rememorada na
medida em que esse, ao se fazer destino, se dá em sua verdade.

Sabemos, através de Carneiro Leão, que “por ser Essencialmente destino,


o Ser, ao destinar-se no homem, se retém e esconde como destino”351, ou seja, é
parte do destino do ser essa retenção. Segundo o autor, Heidegger nomeia como
ἐ?$60, à dialética do dar-se e retrair-se, e lança mão da forma adjetiva “epocal”352,
para tratar da relação dialética em que o ser cumpre o seu destino. Carneiro Leão
compreende que é na linguagem, onde mora o homem, que o ser se destina sendo
ser, e é na palavra do poeta e do pensador que vamos encontrar a articulação do
destino “epocal” do ser. Em acordo com o pensar de Carneiro Leão, Zarader
também entende que se o ser encontra-se oculto para o pensar, é preciso que

347
Grifo do autor.
348
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e Escritos
Filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.358.
349
Ibidem, p.358.
350
Ibidem, p.358.
351
Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.15. Maiúsculas do autor.
352
Grifo do autor.
112

esteja de alguma forma conservado na linguagem.353 Por outras palavras: mesmo


sendo destino do ser a retração, e ainda que esquecido pelo pensamento,
precisamos encontrar vestígios na língua, pois é na linguagem que o destino do
ser se cumpre. Trata-se, pois, de auscultar de que forma o ser veio à linguagem na
aurora do pensamento. Voltemos à sentença, a fim de aí encontramos mais
elementos para uma compreensão.

3.3.2.2. O "*+%&, e o ,-%ῖ,

O que nos falam o !7#1.8 e o 8$1ῖ8? A partir do dicionário designam


“dizer” e “pensar”354. Todavia, de acordo com Heidegger, o uso habitual nos fala
de um lugar do dizer e do pensar que, mesmo lexicalmente corretos, não trazem à
luz aquilo que !7#1.8 e 8$1ῖ8 significam em si mesmos. Zarader compreende que
Heidegger não se satisfaz em apenas falar do pensamento, mas pretende nos
mostrar que o fragmento 5" !7#1.8 51 8$1ῖ8 51 nos orienta para a essência do
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pensar e nos revela o seu ser original. Segundo Inwood, não estamos aqui
circunscritos ao escopo de meras palavras, mas de palavras essenciais, as quais
exprimem ações que nos dão conta daqueles instantes em que uma centelha de luz
ilumina o mundo. De acordo com Heidegger, desde Platão e Aristóteles, esses
verbos se apresentam como caminhos essenciais do pensar.355 Sabemos, contudo,
que o filósofo busca uma compreensão para os termos que antecede os
significados a eles atribuídos pela tradição metafísica. Para Heidegger, há no
!7#1.8 e no 8$1ῖ8 uma relação de pertença mútua que denota algo de essencial. O
filósofo compreende que esses vocábulos não estão no enunciado de Parmênides
de forma impensada ou descuidada. De acordo com Zarader, para termos alguma
compreensão da articulação entre o !7#1.8 e o 8$1ῖ8, e de tudo aquilo que daí
resulta para o caminho do pensar, devemos nos direcionar a essas palavras e
buscar ouvi-las naquilo que originariamente nomeiam.

Analisemos, pois, com Heidegger, o enunciado de Parmênides:


Necessário: o dizer e assim também o pensar, o ente é. Nele, a ordem dos verbos
não soa de forma estranha aos ouvidos? Como pode-se falar algo antes de pensá-

353
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.126. Itálico da autora.
354
Grifos nossos.
355
Vimos anteriormente como a lógica foi compreendida como a doutrina do !"#$% e, a partir
disso, como o !"#$% se relacionou à doutrina do pensar determinando, assim, todo o destino do
pensamento ocidental.
113

lo? Por certo não é do falar no sentido do uso do aparelho linguístico que
Parmênides se refere aqui. Em que sentido, então, podemos entender o !7#1.8?
Segundo o filósofo, !7#1.8 significa incontestavelmente: dizer, relatar, narrar.
Heidegger também nos aponta que o verbo !7#1.8 é o mesmo que em latim legere
e em alemão legen. Na construção de seu significado, a partir dos elementos que
compõem o termo, o filósofo encontra em seu tronco linguístico as palavras: pôr,
propor, expor e dispor reflexivamente. Segundo Heidegger, é certamente nesse
sentido que os gregos pensavam o !7#1.8. Na esteira desse caminho, faz-se
necessário refletir que há aqui uma ambiguidade, pois o !7#1.8, mesmo
significando “dizer”356, tem no pensamento grego o sentido de “pôr”.357 Uma
forma, sem dúvida, estranha de representação da língua que ressalta a
plurivocidade da palavra grega. Mas, como podemos chegar a essa compreensão?

Segundo Zarader, tanto o !"#$/ quanto o !7#1.8 se circunscrevem a uma


polissemia que dificulta em muito a compreensão de seus significados. Todavia,
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para a intérprete, o sentido próprio dos termos deve ser interrogado a partir do
significado fundamental da palavra !"#$/. O próprio Heidegger nos lembra que o
substantivo !"#$/ liga-se ao verbo !7#1.8 e que em sua raiz latina (legere), e no
próprio alemão (lesen), encontramos a ideia de colher, apanhar. O sentido
atribuído a ler é apenas uma variação do ajuntar, embora, segundo o filósofo,
tenha tomado o primeiro plano.358 De acordo com Heidegger, o vocábulo alemão
lesen significa juntar coisas e colocá-las lado a lado como num conjunto.359 Assim,
o primeiro sentido de !"#$/ é colheita. A partir dessa compreensão, Zarader nos
indaga: onde é que a colheita busca a sua essência? Para a autora, entende-se por
colheita “o levantar do chão (aufnehmen), reunir (zusammenbringen) e conservar
(aufbewahren)”360 – atos que perpassam e permeiam uma colheita. Compreende-
se, pois, na essência da colheita, o pôr ao abrigo, o preservar e o conservar.
Segundo a intérprete, Heidegger nos oferece o termo recolha (sammeln) como
aquele que reúne, em seu escopo semântico, a compreensão dos três vocábulos.
Seria, então, recolha (sammeln) o termo heideggeriano para a essência da colheita

356
Grifo nosso.
357
Grifo nosso.
358
Cf. Martin Heidegger, “Logos”, in: Ensaios e conferências, Petrópolis, Rio de Janeiro:Vozes;
Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012, p.185.
359
Cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.149.
360
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.217.
114

(lesen). Mas, e quanto à essência da recolha? O que é a recolha em sim mesma?


Zarader nos aponta, então, um outro termo derivado do primeiro: Versammlung.361
É essa a palavra que, para Heidegger, indica a multiplicidade de sentidos que
caracteriza a recolha por excelência– algo que “só é o que é quando se reúne,
segundo todas as suas dimensões, naquilo que essencialmente a predetermina,
quer dizer, no pôr ao abrigo”.362 Segundo Zarader, foi a partir do !7#1.8, assim
concebido, que chegamos ao legen alemão, traduzido por estender, pôr.363 Ainda
assim, perguntamos: o que significa esse !7#1.8 como pôr? O que esse pôr diz em
si mesmo, em sua essência?

Heidegger entende que os verbos depor ou propor denotam o resultado de


algo que se assenta diante de nós. Nesse sentido, o mar, as árvores e as montanhas
se assentam de tal forma, que entende-se esse assentar como algo que independe
da ação do homem. No grego, o assentar corresponde à palavra @1ῖ-'2. e não
designa oposição ao que está de pé. Assim, a árvore tombada e a árvore em pé
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estão assentadas da mesma forma que o mar. Zarader acrescenta que deixar
qualquer coisa assentar é deixá-la aparecer.364 Para Heidegger, o fundamental no
assentar é o fato de que o que se assenta vem à cena por si mesmo. Por outras
palavras: no assentar de algo, aquilo que se “põe”365 já encontra-se
antecipadamente assentado como marca de uma pertença ao seu próprio modo de
vir a ser. O filósofo se refere àquilo que singular e primeiramente se assenta, antes
mesmo de uma apreensão. Trata-se, pois, da compreensão de que aquilo que em
sua singularidade se assenta diante de nós é, antes de mais nada, algo que
previamente já encontra-se assentado. Assim, o mar, as árvores e as montanhas
“preexistem e manifestam-se a partir do seu assentar-se diante de nós”.366 Mesmo
que de forma impronunciada, isto é, antes mesmo de afirmarmos que algo é, esse
algo já é, já preexiste. A4ὴ: 5" !7#1.8 fica então – é preciso: o pôr, o deixar
assentar-se diante de nós. O filósofo afirma que, para os gregos, é a partir desse
pôr que a essência do dizer se determina, e, nessa mesma medida, que o

361
Michel Haar, em sua aproximação do logos ao mythos, também se refere ao vocábulo alemão
Versammlung, como aquilo que reúne em si, a reunião original, a essência da reunião.
362
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.218.
363
Para o jogo da derivação – !7#1.8 – legen – lesen – cf. Martin Heidegger,“Logos”, in: Ensaios e
Conferências, 2012, p.185ss.
364
Cf. Marlène Zarader, op. cit., p.134. Itálico da autora.
365
Grifo nosso.
366
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.173.
115

significado da palavra !"#$%, forma substantivada de !7#1.8, se circunda. Zarader


nos coloca que o !"#$% não se acerca, em seu sentido originário, de algo da ordem
do “falar”367, mas fundamentalmente daquilo “que recolhendo o presente, o deixa
estendido-junto-diante, e assim o preserva abrigando-o na presença”.368

Heidegger nos fala que é o próprio Parmênides que claramente nos


concede o significado do !"#$%. Segundo o filósofo, no fragmento VII
Parmênides nos alerta para o caminho que o pensar reflexivo deve trilhar, nos fala
do outro caminho habitualmente trilhado pelos mortais, o qual jamais conduz à
coisa-a-pensar, e, por fim, nos alerta para que se tenha atenção a algo, a uma
requisição. Diz Parmênides: “E não te coaja o hábito, muito corrente, nesse
caminho, (a saber) / a deixar passear o olho cego e o ouvido ruidoso / e a língua,
muito mais ponha-se a diferir reflexivamente [...]”.369 Heidegger nos chama a
atenção para a oposição entre o !"#$% e a língua, entre a postura reflexiva e a
dispersão, entre o discernimento e o tagarelar. Pensada, então, a partir de
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Parmênides, a essência do !7#1.8 e do !"#$% se circunda dessa postura reflexiva


que deixa aparecer, deixa assentar-diante-de.370 Diz Heidegger: “para os gregos o
dizer é um pôr. (E) a língua consubstancia-se no dizer”.371 Isso significa que no
pôr – nesse algo que se assenta-diante-de – entende-se decisivamente tudo o que
é. Delineiam-se, assim, os primeiros traços daquilo que seria a essência grega da
linguagem: dizer é deixar algo aparecer como aquilo que é, é o deixar ser.

Visamos já o !7#1.8 em relação ao pôr. E quanto ao 8$1ῖ8, o que se passa


no interior desse vocábulo grego? Heidegger entende que o mesmo que ocorre
com o !7#1.8 em relação ao dizer, ocorre com o 8$1ῖ8 quando o traduzimos por
pensar. Para o filósofo, através de uma atitude reflexiva e livre do usual, quando
nos envolvemos com o 8$1ῖ8 percebemos que pensar tampouco se aproxima da
essência dessa palavra. A tradução de 8$1ῖ8 por perceber é muito mais cuidadosa
do que pensar. Mas, como podemos entender esse perceber? Heidegger
compreende o perceber como um recolher, uma receptividade que, no entanto, é

367
Grifo da autora.
368
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.220. Hífen da autora.
369
“µ3B7 - ἔ'$% ?$!&?1.4$8 "Bὸ8 @25ὰ 508B1 C.9-'< / 8<µᾶ8 ἄ-@$?$8 ὄµµ2 @2ὶ ἠ601--28
ὰ@$*08 / @2.D #!ῶ--28, @4ῖ82. Bὲ !"#<$. [...].”(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar?
[em elaboração], p.167.)
370
Hífen do autor.
371
Martin Heidegger, op. cit., p.173.
116

ativa. No 8$1ῖ8, o que é percebido nos interessa de tal forma que o tomamos e
fazemos algo com ele. Trata-se de um perceber que tem como traço o pretender
(des Vor-nehmens). Segundo o filósofo, a forma substantivada de 8$1ῖ8 – 8"$/ ,
8$ῦ/ – nos fala de buscar sentido para algo e fazer isso de coração; não fala, de
forma alguma, daquilo que mais tarde ficou entendido como razão. Heidegger
entende que daí resulta que o 8$1ῖ8 pode significar também o farejar, cujo escopo
semântico associa-se ao pressentir (Ahnen). Todavia, numa dimensão puramente
lógica, esse pressentir perdeu-se de seu sentido original. Para o filósofo, o
vocábulo pressentir em seu sentido primevo se acerca da ideia de que algo vem
até nós, nos sobrevém, e, desse modo, se oferece à atenção para que aí a
retenhamos. Assim, o 8$1ῖ8 possui o traço do reter na atenção, na memória, no
coração, e se aproxima daquilo que anteriormente Heidegger entendeu por
Gedanc: memória, enlevamento. Heidegger traduz, então, o 8$1ῖ8 por “prestar-
atenção-a”372. Zarader nos coloca que o 8$1ῖ8 comporta uma dimensão ativa de
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captura. Todavia, nessa apreensão não há uma dominação, o 8$1ῖ8 não se apodera
daquilo que é apreendido. Nessa captura ele apenas guarda em atenção, e, por
isso, é uma salvaguarda.373 Para Heidegger, “a atenção é a guarda que toma o
assentar-se diante de nós em sua verdade, que, todavia, carece em si mesma da
salvaguarda que no !7#1.8 é consumada como reunião”.374

Temos, assim, parte do fragmento compreendido. A sentença 64ὴ 5"


!7#1.8 51 8$1ῖ8 51... fica assim traduzida por Heidegger: “é preciso o deixar
assentar-se diante de nós, bem como o prestar atenção a...”375. Para o filósofo, esta
tradução esclarece quatro pontos:

i. primeiramente, o !7#1.8 precede o 8$1ῖ8 para que aquilo que se assenta


diante de nós venha a tomar nossa atenção. A isso, Zarader acrescenta que
“só pode ser tomado à sua guarda pelo pensamento o que já foi deixado
desdobrado-diante pelo dizer”376;
ii. em segundo lugar, não há um sequenciamento de palavras; mas, um
desdobrar-se tanto do !7#1.8 em direção ao 8$1ῖ8, como em sentido

372
Grifo do autor.
373
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.135.
374
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.174.
375
Grifo do autor.
376
Marlène Zarader, op. cit., p.136.
117

inverso, pois prestar atenção àquilo que se assenta diante de nós, já denota
o movimento de um em direção ao outro. Heidegger percebe que a
minuciosa utilização de 51 – 51 articulando os verbos !7#1.8 e 8$1ῖ8 dão
um sentido especial à sentença. Não há aqui uma mera conjunção a unir os
termos, mas uma interação, um entrelaçamento. Segundo Zarader, com o
51 – 51 articulando os verbos !7#1.8 e 8$1ῖ8, não há uma sucessão, mas
uma mútua reciprocidade, uma co-pertença. Aquilo que Heidegger entende
por uma autêntica relação de articulação em que as partes devotam-se
mutuamente uma à outra.
iii. em terceiro lugar, é através dessa tradução que a sentença torna-se audível,
ela nos encaminha para o caráter primordial daquilo que se designou como
pensar. Heidegger nos aponta para o fato de que é na articulação entre o
!7#1.8 e o 8$1ῖ8 que podemos entender o que quer dizer pensar. Zarader
acrescenta que não devemos compreender o !7#1.8 e o 8$1ῖ8, como duas
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determinações do pensamento, mas como a sua unidade, o traço de união


que determina a essência do pensar. Para Heidegger, a partir da articulação
de ambos os verbos compreende-se o que mais tarde chamou-se de
ἀ!3'1&1.8: “desvelar e manter desvelado o que se oculta”.377 Esta é,
segundo o filósofo, a essência encoberta do !7#1.8 e do 8$1ῖ8: estabelecer
uma correspondência com aquilo que se oculta. Entendemos, a partir de
Heidegger, que a articulação de ambos não jaz em si mesma. O !7#1.8 e o
8$1ῖ8 se direcionam nessa correspondência àquilo que lhes concerne e
define. O filósofo nos coloca que é exatamente por conta disso que nem o
!7#1.8 e nem o 8$1ῖ8 determinam a essência do pensar. Zarader
compreende que há aqui um direcionamento ao ser. Para a intérprete, não
podemos entender que “o pensamento é determinado pelo dizer se não se
compreendeu primeiro o dizer como instituição no ser, instituição, que por
sua vez, reclama ser salvaguarda no pensamento”.378 Heidegger entende
que esse caminho, no entanto, foi encoberto quando os romanos
entenderam o acoplamento de !7#1.8 e 8$1ῖ8 como ratio. )7#1.8 fica
entendido como “expor algo como algo” e 8$1ῖ8 como “tomar algo como

377
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.177.
378
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.137.
118

algo”379, perde-se totalmente o seu sentido original. Aqui a ratio está


relacionada à razão e, consequentemente, à lógica. A partir daí, o
entendimento essencial do pensar dos gregos fica obscurecido e
interditado, pois a partir da filosofia medieval e, depois, durante todo o
período da filosofia moderna, os vocábulos !7#1.8 e 8$1ῖ8 foram
compreendidos a partir do conceito de ratio. O pensar será, pois,
compreendido como o acoplamento do !7#1.8 em sua capacidade de
enunciação e do 8$1ῖ8 no sentido da razão. Com isso, Heidegger percebe
que a pergunta “Que chamamos pensar?” não chegou, sequer, a ser
formulada;
iv. por último, no sentido de mostrar o primeiro traço essencial do pensar,
Heidegger chama atenção para a meticulosa articulação a partir da
tradução de !7#1.8 e 8$1ῖ8. O fato do 8$1ῖ8, “prestar atenção a”380, ser
determinado pelo !7#1.8 nos diz duas coisas: primeiro, que o 8$1ῖ8 tem sua
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origem no !7#1.8 e desdobra-se a partir deste, pois num dizer reflexivo, o


“prestar atenção a” nos fala de uma acolhida daquilo que se assenta diante
de nós; e, segundo, que a atenção prestada une-se àquilo que se assenta
diante de nós, ou seja, o 8$1ῖ8 torna-se contido e mantido no !7#1.8.
Zarader entende que o lugar do !7#1.8 no fragmento nos concede a
primazia de sua essência, um caráter de prioridade que indica uma
necessidade, pois se o 8$1ῖ8 necessita que o !7#1.8 o anteceda, isto
significa que o dizer não é apenas uma predicação, nem tampouco um
deixar aparecer, “mas é também e mais fundamentalmente ainda reuni-lo
no que é, instituí-lo na presença – condição sine qua non da captação ou
da apreensão”.381 A intérprete compreende que a nomeação do 8$1ῖ8 em
segundo lugar significa, por sua vez, que esse não se desdobra como uma
mera representação ou como um ato da consciência, mas, é a própria
“manutenção no ser que é captada, o seu abrigo e a sua salvaguarda.”382

É, pois, nessa articulação que se move em essência o traço fundamental do


pensar. Não há, aqui, nenhuma conceituação, nenhuma apreensão, nenhum limite

379
Grifos do autor.
380
Grifo do autor.
381
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.136.
382
Ibidem, p.136.
119

demarcatório. Segundo o filósofo, o pensamento grego, em sua origem, não era


conceitual. O pensar permanecia no caminho ou a caminho, de acordo com aquilo
que se tomava como digno de questão do pensamento. Zarader nos chama a
atenção para o fato de que o pensar, assim compreendido, surge originalmente
como uma experiência muito distinta daquilo que veio a ser mais tarde e tem
como principal diferença o fato de não se expressar através de conceitos ou
sistemas, de não ser uma dominação. Essa é a razão pela qual, para a autora,
qualquer tentativa de aproximação do pensamento grego que procure uma medida
interpretativa no conceito e na representação está fadada à inadequação. A
intérprete compreende que aquilo que Heidegger deseja mostrar é que, na sua
abertura original, o pensar “é muito mais uma memória e uma escuta [...]”.383

Mas, onde é que o pensamento vai buscar sua determinação? Segundo


Zarader, não podemos encontrar esta determinação senão naquilo a que o !7#1.8 e
o 8$1ῖ8 nomeiam: o ἐὸ8 ἔµµ182.. Todavia, a autora nos coloca que não podemos
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elucidar essa questão sem adentrarmos na relação entre o 8$1ῖ8 e o ser. Questão
que será tratada por Heidegger no fragmento III384 do poema, um pouco mais
adiante. Sigamos, pois, os passos do filósofo que se volta agora para a última
parte da sentença de Parmênides.

3.3.2.3. O ἐὸ, ἔµµ%,'&

Acabamos de ver que o !7#1.8 e o 8$1ῖ8 tomam parte reciprocamente


numa articulação, mas que ainda não caracterizam a essência do pensar. Essa
articulação, segundo o filósofo, nos remete Àquilo385 que se segue na sentença: o
vocábulo ἐὸ8, traduzido de forma habitual por “ente”386. Segundo Heidegger, esse
vocábulo nos encaminha para um variado número de informações que em nada

383
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.138.
384
Fazemos registro da diferença tipográfica ocorrida no escrito Was hei!t Denken? publicado
pela editora Max Niemeyer, na edição do ano de 1997, que grafou o fragmento III do poema de
Parmênides como V. O mesmo não ocorre na edição do ano de 2002 da editora Vittorio
Klostermann, à qual tivemos acesso. Uma possível explicação para essa divergência pode ser
encontrada no próprio escrito de Diels e Kranz sobre os fragmentos pré-socráticos. Na edição
revisada de 1960, cujo exemplar tivemos acesso, encontramos ao lado do fragmento III uma
marcação que diz: früher 5 (anterior 5). A contar pela data da revisão, supomos que Heidegger
tenha utilizado uma edição do livro ainda não revisada e, por isso, tenha lançado mão da primeira
numeração feita pelos autores. (cf. Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der
Vorsokratiker, p.231.)
385
Maiúscula do autor.
386
Grifo do autor.
120

facilitam a sua compreensão. Por outro lado, possuímos uma concepção de “ente”
que já nos aponta para tudo o que existe, uma vez que tudo que se assenta diante
de nós é.387 Sabemos, contudo, que a sentença de Parmênides não termina aí,
segue ainda uma última palavra: o vocábulo grego ἔµµ182., também entendido em
sua forma antiga como ἔ-µ182., que, por sua vez, encontra em 1ῖ82. a forma para
“ser”388. Segundo Heidegger, ambos os vocábulos “ente” e “ser” traduzem-se para
nós completamente esvaziados de sentido. Aí nada encontramos, apesar de os
termos se situarem no patamar mais elevado da filosofia e pretendermos já tê-los
compreendido. Zarader acrescenta que no sentido de capturarmos aquilo que “era
o ser na sua primeira destinação”389 devemos buscar entender a topologia desse
dizer, pois, se é fato que entendemos 1ῖ82. por ser, não temos nenhuma pista
daquilo que os primeiros pensadores pensavam ou experimentavam no dizer dessa
palavra. A autora entende que 1ῖ82. é, por excelência, uma palavra enigma, a
própria questão.390 Vejamos, de acordo com Heidegger, o que os vocábulos ἐὸ8
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ἔµµ182. designaram no pensamento da aurora grega.

Heidegger coloca que, na sentença de Parmênides, essas palavras nos


indicam uma relação recíproca entre ambos os termos, uma relação de
pertencimento mútuo, parecendo, até mesmo, designarem a mesma coisa. O
filósofo nos diz que o próprio Parmênides em outras passagens usa vocábulo ἐό8
no lugar de ἔµµ182.. Se assim procedêssemos, a sentença ficaria: 64ὴ 5" !7#1.8 51
8$1ῖ8 5᾽ἐὸ8 ἐ"8. Estranha aos ouvidos, certamente, mas não para Heidegger que
vislumbra sentidos diferentes para os vocábulos. Segundo ele, há nessa palavra,
assim como em todas as outras, uma polissemia. O termo “ente” pertence a um
tipo de vocábulo que gramaticalmente compartilha duas significações: uma verbal
e uma nominal. Assim como o vocábulo “florescente” designa aquilo que floresce
e, ao mesmo tempo, o florescer, o vocábulo “ente” designa, de forma análoga,
aquilo que é e, ao mesmo tempo, o ser. O filósofo nos coloca que gramaticalmente
o particípio presente é ambivalente, e que seu dizer mais próprio se encontra

387
Itálico nosso.
388
Grifo do autor.
389
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.42. Itálico da autora.
390
Cf. Ibidem, p.42. Em nota, no sentido de corroborar este pensamento, a autora nos concede uma
citação de Heidegger que diz o seguinte: “Que dizemos quando em lugar de 1ῖ82., dizemos “ser”,
e em lugar de “ser”, 1ῖ82. e esse? Não dizemos nada. Quer seja grega, latina ou alemã, a palavra
conserva-se igualmente obscura.” (cf. A partir de Einleitung zu “Was ist Metaphysik?”, in:
Wegmarken, Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.205.)
121

relacionado àquilo que é si mesmo duplo (zwiefältig).391 Heidegger entende, com


isso, que o particípio ἐ"8 incorpora em si um outro, mesmo que de forma oculta.
Há, aqui, o sentido de uma duplicidade que fala de um copertencimento. Um lugar
em que o ente se consubstancia no ser, e este, como o ser do ente. Zarader
corrobora a ideia de que essa “dualidade de significação (Zweideutigkeit) dos
particípios repousa com efeito na duplicidade (Zweifältigkeit) do que eles
nomeiam”.392 A intérprete nos coloca que essa duplicidade não seria possível “se
não tivesse a sua origem no que é ‘eminentemente’ duplo, na duplicidade única e
incomparável – porque absolutamente primeira – que Heidegger chama a Dobra
(Zweifalt) do ser e do ente”.393 Zarader segue explicando que o ἐ"8 é a Dobra
primordial, aquilo que torna possível toda a dupla significação das palavras, a
única capaz de explicar seu caráter polissêmico. Nos deparamos aqui com aquilo a
que nos referimos mais atrás: o dizer das palavras. Segundo Heidegger, “não
somos nós que jogamos com palavras, mas a essência da língua que joga
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conosco”394, ou seja, é a língua que joga o tempo todo com o dizer do homem,
tornando, com isso, um verdadeiro empreendimento uma aproximação ao sentido
mais próprio das palavras. É, pois, segundo Zarader, na escuta atenta ao jogo da
língua que é possível ouvirmos que na duplicidade do ἐ"8 revela-se uma
“necessidade Historial”395 e não apenas uma contingência gramatical. Segundo a
autora, isso significa que foi dessa forma, através de uma duplicidade, que o ente
se desvelou àqueles que buscavam nomeá-lo em sua totalidade. Não que tivesse
havido um pensamento sobre essa destinação, mas, certamente, um habitar que os
aproximava da essência da linguagem, cujo manifestar se dava a partir da Dobra
do ser. Zarader entende que essa questão se situa numa obscura região pré-
metafísica, e que na origem isso não era um problema, nem mesmo uma
interrogação, deu-se como um acontecimento, um acontecimento que teve lugar
na aurora da nossa história. Assim, ao dizerem o ser, já o faziam a partir da dobra.
Para a intérprete, a palavra original é privilégio dos pensadores matinais, mesmo
que neles ainda não encontremos esse questionamento.

391
Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.187.
392
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.177.
393
Ibidem, p.177. Maiúscula da autora.
394
Martin Heidegger, op. cit., p.99.
395
Grifo nosso. Maiúscula nossa.
122

Este sentido de copertencimento, Heidegger vai encontrar no pensamento


de Platão. É no Sofista que o participar do que é presente no ente, o 1ῖB$/ ou a
.B72, se mostra e, neste sentido, se consubstancia, é. De acordo com o filósofo,
participium é o nome latino para o µ15$60 grego, e o participar, o fazer parte de
algo, diz-se µ15761.8: palavra fundamental no pensamento platônico. Platão
nomeia µ7'1:.% a essa relação de participação do ente com a sua .B72. Essa
palavra fala precisamente daquilo que o ἐό8 nomeia, a participação do ente no
ser. Segundo o filósofo, nessa participação inferida por Platão “está já pressuposto
que haja a dobra de ser e ente.”396 Ao falar que o ente e o ser “são”397 em diferentes
lugares, Platão nos concede um sinal decisivo para a compreensão da questão da
dobra entre ser e ente. Heidegger nos coloca que Platão “questiona o lugar
inteiramente outro do ser em comparação com o do ente”398, e, nessa
diferenciação, já está implícita a dobra, apesar da mesma não ter sido objeto da
atenção de Platão. Zarader nos coloca que, mesmo impensada, a Dobra era dita
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por Parmênides e fazia parte de uma experiência viva na qual a totalidade do seu
pensamento se desenvolvia. Todavia, segundo a autora, com Platão demarca-se o
seu desaparecimento. Ainda assim, isto não significa que a Dobra deixe de existir
e sustentar o pensamento, mas se o faz é apenas como um sinal. Não o faz mais
como com os pensadores originários, na forma de uma experiência desdobrada em
palavra dita.399

Heidegger entende que a questão levantada por Aristóteles: 5= 5ὸ ὄ8, “que


é o ente em seu ser?”400, repercute a permanente questão do pensar que se
desdobra como traço fundamental da filosofia. Essa questão, não há dúvida, segue
atravessando todo o pensar ocidental-europeu. Segundo o filósofo, aquilo que se
assenta-diante-de nós e a partir de si mesmo aparece é nomeado pelos gregos
como ,&-./, e aquilo que vai além, transcende, é chamado de µ159. Nesse sentido,
um pensar que se move do ente em direção ao ser, no sentido de que nessa
transcendência o ente seja representado naquilo que é, lança-se com uma chancela
metafísica, sendo a µ7'1:.% a forma como o ente, em participação ao ser, é por ele
determinado. Para Heidegger, “esse âmbito da metafísica funda-se naquilo que é

396
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.189. Itálico do autor.
397
Grifo do autor.
398
Martin Heidegger, op. cit., p.193.
399
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.180-181.
400
Grifo do autor.
123

nomeado através da µ15$60, e com uma só palavra através do singular particípio


ἐό8: na dobra de ente e ser”.401 Todavia, segundo o filósofo, é necessário que essa
dobra de ente e ser se assente diante de nós, se manifeste, para que a partir da
atenção ao assentar-se possamos tratar da participação de um no outro, do ente no
ser. Essa dobra, no entanto, só pode ser entendida em sua essência se prestamos
atenção ao ser do ente, ao ἔµµ182. do ἐό8 – àquilo que o ente é no seu ser. De
acordo com Heidegger, para que esse pensar possa tornar-se metafísico tem que
partir de um chamado, uma requisição como a de Parmênides - 64ὴ 5" !7#1.8 51
8$1ῖ8 5᾽ἐὸ8 ἔµµ182..

Heidegger entende que é na relação entre o ἐό8 e o ἔµµ182. que somos


chamados a pensar. Todavia, essa relação é na visão do filósofo a mais difícil,
uma vez que as palavras “ente” e “ser” caem, via de regra, na indeterminação.
Como podemos pensar, então, os vocábulos ἐό8 e ἔµµ182.? Para Heidegger,
somente quando o ente se assenta diante de nós como ente e nele prestamos
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atenção ao seu “sendo”402 é que o questionamos de forma mais clara e precisa, e é


na forma do particípio da palavra ἐό8 dada em sua ambivalência que chegamos ao
“ente sendo”.403 Com isso, o filósofo entende que os simples vocábulos “ente” e
“ser” não são formas garantidas de tradução para ἐό8 e ἔµµ182., uma vez que não
expressam a singularidade da sentença de Parmênides. É somente a partir da
conformação desses dois vocábulos que a pergunta doadora de medida “Que é
isso que nos chama a pensar?”404 pode ser colocada. Na visão de Heidegger é o
“ἐὸ8 ἔµµ182. que solicita em sua essência aquilo que perfaz o traço fundamental
do pensar, o !7#1.8 e 8$1ῖ8”405, de forma a colocar em curso aquilo que nos chama
ao pensar. Mas, voltemos à questão: como traduzir, então, ἐό8 e ἔµµ182. ?

Segundo Heidegger, é preciso uma transposição dessas palavras para


aquilo que seu dizer diz; somente num salto é que podemos avistá-las em sua
forma grega. Todavia, aquilo que é avistado jamais deixa-se comprovar, uma vez
que não vem à palavra. Para o filósofo, o máximo que conseguimos aqui é divisá-
lo e nomeá-lo naquilo que é avistado – um nomear que fica entendido, entretanto,

401
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.190.
402
Grifo do autor.
403
Grifo nosso.
404
Grifo do autor.
405
Martin Heidegger, op. cit., p.196.
124

como forma arbitrária de uma mera afirmação. Nesse salto, ἐό8 nomeia a coisa
presente (das Anwesende) e ἔµµ182., a antiga forma de 1ῖ82., nomeia o
presentificar-se (anwesen). Heidegger entende que ao menos nesse nomear o ἐό8
e o ἔµµ182. não se dissolvem nas formas indeterminadas notadamente
pertencentes a “ente” e “ser”, pois tanto aquilo que se faz presente quanto o
presentificar-se designam uma duração, algo que permanece diante de nós.
Todavia, o filósofo nos coloca que esse sentido não vem à palavra em sua forma
clara, muito menos se decide sobre Aquilo406 em que repousa esse “presentificar-
se do que se faz presente”407, pois nem tudo se presentifica do mesmo modo.
Heidegger nos mostra que a palavra “presentificar-se”408 em alemão diz-se
anwesen e essência, wesen. Essência, entendida em sua forma verbal409, tem o
sentido de estabelecer-se, morar, permanecer. O verbo wesen nos fala, pois, de
uma permanência duradoura. No entanto, Heidegger nos explica que para os
gregos a palavra essência não tem apenas o mero sentido de duração. Ela é
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entendida como um “continuar-a-ser”410 (währen) que envolve em seu fazer-se


presente uma presença e uma ausência, pois o vocábulo grego 1ῖ82. tanto está
relacionado ao vocábulo ?241ῖ82. quanto ao ἀ?1ῖ82., sendo o prefixo ?249 uma
aproximação e ἀ?" um distanciamento. Segundo o filósofo, a essência daquilo
que se presentifica surge a partir de uma ausência, surge de uma desocultação,
mas o que surge da desocultação – o presentificar-se do que se faz presente – não
chega ao âmbito do desocultado. Isso quer dizer que ali, onde tudo surge, algo
permanece oculto em contraste com o que foi desocultado. Heidegger nos coloca
que “a essência, em seu fazer-se presente, envolve a luta da presença com a
ausência”411 e que essa luta pertence ao modo de vir-a-ser do presentificar.
Encontramos em Jean Beaufret, em Dialogue avec Heidegger, algo desse embate

406
Maiúscula do autor.
407
Grifo do autor.
408
Grifo nosso.
409
Anteriormente detivemo-nos brevemente no vocábulo alemão Wesen. Todavia, nesta parte de
Que chamamos pensar?, Heidegger o retoma em sua forma verbal. Para o filósofo, o uso verbal de
wesen no alemão antigo pode ser entendido com o sentido de duração. Heidegger nos conta que o
antigo termo alemão tem origem no antigo hindi “vásati”, e quer dizer: ele mora, ele permanece. O
verbo alemão fala de uma permanência duradoura. Em nota, Lyra acrescenta que: “o substantivo
alemão Wesen, […], aceita a forma verbal wesen (algo como ‘consubstanciar’ ou
‘substancializar’), de todo implícita na ideia de anwesen como ‘presentificar-se’.” Para o tradutor,
“anwesen pode conotar, de fato, ‘propriedade efetivamente demarcada’, lugar que se possui […]”.
(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.200.)
410
Grifo do autor.
411
Martin Heidegger, op. cit., p.201.
125

entre ausência e presença. O autor nos fala que nada é mais íntimo ao ser, ao
menos naquilo que os gregos experimentaram nessa relação, do que aquilo
expresso pelos prefixos ?249 e ἀ?". Segundo Beaufret, essa diferença é tão
essencial que, sem esse contraste, a palavra ser, isoladamente entendida, perderia
totalmente o seu sentido fundamental. O intérprete entende que o ser é a essência
daquilo de que falam esses prefixos: o jogo incessante da presença e da ausência,
cuja oposição se dá apenas superficialmente, pois, mesmo aquilo que está ausente
está presente de certa maneira.

Mas, a partir de onde encontramos a determinação do presentificar-se do


que se faz presente? Heidegger nos coloca que é no fazer412 do “fazer-se
presente”413 que devemos prestar atenção. É, pois, no processo de vir-a-ser da
presença que devemos procurar entender a essência. Isto significa, segundo
Heidegger, que no movimento do “presentificar-se do que se faz presente” há um
demorar-se que se assenta diante de nós a partir de uma desocultação. Este
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“presentificar-se do que se faz presente” não só requer a desocultação, mas é a


partir dela que o presentificar-se surge, ou seja, é na demora da desocultação que
o presentificar se presentifica. Essa demora não significa uma falta de movimento
como acontece na “permanência duradoura”414, mas, ao contrário, ela é chegada,
reunião, proximidade, acontecimento. O acontecimento era experimentado pelos
gregos como automanifestação, um brilho luminoso daquilo que na desocultação
se assenta diante de nós. É, pois, neste caminho que os gregos pensaram o que se
faz presente: desocultação, proximidade e distanciamento, repouso e demora,
brilho e ausência, reunião. Beaufret acrescenta que, no sentido de pensarmos esse
acontecimento, é necessário que nos afastemos das meras oposições que os termos
nos trazem e, de tal forma, que “possamos nos abrir a uma dimensão onde até
mesmo a ausência torna-se um modo da presença”.415 O autor entende que a
dimensão do ser é tal que se desdobra tanto como ausência quanto como presença,
e, por isso, a região do ser não pode ser nada menos do que uma presença
permeada por uma ausência e uma ausência na qual resplandece uma presença.
Segundo Heidegger, com o tempo, “o presentificar-se do que se faz presente” foi

412
Itálico do autor.
413
Grifo nosso.
414
Grifo nosso.
415
Jean Beaufret, Dialogue with Heidegger: Greek Philosophy, 2006, p.43.
126

cada vez mais deslocado desse caminho, tornando-se cada vez menos digno de
questão. Entraram em cena outros traços do ser do ente que, como vimos,
interditaram o caminho e trouxeram o homem ao trágico destino das maquinações
tecnológicas. Vejamos como podemos nos aproximar desta difícil compreensão.

Segundo Zarader, na aurora do pensamento grego o ser se abre na


dinâmica do jogo da presença. Para a intérprete, essa afirmação não nos orienta
para o fato de que o ser tenha sido pensado416 como presença, mas que esse foi
experimentado e compreendido de tal forma que isso o levou a ser, ao longo de
toda a história do pensamento, entendido pelo viés da presença. A autora entende
que o ἐό8 é uma dessas palavras fundamentais que nomearam a experiência grega
do ser iluminada pela presença. Ao traduzir 1ῖ82. como “presença” (Anwesen) em
vez de “ser”, Heidegger propõe uma nomeação do ser “tornada clara no seu
sentido grego”417, de forma que esse clarear possa iluminar todo o caminho do
pensamento. A intérprete compreende que essa nomeação revela a identidade
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entre ser e presença. Entretanto, segundo a autora, nessa relação algo permanece
impensado. Zarader nos indaga se aquilo que permanece impensado foi o ser
experimentado como presença ou a presença em sua relação com o tempo? Para a
autora, apesar do ser ter sido experimentado como presença, não consideraram sua
dimensão temporal. Por isso, na medida em que presença e tempo se relacionam,
tanto um quanto outro permanecem impensados. Assim, no sentido de tornar clara
a identidade entre ser e presença devemos nos ater ao tempo. Mas, como entender
esta questão nodal de forma a clarear a sentença de Parmênides?

Vimos, com Heidegger, que o ἐό8 nomeia o que se faz presente (das
Anwesende) e o ἔµµ182., o presentificar-se (anwesen). Vimos, também, que a
presença (Anwesen) não foi experimentada pelos gregos na aurora do pensamento
com o traço da duração, mas como um “continuar-a-ser”, algo que possui em si
uma cifra de ausência e presença. Zarader nos lembra que “a presença foi
experimentada por eles não como uma permanência, não como uma manifestação
horizontal de uma extensão temporal [...], mas como uma irrupção abrupta, como
um acontecimento, [...].”418 A autora conta que Heidegger chegou a criar um
neologismo para dar conta desta modalidade do Anwesen: Anwesung. Esse
416
Itálico da autora.
417
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.294. Grifos da autora.
418
Ibidem, p.296.
127

vocábulo falaria, então, da irrupção na presença, diferenciando-o do Anwesenheit,


o estado-de-presença. Esta seria uma forma, segundo Zarader, de demarcar o
inicial daquilo que se seguiu na destinação do ser. A intérprete nos brinda com as
próprias palavras de Heidegger:

Mas é Anwesung que é determinante para o conceito grego de


ser: tentamos clarificar numa palavra, o que lhe é mais próprio,
dizendo Anwesung, em lugar de Anwesenheit. O que aqui é
visado não é a pura e simples subsistência (Vorhandenheit), nem
também o que se esgota na simples permanência (Beständigkeit),
mas a Anwesung no sentido de uma pro-veniência no desvelado,
de uma instalação no Aberto (im Sinne des Hervorkommens in
das Unverborgene, das Sichtstellen in das Offene). Pela
referência à pura duração a Anwesung não é alcançada.419

Todavia, mesmo tendo feito essa diferenciação, Zarader diz que Heidegger
utilizou o termo nesse sentido apenas entre os anos de 1939 e 1940 e o perde de
vista ao estendê-lo à “presença constante”, própria da tradição metafísica.420
Ainda assim, Zarader entende que, embasada pela definição acima, o termo nos
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concede a especificidade do que seja o privilégio do primeiro pensamento grego:


“o ser é então experimentado como presença, e a própria presença como
Anwesung, quer dizer, como vinda a presença”.421 Mas, ainda que possamos lançar
mão dessa compreensão, como entender aquilo que Heidegger nomeou como “a
luta da presença e da ausência”422?

A intérprete explica que permanência e constância são próprias do


presente e, contrariamente a isso, o que é próprio da presença, sua principal cifra,
é o seu surgimento a partir da ausência. Quando a presença é entendida como
permanência há um aniquilamento em favor do presente que faz perder a sua
ligação com a ausência. Zarader acrescenta que a experiência inicial, que se abriu
simultaneamente como presença, não pode ser capturada como o que está

419
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.297. A
citação é feita a partir do escrito “Vom Wesen und Begriff der E&-./”, in: Wegmarken (GA9),
Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.342.
420
Em nota, Zarader nos fala que o termo Anwesung é utilizado pela primeira vez na conferência
Wie wenn am Feiertge, sobre Höelderlin, em 1939, e depois ocupa um lugar central em dois outros
textos: Vom Wesesn und Begriff der "#$%& e Platons Lehre von der Warheit, ambos de 1940. A
autora nos coloca que depois disso o termo é abandonado. Zarader entende que o uso
demasiadamente amplo o tornou inoperante (cf. Ibidem). Grifo da autora.
421
Ibidem, p.298.
422
Grifo nosso.
128

simplesmente presente.423 A autora nos coloca que, para Heidegger, no caso do


presentificar-se do que se faz presente, nunca devemos nos ater ao presente em
seu sentido lato, pois “na verdade, é justamente este ‘presentemente presente’ (das
gegenwärtig Anwesend) e o desvelamento que nele reina, que regem de parte a
parte a essência do que se ausenta (des Abwesenden), quer dizer do presente não
‘presente’”.424 Assim, o simples presente não dá conta de expressar a ocultação
que se encontra circunscrito nessa relação. O que Heidegger está tentando dizer,
segundo a intérprete, é que para os gregos o presentificar-se só se dá a partir do
desvelamento, e é somente na demora com o que se encontra velado que algo se
desdobra como presente. Daí o entendimento de que essa demora não é imóvel,
pois nela há um movimento que se estabelece na relação entre a presença e a
ausência. Segundo Zarader, isso nos fala de uma dinâmica que tanto dá conta do
desvelamento como de uma ocultação; uma abrangência que determina o
surgimento de algo que emerge a partir de uma ausência. Para a intérprete, o que
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se faz presente fica, então, entendido por Heidegger como aquilo que se demora
por um tempo (Das Anwesende ist das Je-weilige); uma demora transitória, uma
vez que é passagem entre a chegada e a partida para uma nova ocultação. Isto
significa que o presente enquanto durar transitório manifesta-se neste “entre” que
é o intervalo, o acontecimento que reúne e constitui a sua presença.425

Zarader percebe que a compreensão heideggeriana se contrapõe a tudo


aquilo que a tradição entendeu como permanência, demora, constância. Na
contramão dessa compreensão, Heidegger entende que, por ser indissociável da
ausência, a presença nada tem de permanência, e o que caracteriza a aurora grega
do pensamento é o fato da presença ter sido considerada como presença e não
como coisa presente. Próximo à presença, pensada agora partir da ausência, da
plenitude do nada, o ser era ele mesmo aquele que portava as palavras e o
pensamento. O pensador nos diz que a filosofia “nasce do pensar, no pensar. Mas
o pensar é o pensar do ser. O pensar não é coisa que ‘nasça’. Ele é, na medida em

423
Zarader entende que foi por conta disso que a tentativa de Heidegger em Ser e tempo terminou
num impasse. A autora diz que Heidegger buscava, com a analítica do Dasein, chegar ao
desvelamento do ser como presença, e, assim, “retroceder até o horizonte da temporalidade”. Mas,
“partindo do ser ontologicamente interpretado” encontramos apenas o presente, o qual não nos
permite uma captura do tempo autêntico. O presente somente nos concede um tempo que se
relaciona com o ente, exatamente porque dele advém. (cf. Marlène Zarader, Heidegger e as
palavras da origem, 1990, p.300.)
424
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, nota 15, p.116.
425
Itálico da autora. Grifo nosso.
129

que o ser está a ser”.426 Segundo o filósofo, considerar o ἐ"8 como a presença do
que se faz presente seria, portanto, uma forma de atentar para isso, pois o seu
dizer já fala em nossa língua, antes mesmo que o pensamento lhe dê atenção e o
nomeie. O pensamento apenas conduz à palavra falada aquilo que encontra
manifesto em seu dizer. De acordo com Zarader, o pensamento é a resposta a um
chamado que lhe antecede e que “[...] lhe vem da própria língua na qual se abriga
e reserva ‘a riqueza essencial do ser’”.427 A autora entende que com o advento da
metafísica, o nada que abrigava o ser preencheu-se de ente428 e, com isso, a
presença retira-se em favor do presente não permitindo mais o acesso à dimensão
temporal do ser. O próprio Heidegger, como vimos, nos coloca que com o tempo,
“o presentificar-se do que se faz presente” distanciou-se desse caminho, tornando-
se inquestionado.

Mas, retornemos com Heidegger à questão da essência do pensar de modo


a concluirmos a sentença de Parmênides. Para o filósofo, o !7#1.8 51 8$1ῖ8 5e deve
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se direcionar ao ἐό8 ἔµµ182. para que a essência do pensar se revele. Segundo


Heidegger, é somente quando o “deixar assentar diante de nós” e o “prestar-
atenção-a”429 se conformam ao “presentificar-se do que se faz presente” que a
articulação do ἐό8 ἔµµ182. atende à essência do pensar. O filósofo entende que
nesses dois vocábulos gregos está oculto aquilo que nos chama a pensar.
Heidegger nos chama a atenção para o fato de que, em alguns momentos, no lugar
de !7#1.8 51 8$1ῖ8 5e Parmênides diz somente 8$1ῖ8 – “prestar-atenção-a” – e no
lugar de ἐ"8 ἔµµ182. – ora usa 1ῖ82., ora ἐ"8. Esse 8$1ῖ8 entendido por
Parmênides não é, de maneira alguma, o ato de pensar. Há uma relação tão
próxima do 8$1ῖ8 com o 1ῖ82. que o 8$1ῖ8 participa do próprio 1ῖ82.. Esclarece-
se, com isso, que o significado de pensar, evocado por 8$1ῖ8, só é pensar quando
permanece iluminado pelo ser. Zarader também nos coloca que não podemos
deixar de considerar, para a elucidação do pensamento, “aquilo a que ele é
reenviado em última instância, [...] a relação entre 8$1ῖ8 e ser”430. De modo a
concluirmos nosso percurso, vejamos o que o filósofo vislumbrou no elo entre o
8$1ῖ8 e o 1ῖ82..

426
Martin Heidegger, Caminhos de floresta, 2012, p.411.
427
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.118.
428
Cf. Ibidem, p.302.
429
Grifos nossos.
430
Marlène Zarader, op. cit., p.138.
130

3.3.3. O .ὸ 'ὐ.ὸ e a determinação do pensar

Heidegger encontra, nos fragmentos III e VIII de Parmênides, elementos


que nos ajudam a compreender como o 8$1ῖ8 pode se relacionar com o 1ῖ82. e a
ele pertencer. Diz o fragmento III: 5ὸ #ὰ4 2ὐ5ὸ 8$1ῖ8 ἐ-5=8 @2ὶ 1ῖ82., que
traduz-se por “Pois o mesmo é Pensar e Ser”431. Em primeiro lugar, perguntamos:
o que significa esse 5ὸ 2ὐ5ὸ, esse “o mesmo”432? Zarader nos coloca que
precisamos entender o que a “mesmidade”433 significa para a origem do
pensamento ocidental e, com isso, avançar em direção àquilo que seria o mais
enigmático do pensamento de Parmênides. Heidegger entende que reside no 5ὸ
2ὐ5ὸ um enigma, e que “o mesmo” não quer dizer igual. Fὸ 2ὐ5ὸ nunca teve
esse significado. Igual em grego é ὄµ$.$8. Portanto, não podemos trocar ser por
pensar ou vice-versa, apesar da tradução para nossas línguas nos fazer crer que
sim. Ser e pensar são coisas diferentes. Não há uma uniformidade. Há, segundo
Heidegger, precisamente nessa diferença, uma relação de pertença mútua entre os
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dois termos evidenciada pelo 5ὸ 2ὐ5ὸ. Diz Heidegger: “Pensar e ser tem lugar no
mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade”.434 Mas, como é possível
pensar que numa diferença pode haver um copertencimento?

Segundo Zarader, para Heidegger, é justamente na diferença que ser e


pensar se copertencem. A autora rememora um texto anterior em que o filósofo se
referia a “esforços antagonistas”435 que seriam característicos de uma unidade
original, cuja relação nos aproximaria do 5ὸ 2ὐ5ὸ grego. Segundo a intérprete,
Heidegger teria melhor expressado a ideia sobre esse “o mesmo” no escrito O
princípio da razão (GA10). Ali, o filósofo teria dito que, pensada em termos de
uma mútua pertença, a relação entre ser e pensar aconteceria justamente na sua
diferença e que “o mesmo” seria o elo capaz de, ainda que na diferença, manter
ambos em relação de copertencimento. Diz o filósofo: “Este manter-se-junto no

431
Grifo do autor.
432
Grifo nosso.
433
Grifo da autora.
434
Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.175. Em nota, o tradutor nos coloca que este
comum-pertencer acentua que, além de estarem imbricados num recíproco pertencer, através desta
reciprocidade, ser e pensar “fazem parte de uma unidade, da identidade, do mesmo”.
435
Grifo da autora. Zarader reporta-se aqui ao escrito Einführung in die Metaphysik. (cf. Marlène
Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.139.)
131

manter-se-afastado é um traço a que chamamos o mesmo e a mesmidade”.436


Porém, a intérprete entende que essa aproximação não é suficiente para a
compreensão da frase de Parmênides. A autora ainda nos adverte que não
devemos interpretar a pertença mútua como uma identidade no sentido dado pela
história da metafísica, cujo princípio afirma que “todo o ente pertence a unidade
consigo mesmo”437, instaurando, desse modo, a identidade no ser. Heidegger
mesmo no adverte sobre isso, em “O princípio da identidade”(GA11), quando diz
que “todo o pensamento ocidental-europeu pensa [...] (que) a unidade da
identidade constitui um traço fundamental no seio do ser do ente.”438 Nesse
escrito, Heidegger nos fala de um primeiro princípio em que se pressupõe a
identidade como um traço do ser, e esse como um fundamento do ente. Todavia,
para o filósofo, esse princípio transformou-se numa espécie de “salto exigido pela
essência da identidade”439, um salto no abismo, não no vazio do nada, mas um
salto que nos orienta para o acontecimento-apropriativo, ali onde “vibra a essência
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daquilo que a linguagem fala”.440 Assim, pensar o ser a partir da identidade


significa o salto no abismo, que distancia o ser como fundamento do ente, para o
comum-pertencer de homem e ser; uma comunidade que se forma a partir do
acontecimento-apropriativo.441

Segundo Zarader, para o filósofo, a relação do 1ῖ82. com o 5ὸ 2ὐ5ὸ nos


orienta a pensar o ser a partir da identidade compreendida a partir do salto.442

436
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.139.
437
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.140.
438
Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.174.
439
Ibidem, p.182.
440
Ibidem, p.182.
441
Em nota do tradutor, Stein nos coloca que “o salto no abismo, no sem-fundamento (Ab-
Grund), é o jogar-se no ser, assumir o pertencer ao ser”. Segundo o tradutor, compreende-se esse
pertencimento quando Heidegger nos diz, em O princípio da razão, que “Ser e fundamento
pertencem à unidade. Do fato de fazer parte do ser, o fundamento recebe sua essência. E vice-
versa, da essência do fundamento surge o domínio do ser enquanto ser. Fundamento e ser (‘são’) o
mesmo, não o igual, o que já indica a diversidade dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento’. Ser ‘é’
essencialmente: fundamento. Assim, o ser nunca pode primeiro ter um fundamento que o
fundamente. O fundamento fica dessa maneira afastado do ser. O fundamento fica ausente do ser.
No sentido de uma tal ausência de fundamento do ser, o ser ‘é’ sem-fundamento (ab-grund),
abismo. Na medida em que o ser enquanto tal é fundamento em si mesmo, permanece ele mesmo
sem-fundamento.”(cf. Ernildo Stein, nota do tradutor, in: Ibidem, p.178.)
442
Jean Beaufret também nos adverte quanto ao fato de entendermos essa identidade como aquela
inferida por Aristóteles: como se pertencesse e fosse uma característica fundamental do ser. Para o
intérprete, ao contrário, devemos entender que é o ser que pertence a esse mesmo que é mais
elevado – a identidade; que forma, a partir daí, a sua identidade com o pensamento. (cf. Jean
Beaufret, Dialogue with Heidegger: Greek Philosophy, 2006, p.40.)
132

Nesse sentido, o 5ὸ 2ὐ5ὸ não nos fala de um traço do ser, mas nos diz que ser e
pensamento “só são o que são porque procedem deste ‘mesmo’ que, determinando
a sua relação, é o único a poder conceder-lhes a sua essência respectiva”.443 De
acordo com a autora, a compreensão heideggeriana original do “mesmo” nos leva
ao seguinte entendimento: o 5ὸ 2ὐ5ὸ, ao invés de ser um predicado para ser e
pensar, passa a ser o sujeito autêntico da frase, pois é a partir deste “o mesmo”
que ser e pensar se co-pertencem. O equívoco da interpretação metafísica sobre a
questão da identidade, segundo a intérprete, recai exatamente no fato de que
atribuiu-se ao ser uma identidade como se esse já fosse conhecido. Zarader nos
coloca que, através do 5ὸ 2ὐ5ὸ compreendido por Heidegger, temos nosso
caminho iluminado por aquilo que possivelmente foi a experiência inicial do
ser.444

Robert Mugerauer, em Heidegger and homecoming: The leitmotif in the


later writings, também apresenta uma análise que nos ajuda nessa compreensão.
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De acordo com o intérprete, no encontro com o pensar de Parmênides, Heidegger


nos revela que ser igual ou diferente não é o caminho para discernirmos aquilo
que é o mais importante na questão da identidade. O que deve ser salientado é que
o sentido originário do “mesmo” nomeia a dinâmica, na qual aquilo que se co-
pertence chega ao seu mais próprio, somente no encontro do pertencer. O autor
nos coloca que, ainda que aquilo entendido como idêntico seja derivado do
mesmo, esse “mesmo” não é redutível a uma compreensão representacional
daquilo que se apresenta como idêntico. Ao contrário, é esse “mesmo” que
mantém a diferença na mútua pertença daquilo que é o mais próprio de cada um.
Para Mugerauer, o copertencimento aparece na análise de Heidegger como algo
primordial. O autor também entende que a compreensão dada, pela hermenêutica
heideggeriana, para a noção de identidade, ultrapassa toda aquela oferecida pela
história do pensamento ocidental, inclusive a do idealismo alemão, cujo primado

443
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.140.
444
Em nota, Zarader nos coloca a diferença entre as duas formulações sobre a Identidade. Diz a
autora: “Notar-se-á em particular as duas formulações por meio das quais Heidegger caracteriza,
por um lado, a doutrina da metafísica, por outro, o dito de Parmênides. A primeira enuncia-se Die
Identität gehört zum Sein, e a segunda: Das Sein gehört in eine Identität.” Algo, respectivamente,
como: “a identidade pertence ao ser” e “o ser parte de uma identidade”. Segundo a autora, esta
compreensão nos é dada a partir do escrito de Martin Heidegger, Identität und Differenz, Neske,
Pfullingen, 1957, p.16-19. (cf. Ibidem, p.140.)
133

recai sobre a questão da unidade.445 Para Mugerauer, Heidegger nos apresenta que
ser e pensar apesar de diferentes pertencem ao mesmo e que, diferentemente da
concepção metafísica que estabelece a identidade como pertencente ao ser, é, ao
contrário, o ser que pertence à identidade. O autor nos chama a atenção, no
entanto, que nos primórdios do pensar ocidental a palavra identidade tem um
sentido diferente. Ali na origem, ser e pensar pertencem mutuamente ao mesmo e
em virtude do mesmo, e esse “mesmo” significa uma pertença. Mugerauer
entende que o pensar, experimentado e pensado a partir dessa pertença, somente
pode se desdobrar em resposta ao chamado do ser. Apesar de já sabermos que há
aí uma co-pertença, como podemos entender exatamente como o 8$1ῖ8 participa
do 1ῖ82.? Como se dá essa pertença?

Heidegger nos coloca que, à luz do fragmento VIII (34 et seq.), podemos
nos aproximar de uma compreensão daquilo que é o pensamento na sua
compreensão parmenidiana do fragmento III. O fragmento VIII anuncia na
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tradução do filósofo: “não pois separado do presentificar-se do que se faz


presente, podes buscar e encontrar o prestar-atenção-a.”446 A partir dessa tradução,
Zarader entende que só é possível compreender o pensamento, enquanto um
pensar próprio, quando o encontramos a caminho do ser. Para a autora, esse
caminhar só se torna caminho se já encontra-se no interior do ser.447 Zarader
entende que, com isso, estabelece-se uma ambiguidade, pois se, por um lado, ser e
pensamento pertencem mutuamente ao mesmo, numa identidade que mesmo
distinta os precede e a partir da qual ambos podem se manifestar, por outro, o
pensamento pertence ao ser, faz parte dele. É exatamente nessa dualidade que
reside toda a riqueza do ser e o seu enigma. Para a autora,

na medida em que se dá como ser (1ῖ82.), procede ele próprio de


um dom mais alto ainda em origem, e é do âmago desse dom
comum que o ser reivindica o pensamento, e que este responde
ao seu apelo; mas na medida em que se define, em toda a sua

445
Mugerauer nos apresenta que, para Heidegger, o idealismo alemão compreendeu que o
“‘mesmo’ implica uma relação ‘com’, uma mediação, uma conexão, uma síntese: a identidade
como a unificação em uma unidade. Apesar de Heidegger reconhecer que o idealismo alemão
estabeleceu “um lugar para a essência em si mesmo sintética da identidade”445, essa formulação
resulta numa abstração, pois, segundo o filósofo, na relação mediada, a identidade só pode ser
representada abstratamente. (cf. Martin Heidegger apud Robert Mugerauer, Heidegger and
homecoming: The leitmotif in the later writings, 2008, 293.)
446
“ὀ* #ὰ4 ἄ81* 5$ῦ ἐ"85$/... 1ὐ40-1./ 5" 8$1ῖ8”. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos
pensar? [em elaboração], p.205.)
447
Itálico da autora.
134

plenitude de sentido, como diferença (ἐ"8), ele é o próprio dom


e, nessa qualidade, o pensamento “faz parte” dele.448

A intérprete entende que a hermenêutica heideggeriana, totalmente fora de toda


uma lógica habitual, nos dá conta de que o pensamento não é pensamento senão
na medida em que responde ao chamado do ser, e é somente onde há ser é que
pode eclodir o pensar. Para Zarader, ao responder ao apelo do ser, o pensar acaba
por definir o próprio ser uma vez que o reconduz a uma identidade que demarca
uma procedência. Para a autora, pensamento e ser se relacionam de tal forma que
o pensamento provém do ser “por desígnio”.449 Todavia, o reino do ser não pode
ser compreendido “sem o co-reino do pensamento”.450 Sendo assim, pensamento e
ser possuem uma identidade que engloba uma procedência, uma pertença.

Sobre esse caráter da pertença, é o próprio Heidegger que nos fala, no


escrito “O princípio da identidade”, que o comum-pertencer entre ser e pensar
significa uma relação que se estabelece no interior do ser451, e que essa relação se
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dá na medida em que o pensar do homem se abre em direção ao ser e com ele


forma uma relação de correspondência que o plenifica. Por outro lado, é também a
partir desse evento que o ser se presentifica. Com base nessa mútua pertença,
compreendemos que é somente na abertura do homem ao chamado do ser que o
pensar se torna pleno, e é somente através da visada do pensar em direção ao ser
que, por sua vez, o ser se presentifica. Mas, de que forma pode o pensar ser
remetido à sua essência?

Zarader entende que devolver o pensamento à sua essência significa


colocá-lo em seu lugar mais próprio, entretanto, mais desconhecido; significa o
retorno ao lugar aonde sempre esteve, mas, ainda assim, nunca se alicerçou. A
autora nos fala que a sentença heideggeriana – “o pensamento é o pensamento do
ser”452– deve ser entendida no duplo sentido do possessivo: tanto como
pertencendo ao ser, lugar de onde encontra a sua proveniência, quanto como para
o qual se direciona na escuta ao seu apelo. É por isso que na pergunta “o que é

448
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.142.
449
Ibidem, p.142.
450
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.142.
451
Heidegger nos fala que o pertencer significa estar “inserido no ser”. (cf. Martin Heidegger,
“Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.177.)
452
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154. Esta
frase encontra-se na carta “Sobre o humanismo”. Em nota, Zarader nos oferece a frase no alemão
original: “Das Denken, schlicht gesagt, is das Denken des Seins.” (cf. Martin Heidegger, “Brief
über den Humanismus”, in: Wegmarken (GA9), Klostermann, Frankfurt, Main, 1967, p.148.)
135

que nos chama a pensar?”453 Heidegger rememora o vocábulo original que a


palavra “pensar” evoca: o Gedanc – memória, lembrança, pensamento fiel,
gratidão. Subjaz nessas palavras a compreensão de que, porque o pensar pertence
ao ser, deve ser fiel a ele, guardando em si a memória da sua própria essência,
pois não é quando pensa o ser que o pensar é essencial, mas, antes de tudo, porque
é essencial é que não pode pensar outra coisa que não seja o ser. Segundo a
intérprete, o entendimento para o duplo possessivo é explicado nas próprias
palavras do filósofo: “O pensamento é o que é segundo a sua proveniência
essencial, na medida em que pertence ao ser, em que está à escuta do ser”.454 O
pensar o qual, ao longo de todo esse percurso, Heidegger vem buscando se acercar
é este que o Gedanc traz: o “ânimo como um todo, na acepção da permanente
reunião íntima em torno daquilo que sopra à alma, essencialmente, todo o
sentido.”455 É, portanto, nessa memória, que a dobra de ser e ente nos diz, ainda
que veladamente, que o pensar é pensar.
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Segundo Heidegger, Parmênides também nos sinaliza para o


pertencimento mútuo entre 8$1ῖ8 e 1ῖ82.. Esse sinal não nos leva ao “como” e ao
“porquê”456 disso acontecer. O filósofo entende que para tal empreendimento
teríamos que considerar a essência da linguagem e, com isso, o !7#1.8 e o !"#$%.
De acordo com Heidegger, o que Parmênides está a dizer, entretanto, é que há um
chamamento ao pensar no presentificar-se do que se faz presente, uma requisição
que chama o pensar à sua essência, e é na dobra entre o ἐ"8 ἔµµ182. que se abriga
essa requisição, é na dobra entre ser e ente que resguarda-se o chamamento ao
pensar. Portanto, pensar só é pensar a partir da dobra de ser e ente, ou melhor, do
ente em seu ser, do ente sendo. É, segundo o filósofo, a dobra que dá a pensar, e
“o que assim se dá é a dádiva do que é mais digno de questão.”457 No escrito
Introdução à metafísica (GA40) encontramos ainda uma última pista sobre a
relação essencial entre o 8$1ῖ8 e o 1ῖ82.. Ali, Heidegger nos fala que esta pertença
se dá através de uma experiência que evidencia, àquele que a perpassa, que o ser
do homem só pode ser determinado a partir do acontecimento que essencialmente
conecta o ser e o prestar-atenção-a. O filósofo nos esclarece que esse prestar-

453
Grifo nosso.
454
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154.
455
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.117.
456
Grifos do autor.
457
Martin Heidegger, op. cit., p.207.
136

atenção-a nada tem de uma faculdade do homem, mas é o acontecimento em que


ser e homem se encontram, em que “o homem mesmo chega ao ser.”458 Heidegger
nos diz que aí se realiza um acontecimento Histórico: cumpre-se o destino do
homem como guardião do ser.

Munidos de todo esse esclarecimento podemos finalmente compreender o


fragmento III de Parmênides, “5ὸ #ὰ4 2ὐ5ὸ 8$1ῖ8 ἐ-5=8 @2ὶ 1ῖ82.”, como “a
saber, o mesmo prestar-atenção-a é assim também presentificar-se do que se faz
presente.”459 Como podemos ver, “o mesmo” estabelece aqui a relação de
pertencimento mútuo entre o 8$1ῖ8 e o 1ῖ82.. Heidegger nos diz que essa co-
pertença é compreendida na medida em que o prestar-atenção-a, nomeado em
primeiro lugar, orienta-se para o presentificar-se do que se faz presente, e este o
mantém junto a si numa salvaguarda. É a partir desse último, também
denominado ἐ"8 por Parmênides, que fala a dobra de ambos, a dobra entre ser e
ente. É a partir daí que se desdobra o chamado ao pensar que, para aí direcionado,
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alcança a sua essência nesta salvaguarda. Mas, assim como Heidegger ao encerrar
as preleções do verão de 1952, também nós colocamos a última – e talvez a mais
crucial – pergunta feita pelo autor de Que chamamos pensar?: seria o pensar
capaz de nomear esta dádiva num dizer original?

458
Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.165.
459
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.205.
4. Considerações finais

[...] Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade 460

Chegamos ao fim de nossa caminhada. Não entendemos, contudo, que este


seja o fim do caminho. Podemos inferir que a experiência de pensar em Heidegger
se situa na esfera do retorno à questão mesma, um recomeço que se faz necessário
diante do impensado que permanece. Há, de fato, uma circularidade no pensar
heideggeriano e não fosse o salto significativo do pensamento a cada volta,
diríamos que se trata de um caminho sem saída, aporético. Todavia, não
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encontramos nesse pensar um ponto final, mas um questionar contínuo nos


colocando sempre diante da possibilidade da pergunta e de toda a promessa que
essa traz. A experiência do pensamento nos diz que pensar é perguntar melhor, é a
capacidade que o pensamento tem em sua estrutura no sentido de formular
questões, levantar problemas. Em Filosofia o extraordinário é a questão, a
potencialidade do questionamento, e somente o pensar pode interrogar. Nesse
sentido, o simples caminhar em direção à pergunta é já estar aberto à questão
mesma do pensamento.

Chegamos, sim, ao fim desta caminhada, ao fim de nossos esforços em


seguir os passos desse grande pensador no escrito Que chamamos pensar?.
Cruzamos um longo caminho, mas, ainda assim, sabemos não termos percorrido
todas as veredas que esse nos oferecia. Tal tarefa, como dissemos no início, seria
inexequível. Todavia, caminhamos. Trilhamos por terras áridas, nada fáceis, em
busca de um pensar essencial: o pensamento do ser; “o pensamento em que os
pensamentos não só não calculam, mas são absolutamente determinados a partir
do outro do ente [...].”461 A dificuldade do caminho não se deu por conta de uma

460
Carlos Drummond de Andrade, “Procura da Poesia”, in: A rosa do povo, São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p.12.
461
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.153.
138

atitude reticente por parte do filósofo, mas devido à própria natureza que a
interrogação impõe: o que é que nos chama a pensar? O que é esse outro que nos
interpela? Zarader nos coloca que apesar do pensamento pertencer ao ser e
constituir a sua essência mais própria, não encontramos aí nenhuma evidência. A
autora nos rememora que é por conta de sua simplicidade462 que o mais essencial
não pode jamais ser habitado, a não ser no destino de uma longa caminhada, uma
caminhada em que o simples nomear da co-pertença do pensamento ao ser
significa uma luta contra toda a história do pensamento ocidental, pois esse “outro
pensamento não pode em absoluto aparecer, e no entanto é”.463

Para Heidegger, “o pensar é o pensar do ser”464 e esse pertencer deve ser


compreendido na duplicidade do genitivo, onde, por um lado, o pensamento
pertence ao ser, é um acontecimento do ser, dele provém e nele fica retido, e, por
outro, está à escuta do ser, se dirige para ele no sentido de o conformar à sua
origem essencial. É exatamente porque deve estar à escuta do ser que o filósofo
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define a natureza do pensamento como memória, lembrança fiel, pois na medida


em que situa-se no ser, o pensamento deve guardar memória de si mesmo. Por
isso, não é quando pensa o ser que o pensamento é essencial, mas, antes de tudo,
quando é essencial, em conformidade com a sua essência, é que não pode pensar
outra coisa senão o ser. Zarader acrescenta que é porque a escuta se funda na
pertença que o pensamento se dirige para o ser e o toma à sua guarda. Isto não
significa que o pensamento possa se juntar ao ser por conta ou decisão própria. O
próprio Heidegger, na “Introdução” ao escrito “Que é metafísica?”(GA9)465, nos
coloca que:
O fato e a maneira de o ser mesmo abordar um pensamento
nunca dependem primeira e unicamente do pensamento. Se o ser
atinge um pensamento e o modo como o consegue, põe-no em

462
Ao final de Que chamamos pensar? o próprio Heidegger nos coloca o paradoxo de que o
aprender esse pensar é o mais difícil porque é simples. Diz o filósofo: “Só que aprender o pensar
dos pensadores é essencialmente mais difícil, não porque esse pensar seja mais complicado, mas
porque é simples, mesmo simples demais para a destreza do representar habitual.” (cf. Martin
Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.203.)
463
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.153.
Itálico da autora.
464
Martin Heidegger, ‘Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos
filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.348.
465
A introdução ao escrito “Que é metafísica?” foi escrito somente em 1949, enquanto que o texto
original, em 1929. Ambos os escritos, juntamente ao posfácio escrito em 1943, foram publicados
separadamente em Marcas do caminho (GA9).
139

marcha para sua matriz que vem do próprio ser, para, desta
maneira, corresponder ao ser enquanto tal.466

Como vemos, é o ser que atinge o pensamento, que em retorno o divisa e o


presentifica. Mas, para que serve este pensar? É o próprio Heidegger que
assertivamente nos fala que “tal pensamento não chega a um resultado; não
produz efeito”.467 Para o filósofo, o cômpito dos ganhos e perdas, fins e resultados
são do domínio do cálculo, e medir o pensar do ser por sua utilidade e eficácia é
considerá-lo por medidas inadequadas. Tal bitola é recusada por Heidegger. Para
o filósofo, esse pensamento não é nem prático e nem teórico, pois acontece antes
disso. Esse pensar, segundo Heidegger, é apenas a lembrança do ser. De acordo
com Zarader, para o pensador, é exatamente o fato de não servir para nada que
clarifica sua força, pois, faz lembrar que “o ente só é o que é na luz desapercebida
do ser”.468 Assim, na medida em que o pensamento o toma à sua guarda, esforça-
se no sentido de edificar a casa do ser. Não no sentido de construí-la, mas no
sentido de habitá-la e, nesse habitar, deixar o ser – ser.469 Essa é a única ação do
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pensamento do ser e, segundo a autora, é uma ação decisiva na medida em que é o


pensamento que concede livremente o espaço de manifestação do ser no homem.
Nesse sentido, a única tarefa do pensamento é a de manter-se fiel à escuta
essencial do ser e, nessa dimensão, reconduzido a si mesmo na salvaguarda,
voltar-se para a sua própria essência, para a sua verdade. É, pois, na escuta que o
pensar chega docilmente à sua essência, ao seu destino.

De acordo com Zarader, na visão de Heidegger, esse caminho não pode ser
outro que o da história, uma vez que é no homem que o ser tem a sua destinação.
É, pois, na história, ainda que de modo inaparente, que o filósofo vai buscar as
pistas para esse pensar. Todavia, ao jogar luzes nesse caminho, Heidegger percebe
que a tradição – de Platão a Nietzsche – não se ateve ao mais próprio do
pensamento, pois pensou o ser por medidas entitativas. Além disso, o filósofo
entende que o próprio ser se oculta e retrai. E, quando acontece desse pensar, ao
retrair-se, sair do seu elemento, ele acaba por instrumentalizar-se como !"#$% e se

466
Martin Heidegger, “Que é metafísica?”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.79.
467
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos
filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370.
468
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.155.
469
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: op. cit., p.370.
140

torna atividade acadêmica e cultural – a própria Filosofia se reduzirá à capacidade


de fornecer explicações pelas causas últimas. Não se pensa mais. Ocupa-se. E,
com isso, os “ismos” dos tempos modernos aparecem como uma força
determinada pela opinião pública. Em meio a este estado de coisas encontra-se o
ser-homem, não mais essencial e livre, mas subjugado involuntariamente à
ditadura da opinião pública, a uma incondicional objetivação de tudo. Nesse
domínio, também a linguagem abandona-se como instrumento de objetivação da
opinião pública que decide sobre o que é compreensível ou não. Heidegger
entende que a linguagem também contém uma dimensão essencial e que essa deve
ser alcançada. Portanto, não é na história em seu sentido ôntico do desenrolar dos
fatos que vamos encontrar o pensar do filósofo, mas na História em seu sentido
ontológico, numa dinâmica própria de temporalização que caracteriza a relação
originária do homem com o ser. É, na palavras de Lévinas, na “História que se
pensa como retiro, como êpochê, como Lichtung, condicionando por meio deste
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retiro a própria luz do aparecer de que o homem é a salvaguarda”.470

Uma vez recusada a interpretação tradicional, Heidegger volta-se para o


início grego, para a origem, o ponto de partida – e no caso de Que chamamos
pensar? – para as palavras de Parmênides, palavras que se encontravam à espera
de uma escuta. Nelas, o filósofo busca meditar o que ali ficou escondido,
impensado. No diálogo travado pelo pensar de Heidegger com o de Parmênides
não vamos encontrar uma conversa trivial. Nos referimos a um salto realizado
através de uma hermenêutica própria que, no confronto com as palavras da
origem, faz emergir algo totalmente outro. Dos vestígios depositados na língua
grega surgirá um outro pensar. Esse movimento, traduzido no jargão
heideggeriano por Andenken e Vordenken, nos leva ao andere Anfang: um outro
começo. Daí entendermos a importância do escrito Que chamamos pensar?,
importância, como vimos, expressa nas palavras do próprio Heidegger em carta à
Hannah Arendt, de que somente agora ele chegara à correta proximidade em
relação às coisas propriamente dignas de serem pensadas. Não há dúvida de que
tais palavras reverberaram no pensar de Hannah Arendt que chegou a afirmar que
o escrito é tão importante quanto Ser e Tempo.

470
Emmanuel Lévinas, “Prefácio”, in: Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990,
pp.12-13.
141

Esse é o caminho que, com grande esforço, conseguimos vislumbrar em


Que chamamos pensar?. Sabemos que a experiência filosófica atravessada pelo
pensar de Heidegger acontece, como dissemos, num salto para fora do dado, do
habitual, da nossa visão acostumada com as coisas despidas do seu mistério.
Acontece com uma suspensão das grades interpretativas e de representação para
que, com isso, se possa chegar ao original em uma forma de reencontro. É isso
que torna esta experiência por vezes tão árida e dificultosa. Mas, ao mesmo
tempo, só ela nos possibilita alçar vôo a novos rumos, à novas paragens, ao
encontro de novas questões que se põem a partir do momento em que esgotou-se
aquele pensar, pois é na impossibilidade da resposta que a Filosofia se põe a
formular novamente a questão, uma questão que sempre nos remete a um
pensamento futuro.

Bem sabemos que “o filósofo […] é alguém que perpetuamente


começa.”471 Heidegger não fez outra coisa em sua vida – a experiência do
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pensamento reiterou-se e desdobrou-se num pensar que constantemente indaga e


instaura um outro pensar, um outro questionar. Um ir-e-vir incessante à questão
mesma do pensamento, ao impensado, em uma eterna busca pelo caminho do
pensar: uma experiência que revela sempre a permanência no retorno ao mesmo
do pensamento que é a escuta pelo ser. Neste sentido, segue como tarefa do
pensamento a sua entrega à determinação da questão mesma do pensar, pois,

o Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande.


Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo
para crescer e amadurecer. O dom que desperta está escondido
na inaparência do que é sempre o mesmo. As coisas que
amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua
amplitude e em sua plenitude dão o mundo. 472

É certo que muitos caminhos tornam-se inaudíveis. A lida com a palavra é


dura. Além disso, bem compreendemos que o saber desse pensar nada traz de útil
e produtivo. Aquilo que, de fato, o pensamento nos concede é a permanência no
caminho. E mesmo que a coisa-a-pensar escape ao pensamento, recuse encontro,
essa recusa não é menos, é mais. É, como vimos, Acontecimento, “a mais presente

471
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.11.
472
Martin Heidegger, O Caminho do campo, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969, p.69.
Maiúscula do autor.
142

de todas as coisas presentes.”473 Uma experiência de tamanha essencialidade que


determinou uma inquietude perene no “pensar pensante” de Heidegger. Através
desse Acontecimento, o filósofo pôde dar o salto hermenêutico para o interior
daquilo que nos fala da nossa essência, de um habitar pleno que mesmo silente,
por vezes, na insistência do pensar, dele nos aproximamos num falar hesitante,
porém pleno de sentido e significado.
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473
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.7.
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