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o jornal de literatura do Brasil

desde abril de 2000


175
curitiba, novembro de 2014 | www.rascunho.com.br

Ensaio
A poesia de
Murilo Mendes • 6

Especial
Os desafios da
crítica literária • 36

Resenha
A rabugice do
Velho Graça • 12

Inéditos
Poemas de
Capa: Ramon Muniz

Frank O’Hara • 46
2| | novembro de 2014

translato | Eduardo Ferreira

novo olhar o jornal de literatura do Brasil


fundado em 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal

J
da Editora Letras & Livros Ltda.
Al. Carlos de Carvalho, 655.
á tive oportunidade, acaba caindo no vazio, pois pre- sagens de seu livro. Cj. 1205. CEP: 80430-180
mais de uma vez, de valece a versão oficial de morte De fato, a conclusão não é Curitiba - PR
tecer comentários a por acidente. Além do mais, o nova. Já se disse que a publica- rascunho@rascunho.com.br
respeito da autorida- Jaguar parece não querer insistir ção do livro marca a morte do rascunho.com.br
de do autor sobre sua na própria culpa. O leitor capta autor e o nascimento do leitor
obra. Autoridade no sentido de essa dúvida e a amplifica. — que chega com toda a auto- Editor
decidir o sentido do texto e, de O autor, curiosamente, pa- ridade para decidir sobre seu Rogério Pereira
maneira mais abrangente, o sig- recia ele mesmo não ter dúvidas: objeto. É com essa autoridade
Editor-assistente
nificado de trechos centrais que o Jaguar matara, sim, seu colega que o crítico francês declarou a Samarone Dias
chegam a definir a forma como o Arana. Vargas Llosa narra a his- absolvição do Jaguar, apesar de
livro é percebido. tória da dúvida em entrevista a sua confissão. Há outro elemen- Estagiário
João Lucas Dusi
A dúvida sobre a traição ou um jornal de Lima: certa vez, to de autoridade, também nada
não de Capitu já é por demais no México, um crítico literário desprezível, oriundo de sua con- Colunistas
conhecida e comentada. Deci- francês, diretor da comissão de dição de diretor da comissão de Affonso Romano de Sant’Anna
Alberto Mussa
dir-se pelo sim ou pelo não nesse literatura da Gallimard, lhe co- literatura da Gallimard — mas Eduardo Ferreira
ponto é algo que define sua ma- mentou haver gostado muito do essa é outra história. Fernando Monteiro
João Cezar de Castro Rocha
neira de ler e entender toda a tra- personagem Jaguar, pelo fato de O importante é notar que, José Castello
ma. Não se trata absolutamente este atribuir a si mesmo um cri- embora possa parecer contrassen- Luiz Bras
de um item trivial do romance. me que não cometera, a fim de so, o leitor se situa em posição mais Raimundo Carrero
Rinaldo de Fernandes
Outra dúvida interessante reconquistar sua autoridade. A propícia do que o autor para deci- Rogério Pereira
sobre outro grande romance, este reação de Vargas Llosa foi de dir sobre muitos pontos do texto.
do peruano Mario Vargas Llosa: surpresa: o Jaguar matara, sim, São profundas as implica- Fotografia
Matheus Dias
o Jaguar matou ou não seu colega o “Escravo”. O crítico retrucou ções, para o tradutor e para a tra-
Ricardo Arana (“el Esclavo”), em com atrevimento e segurança: dução, dessa falta de autoridade Projeto gráfico e programação visual
La ciudad y los perros? Não se você está enganado, não entende do autor sobre seu próprio texto. Rogério Pereira / Alexandre de Mari
trata de um ponto tão central do seu próprio romance; para o Ja- Valoriza-se o olhar do tradutor, Colaboradores desta edição
romance quanto o é a traição (ou guar, perder a liderança seria uma como aquele que pode descobrir, André Caramuru Aubert
não) de Capitu em Dom Cas- tragédia infinitamente pior do na obra literária, pontos que esca- Andréa Catrópa
Antonio Marcos Pereira
murro. Mesmo assim, não deixa que ser considerado criminoso. param ao próprio autor. A identi- Babi Borghese
de ter seu charme — ou, dito de Vargas Llosa confessa, na ficação de elementos importantes Carolina Vigna
Cristiane Costa
outra forma, não deixar de acres- entrevista, que a versão do crí- — como a dúvida que se encon- Haron Gamal
centar uma camada a mais de fas- tico o convenceu, embora, se- tra em La ciudad y los perros — Hilary Kaplan
cínio ao romance. gundo o autor, quando escreveu é crucial para transmitir, ao leitor Lourival Holanda
Luiz Horácio
Voltando ao livro de Var- o romance, acreditava piamen- do texto traduzido, a mesma at- Márcia Lígia Guidin
gas Llosa, o Jaguar, aparente- te que o Jaguar teria de fato co- mosfera produzida pelo original. Maria Aparecida Barbosa
mente, teria de fato assassinado metido o crime. A conclusão do Numa simples leitura, a Marcos Alvito
Marcos Pasche
o “Escravo”, pois o próprio per- escritor peruano é interessante, questão pode residir no campo da Mário Alex Rosa
sonagem confessa o crime. Mas embora nada original: o escritor polêmica. Numa tradução, pode Nelson Shuchmacher Endebo
o texto não deixa de lançar dú- não tem a última palavra sobre o haver obstáculos consideráveis à Peron Rios
Roberta Ávila
vidas sobre o fato: a confissão que escreve; seria um grande erro manutenção de certas formas de Rodrigo Almeida
parece frágil, extemporânea, e pedir ao autor para explicar pas- dúvida ou ambiguidade. Rodrigo Gurgel
Victor da Rosa

Ilustradores
Dê Almeida
Fabiano Vianna
Fábio Abreu
rodapé | Rinaldo de Fernandes Felipe Rodrigues
Osvalter
Ramon Muniz
Robson Vilalba

Anotações sobre
Theo Szczepanski

Lei 8.313/91 (Lei Rouanet)

romances (15)
Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac)

L
Apoio
awanda, protagonis- mar antes de dormir”). É aman- desafogar a si e ao próprio leitor,
ta do romance  Meu te de um homem casado. E cria que também fica em permanen-
coração de pedra- besouros com os quais — suspei- te desconforto — que decorre a
-pomes (2013), da ta — amortece a sua solidão. A voz áspera de Lawanda: “Eu po-
paulistana  Juliana vida desbotada da protagonista deria estar morta como o velho, e Patrocínio
Frank, é alegre e acre, afeita (ao a sufoca ao extremo — aliás, o não vivendo essa enfadonhice de
seu modo) e alarmada com o romance de Juliana Frank é um cama de meteorito, família dis-
cotidiano devastador. É com os exemplo forte da existência pau- funcional, cortiço bem-arruma-
tons da tragicomédia que se te- pérrima, tediosa, sem horizontes, do, hospital, hospital, esfregão,
ce o eixo central da trama do ro- do nosso trabalhador urbano, corredor, esfregão, trabalhos es-
mance. Lawanda é faxineira num emparedado na grande metró- cusos, horas infelizes, televisões Realização
hospital. Tem o aluguel do quar- pole. É um romance, antes de tu- altas demais, homem casado com
to onde mora pago por uma tia. do, sobre a natureza do trabalho uma lacraia na cama, macumba
Ingere remédios rotineiramente desumanizado, reificado, com inútil, mortes sem espelhos: bre- Editora
(“...as pílulas filhas da puta com pouca ou nenhuma criativida- ve resumo da merda que, em dias Letras & Livros
seus hiperpoderes que preciso to- de. E é daí — como se querendo melhores, chamo de vida”.
novembro de 2014 | |3

14
Cristovão Tezza
17
Carlos de Brito e Mello
24
Jane Austen
44
Patrick Modiano
Os estragos do tempo Criação e aprendizado A boa natureza Doce ilusão

Um novo vidraça | joão lucas dusi


Rascunho Tempos modernos Em Minas 1
Poesia paranaense Apoiado no conceito “diversão Entre os dias 14 e 23 de
O Rascunho mudou. Sabe Deus fora da caixa”, a Rocco apresenta novembro, Belo Horizonte
se para melhor. Mas mudou. Mais de um século e meio será percorrido o selo Fábrica 231, inspirado (MG) será palco da 4ª Bienal do
Após quase 15 anos no formato por entre as páginas da coletânea 101 poetas no estúdio transgressor The Livro de Minas. Realizado no
standard, agora está em berliner. paranaenses — Antologia de escritas Factory, de Andy Warhol. O Expominas, o evento terá uma
Simplificando: era alto, ficou poéticas do século 19 ao 21, editada pela selo apresentará títulos nacionais programação bem diversificada
baixo; era magro, ficou gordo. Biblioteca Pública do Paraná. Organizada e estrangeiros, de ficção e não a fim de agradar todas as faixas
Perdeu alguns centímetros na pelo poeta e crítico Ademir Demarchi, a ficção, que dialogam com etárias: atividade infantil, cafés
altura. Mas ganhou 16 páginas. coletânea em dois volumes soma mais de a cultura pop, reunindo as literários, oficinas, quadrinhos,
Agora, são 48 páginas mensais 800 páginas. No volume 1, são 50 poetas principais tendências dos tempos eventos profissionais e conexão
sobre literatura (a boa e a má). nascidos entre 1844 e 1959; o volume 2 modernos. Para começar, já jovem. Entre outros, estarão
Poderíamos citar as muitas traz 51 autores nascidos entre 1959 e 1993. está disponível nas livrarias A presentes André Sant’Anna,
vantagens do novo formato, mas Cada volume terá tiragem de 1.500 exemplares e menina que tinha dons, de M. Alice Sant’Anna, Thalita
fiquemos apenas com estas: será será distribuído gratuitamente em todas as bibliotecas públicas do R. Carey, roteirista de X-men e Rebouças, Silviano Santiago,
mais fácil de ler (esperamos) e Paraná e instituições culturais do país. A antologia passa por Dario Hellblazer; e Por você, primeiro Raphael Montes, Edney
mais moderno (temos quase Vellozo, Emiliano Perneta, Dalton Trevisan e Paulo Leminski a livro da trilogia erótica Fixed, da Silvestre e Luiz Ruffato, autor do
certeza). O novo projeto gráfico é Fernando Koproski, Luiz Felipe Leprevost e Estrela Ruiz Leminski. americana Laurelin Paige. recente livro de crônicas Minha
do designer Alexandre De Mari. Entre outros, estão no prelo o primeira vez (Arquipélago).
E não tem volta. Portanto, romance histórico Cem verões, Programação completa no
tratem de gostar. De portas abertas de Beatriz Williams, e John bienaldolivrominas.com.br.
Boa leitura. Com a proposta de publicar novos autores, sob o cuidado dos & George, de John Dolan,
editores Tonho França e Wilson Gorj, a editora Penalux abriu a previstos para 2015.
temporada para envio de originais. Poetas, cronistas, contistas, Em Minas 2
microcontistas, romancistas, estudiosos e pesquisadores Acontece de 12 a 16 de
interessados podem enviar conteúdo para originais@ Em Atibaia novembro, também em Belo
editorapenalux.com.br. Dias 15 e 16 de novembro, Horizonte (MG), o Circuito
Atibaia (SP) realiza seu primeiro Literário Praça da Liberdade,
cartas Vencedores do Jabuti Divulgação
festival literário. Batizado Flipop
— Festival de Literatura Popular
que contará com uma média de
15 atividades diárias e 70 autores
cartas@rascunho.com.br A Câmara Brasileira do de Atibaia —, o evento será convidados. Sobre o tema Uma
Livro (CBL) anunciou os gratuito, realizado em espaços pausa para você e as palavras, o
vencedores da 56ª edição do públicos, e contará com feira de evento propõe uma pausa para
Melhor Prêmio Jabuti. Na categoria livros, exibições audiovisuais, a leitura, em meio à agitação do
cobertura Romance, Bernardo Carvalho teatro, música, sarau e debates dia a dia, e transforma a Praça
Rascunho é a melhor faturou com Reprodução; na sobre literatura. Programação da Liberdade em uma cidade
cobertura da atualidade categoria Contos e Crônicas, completa no flipopatibaia. das palavras. Estarão presentes
literária do Brasil, sem com Amálgama, Rubem wordpress.com. nomes como Cristovão Tezza,
regionalismo e com um Fonseca (foto) levou mais um Elvira Vigna, Humberto
aprofundamento raro Jabuti pra casa; na categoria Werneck e Rogério Pereira,
na imprensa brasileira Poesia, Horácio Costa foi Em Pernambuco editor do Rascunho, que
de hoje. Sem esquecer o vencedor com Bernini Em 2014, a Festa Literária participará da mesa Literatura
o espaço concedido às — Poemas 208-2010. Internacional de Pernambuco em revista, ao lado de Bruno
literaturas estrangeiras, em Esta edição não escapou da completa dez anos. O Azevêdo, Fabrício Marques,
traduções e comentários, polêmica: jurados deixaram de dar notas a alguns dos finalistas, homenageado desta edição da Julio Villanueva Chang e João
que contribuem para a o que levou a CBL anunciar que cinco categorias serão revistas: Fliporto — que acontece de Pombo Barile, discutindo a
formação da bagagem Capa, Artes e Fotografia, Economia, administração e negócios, 13 a 16 de novembro — será pertinência, o alcance e crítica
cultural dos jovens. Infantil e Teoria/Crítica Literária. Ao todo, foram 2.240 obras Ariano Suassuna. O evento terá nos periódicos literários.
Parabéns a toda a equipe. inscritas. O primeiro colocado ganha R$ 3.500 e o troféu início na tradicional Basílica
Leyla Perrone-Moisés Jabuti. Os outros dois ficam somente com o troféu. A cerimônia do Mosteiro de São Bento,
São Paulo – SP de premiação acontecerá dia 18 de novembro, no Auditório em Olinda (PE), e terá como Ponto #7
do Ibirapuera, em São Paulo (SP), quando serão revelados os tema geral Literatura é coisa A nova edição da revista Ponto,
vencedores do Livro do Ano Ficção e Livro do Ano Não Ficção, de cinema, desenvolvido em editada pelo Sesi-SP, traz uma
Alento que paga mais R$ 35 mil. A lista completa de vencedores das 27 vários seguimentos: Congresso amostra expressiva da riqueza e
O Rascunho é um alento. categorias pode ser conferida premiojabuti.com.br. Literário, Feira do Livro, da diversidade das manifestações
Tão bem-vindo! Obrigada Fliporto Galera e Galerinha, culturais existentes no Brasil.
a todos! Divulgação Cine Fliporto e Feira do Livro. A seção Ponto Especial oferece
Marcia Rosseto Prêmio Planeta Suassuna é o homenageado uma homenagem ao falecido
Ribeirão Preto – SP Com seu segundo romance, Milena do palco principal da Festa: o Ariano Suassuna, este que foi
o el fémur más bello del mundo, Congresso Literário, que, entre um autor “forjado da matéria
o escritor mexicano Jorge Zepeda outros, contará com Lya Luft, viva”; o cartunista Luiz Gê é o
Envie carta ou e-mail para esta Petterson (foto) venceu o Prêmio Lourenço Mutarelli, Rodrigo entrevistado da vez; Bernardo
seção com nome completo, Planeta 2014. O romance foi Garcia Lopes e a coreana Ajzenberg participa do Ponto
endereço e telefone. Sem selecionado entre 453 obras inscritas Hwang Sun-Mi; a carioca do conto com O salto mortal;
alterar o conteúdo, o na competição deste ano, que há Adriana Falcão é a homenageada já no Ponto do novo conto,
Rascunho se reserva o direito seis décadas destaca as publicações da Fliporto Criança e Fliporto seção dedicada aos autores
de adaptar os textos. de língua espanhola. A premiação Nova Geração; o pernambucano estreantes, a jornalista Renata
As correspondências devem consiste em 601 mil euros e a publicação da obra vencedora Raimundo Carrero (colunista Penzani participa com Todos
ser enviadas para: Al. Carlos de em todos os países nos quais o Grupo Planeta atua. A estreia de do Rascunho) é o homenageado estão neste; ensaios, arte
Carvalho, 655 conj. 1205. CEP: Patterson se deu com Os corruptores (2013). No Brasil, seu da Feira do Livro. Toda contemporânea, esporte e
80430-180. Curitiba - PR. segundo romance deve ser publicado em 2015. programação no fliporto.net. teatro completam a edição.
4| | novembro de 2014

manual de garimpo | Alberto Mussa delgado, policiais e até um secreta — mas nada se
descobre. Os moradores, todavia, sabem exata­
mente o que acontece: são os homens casados que
matam os solteiros com quem as esposas andam se

Doramundo
deitando. Mas ninguém fala nada. Impera a mais
severa solidariedade entre os habitantes.
A atmosfera é densa, pesada, obscura. Tudo
no romance, aliás, é escuro: há o “smog” perma­
nente, o carvão, o ferro, o óleo, a noite. A narrativa

É
é toda em fragmentos, sem rigor cronológico. As
personagens são esboçadas em traços sucintos: pro­
tão grave o estigma gênero (como, por exemplo, Estamos na cidade ficcional fundos, mas um tanto imprecisos.
de subliteratura que Crime e castigo, para ficarmos de Cordilheira (certamente no in­ Nessa construção absurdamente difusa está a
pesa sobre a ficção no âmbito de Dostoiévski), a re­ terior de São Paulo, dadas as refe­ grande sacada de Geraldo Ferraz: com esse clima em
policial que boa par­ sistência é ainda maior: pouca rências a lugares próximos, como que tudo se sabe e nada se revela, ele consegue aco­
te da crítica simples­ gente tem coragem de identificá­ Amparo e Jundiaí). O pequeno plar ao eixo puro e simples da investigação uma ques­
mente exclui desse conceito as -lo como policial, porque não se­ burgo se situa num morro, em tão ética, relativa à oposição conceitual entre amor
obras que envolvam crime e in­ gue rigorosamente a “fórmula”. frente a uma estação da compa­ e sexo. Porque os assassinatos praticamente cessam
vestigação, ou incluam algum É o mesmo, me parece, que re­ nhia férrea. Residem nele muitos quando a companhia leva à cidade três prostitutas.
tipo de expectativa ou de misté­ tirar o Grande Sertão da litera­ dos ferroviários nas cerca de cem Mas o maior dos crimes ainda estará por ocorrer.
rio no desenvolvimento narrati­ tura brasileira porque subverteu, casas que se acavalam no aclive. O título do livro é a junção dos nomes de du­
vo. É quase impossível — para ou renovou, a língua do Brasil. De repente, Cordilhei­ as personagens fundamentais: Teodora e Raimundo.
dar apenas um exemplo — que Essa breve consideração ra passa a ser palco de várias Deles virá a grande revelação do romance. Geraldo
um romance excepcional como tem como propósito lembrar o mortes sucessivas, todas com Ferraz mostra que, numa novela policial, nem sem­
Os irmãos Karamazóv seja de­ romance Doramundo, de Ge­ a mesma característica: a víti­ pre é o assassino o verdadeiro objeto da investigação.
nominado “policial”, apesar de raldo Ferraz. Embora muitíssi­ ma recebe uma pancada na ca­ Doramundo saiu em 1956, numa edição de
se adequar perfeitamente ao câ­ mo bem recebido pela crítica, beça com um barra de ferro e baixa tiragem, pela Sociedade dos Amigos de Fer­
none do gênero. Ou seja, se um por suas múltiplas qualidades li­ depois é posta nos trilhos, para nando Pessoa. A segunda edição é de 1959, da José
romance é bom, não pode ser terárias, não me lembro de quem que o trem desfaça os vestígios Olímpio (em conjunto com o romance A famosa
policial — ainda que tenha cri­ o tenha enaltecido por ser uma do crime e pareça tudo aciden­ revista, dele e de Patrícia Galvão). Mas esses exem­
mes, assassinos, detetives. das mais originais e subversivas tal. Mas o artifício falha e logo plares são raríssimos e caros. Vale garimpar a edição
No caso de textos que sub­ obras da novelística policial do se constata que se trata mesmo da Melhoramentos ou a da Ática, posteriores, que
vertem as próprias regras do século 20, em todo o mundo. de homicídios. São enviados um ficam em torno dos R$ 10,00.

quase diário | Affonso Romano de Sant’Anna e eu dizendo: “Sou o Tarcísio


Meira, aquela ali é a Glória Me-
prédios vizinhos com a favela.
Mulher linda, foi capa da Vogue,
nezes”, apontando para Marina. manequim célebre aqui e na Itá­
Aí aparece o Marcelo Ser­ lia, casada com italiano, etc.

Coisas da política
rado, que está fazendo sucesso na
TV, e a curiosidade das moças do 25.03.1984
caixa transbordou pra outro lado. De repente vendo essa frase
em francês de Sartre ou Simone,
18.12.1989 a propósito da mulher — elles
Collor ganhou as eleições. n’accedent à l’indèpendance écono-
Uma hora depois de encerrada a mique qu’au sein dune classe —,
15.08.1992 tos do outro lado da Alemanha. Telefonou-me ontem que que­ votação três pesquisas de boca de veio-me um insight: erro do mar­
Ontem na Biblioteca Na­ Comentou: “Uma coisa surrea­ ria 10 minutos de conversa. Veio urna o davam como vencedor. xismo quando tanto fala de “ser
cional (BN), recebi Luiz Carlos lista, esse encontro clandestino me convidar para ser Secretário Na última semana, no horário de classe”, como naqueles textos
Prestes Filho para uma con­ de comunistas”; de Cultura em Minas. Descon­ gratuito, um depoimento da ex­ de Mao Tsé-Tung e outros. Isso é
versa. Veio trazer umas fotos de • Falou sobre Hércules fiei. Simpático, todo de azul, foi -mulher de Lula contando coisas uma visão dentro de uma cami­
Graciliano Ramos para a expo­ Correia, que andou recente­ direto ao assunto. brabas sobre ele: abandonou a fi­ sa de força: a luta em geral é pela
sição dos 100 anos deste. Graci­ mente dizendo publicamente Estávamos sentados no ter­ lha, não dava pensão, é racista. diferenciação, dentro da aparente
liano discursando para Prestes. que Prestes parecia agente duplo, raço frente ao mar. Tive que me Discutia-se se isso ajudou igualdade. Há aqueles que que­
Luiz Carlos simpático, pois volta e meia sua documen­ desculpar, recusar, pois não sinto ou atrapalhou Collor. O fato é rem se adaptar aos códigos da
olhos claros, estatura do pai, con­­ tação (e do partido), que estava ganas de mudar minha vida. E a que Lula parecia abatido no de­ classe ( ou grupo), mas em geral,
versava amigavelmente. Che­­gou com Prestes, caía na mão da polí­ lembrança da administração pú­ bate. E dizem que havia a ameaça há outro movimento individual,
Marina, que almoçou comigo cia. Disse que o dossiê de Hércu­ blica me dá urticária. Fiquei va­ de Collor revelar algo sobre um contrário a este: de querer subir,
(eu, ela e Myrian). les na KGB não é dos melhores. cinado contra. presente (aparelho de som) que emergir, extrapolar a sua “conche
Em pé, conversando comi­ Informações das prostitutas, em Lula teria dado a uma amante… sociale”. O rico quer ser mais ri­
go Luiz Prestes Filho me dizia: geral, “capitães da KGB”, diziam 17.07.1990 co, o pobre menos pobre. Forçar
• Quer passar à BN o ar­ que ele fazia câmbio negro. No supermercado Paes 20.02.2010 o indivíduo a ter consciência de
quivo do pai: seu diário, corres­ • Revelou que ainda que Mendonça sempre há a surpre­ Maria Pia do Nascimen- classe e a movimentar-se social­
pondência, etc. Ficará fechado/ há problemas com Anita (filha sa de as pessoas nos reconhece­ to foi assassinada em sua casa mente, sempre manietado aos
lacrado com consulta só autori­ de Olga Benário); rem. Uma menina loirinha vem na Urca. Cortaram seu pesco­ demais, é cortá-lo, castrá-lo em
zada pela família; • Que a posição de Prestes andando com a mãe, deixa-a por ço, reviraram a casa. A notícia seu movimento natural.
• Tem cartas para Fidel, on­ nos últimos informes da KGB instante e vem perguntar: “O diz que ela já tinha sido víti­ O marxismo deveria dar
de menciona pessoas ainda vivas; era positiva, pois diziam que ele senhor é o Affonso Romano de ma de assalto e havia prestado elasticidade a isso, pois “ser de
• Contou-me que tem um tinha apoiado Brizola, etc. Sant’Anna?”. queixa na polícia. classe” não deve ser um deter­
irmão, Iuri, em Moscou, fazen­ Tento responder carinho­ Terrível! Lembro-me de­ minismo, um condicionamento
do História e que também tem 16.12.2003 samente perguntando onde es­ la. Um dia surgiu numa home­ para sempre. Há outro lado da
cópia do que há de seu pai lá Vamos a um jantar na La tudava, acarinhando o cabelo nagem que me faziam na PUC questão, o esforço para sair dis­
na Rússia. Chama-o de “velho” Fiorentina pelos 80 anos de Tô- da menina. E ela diz: “Li a sua (não a conhecia, o nome me era so. E o diabo é que o indivíduo
com carinho; nia Carrero. Na minha frente o crônica sobre o Holocausto vagamente familiar). Pediu a pa­ evolui mais rapidamente que o
• Contou que ele, Prestes convite em forma de porta-retra­ (saiu hoje)”. lavra ali no auditório do RDC, conjunto, porque o conjunto é
Filho, teve um encontro clandes­ tos. Lá os amigos, aqueles retratos A moça do caixa começa a fez menção carinhosa às crônicas mediano. Daí a relação parado­
tino em Moscou com Erich Ho- na parede, Tônia entrando e sen­ me olhar estranho ainda na fila. que eu escrevia no JB, especial­ xal do intelectual que dialetica­
necker (ex-primeiro ministro do saudada por todos. Ela é um Quando me aproximo ouço-a di­ mente a Mulher madura. mente está-mas-não-está numa
comunista na Alemanha Orien­ símbolo. zer à outra: “É ele… Ela também Depois a veria esparsamen­ determinada classe (operária,
tal) na embaixada do Chile, para Acabou de sair daqui Aé- é escritora…”. E a moça rindo, te nas ruas de Ipanema. Chegou burguesa). Estar e não estar no
falar sobre o pai e seus documen­ cio Neves, governador de MG. insistindo em saber se eu era eu, a morar aqui perto, num dos rebanho é um dilema para ele.
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6| | novembro de 2014

Murilo Mendes por Ramon Muniz

Em estado
de bagunça
transcendente
Primorosa reedição de Murilo Mendes
dignifica importância de sua obra

Marcos Pasche | Rio de Janeiro – RJ


novembro de 2014 | |7

O
nome de Murilo tópico suplantasse o outro. Escritores e artistas de que está sendo parodiado — a
Mendes (1901- outras vertentes, num misto de consciência e in- Canção do exílio, de Gonçalves
1975) está vincu- tuição, concluíram que a assimilação de uma li- Dias —, será possível constatar
lado ao momento nha teórica não deveria obrigatoriamente significar no texto de Murilo um desalinho
de consolidação o repúdio de outra, ainda que elas se apresentas- no que tange às imagens formu-
do Modernismo brasileiro, mo- sem como refratárias. Em Murilo, a exemplo de to- ladas e à estrutura do discurso. Já
mento esse que também signi- dos os grandes escritores seus contemporâneos, são os dois primeiros versos torcem
ficou um ápice para a própria perceptíveis uma enfática afirmação das diretrizes referências da razão geográfica:
literatura brasileira, em sentido literárias do Modernismo e uma convicta extrapo- “Minha terra tem macieiras da
lato. Nos anos de 1930 — pe- lação delas. Essa percepção tem agora um novo re- Califórnia/ onde cantam gatu-
ríodo em questão —, assistiu-se forço, quando a Cosac Naify empreende reedição ramos de Veneza” soam como o
a um processo de adensamento admirável (pelo apurado acabamento gráfico e pe- canto do sujeito desterritoriali-
literário que, a um só tempo, se lo cuidadoso estabelecimento do texto) da obra do zado, conforme sugere Silviano
manifestou como ampliação do poeta mineiro, cuidada por Júlio Castañon Guima- Santiago (creditando o concei-
repertório temático e aumento rães, Milton Ohata e Murilo Marcondes de Mou- to a Gilles Deleuze) no posfácio
(quantitativo e qualitativo) das ra. No momento em que escrevemos, chegam ao do livro, ou mesmo como o de
possibilidades formais. De mo- público reedições de Poemas (1930), Convergên- um ser universalista, que vê na
do igualmente simultâneo, nos cia (1970) e (do bioficcional) A idade do serro- sua a reunião de todas as terras.
anos 30 a literatura brasileira não te (1968); além de uma inédita Antologia poética A mais, talvez seja possível verifi-
deixava dúvidas quanto à recusa (organizada por Júlio Castañon e Murilo Marcon- car nos versos a constatação irô-
do antigo servilismo aos modelos des), publicada em duas versões, uma delas acom- nica de que alguns dos símbolos
europeus, recusando também, panhada por um CD com a gravação da leitura do valorosos da brasilidade não são
talvez por antecipação, o que próprio poeta de oito de seus poemas. efetivamente brasileiros, algo de
poderia se tornar — e se tornou Sem ignorar a relevância das outras obras, fa- que a literatura romântica se ser-
— regra instituída pelo ideário larei aqui especialmente sobre Poemas, por ser o viu enfaticamente, como se con-
modernista, o qual — nalgumas primeiro e — dentre os que agora saem — mais cluísse que “aquilo que presta na
ocasiões do que a historiografia importante livro do poeta de Juiz de Fora, dado minha terra só presta por não ser
chama de primeira fase — se quis concentrar aspectos presentes no desenvolver de genuinamente dela”.
mais modernista do que artístico. sua bibliografia. Além disso, trata-se de um livro- De todo modo, chama
Para se ter uma ideia mais -súmula do momento acima destacado. a atenção que Murilo tome os
clara da dimensão literária dos elementos basilares do poema
anos de 1930, no Brasil, im- Bagunça e transcendência gonçalvino — a terra pátria, a
porta lembrar de alguns de seus Quando abordado de modo breve, Murilo natureza canora e a condição
mais substantivos marcos. Foi Mendes é infalivelmente lembrado pelo par lin- de estrangeiro (“Eu morro su-
em 1930 que estreou Carlos guagem surrealista/devoção católica. Na medida focado/ em terra estrangeira.”)
Drummond de Andrade, com em que as vanguardas radicalizam o propósito de — para apresentá-los por meio
Alguma poesia; foi em 1930 distinguir o discurso artístico do discurso comum, de uma simbologia absurda (“sa-
que Manuel Bandeira, moder- pode-se ver no Surrealismo um cume vanguardista, biá com certidão de idade”). Tal
nista de primeira hora, publicou pois sua dicção, por afeita ao ilogismo, se desgarra apresentação é feita sobre uma
seu quarto e mais emblemático das relações objetivas entre significante e significa- arquitetura que, diferentemen-
volume, Libertinagem, síntese do. Como se sabe, as vanguardas não pretenderam te da canção oitocentista, não se
aguda de todo o Modernismo. efetivar transgressões restritas ao campo da estéti- caracteriza pela disposição linear
É na década de 1930 que uma ca; toda forma de convenção figurou, ao menos em dos elementos: “Os sururus em
autora de antes — Cecília Mei- tese, como alvo do anseio inovador dos artistas de família têm por testemunha a
reles — consolida sua escrita po- maior repercussão do século 20. Gioconda./ Eu morro sufocado/
ética com Viagem (1939), sendo A obra de Murilo Mendes é fortemente con- em terra estrangeira”. A postu-
também desse decênio o surgi- taminada pelo Surrealismo, o que se verifica já na ra anárquica da escrita surrealis-
mento de um poeta consagrado abertura de seu livro inaugural, com sua estranha ta cai como luva para os autores
depois: Manoel de Barros, que Canção do exílio: modernistas dados a satirizar os
em 1937 publicou Poemas con- “brasões nacionais”, neste ca-
cebidos sem pecado. Minha terra tem macieiras da Califórnia so os poetas oficiais do Impé-
Esses são alguns exemplos onde cantam gaturamos de Veneza. rio e a exuberância natural da
do âmbito poético. Na prosa, Os poetas da minha terra “pátria das bananeiras”, como a
os nomes de Jorge Amado, José são pretos que vivem em torres de ametista, chamou Casimiro de Abreu: “A
Lins do Rego, Erico Verissimo, os sargentos do exército são monistas, cubistas, gente não pode dormir/ com os
Rachel de Queiroz — que es- os filósofos são polacos vendendo a prestações. oradores e pernilongos”. Subme-
trearam na década em destaque A gente não pode dormir tendo a razão de ser da literatura
— formam a página coletiva de com os oradores e os pernilongos. a uma nova concepção, a cultura
maior vulto do romance nacio- Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. modernista substitui a figura do
nal, o que se confirma e aprofun- Eu morro sufocado poeta como arauto das virtudes
da com a aparição de Graciliano em terra estrangeira. (em se tratando da temática na-
Ramos, espinha dorsal do con- Nossas flores são mais bonitas cional) pela do poeta como iro-
junto e espinha para a garganta nossas frutas mais gostosas nista das verdades consagradas
da historiografia: ele, associado mas custam cem mil réis a dúzia. pelo discurso oficial e pelo senso
à consolidação do Modernismo, comum: “Nossas flores são mais
fazia questão de se dissociar do Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade bonitas/ nossas frutas mais gos-
movimento-estilo. Ainda na dé- e ouvir um sabiá com certidão de idade! tosas/ mas custam cem mil réis a
cada de 1930 um extraordiná- dúzia”. E é justamente pela evo-
rio e ainda pouco frequentado Em linhas gerais, a poesia não se obriga a fa- cação da verdade e de uma forma
ficcionista baiano proferiu, no lar pela perspectiva da coesão e da coerência, aspec- de atestá-la (a certidão de idade),
campo do ensaio, o seu vagido: tos pelos quais se deve orientar um texto destinado que a Canção do exílio (de Gon-
Adonias Filho, autor de obras à comunicação comum. No caso da dicção poética çalves Dias) recebe seu golpe fi-
supremas como Corpo vivo e de teor surrealista, essa desobrigação torna-se prin- nal de dessacralização: “Ai quem
Memórias de Lázaro, publicou cípio e fim, para que o encadeamento sintático e me dera chupar uma carambo-
O renascimento do homem. semântico do texto seja eólica e oniricamente de- la de verdade/ e ouvir um sabiá
Se complementada com outros sarrumado. Se tomarmos como referência o texto com certidão de idade!”.
exemplos, a lista seria imensa,
e talvez ocupasse todo o espaço
disponível.
Murilo Mendes compõe
e é composto por esse momen-
to, quando a pesquisa e a experi-
mentação da linguagem literária
consorciaram-se a acuradas re-
O projeto revisionista de Murilo Mendes e de seus pares não
flexões acerca da existência in- se resumia a zombar de homens e eventos “célebres”. A fundo,
dividual e coletiva, sem que um repensava-se a própria nacionalidade e seus diversos elementos
constitutivos.
8| | novembro de 2014

divulgação/ bruno andreozzi

PRATELEIRA
Murilo Mendes

Poemas
Cosac Naify
128 págs.

Convergência
Cosac Naify
256 págs.

Antologia poética
org.: Júlio Castañon Guimarães e
Murilo Marcondes de Moura
Cosac Naify
304 págs.

Nota-se, portanto, que a desordem presti- fizeram uma poesia explicitamente marcada pe-
giada pelos surrealistas não se resumia a um traço lo reexame dos registros oficiais da vida brasilei-
estilístico a se manifestar para dentro. Há em sua ra. Apesar do título neutro, História do Brasil é A idade do serrote
feição desorganizada um princípio reformador de um conjunto de textos profundamente irônicos, Cosac Naify
dentro para fora. inclinados a retirar a maquiagem dos discursos 192 págs.
que fazem o “histórico” rimar obrigatoriamente
Um parêntese com “heroico”. Uma vez que, como dissemos, a
Primeiro texto de Poemas, Canção do exílio obra muriliana vincula-se ao Surrealismo, torna-
é uma revisão do cânone literário brasileiro. O se- -se ainda mais surpreendente verificar que por
gundo texto mantém a intenção revisionista, mas meio da poesia — reino do inventado, do fictí-
altera o objeto revisto: a história do Brasil, ou, mais cio, do irracional e da inverdade — se pode ter
especificamente, o discurso historiográfico tido co- uma dimensão mais apropriada e verossímil dos
mo oficial à época do livro. Quinze de novembro acontecimentos relativos à nação tupiniquim. No
dirige suas lentes aos bastidores dos grandes acon- posfácio anteriormente referido (ao livro Poe-
tecimentos nacionais, despindo-os de qualquer mas), Silviano Santiago, em coro com Murilo, vê
monumentalidade: História do Brasil como equívoco poético, algo
de que discordo, na medida em que o livro é per-
Deodoro todo nos trinques meado por um humor de admirável efeito, e tam-
bate na porta de Dão Pedro Segundo. bém por significar um conjunto de acabamento
— Seu imperadô, dê o fora mais interessante do que as investidas de Oswald
que nós queremos tomar conta desta bugiganga. de Andrade em Pau-Brasil (1925). Em carta a
Mande vir os músicos. Mário de Andrade, datada de dezembro de 1930
O imperador bocejando responde (e incluída na presente edição de Poemas), o au-
— Pois não meus filhos não se vexem tor de As metamorfoses aborda o assunto de
me deixem calçar as chinelas modo autônomo, ilustrando bem, como trato
podem entrar à vontade: neste artigo, a negação da monomania: “Espero
só peço que não me bulam nas obras completas de Vic- o Remate de males com ansiedade e o seu artigo.
tor Hugo. Mando os dois poemas cabeludos, estou alarma-
do com as reclamações contra os poemas-piada,
A soma de questionamento ao discurso gosto de fazê-los porque me dão agilidade ao es-
consagrado e zombaria de episódios marcantes pírito. Mas não fico neles”.
dá a tônica do livro seguinte de Murilo Men- Em História do Brasil, a ordenação dos
des — História do Brasil, de 1932. Descartado textos baseia-se na cronologia usual. Os poemas
pelo próprio autor anos após seu lançamento, a são dispostos de acordo com a referência factual
obra não é incluída nesta reedição. Mas como al- que tematizam, iniciando pela aparição dos pri-
go dela aparece no livro anterior, convém abordá- meiros europeus no território e chegando até a
-la aqui para pensar nas relações que envolvem época em que Murilo elaborava o volume. Assim,
a poesia e os fatos. A exemplo de outros moder- a forma de organização permite supor que a obra
nistas — como Oswald de Andrade e José Paulo seja afinada ao modo convencional de escrita his-
Paes —, Murilo também se destaca entre os que toriográfica. Mas os primeiros sintomas de que a
novembro de 2014 | |9

divulgação/ l. wiznitzer

suposição será desfeita se encontram já no texto subverter costumes e convicções, só a um espírito


de abertura, Prefácio de Pinzón: aberto ou ilógico não soaria ilogismo a convergên-
cia envolvendo tradição cristã e arte futurista. Na
Quem descobriu a fazenda, segunda parte de Poemas (o volume é dividido em
Por San Tiago, fomos nós. seis), intitulada Ângulos, o poema Cantiga de Mala-
Não pensem que sou garganta. zarte fala de pluralidade e desconexão existencial:
Se quiserem calo a boca,
Mando o Amazonas falar. Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
Mas como sempre acontece, ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Nós tomamos na cabeça, Não desprezo nada que tenha visto,
Pois não tínhamos jornal. todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
A colônia portuguesa Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
Mandou para o jornalista destelho as casas penduradas na terra,
Um saquinho de cruzados. tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Ele botou no jornal Desloco as consciências,
Que o arquimedes da terra a rua estala com os meus passos,
Foi um grande português. e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
A sátira foi empregada pelos modernistas não posso amar ninguém porque sou o amor,
para diluir a grandiloquência dos pronunciamen- tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
tos institucionais. Em História do Brasil, isso se e a pedir desculpas ao mendigo.
comprova especialmente nos textos que alvejam Sou o espírito que assiste à Criação
momentos cobertos de grande furor nacionalis- e que bole em todas as almas que encontra.
ta. É o caso de Fico, que tematiza a famosa de- Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
claração de D. Pedro I, de 9 de janeiro de 1822 Nada me fixa nos caminhos do mundo.
— “(...) Eu fico, mas vou/ Falar com a Marque-
sa,/ Já volto pra ceia./ Falando em comidas/ Eu Mais à frente, na mesma seção, surge um
fico, pois não”; de Preparativos da pescaria, sobre poema de título ainda mais emblemático. Ao
os antecedentes do grito da Independência — correr do livro, gradativamente o abandono da
“(...) Meu pai não fez coisa alguma/ Por vocês, lógica convencional parece caminhar para a for-
ó vrazileiros./ Se meu pai disse que fez/ Ele men- mação de outra lógica, peculiarmente desordena-
te pela gorja./ O que fez o rei de bom/ Não foi da. Cito Os dois lados:
ele, meus meninos,/ Foi o conde de Linhares”; e
de Proclamação de Deodoro, acerca da instituição Deste lado tem meu corpo
da república em 1889: “Ó que belo movimen- tem o sonho
to!/ Ouro-Preto não estrilou./ Foi tudo feito com tem a minha namorada na janela
rosas/ E salva de 21 tiros.// Apenas quase mata- tem as ruas gritando de luzes e movimentos
mos/ O pobre Barão do Ladário”. Pela referência tem meu amor tão lento
episódica e pela forma corrosiva, Proclamação de tem o mundo batendo na minha memória
Deodoro guarda relação direta com Quinze de no- tem o caminho pro trabalho.
vembro, de Poemas, transcrito parágrafos acima.
Nos dois livros, a inclinação absurda da reconsti- Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida
tuição dos fatos imprime no imaginário do leitor tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
uma conclusão controversa e nítida, do tipo “não tem minha noiva definitiva me esperando com flores
aconteceu assim, mas é assim que foi”. na mão,
O projeto revisionista de Murilo Mendes e de O AUTOR tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.
seus pares não se resumia a zombar de homens e Murilo Monteiro Mendes
eventos “célebres”. A fundo, repensava-se a própria A desordem do espírito é própria dos que se
nacionalidade e seus diversos elementos constitu- encontram em momentos de descoberta. Então,
tivos. A expressão desse projeto deveria isentar-se Nasceu em Juiz de Fora, em 13 acerca de Murilo Mendes, pode-se ver que o desva-
de inflamações, tanto no tratamento de fenômenos de maio de 1901. Publicou, dentre rio típico de sua escrita é abandono e inauguração.
pouco inspiradores de paixão nacionalista (as des- outros, os livros Poemas (1930), Milagrosamente — para usar um termo do dicio-
razões administrativas da coisa pública, por exem- Contemplação de Ouro Preto nário cristão — a linguagem futurista e demolido-
plo), quanto na saborosa retratação antropológica (1954) e Tempo Espanhol ra do passado encontra no poeta mineiro um vivo
da gente nacional, matéria de Homo brasiliensis: (1959). Faleceu em Lisboa, indício do homem reformado pela via da ancestra-
em 13 de agosto de 1975. lidade religiosa. Além de todas as polarizações, a
O homem vida pulsa em plenitude, e é a poesia — e não as
É o único animal que joga no bicho. sectárias tomadas de partido — a música do que
existe. Cito Saudação a Ismael Nery, belíssima ho-
A simplicidade modernista corresponde à menagem (não encomiástica) que Murilo Mendes
ideia de que a existência deve ser assimilada além dirigiu ao amigo pintor:
da riqueza e do requinte, como um gesto sensível e
arguto de quem vê a beleza onde em geral ela não Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
é anunciada. Por outro lado, a simplicidade da es- um Ente magnético sopra o espírito da vida.
crita de História do Brasil decorre de uma firme Depois de fixar os contornos dos corpos
tomada de posição para interpelar com rigor ide- transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
ologias “nobres” que determinaram rumos da vi- e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
da nacional. O tom menor da poesia quis repelir o Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
megafone da historiografia estridente, denuncian- solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca
do suas dissonâncias. Por esse sentido, parece que a descansa.
invenção do poeta não a invencionice que se pode Ele pensa desligado do tempo,
supor, como se verifica na oposição absolutamente as formas futuras dormem nos seus olhos.
amena representada em Quinze de Novembro. Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
Transcendência penetra o sentido das ideias, das cores, a tonalidade
Faço nova referência ao posfácio de Silvia- da Criação,
no Santiago, destacando seu aspecto de maior al- olho do mundo,
cance, isto é, a conversão de Murilo Mendes ao
A obra de Murilo
zona livre de corrupção, música que não para nunca,
catolicismo. O título do ensaio já vale como escla- Mendes é fortemente forma e transparência.
recimento — Poesia fusão: catolicismo primitivo/ contaminada pelo
mentalidade moderna —, e suas linhas reforçam Surrealismo, o que se Ao poeta de convergência, o caos é também
o que dissemos sobre os mais importantes auto- verifica já na abertura harmonia. E conforme ele mesmo diz em Mapa,
res brasileiros surgidos na década de 1930: ao se altíssimo feito de Poemas — “viva eu, que inaugu-
absorver determinada orientação, não se criava a
de seu livro inaugural, ro no mundo o estado de bagunça transcendente”
obrigação de rechaçar outra. com sua estranha —, a desordem revela-se caminho para a instância
Se as vanguardas preconizavam urgência em Canção do exílio. do sublime. Milagre da laica e devota poesia.
10 | | novembro de 2014

A arma
possível
Safári
Luís Dill
Rocco
182 págs.

Safári, romance de Luís Dill, discute a banalização da violência

Haron Gamal | Rio de Janeiro – RJ

O
bras literárias sempre refletiram as O enredo tem como foco Dill cria um personagem às aves-
intempéries de seu tempo. Entre principal uma conceituada fir- sas, um detetive verdadeiramente
nossos autores, é possível observar ma de advocacia cujo escritório romanesco, que vai proporcionar
que, mesmo em períodos de relati- localiza-se num prédio próximo alento ao sofrido leitor.
va estabilidade política, econômica a uma favela conhecida como Quando se termina a leitura,
e social, contos, romances e poemas colocaram em Vila da Fumaça. Tal proximi- pode-se chegar à conclusão de que
questão os problemas mais prementes da época. Foi dade trará à luz as contradições qualquer narcotraficante, mesmo
assim com José de Alencar e Machado de Assis. O existentes entre uma classe favo- municiado pelas armas mais letais,
primeiro criando um romance que estabelecia uma recida e outra pobre ao extremo. estará abaixo do ardil e da sagaci- O AUTOR
nova ordem brasileira sobre o poder e o modo de Esta, se não vive da criminalida- dade daqueles que tiveram acesso Luís Dill
vida portugueses, de quem estávamos recém-liber- de, precisa pelo menos conviver aos bens da alta cultura e os toma-
tos; o segundo, dando universalidade a uma vida de com ela. Sem dizer o nome da ram em proveito próprio.
província. Castro Alves foi outro mestre neste cami- cidade onde a história transcor- Outro ponto importan- Nasceu em Porto Alegre (RS)
nho, soube alçar a escravidão ao patamar estético, re, o autor coloca em questão te revelado é a hierarquia de em abril de 1965. É formado em
ao mesmo tempo que seus poemas municiavam a o difícil relacionamento entre valores seguida por seus perso- Jornalismo pela PUCRS. Como
sociedade pela abolição. Com os modernistas o en- as várias camadas da população nagens. Sem querer estigmati- jornalista já atuou em assessoria
gajamento continuou de modo ainda mais intenso. nas cidades, fato sempre masca- zar qualquer tipo de cultura ou de imprensa, jornal, rádio,
Lutou-se diretamente contra o colonizador estran- rado pelos meios de comunica- de reiterar o lugar-comum de televisão e Internet. Atualmente é
geiro, personificado no vilão de Macunaíma. Nos ção, os quais gostam de semear criticar o modelo de vida norte- produtor executivo da Rádio FM
romances regionalistas dos anos 1930, Graciliano a ideia de que em nosso país não -americano, o romance discute Cultura na capital gaúcha, onde
Ramos, Rachel de Queiroz e mesmo um José Lins existem preconceitos e, caso isso a obrigação de se ter de ganhar reside. Como escritor estreou em
não se esqueceram de dirigir suas penas contra o aconteça, são logo combatidos. cada vez mais dinheiro, mesmo 1990 com a novela policial juvenil
atraso político, social e econômico a que era subme- A suposta igualdade de condi- que seja necessário assassinar A caverna dos diamantes.
tida grande parte da população brasileira. ções provoca a ira de segmentos a ex-mulher para não se fazer a Possui mais de 40 livros
Na contemporaneidade às vezes se chega a mais abastados. Eles gostariam partilha dos bens. O resultado publicados além de participações
pensar que a literatura sucumbiu ao poder do di- dos pobres longe da sua vizi- disso tudo é o estabelecimento em diversas coletâneas. Safári
nheiro, levando escritores a construírem histórias nhança. Outro aspecto discuti- de uma sociedade onde a com- é seu primeiro título pela Rocco.
mais amenas e de forte apelo mercadológico, com do pelo livro é a facilidade de se petição atingiu tamanha mag-
narrativas que envolvem mistério e magia, em que conseguir armas, privilégio para nitude que, sem exagero algum,
poderes ocultos teriam capacidade de livrar os hu- os mais variados segmentos so- podemos chamá-la de militar.
manos dos “diabólicos azares”. ciais. E neste livro não são ape- Tal atitude provoca nas pessoas
Esta arte feita de palavras, no entanto, mes- nas os traficantes que gostam de comportamentos similares, co-
mo desfeitas as ilusões, jamais renunciou ao dese- ostentar o poder de suas pistolas mo num efeito dominó. Assim,
jo de realizar alguma utopia. Sua própria existência e fuzis. Trata-se de um romance não surpreende a possante arma
é até certo ponto utópica. Hoje se sabe que não é que não é agradável aos espíritos usada por um dos personagens,
possível através de narrativas, poemas ou drama- mais sensíveis. com a qual exercita a sua justiça.
turgia mudar a economia, ou livrar o povo de tira- A literatura sempre fra-
nos. Para que isso aconteça é necessário outro tipo Força da ideologia cassou quando tentou mudar
de preparo. Mesmo assim continuam-se escreven- Já no início, o leitor é ca- o mundo. Seus autores são me-
do romances, novelas, contos e poemas que trazem paz de perceber a força da ide- lhores na descrição de cenários
à tona o desejo de esquadrinhar o presente e, já que ologia dominante a estabelecer e na narração da barbárie, mes- TRECHO
não é possível apontar soluções, ao menos tocar na comportamentos individuais ex- mo que perpetrada por agentes Safári
ferida, para que sangre de modo mais intenso. tremamente bélicos. Nada a ver da civilização. Ela também não
É isso que se percebe após a leitura de Safári, com a nossa luta política nem é a droga vendida e transporta-
Murilo Marques, estatura
de Luís Dill, um romance que nos faz mergulhar com ditaduras passadas. Trata-se da pela tele-entrega dos trafican-
no cerne da violência urbana das grandes e peque- de um embate em que o Direito tes deste Safári. Nem é o projétil mediana, compleição atlética,
nas cidades brasileiras e, quem sabe, também na de leva a desvantagem, ficando a so- que sai certeiro da arma do atira- traços angulosos, acompanha
cidades de países desenvolvidos. lução nas mãos da violência. dor travestido de advogado. outra enfadonha audiência.
Trata-se de um romance bem urdido, em que Desfilam ante nossos olhos Portanto, mesmo que o lei-
Sua cliente muito nervosa.
convivem em harmonia duas vozes narrativas. A uma fauna humana composta tor sinta-se saturado da violência
primeira, aparentemente impessoal, nos traz a tra- por pessoas de todas as classes so- apresentada todas as noites nos Uma mulher de 60 anos,
ma; a segunda apresenta as reflexões e reminiscên- ciais. A mais alta, no entanto, é telejornais, o livro de Dill não cabelos grisalhos e curtos,
cias de um narrador em primeira pessoa. a mais cruel. Como contraponto, se mostra redundante. Ele serve alinhada em terninho cinza
como o fio de Ariadne, artefato
e camisa branca. Antes de
que torna a arte essencial. O lei-
tor que segui-lo com honestidade entrarem para o encontro com o
poderá transformar o seu modo juiz, precisou pegar-lhe na mão,
Mesmo que o leitor sinta-se saturado da violência de olhar o mundo. Aqui talvez dizer que ia ficar tudo bem, a
entre o papel fundamental da li-
apresentada todas as noites nos telejornais, o livro de teratura, que é o de revelar. O que
amante do falecido marido não
Dill não se mostra redundante. Ele serve como o fio fazer a partir dessa revelação é que conseguiria botar a mão em um
de Ariadne, artefato que torna a arte essencial. se torna o grande problema. único centavo dela.
novembro de 2014 | | 11

O
que é um corpo

Compreensão
no escuro? É com
essa pergunta
que procuro ler
o excelente livro
de poemas O corpo no escuro,
obra de estreia de Paulo Nunes,
mineiro radicado em São Paulo

do mundo
(SP), onde trabalha como livrei-
ro. A demora dele em publicar
tem algumas razões. Uma delas,
sem dúvida, foi o cuidado em
refinar ao máximo a linguagem,
qualidade que podemos notar
em quase todos os poemas. Já
no poema de abertura, Confissão
e prólogo, o poeta, mais que uma
simples confissão laudatória, Paulo Nunes aponta caminhos entre uma percepção
apresenta em versos um “poe-
ma-manifesto” sobre a poesia aguda da vida e um apuramento da linguagem poética
e o lugar do poeta nos dias de
hoje, colocando em discussão o
excesso de metapoemas na po- Mário Alex Rosa | Belo Horizonte – MG
esia contemporânea brasileira.
O próprio poeta, ao escrevê-lo,
se arrisca também nesse volu-
me com cultismos autistas so- sia hoje que quer ser politicamente correta com TRECHO
bre o próprio fazer. Mas a força os desfavorecidos. Aliás, esse corpo no escuro, O corpo no escuro
do livro me parece que come- essa poesia que vem do escuro, se ilumina pela
ça verdadeiramente no Canto falta e, paradoxalmente, quanto mais refratária à no fosso do elevador
primeiro, no qual um ser igno- luz, mais ela (a poesia) ilumina. É como se essa
no quarto de despejo
to surge desse ambiente escu- poesia nascesse da contraluz, para, assim, ilumi-
ro protagonizado pelo poeta. nar o que possa estar na sombra. Assim, um dos no armário embutido
Imagens fortes vão se estrutu- temas fortes do livro é o do desamparo do ho- a noite eterna espreita
rando entre sons, cheiros, sem O corpo no escuro mem diante de tantas indiferenças.
identidade, alguém surge como Paulo Nunes
Companhia das Letras
pelas frestas, o vulto
se fosse um bicho, aquele bicho Consciência extremada
do poema de Manuel Bandei- 119 págs. Para citar apenas dois poemas do livro sob a luz inventada:
ra? A propósito de Bandeira, há Obvni, como Canto primeiro e O vigia, ou A é preciso vigiar
um poema que talvez ilumine a correnteza, do segundo livro, eles alcançam um as coisas que se furtam
experiência desse poeta minei- grau de excelência sem precisar banalizar os fa-
ro tão seguro de sua linguagem tos ou mesmo a condição desumana desses
e sua vivência. personagens anônimos ou não. O que se pode nunca mostram a face
Quem sabe a poesia/vi- notar é uma consciência tão extremada, que a mesmo quando sugerem
da precise daquela nódoa de la- torna delicada, pois, afinal, esse corpo no escuro como as sandálias
ma que salpica a roupa branca medita sobre a fragilidade da linguagem poética
sob a janela aberta —
e engomada do sujeito que aca- em tentar traduzir o sentido numa melhor for-
bou de sair, conforme lemos em ma ou a forma numa melhor equação criadora.
Nova poética, de Manuel Ban- A poesia não precisa nem deve se prender com o branco dos olhos
deira. Poeta cujas experiência e ao mundo, nem se fechar em si mesma, como vigiar a escuridão
reflexão poética parecem amal- se os poetas devessem exprimir apenas e somen-
que sustém luz e coisas
gamadas na sua vida. No entan- te os seus sentimentos mais recônditos. Afinal,
to, guardadas as diferenças entre a grande poesia, histórica, social, amorosa ou e o nada atrás da porta —
os dois poetas, é possível pen- de vanguarda, não deixará de restituir o valor
sar que a poesia de Paulo Nu- imprescindível entre concisão e sentido, ou se- não permitir a fuga
nes aponta para caminhos entre ja, unir os aspectos técnicos sem se distanciar
ou a invasão: mas vem
uma percepção aguda da vida e das estranhezas afetivas que por ventura a vida
um apuramento da linguagem provoca. Como bem observou Alfredo Bosi, ao a fome e a noite salta
poética. A epígrafe “Vós habi- dizer que “a poesia não se limita a refazer por da lata de biscoitos
tais um quarto pobre, mistura- dentro a percepção do outro. Também nomeia
do à vida”, de Artaud, que abre o mundo de objetos que nos rodeiam e consti-
vem o sono e debaixo
o livro, parece confirmar que só tuem nosso espaço de vida, balizas do itinerá-
é possível essa mescla quando rio cotidiano”. E é nessa composição mesclada da cama ninguém sabe
não se escamoteia a vida. Evi- entre sujeito e objetos do mundo que o poeta (como dentro dos sonhos)
dentemente que a experiência Paulo Nunes procura dar a ver a verdade dos o que, na sombra, se oculta
em si não é e nunca deverá ser seus sonhos, mesmo que eles possam emergir
sinônimo de boa poesia ou de de alguns pesadelos, como a perda, motivo de
qualquer arte; no entanto, ela muitos poemas (“Perder, às vezes, é quando se e nas gavetas vazias
pode ser uma aliada, sobretu- ganha/ um tato mais sutil, mão que aprendeu/ no poço atrás dos olhos
do quando há uma conjunção acariciando a febre e agora busca/ algo que per- baratas, pensamentos
equilibrada entre linguagem e siste entre a pedra e a brisa” ou “E se me tiram o
sem veneno, deslizam
vivência. No caso de Paulo Nu- que mais me pertence/ nada me dando em tro-
nes, podemos perceber que há ca, dou-me, perplexo” — trechos do poema Ali-
um domínio íntimo e discre- nhavo). E não é estranho que a temática da água (poema O vigia)
to nessa poesia cuja experiência compareça em diversos momentos da obra, so-
está muito bem traduzida em bretudo no segundo livro, cujo título é um indi-
linguagem poética. Na verda- cativo de que, em algum momento, quem sabe,
de, é um poeta que se expande os desencantos serão levados pelas águas, pois,
por contenção, ou seja, confor- O AUTOR como sabemos, a água vive em constante mo-
me vamos lendo seus poemas, Paulo Nunes vimento, o que poderia ser um alento para essa
estrofes, versos, descobrimos, a poesia tão sensitiva. Mas lembremos: se, por um
cada detalhe, a riqueza lírica de lado, a água é contínua, por outro, a poesia é fi-
quem sabe que uma das melho- Nasceu em Patos de Minas xação de uma memória que cobre tudo e deixa
res expressões nesse gênero é a (MG), em 1965. Formado no seu reservatório um mundo de lembranças.
compreensão do mundo, sem em filosofia, é livreiro na Enfim, penso que esse poeta merece ser lido por
precisar cair no lugar-comum Universidade de São Paulo, aqueles que ainda acreditam que a poesia por
da poesia social ou de certa poe- poeta e letrista musical. um triz reluz no escuro.
12 | | novembro de 2014

U
Graciliano Ramos por Dê Almeida
m ateu e comunis-
ta que considerava a
Bíblia um livro su-
perior a toda litera-
tura. Um autodidata
que abandonou a escola sem con-
cluir o ginasial por não acreditar
nos professores e que se tornou
diretor de Instrução Pública. Um
homem fechado, quase impene-
trável, que concedeu dezenas de
entrevistas, isso quando não as
criou do próprio punho, para evi-
tar as distorções. Um crítico feroz
da literatura, que achava Macha-
do de Assis um grande escritor,
mas péssimo romancista devido
à ausência de coragem para posi-
cionar-se. Considerava o moder-
nismo uma porta larga para todas
as mediocridades. Mas ao mesmo
tempo não se considerava escritor
nem jornalista, no máximo ten-
do admitido ser um “romancista
de quinta categoria”. Um homem
que foi preso sem motivo, passou
por mais de dez cadeias, onde foi
espancado, torturado e teve a sua
saúde abalada para sempre, mas
que dizia não ter acontecido nada
de admirável na sua vida, que de-
finia como “meio tola”. Alguém
que no momento de maior glória
e reconhecimento quase unânime
como maior escritor do Brasil di-
zia não ter escrito nada que pres-
tasse. Um pessimista ranzinza que
adorava crianças e acreditava ha-
ver esperança para a humanidade.
Um intelectual refinado, leitor
em várias línguas, que conside-
rava a fala do caboclo (do sertão)
um modelo e dizia que o escritor
tinha que fazer que nem as lava-
deiras de Alagoas, torcer e torcer
até deixar as palavras secas. Um
homem de quem muita gente
queria e se dizia amigo, chegando
a ser homenageado em um jan-
tar em Copacabana por setenta
intelectuais por ocasião dos seus
cinquenta anos. Mas que afirma-
va preferir morar na prisão, se lá
houvesse água corrente para lavar
as mãos, a viver na cidade grande,
onde não havia paz para ler e es-
crever. Em duas palavras: Graci-
liano Ramos, também conhecido
como Velho Graça.
É este retrato, rico e con-
traditório, fascinante e profundo,
repetitivo e revelador, que nos é
proporcionado por Conversas,
um livro organizado com mui-
ta competência por Thiago Mia
Salla e Ieda Lebensztayn. Os or-
ganizadores esclarecem o conteú-
do e o objetivo logo de saída: “A
ideia é reunir falas de Graciliano
Ramos, cujo cenário em geral é a
Livraria José Olympio, ponto de
convívio de diversos intelectuais

O gênio modesto
nos anos 1930 e 1940”.
Na verdade, o livro vai
bem além disso, pois há desde
a primeira entrevista concedida
pelo jovem Graciliano ainda em
Alagoas até testemunhos con-
cedidos por ele pouco antes de
morrer, aos sessenta e um anos.
A variedade dos documentos re-
vela um trabalho extremamente Conversas apresenta um relato rico e contraditório,
fascinante e profundo de Graciliano Ramos
paciente de pesquisa por parte
dos organizadores, um corpus:

disperso em vários periódi-


cos e livros: respostas a entrevistas Marcos Alvito | Rio de Janeiro – RJ
novembro de 2014 | | 13

e a enquetes de imprensa, além dos um simples motivo, o desconhe- acusação formal, motivo pelo qual
diálogos que compõem causos, em cimento da língua pátria: vem parar novamente no Rio de Ja-
que figuram o romancista e outros neiro. Aí passou a viver e acabou por
intelectuais conhecidos do público. Pichavam nos muros o slo- se tornar um escritor reconhecido
gan de Marx: — “Trabalhadores por críticos e pela opinião pública.
Diante de um escritor ar- do mundo, uni-vos”. Mas quem Reafirmava sempre seu horror
redio e desconfiado, muitas ve- pichava e quem lia não sabia o aos fascistas, mas perguntado se os
zes comparado a um sertanejo que era uni-vos. nazistas seriam capazes de escrever
pelos jornalistas e literatos que um poema, responde com generosi- Conversas
buscavam pintar seu retrato, as O gingado dialético do Ve- dade crítica: Graciliano Ramos
estratégias foram variadas. Hou- lho Graça era admirável. Por um Org.: Ieda Lebensztayn e
ve quem pedisse que o próprio lado, se percebia como um escri- Sim, devem fazer também po- Thiago Mio Salla
Graciliano contasse a sua histó- tor engajado (embora evitasse es- emas. Se não os fizessem, abando- Record
420 págs.
ria, o que ele fez mais de uma se tipo de classificação) e era um nariam completamente a espécie
vez, com uma coerência assusta- intelectual atuante politicamen- humana.
dora. Aos dezoito anos, em um te. Fizera até mesmo o sacrifício
“inquérito” promovido pelo Jor- de concorrer a uma vaga de de- Não foram poucas as tentati-
nal de Alagoas, ele já se definia de putado pelo Partido Comunista vas de sintetizar Graciliano Ramos,
forma marcante. Considerava durante seu breve período na le- o homem. O crítico Brito Broca res-
“um erro grave” ter sido consi- galidade. Mesmo em campanha, saltava a “simplicidade de seu trato”
derado um dos literatos alagoa- quando fora obrigado até a dis- e a “dureza no olhar”, embora admi-
nos, pois achava que suas ideias cursar, ironizava: tisse que esta logo se desfazia em um
tinham “pouco valor” e afirma- “sorriso de franqueza e simpatia”. O AUTOR
va pouco conhecer de literatura. Prefiro a cadeia. Na Câma- Joel Silveira, que o entrevistou pe- Graciliano Ramos
Mas era contundente ao explici- ra eu tenho que falar, discutir e lo menos nove vezes, falava em “jei-
tar sua preferência pelo realismo: possivelmente dizer tolice. Na ca- to áspero e cru”, ressaltando que às
deia, estou descansado e tranquilo. vezes Graciliano gostava de puxar Nasceu em Quebrangulo
Prefiro a escola que, rom- conversa e saltar de um assunto a ou- (AL), em 1892, e morreu
pendo a trama falsa do idealismo, Era realista, para variar, tro, mas em outros momentos ficava no Rio de Janeiro (RJ),
descreve a vida tal qual é, sem ilu- quando admitia que o escritor “ensimesmado, curtindo sozinho sua em 1953. Filho de um
sões nem mentiras. no Brasil no máximo conseguia acidez”. Assim descrevia seu amigo comerciante, teve infância
alcançar a pequena burguesia e Graciliano: difícil e solitária. Publicou
Prevendo a polêmica, tra- que “o que vigora mesmo é o fo- seu primeiro livro, Caetés
tava de se defender: lhetim, que a massa vai aceitando Apresenta uma fisionomia can- (1933), aos quarenta
como entorpecente...”. Colocado sada, fisionomia de alguém que já vi- anos. Publica em seguida
Dizem por aí que os realistas diante do paradoxo de que “escre- veu bastante. Seus cabelos são grisalhos São Bernardo (1934)
só olham a parte má das coisas. (...) ver bem” significava não ter pú- e profundas rugas sulcam sua face, fa- e é preso e levado para
é bom a gente acostumar-se logo blico, devolve o problema intacto ce ensolarada de verdadeiro sertanejo. o Rio de Janeiro quando
com as misérias da vida. É melhor ao repórter com certo humor: Os olhos é que logo impressionam. Não acabara de entregar os
que o indivíduo, depois de mergu- são olhos comuns. São olhos vivos e aler- originais do seu terceiro
lhado em pieguices românticas, de- Você não vai querer dizer tas, sombreados por duas olheiras esma- romance, Angústia
parar com a verdade nua e crua. com isso que o escritor passe a es- ecidas. Olhos fundos que penetram, que (1936). Ao sair da prisão,
crever mal... Ou vai? indagam, que às vezes substituem a voz. em 1938, publica seu livro
Vinte e oito anos depois, já Os gestos desse homem são lentos. A con- até hoje mais famoso,
escritor consagrado, parecia repe- Dizia não gostar do que es- versa é macia. O riso é curto, quase sem Vidas secas (1938). Em
tir essa profissão de fé anti-idealis- crevia. Considerava Caetés de expressão. (...) E o pensamento distante, 1945 é lançado Infância,
ta quando afirma a Joel Silveira: “uma droga completa” e lamenta- muito distante, um pensamento perdido sobre seus tempos de
va a sua publicação. São Bernar- que parece flutuar em outra esfera, em criança no sertão. A
A palavra não foi feita para do, visto por muitos críticos como momentos inexplicáveis de sentir. experiência na Ilha Grande
enfeitar, brilhar como ouro falso, a uma obra-prima, mereceu do seu será transformada em
palavra foi feita para dizer. autor o seguinte comentário: O fato é que, apesar da sua Memórias do cárcere
casmurrice e de seu mau humor es- (1953). É autor de mais
Essa definição tão austera É menos ruim do que Caetés, tratégico, ou talvez por causa disso, seis livros, sem contar
encontrava companhia em há- mas não chega a ser um romance. Graciliano cativava os que iam con- os infantojuvenis e as
bitos ascéticos, de trabalho dis- versar com ele. Francisco de Assis coletâneas de contos que
ciplinado de autor que acordava Apesar do desgosto aparen- Barbosa registrou “sua estranha e ad- organizou. Ao morrer era
todos os dias às três da manhã temente sincero com a sua obra, mirável personalidade”. Osório Nu- considerado, e ainda o é,
para poder ler e produzir em si- admitia quase que envergonhado: nes via nele “um espírito em busca um dos mais importantes
lêncio, ele que odiava o telefone, “continuarei a rabiscar romances de horizontes”, “investigador e pe- escritores brasileiros
a campainha e dizia nem mesmo e contos”. O motivo? Confessa a netrante”. Ruy Facó também tentou de todos os tempos.
gostar de música ou entender um dos seus entrevistadores: decifrar a esfinge:
patavinas de cinema. Vivia mo-
destamente, complementando a Só encontro mesmo satisfa- Homem fechado, pensando
renda dos seus artigos para jor- ção verdadeira em escrever. muito e falando pouco (...) guarda to-
nais e revistas com um trabalho da a sua energia comunicativa para
de inspetor de ensino do Colégio Parecia buscar a coerência externá-la através de seus romances e
São Bento, mais uma das ironias acima de tudo, talvez por ter ex- de seus contos. (...) Geralmente, cha-
da sua vida. Isso não era nada pa- perimentado uma vida de con- mam a este tipo de intelectual de “es-
TRECHO
ra quem já havia, na sua Alagoas tradições. Quase não aprende critor torturado”.
natal, feito o elogio de Judas em a ler, talvez porque quisessem Conversas
um jornal publicado por um pa- apressar o aprendizado com sur- O próprio Graciliano, instado
dre, em plena Quaresma. ras constantes. Mas logo se apai- a definir-se, não fazia concessões: Como reação, foi
Tinha horror às patotas li- xona pelos livros em meio a uma excelente. (...) não vejo
terárias e às academias em geral. infância solitária e penosa. Co- Odeio esportes. Não gosto de
outra realização de vulto
Mas isso não o impedia de pas- meça a escrever aos dez anos mas praias. Detesto viagens. Sou um animal
sar as tardes em um banco des- só vê seu primeiro livro publica- sedentário; nasci para ostra: caramujo. que não a libertação das
confortável bem no fundo da do — a contragosto, como vimos cadeias de espírito. Creio
Livraria José Olympio, na rua — aos quarenta anos. Passara a Perguntado acerca da “perma- que é seu melhor fruto.
do Ouvidor. Reclamava do as- juventude, em suas próprias pa- nência de sua obra”, responde im-
Porque na prosa nada
sédio dos chatos e da miríade de lavras, feito um cigano, vagando piedosamente:
jornalistas, sempre a importuná- entre Alagoas, Pernambuco e Rio conseguiu realizar. (...)
-lo. Contudo o fazia, por gosto à de Janeiro, onde tentou a vida li- Não vale nada, a rigor, até, já o romance modernista
conversa com os amigos e muitos terária sem sucesso. Voltou para desapareceu. não tinha conteúdo. (...)
eram brindados com um humor Alagoas e viveu a vida pacata de
teve um serviço: limpar,
tão inesperado quanto cáustico. comerciante de panos, tornou-se O Velho Graça que me per-
Certa vez teria dito que o comu- prefeito, diretor de Instrução Pú- doe, mas desta vez ele estava redon- preparar o terreno para as
nismo não vingou no Brasil por blica e acabou sendo preso sem damente enganado. gerações vindouras.
Guilherme Pupo 14 | | novembro de 2014

mesmos temas), trata de um ultrapassado professor

Os estragos
secundário de língua portuguesa (aposentado, viú-
vo, solitário e conservador), cuja arma de resistência
ao mundo é mergulhar na leitura literária. Professor
Manuel, por acaso, enovela-se no texto e na juven-
tude contestadora de um jovem poeta suicida, ape-
lidado de Trapo.

do tempo
Não é comum que batam à porta depois do Jor-
nal Nacional, quando desligo a televisão e volto pa-
ra meus livros, para as sutilezas da literatura e da
linguística, com um prazer que nunca tive nos meus
trinta anos de magistério.

Já aqui tendo em foco muitos dos confli-


tos do professor vindouro, Tezza alterna três dis-
cursos: o presente medíocre de Manuel, os textos
Em O professor, Cristovão Tezza amplifica, pela linguagem, deixados por Trapo e a obra que o professor virá
a escrever — numa interessante superposição dis-
a temática e estrutura iniciadas no romance Trapo cursiva ao final da obra.

O enredo do outro professor


Márcia Lígia Guidin | São Paulo – Brasil No romance O professor, Tezza ilumina pa-
ra o leitor algumas horas da vida de Heliseu, 70

Q
anos, viúvo e solitário professor universitário de fi-
lologia românica. Ao fim da manhã em que se in-
uando, em 2009, plicar a biografia, suas escolhas Depois de O filho eter- sere a narrativa, receberá uma homenagem de seus
Cristovão Tezza temáticas, a sofisticada técnica no, Tezza escreve para si, para pares (em evento de sabor eufemista diante da apo-
demitiu-se da uni- ficcional e muitas vezes instado a nós, para seus pares; mas sobre- sentadoria compulsória de alguém — dor insupor-
versidade, bem analisar seus próprios romances. tudo para buscar o tom mais tável para tantos mestres). Entre levantar-se, tomar
antes da aposenta- Por que resvalo nesse as- apto da própria linguagem para o café, ler o jornal, fazer suas abluções e vestir-se
doria, alguns o acharam destemi- pecto? Porque me parece que o enfrentar “por dentro” a agôni- poucas horas se passam.
do demais. O fato é que a postura grande Cristovão Tezza come- ca antinomia de seus protago- A estratégia de estreitamento temporal não é
tão incomum na cultura do fun- ça a carregar sobre os ombros nistas no mundo. novidade, claro, mas, nessas poucas horas, o leitor
cionalismo brasileiro desvela si- um peso incômodo: resenhado Isso talvez explique a estru- mergulhará, sob foco narrativo bem mais sofistica-
tuação e espírito desse escritor: e premiado copiosamente, expe- tura tão complexa de O professor. do, num cruzamento atroz das lembranças do pro-
amparado pelo reconhecimento riente romancista e ex-professor Por isso creio não ser irresponsá- tagonista: na infância, fora testemunha da morte
de sua obra, quer dedicar-se in- da área, talvez carregue a neces- vel ler o magnífico romance – que da mãe, numa queda escada abaixo, tê-la-ia empur-
tegralmente à escrita, bastante sidade da superação de si mesmo elogio antes de resenhar — tam- rado o pai?; o casamento insosso com a pragmá-
ciente de seu lugar na literatura a cada obra nova. Não há novi- bém como um tour de force do es- tica Mônica; a relação amargurada com o único
brasileira contemporânea. dade artística nessa inquietação, critor, pai, e professor. filho, gay, que vive longe; o caso apaixonado de seis
Tezza tem sido arrimado e, no caso, parece conforme, pois E, para que se entendam anos com uma jovem e ousada orientanda francesa,
por extensa crítica elogiosa, algu- a acolhida a este último roman- um pouco mais minhas conjectu- Therèze (que o deixa após a oportuna defesa da te-
mas derramadas, outras entusias- ce tem sido entusiasta. “Há uma ras: O professor, tão imerso nas se); o desprezo de seus pares por não ter se engajado
madas, algumas seriíssimas e raras sensação de obra-prima”, diz um potencialidades da própria maté- em atividade política nos turbulentos anos de di-
desanimadoras. Cortês e inex- crítico; “Um lance de mestre”, ria da criação, retoma obra ante- tadura; a indiferença de alunos que, em detrimen-
cedível em simpatia e disponi- diz outro. O próprio Tezza con- rior de Tezza — Trapo (1995). to da filologia românica (sua disciplina e paixão de
bilidade, tem atendido a grande sidera O professor seu “melhor Esta, muito mais modesta na es- sua vida) só se interessam pela nova linguística; e,
número de entrevistas e debates romance até aqui”. (Gazeta do trutura e na complexidade de fo- finalmente, a morte da mulher, que cai da sacada e
Brasil afora, obrigando-se a ex- Povo, fevereiro de 2014). co narrativo (mas evocadora dos a quem não conseguiu (ou não quis?) segurar.
novembro de 2014 | | 15

O tema Nesta narrativa, cada vez instinto, respirando cuidadoso o ar


O romance deixa um travo mais complexa — talvez sob a ta- da cátedra que me sobrou. Mas as
muito amargo, incomoda e nos le- refa compulsória de que falei atrás aulas nos preenchem, não? Aque-
va a manducar trechos e frases — —, a narração se manifesta num les alunos todos prestando atenção.
numa rotação bem maior do que cruzamento quase inédito de pri- Dos anos seguintes nom achamos
a já aplaudida em O filho eterno. meira com terceira pessoa, diluin- cousas notaves que de contar sejam,
Talvez porque em O filho do qualquer superioridade possível dizia Azuarra em sua Crônica.
eterno, por mais vigorosa que se- de um narrador onisciente.
ja a realização, o leitor deparava Aqui está um dos maiores Cristovão Tezza, o autor, O professor
com o autobiográfico explícito, avanços técnicos de Tezza, em re- precisa transpor pela linguagem Cristovão Tezza
aquele que traz a dor alheia — lação a Trapo, e um dos grandes — forçando seus limites técni- Record
não a minha, nem a tua. Aqui, desafios para o leitor. Ao mesmo cos — o conflito agônico en- 240 págs.
em O professor, Tezza, amplifi- tempo, estamos diante do monó- tre o herói e sua existência num
cando muito o que iniciara em logo interior de Heliseu, multifa- mundo do qual já não faz parte.
Trapo, nos obriga a ler a histó- cetado entre camadas da primeira É hora de “fechar o sentido da
ria de todos nós: a quase certeza pessoa que recorda a vida, a que vida”. Esta lucidez, o professor
da mediocridade, dissimilada em pensa e elabora uma fala para a Manuel não alcançou nos qua- O AUTOR
falsa autovalorização e soberba; a plateia e outra, que, tão melan- renta dias de sua epopeia. Cristovão Tezza
certeza de que o pai, os colegas, a cólica, quer realocar na mente o Pois é, de maneira mais
mulher, o filho e a amante nunca saber de uma vida toda. Eviden- dura e universalizante que o pro-
lhe ofereceram o respeito e o afe- temente assim, se misturam tam- fessor Manuel, é disso que trata Nasceu em Lages (SC) em 1952, mas vive
to que julgara merecer. bém os tempos do narrar. a manhã do novo professor — em Curitiba desde a infância. Foi professor de
Tezza já sugerira em Trapo com carreira mais elevada, cultu- Teoria Literária na UFPR. Em 1988, publica
que, para negar a mediocridade E isso subitamente e absur- ra muito mais ampla e angústias o romance Trapo, que lhe dá projeção
e a velhice e adiar a morte fora damente e estupidamente o inte- maiores: buscar, no abandono e nacional. Em 2007, com O filho eterno
preciso ao professor mergulhar ressou, sim, me conte, e Heliseu riu na velhice (antevisão da morte), (unanimidade de crítica e de público, o que é
no discurso de um jovem suicida com a lembrança, a maconha no o sentido da própria vida. Tezza raríssimo) — torna-se quase uma celebridade,
e dele vir a tecer a própria narra- cérebro, abraçado na cama à mu- já refletia sobre isso, e a figura de pois o romance ganhou todos os maiores
tiva e a realização do “seu” pró- lher mais bela e inteligente que ja- enfrentamento da vida, por den- prêmios brasileiros e internacionais e lhe
prio romance. Agora, neste novo mais toquei e ela me engana com tro da densidade da linguagem permitiu dedicar-se à literatura. Outras obras:
professor, misturando enfoques um diacrítico, eheh, colegas, este tendeu a adensar-se também. Juliano Pavollini (1989), Uma noite em
e discursos mais vigorosamen- Heliseu que vos fala é um pân- Se os frutos estiverem en- Curitiba (1995), O fotógrafo (2004).
te, desvela o tormento de Heli- dego! Como adjetivo, diacrítico, velhecidos e murchos, resta a úl-
seu, assoberbado entre a tessitura aquilo que separa e que distingue, tima atuação, concedida pela voz
da memória, a elaboração men- é o mesmo que patognomônico, ou narrativa externa:
tal do pequeno discurso (que sintoma de uma doença. Pathos.
será obrigado a fazer) e o eco Senhores, as coisas são palavras. Meteu o papel no bolso,
dos conteúdos de aula e trechos satisfeito, e correu uma última
mentais em português arcaico. Temos assim um tenso vez para o espelho, demorando- TRECHO
Mas, hoje, sentado no vaso sani- cruzamento entre o foco nar- -se um pouco a mais. Estou bem. O professor
tário (captações como estas são rativo em primeira, terceira... e
magníficas no novo romance), segunda pessoa (refiro-me ao en- Quanto ao romancista, co- Heliseu sentiu um arrepio de entusiasmo
ao fitar o mesmo azulejo trinca- saio mental do discurso). Segun- mo um operário sem férias, pare- com a ideia, como quem descobre o início
do para o qual olha há uns 30 do o autor, esse é um “narrador ce seguir caminho para registrar o
anos, padece da mesma amargu- dobrado, em que a frase passa conflito de que somos (Manuel, da meada: começar por aí, o projeto da
ra que o professor Manuel, dian- de um ângulo a outro”. Com Heliseu, você e eu) constituídos minha vida, e ao mesmo tempo a sua
te do ranger de sua escada num diz Tezza: “acho que nossa cabe- existencialmente através do único vida pessoal voltava a derrubá-lo cada
sobrado decadente. ça funciona assim e tenho certa meio possível: os aspectos constru- vez que ele erguia a cabeça para ser outra
obsessão pelos nossos modos de tivos da própria linguagem, ou se-
A técnica narrativa apreensão da realidade” (O Esta- ja, através da experiência com que coisa, a porra da vida pessoal marretava-
Tezza quer que compreen- do de S. Paulo, Caderno 2). as estruturas narrativas vão sendo lhe a cabeça, essa merda, sentindo os
damos Heliseu na tessitura ex- pensadas e superadas, livro a livro. borborigmos da barriga, os célebres
tremamente elaborada dos fios Num momento eu meio que Tezza rejeita, com razão, o biogra- movimentos peristálticos, disse-lhe o médico
narrativos que se imbricam em desisti, senhores. Depois dos idos de fismo. Mas quem mais, além de-
enredo muito mais ressequido março, Therèze dilui-se na lem- le mesmo para enfrentar as várias com a voz da ciência como estão seus
que o de Trapo. brança e fui apenas vivendo por possibilidades da linguagem? movimentos peristáltivos(...)

☞ Leia Emília

Revista digital de leitura e literatura para crianças e jovens

www.revistaemilia.com.br
16 | | novembro de 2014

Cronópios
alheios
Coletânea de contos em formato de manual
de instruções homenageia Julio Cortázar

Roberta Ávila | Florianópolis – SC

S
e escrever já é com- parecem. E com certeza os auto- OS AUTORES
plicado, escrever so- res não estavam buscando isso.
bre o que outros já Há quem defenda que a Coordenado por Carlyle Popp,
escreveram é mais melhor forma de se fazer a críti- o livro é composto por textos de
complexo ainda. ca de uma obra de arte seria pro- 18 autores diferentes, incluindo o
Pior ainda se o objetivo é escre- duzir outra obra de arte tendo a próprio coordenador: Andressa
ver seguindo os passos de alguém primeira como inspiração. Acre- Barichello, Antonio Carlos Viana,
que deixou muitos escritos, mui- dito que esse foi o objetivo. Para Antônio Torres, Carlyle Popp,
tos admiradores, muitas coisas alguns contos funcionou muito Eduardo Bettega, Gabriel Marins,
boas, muitas críticas positivas e bem — é o caso das instruções Giovanna Lima, Isabel Furini,
negativas também. É o caso de para ter boas lembranças na vi- Izabela Loures, João Anzanello
Julio Cortázar, escritor argenti- da, para sonhar e para esquecer Carrascoza, José Tucón, Lindsay
no que completaria 100 anos em um grande amor, assim como Gracia Colle, Majeda Popp, Marina
2014. Por tudo isso, é grande a das instruções para visitar recém- Carraro, Mayra Corrêa e Castro,
empreitada a que se propõe o li- -nascido, para lavar lençol e pa- Monica Kukulka, Nando São
vro organizado por Carlyle Po- ra ganhar um melhor amigo. Luiz, Otto Leopoldo Winck. Entre
pp, Instruções à Cortázar. Os Para outros contos ficou faltan- eles há advogados, psicólogos,
18 contos têm o objetivo de criar do alguma coisa, algum detalhe engenheiros, jornalistas,
uma obra à la Cortázar, seguindo que fizesse deles mais do que um poetas e aromaterapeutas.
o exemplo dos contos em forma- manual de instrução, mais do
to de manual de instruções que que uma homenagem, mas essa
fazem parte de Histórias de cro- grande sacada em que Cortázar
nópios e de famas. acreditava: aquilo que derruba
Acho que é impossível di- o leitor por nocaute nas poucas Julio Cortázar
zer se o objetivo foi atingido ou páginas de um conto. por Fábio Abreu
não. Cortázar, em sua obra crí- A seleção de textos é inte-
tica, afirma acreditar que a co- ressante porque enquanto alguns
municação se dá a partir do texto autores ficaram mais presos a
em direção ao leitor, e não a par- Cortázar e à forma como ele es-
tir do autor, como afirma o mo- creveu o manual de instruções,
delo de comunicação clássico. outros tomaram a questão para pois eles parecem dóceis mas sem o menor moti-
Por esse ângulo, torna-se ainda si de tal maneira que nem a for- vo atiram poemas sujos aos visitantes. Ele diferencia
mais subjetivo querer escrever ma de escrever nem a maneira de assim nossa espécie: enquanto os animais, em geral,
um conto à la Cortázar, já que as desenvolver a história são seme- gritam quando sentem dor, nós gritamos se estamos
histórias do argentino têm seme- lhantes: sobra o título, o mote, felizes, e quando sentimos dor, cantamos.
lhanças, uma unidade, mas tam- e mais nada. Esses são os mais O resultado são os belos delírios de Instruções
bém têm diferenças bem grandes interessantes porque tomaram para lavar lençol, de Izabela Loures, com sua escri-
como a questão do final: algu- para si toda a responsabilidade, ta tão original, e os alcoólicos delírios de Instruções
mas têm uma conclusão, outras e com isso gozaram de toda li- para a última madrugada antes do fim do mundo, de Instruções à Cortázar —
não, o que já muda tudo. berdade. O resultado é a ácida Otto Leopoldo Winck, que no meu manual deve Homenagem de cronópios,
famas e esperanças
Em seu poema Traduzir-se, ironia de www.instruçõespara- ser lido acompanhado por uma cerveja, de prefe- Org.: Carlyle Popp
Ferreira Gullar escreveu: venderlivros.com.br, de José Tu- rência no silêncio da madrugada. Juruá
cón, que defende que melhor do É um livro de muitos curitibanos, com suas 94 págs.
(...) que escrever um bom livro é ter inevitáveis referências a Leminski e Dalton Trevi-
Uma parte de mim um livro que venda bem, mes- san, o que é uma delícia. No entanto, enquanto
é só vertigem: mo que nunca tenha sido escri- Cortázar acreditava que o fantástico deveria ser
outra parte, to e que vai do Mein Kampf, de introduzido aos poucos na história, de maneira TRECHO
linguagem. Hitler, ao taleban passando pela que se misturasse com o real, as largas notas de
Instruções à Cortázar —
Rússia em busca da melhor es- rodapé na primeira página de cada conto são uma Homenagem de cronópios,
Traduzir-se uma parte tratégia de marketing. âncora no mais burocrático do real. Com versões famas e esperanças
na outra parte Outro resultado é a prosa resumida do currículo lattes de cada autor, elas ti-
— que é uma questão poética de Instruções para dizer ram um pouco da magia da coisa. É justo que os Cronópio? Me desculpa, Cortázar, mas
de vida ou morte — adeus, de Marina Carraro, que autores sejam identificados, é justo que digam so-
não deu. E você, que me escuta agora e está
será arte? define bem os únicos dois ti- bre si o que quiserem, mas havia, certamente, lu-
pos de adeus: o não-definitivo e gares melhores para fazê-lo sem que antes de cada igualmente fudido, a despeito deste teu olhar
Acredito que a resposta é aquele que é para sempre. história fôssemos puxados a esse terreno kafkiano de compaixão, este teu ridículo olhar de
sim. E acho que há, sim, algo de O resultado também está que é o currículo nosso de toda a vida com suas compaixão sobre mim, você também não é um
Cortázar traduzido nos contos de nas Instruções para observar hu- graduações, mestrados, doutorados, prêmios e em-
cronópio. E você sabe disto. Sempre soube. A
Instruções à Cortázar. Isso não manos, de João Anzanello Carras- pregos. Afinal, é justo também que o leitor adentre
quer dizer que os contos parecem coza, nos lembrando que é bom essas questões se quiser, e não se o olhar vagar para vida é cruel, meu caro. A vida é cruel e banal
ter sido escritos por ele — não não se aproximar dos humanos, o fim da página. como uma noite de bebedeira como esta.
novembro de 2014 | | 17

inquérito • Qual o maior inimigo de um escritor?


Atualmente, a vizinha do andar de baixo, que ar-
rasta móveis e liga o liquidificador depois das duas
carlos de brito e mello da madrugada.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?


Quando os livros se tornam menos importantes do

Criação
que os autores.

• Um autor em quem se deveria prestar mais


atenção.
O contista Marcílio França Castro, de admirável
talento, que escreveu Breve cartografia de lugares
sem nenhum interesse. E também Jorge Rocha,

e aprendizado
outro contista da pesada, autor de Tem uma nu-
vem que nunca sai do lugar.

• Um livro imprescindível e um descartável.


Imprescindível é a literatura infantil, para que as
crianças cresçam com os livros. Descartável é o livro
que tenta empobrecer nossas formas de sentir e de
inventar, que reduz a linguagem ao servilismo.

N
• Que defeito é capaz de destruir ou comprome-
divulgação ter um livro?
um julho longínquo, na década de De novo, quando o autor se considera mais impor-
1980, o mineiro Carlos de Brito e tante do que o texto.
Mello já estava decidido: seria escri-
tor. A decisão foi tomada quando a • Que assunto nunca entraria em sua literatura?
professora de português Elenice pas- Não consigo imaginar qual seria.
sou como dever de casa, para ser feito durantes as
férias, a tarefa de escrever um livro. Sua estreia efe- • Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou
tiva no mundo das letras se daria décadas depois, inspiração?
em 2007, com os contos de O cadáver ri dos seus Um determinado trecho de entrevista dada à revis-
despojos (Scriptum). Nascido em 1974, em Belo ta Veja pelo padre Marcelo Rossi, em 2011.
Horizonte (MG), tem uma formação acadêmica e
trajetória profissional peculiares: formou-se mestre • Quando a inspiração não vem...
em Comunicação Social pela Universidade Federal Adiante, sem choramingar.
de Minas Gerais, tornou-se professor universitário,
é psicanalista e desenvolve projetos em artes plásti- • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de
cas. Na escrita, ascendeu quando, em 2008, venceu convidar para um café?
o Prêmio Minas Gerais de Literatura, na categoria Bartolomeu Campos de Queirós, em quem eu da-
Jovem Escritor Mineiro. Um ano depois, publicou ria um abraço terno e agradecido.
pela Companhia das Letras seu primeiro roman-
ce, A passagem tensa dos corpos, que concorreu • O que é um bom leitor?
aos prêmios São Paulo, Portugal Telecom e Jabuti. Um leitor livre.
Em 2010, o projeto do romance A cidade, o in-
quisidor e os ordinários foi selecionado pela Bol- • O que te dá medo?
sa Funarte de Criação Literária; três anos depois, o Panelas de pressão (em uso, naturalmente).
romance foi publicado pela Companhia das Letras,
sendo a publicação mais recente do autor, que lhe • O que te faz feliz?
rendeu este ano indicação entre os finalistas dos prê- Muita coisa. Atualmente, em especial, preparar quar-
mios Portugal Telecom e São Paulo de literatura. to e enxoval para a chegada da minha primeira filha.

• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?


Acho a dúvida mais produtiva do que a certeza. Ela
está presente, em alguma medida, mesmo nos me-
• Quando se deu conta de que queria ser escritor? nores gestos: a dúvida sobre qual será a próxima pa-
Aos 10 anos de idade, quando a professora de por- lavra, por exemplo.
tuguês do colégio (que se chamava Elenice) deter-
minou como dever de casa, para ser feito durante as • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
férias de julho, a tarefa de escrever um livro. São muitas. Que eu não me acostume ao que já sei
(ou acho que sei), por exemplo.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Escrever com pouca luz; ter alguns livros em volta • Quais são as circunstâncias • A literatura tem alguma obrigação?
de mim, fechados, enquanto escrevo; tomar nota ideais de leitura? Não. Mas tem responsabilidades.
em papéis avulsos, reuni-los, catalogá-los e indicar, Inicialmente, afastamento e re-
no texto que escrevo, a ordem de entrada das ano- cuo; depois, avançamento e ím- • Qual o limite da ficção?
tações. Em momentos de impasse, tomar uma pa- peto. Acho que considerar o limite é um gesto central na
lavra qualquer, de um texto qualquer, literário ou escrita: porque quando se propõe a perturbar con-
não, e começar a escrever a partir daquela palavra. • O que considera um dia de córdias e consensos, quando promove rasgos nas
trabalho produtivo? zonas mais tramadas da cultura, a ficção corre o ris-
• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia? Quando o trabalho de escrever co de bater lá na indizibilidade. Nesse sentido, toda
Além do livro que estiver lendo no momento, um produziu uma experiência, quan- palavra torna-se capaz de produzir uma experiên-
livro qualquer, escolhido quase casualmente, para ler do fez passagem, não importando cia liminar, submetendo-nos, simultaneamente, ao
uma ou duas páginas, fechá-lo e devolvê-lo à estante. muito o quanto se escreveu. terrível e ao sublime. Se o autor e o leitor topam
esse risco é outra questão.
• Se pudesse recomendar um livro à presidente • O que lhe dá mais prazer no
Dilma, qual seria? processo de escrita? • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse
A obra de Cecília Meireles, de quem minha mãe O próprio escrever. Encontrar a “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
gostava muito. voz de um personagem; fazer a Recomendaria que ele perguntasse a outra pessoa,
intriga ganhar corpo; dizer algo mais habituada à condição de liderada.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever? que eu nunca tenha dito antes e
Para mim, as circunstâncias não são exteriores nem que se apresente como uma sur- • O que você espera da eternidade?
anteriores ao texto, mas todas aquelas que se confi- presa para mim mesmo; cortar Caso ela exista, para atingi-la, teremos de passar antes
guram no instante de sua emergência. trechos que sobrepesam. pela morte. E essa é a parte que mais me preocupa.
18 | | novembro de 2014

Na contramão
do modernismo
Em Retrato do Brasil, Paulo Prado anseia examinar as
questões da realidade filtrando-as numa visão pessoal

Rodrigo Gurgel | São Paulo – SP

I
nfluências familiares são, na Curral de cabras por Hernán Cortez, também “viviam num regime
maioria das vezes, bem-vin- Dividido em quatro partes de poligamia muçulmana”, no qual “sodomia, tri-
das. No caso de Paulo Prado, — A luxúria; A cobiça; A tristeza; badismo e pedofilia” eram práticas comuns:
sua família, confirmando a O romantismo —, o livro impac-
regra, não representou o nú- ta já no primeiro parágrafo: não Para homens que vinham da Europa policia-
cleo de opressão, neurose e per- se trata de enaltecer o sensualis- da, o ardor dos temperamentos, a amoralidade dos
versidade que os discípulos de mo como raison d’être do povo costumes, a ausência do pudor civilizado — e toda
Freud e Foucault costumam, brasileiro, generalização que tem a contínua tumescência voluptuosa da natureza vir-
erroneamente, apregoar. Sob a servido para garantir algumas gem — eram um convite à vida solta e infrene em que
influência de seu tio, Eduardo bolsas sanduíche no exterior e tudo era permitido.
Prado — de quem analisei, nes- bom número de canções popula-
te Rascunho, o corajoso Fastos res, mas de mostrar a lascívia no De fato, essa “sociedade informe e tumultu-
da ditadura militar no Brasil seu papel de elemento deteriora- ária”, de espantosa libidinagem — os detalhes in-
—, Paulo não só escreveu Re- dor da nossa organização social. decentes estão à disposição dos leitores no próprio
trato do Brasil: ensaio sobre O leitor afoito está pronto, ensaio —, se desenvolveria em meio à natureza —
a tristeza brasileira, mas tam- neste momento, a acusar Paulo não a idealizada, mas a que “os sentidos imperfeitos
bém se tornou importante me- Prado de “moralista”. É o julga- do homem mal podem apanhar e fixar” na “desor-
cenas, responsável, em grande mento frívolo de quem deveria, dem de galhos, folhagens, frutos e flores” que “o
medida, pela realização da Se- antes, ler o ensaio, pois o autor envolvem e submergem”.
mana de Arte Moderna. Suas não está preocupado em fazer Não é estranho afirmar, portanto, que, à vi-
relações, contudo, jamais foram considerações morais cujos fun- são falsamente paradisíaca dos primeiros viajantes,
restritas ao modernismo, es- damentos são regras tradicio- corresponde, dentre outros, o mito da supremacia
praiando-se num leque variado, nalistas ou preceitos religiosos. da beleza de nossas mulheres, mentira que uma ca-
do qual participaram Joaquim Não. Ele analisa a complexi- minhada de poucos quarteirões em qualquer cen-
Nabuco, Eça de Queirós, Mon- dade da formação histórica do tro urbano derruba facilmente, ainda que reerguida
teiro Lobato e, principalmente, país e mostra que o contato do pela mídia, todos os anos, à época do Carnaval.
Capistrano de Abreu, de quem português com o primitivismo Pertence à mesma fonte idealista — que vê
se tornou discípulo. das práticas sexuais indígenas no indígena apenas o exemplar bom selvagem — o
Publicado em 1928, Retra- estabeleceu um padrão de des- anelo de Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia
to do Brasil pertence à tradição regramento que transformou a Pau-Brasil, por “bárbaros crédulos, pitorescos e mei-
montaigniana, isto é, anseia exa- colônia em “terra de todos os ví- gos”, ou, no Manifesto antropófago, a repetida gene-
minar as questões da realidade cios e de todos os crimes”. ralização pueril de que “a alegria é a prova dos nove”.
filtrando-as numa visão pessoal, Qualquer sociedade empe- Consequência ou não da lascívia, até o mes-
repleta de associações inespera- nhada na satisfação exorbitante mo o ideal jesuítico da ação — elogiado por Paulo
das e problematizadoras. Não se de suas pulsões sexuais tem de Prado — degenerou entre nós, apesar de algumas o ouro, as pedras preciosas e os pro-
deve esperar, portanto, do traba- pagar algum preço em termos irrepreensíveis exceções, num neopelagianismo que dutos comerciáveis das colônias.
lho de Paulo Prado, interpreta- de esgarçamento ou debilidade transformou os membros da Companhia de Jesus Quiseram viver sem trabalhar.
ções que se pretendam definitivas da sua organização social. No em repetitivos e demagógicos sociólogos marxistas.
— mas, sim, intuições capazes de Brasil, a concubinagem tornou- E mesmo as famosas ban-
produzir no leitor o mesmo de- -se regra, como mostra esta cita- Ideia fixa deiras — Prado não deixa de
sejo que motivou o ensaísta: não ção, que Paulo Prado busca em À luxúria somou-se a lei do enriquecimento apontar, em relação aos bandei-
aceitar passivamente sua realida- Capistrano de Abreu, do jesuíta instantâneo. Quando Prado recupera a frase atri- rantes, a “força de heroísmo anô-
de; ou, como dizia Ortega y Gas- Antônio Ruiz de Montoya sobre buída a Hernán Cortez — “Eu não vim aqui para nimo e individualista, decisiva na
set ao comentar as características os bandeirantes paulistas: cultivar a terra como um camponês, mas para bus- integração do território” —, cal-
do ensaio, ser “uma pupila vigi- car ouro” —, recordam-se imediatamente os insa- culados lucros e perdas, acabaram
lante aberta sobre a vida”. As mulheres […] de boa es- ciáveis impostos da coroa portuguesa e a tendência numa “desproporção entre os re-
Leitor de Euclides da tampa, casadas, solteiras ou ín- pertinaz, até hoje, de nossos políticos à corrupção: sultados práticos obtidos e o es-
Cunha e de Antônio Vieira, Pau- dias, o dono as encerrava consigo seus patrimônios crescem em escala geométrica tão forço descomunal despendido”:
lo não absorveu deles a forma. em um aposento, como quem pas- logo são eleitos, sem que ninguém investigue esse
Ou seja, quer persuadir seus lei- sava as noites como um bode num estranho mérito, desencadeador de riqueza apenas A obsessão foi contínua, es-
tores, almeja inquietá-los, mas curral de cabras. quando o felizardo ocupa um posto de legislador palhada por todas as classes, como
utiliza linguagem sóbria, ele- ou governante. São herdeiros diretos do “aventurei- uma loucura coletiva. Esse carac-
gante, destituída de afetação. Tal “superexcitação eróti- ro miserável, resolvido a tudo, o desperado, na ex- terístico na formação da naciona-
Trata-se do “bom escritor” de ca”, contudo, não era “privilégio pressão inglesa”, que povoou este país. lidade é quase único na história
Augusto Meyer: um “jejuador de das camadas inferiores e médias” Desde a chegada da primeira caravela, o que dos povos. Os agrupamentos étni-
palavras”. Seu estilo é contrapo- — Prado oferece exemplos à far- excedeu na forma de sonhos impossíveis inexistiu cos da colônia — os mais variados,
sição higiênica ao linguajar labi- ta de clérigos, funcionários da quando se tratou de organizar a colônia: de Norte a Sul — não tiveram ou-
ríntico e falsamente erudito que Coroa e artistas —, mas de todos tro incentivo idealista senão esse
parcela da nossa produção inte- os colonizadores ibéricos, pois os Tinha faltado a Portugal a verdadeira compre- de procurar tesouros nos socavões
lectual — inspirada em Derrida espanhóis participantes da con- ensão histórica e econômica da sua missão metropoli- das montanhas, e nos cascalhos dos
e Deleuze — apresenta hoje. quista da América, a começar tana. A nação e o governo recebiam como uma esmola córregos e rios do interior.
novembro de 2014 | | 19

O AUTOR O pessimismo de Paulo


Paulo da Silva Prado Prado vibra em todas as páginas.
Mas, hoje, passadas quase duas
décadas de governos populistas
Nasceu em São Paulo, prontos a comemorar a ignorân-
em 20 de maio de 1869 e cia e tratar vícios como virtudes
faleceu no Rio de Janeiro, heroicas, uma boa dose de visão
em 3 de outubro de 1943. pessimista poderia garantir um
Depois dos estudos mínimo de realismo. Aliás, a crí-
secundários, realizados tica do ensaísta ao papel desem-
no Rio e em São Paulo, penhado por nossos governantes
formou-se em direito. é irretocável e atualíssima:
Empresário, herdeiro de
importante família paulista, […] Tudo se deve à inicia-
foi ensaísta, historiador tiva privada. Foi o particular que
e jornalista. Ocupou o desbravou a mata, que ergueu as
cargo de presidente do plantações, que estendeu pela terra
Conselho Nacional do virgem os trilhos dos caminhos de
Café de 1931 a 1932. ferro, que fundou cidades, abriu
Além de ensaios esparsos, fábricas, organizou companhias e
deixou Paulística (1925), importou o conforto da vida ma-
conjunto de estudos terial. O poder público, paciente-
sobre o movimento mente, esperou os frutos da riqueza
das Bandeiras. semeada. E logo em seguida criou
o imposto, como os governadores
do século XVIII e a metrópole estú-
pida, na loucura do ouro, criaram
os quintos, os dízimos, as dízimas,
a capitação e a derrama.

Reverberações
Em Pensadores que in-
ventaram o Brasil, Fernando
Henrique Cardoso chama Pau-
lo Prado de “fotógrafo amador”,
preferindo enaltecer Macuna-
íma com um obscuro jogo de
palavras: “Sem mentiras, ou me-
lhor, mentindo-se abertamen-
te e, portanto, santificando-se a
mentira”. O personagem seria
o representante perfeito do que
Cardoso chama de “originalida-
ilustração: va, razoável ou fantasticamente, a “tipo representativo e pitoresco” de do blend brasileiro”.
Felipe Rodrigues proximidade do tesouro encoberto, da desagregação moral a que a De fato, Retrato do Brasil
o simples aspecto e tamanho de um luxúria e a cobiça nos levaram: não se presta a comparações ma-
morro, ou a qualidade da erva que cunaímicas — e, muito menos,
o cobria. O dia seguinte podia ser Vindo de São Paulo, percor- a tentativas de idealizar nossos
a compensação de anos e anos de reu com a comitiva de camaradas defeitos. Em sua crueza, o li-
penosos e pacientes trabalhos. e escravos índios e negros os sertões vro obedece à tarefa que Ortega
do Norte e Nordeste, deixando y Gasset definiu para o ensaio:
A irresponsabilidade por- por toda a parte um rasto san- Retrato do Brasil “Colocar as matérias de toda or-
tuguesa contribuiu, sem dúvida, guinolento e uma lenda de rique- Paulo Prado dem, que a vida, em sua perene
para aprofundar os problemas. za. Acompanhava-o um bando de Companhia das Letras ressaca, lança a nossos pés como
Mas não se podia esperar muito mucambas, com quem tinha inú- 408 págs. restos desarranjados de um nau-
de um país “já gafado do gérmen meros filhos. Uma vez, duas destas, frágio, numa postura tal que o
de decadência”, em que exaustas pelo caminho montanho- sol produza nelas inumeráveis
so, caíram desfalecidas à beira da reverberações”.
à dissolução […] associa- estrada. O sertanista mandou-as O brilho da verdade pode
vam-se a miséria e a fraqueza, “co- despenhar pelo precipício abaixo, estar, muitas vezes, algo encober-
É verdade, afirma Prado, brindo-se com as fórmulas de uma pois “não queria deixá-las vivas to por generalizações perigosas ou
que “outras terras pelo mundo so- religiosidade fervente, como a pobre- para não servirem a outrem”. por rasgos do racismo que ain-
freram também dessa vertigem do za e a debilidade se encobriam sob as da pontificava na ciência das pri-
ouro”. Mas salienta: essa “febre se aparências do esplendor e sob a lin- O que mais restava a um meiras décadas do século 20, mas
TRECHO
extinguia rapidamente, como um guagem da onipotência”, disse mag- povo empenhado apenas em sa- a leitura de Retrato do Brasil
incêndio, para se transformar no nificamente Alexandre Herculano. tisfazer as próprias ambições — Retrato do Brasil continua indispensável, pois nele
industrialismo das minas e explo- “sem outro ideal, nem religioso, preponderam o trabalho de inves-
rações comerciais”. Exatamente Pessimismo nem estético, sem nenhuma pre- Sugerimos nestas páginas tigação honesta, a recusa de inter-
o oposto do que ocorreu no Bra- O início da Parte 3, dedi- ocupação política, intelectual ou o vinco secular que pretações simplistas, a sobriedade
sil, em que os colonizadores e as cada à “Tristeza”, confronta as artística”, diz Paulo Prado —, a de estilo e uma rara coragem —
deixaram na psique
primeiras gerações de nacionais experiências que modelaram os não ser a melancolia? difícil de encontrar atualmente
mostraram-se prontos a abraçar o Estados Unidos às que, no Bra- O ensaísta não deixa de nacional os desmandos da —, que o faz avançar na contra-
sonho da fortuna fácil: sil, seguiram as determinações apontar a promiscuidade favore- luxúria e da cobiça, e em mão do ideário modernista.
de Portugal. As palavras de John cida, inclusive, pelo “abandono seguida, na sociedade já
Southey escreveu uma pá- Smith — “Aqui nada se obtém desleixado e corrompido que é a
constituída, os desvarios
gina admirável sobre o desvario senão pelo trabalho” —, funda- praga da escravidão”. Mas o que
dos buscadores de ouro. Viviam dor do primeiro assentamento fere duramente o cidadão que te- do mal romântico. Esses
num contínuo sonho de esperan- permanente na América do Nor- nha um mínimo de consciência influxos desenvolveram-se
ça, vítimas de uma espécie de lou- te, no estado da Virgínia, chocam política é a dessemelhança destes no desenfreamento do mais NOTA
cura, forma aguda e crônica da o brasileiro acostumado a “chefes comportamentos:
anárquico e desordenado
doença que é a paixão do jogo. venais e peculatários”, a “subor- Desde a edição 122 do
Homens de reputada prudência, dinados” que primam “pela igno- Washington, quando se re- individualismo, desde a vida Rascunho (junho de 2010), o
mesmo parcimoniosos, rapida- rância” e a um passado repleto de feria à Virgínia dizia sempre: “a isolada e livre do colono crítico Rodrigo Gurgel escreve a
mente transformavam a avareza “colonos apáticos e submissos”. minha pátria”. Nunca se soube que aqui aportava, até as respeito dos principais prosadores
em prodigalidade. Na obsessão da A história do bandeirante que Fernão Dias Paes dissesse da da literatura brasileira. Na próxima
lamúrias egoístas dos poetas
ideia fixa, tudo convergia para a Sebastião Pinheiro Raposo serve, Capitania de São Vicente: “a mi- edição, Darcy Azambuja e No
sua realização; tudo lhes indica- a Paulo Prado, como exemplo do nha terra”. enamorados e infelizes. galpão — contos gauchescos.
novembro de 2014 | | 21

fora de sequência | Fernando Monteiro prateleira | nacional

Autor menor
com recaídas Melhores crônicas Lindolf Bell — 50 anos

de grandeza (2)
Artur Azevedo de Catequese Poética
Org.: Orna Messer Levin e Larissa de Org.: Rubens Jardim
Oliveira Neves Patuá
Global 126 págs.
376 págs.
“O lugar do poeta é onde possa

O
Reunião de crônicas inéditas, inquietar. O lugar do poema são
transcritas depois de serem sele- todos os lugares” — eis o lema
primeiro é um dos histórias ecoadas dos modelos “bíbli- cionadas diretamente nos micro- do movimento Catequese Poé-
artistas supremos cos” (de pregador e/ou psicopata) que, filmes dos jornais pertencentes ao tica, iniciado em maio de 1964
da prosa em qual- sim, existiam nele. acervo da Unicamp. Os capítulos, por Lindolf Bell. Este livro é um
quer língua, pere- Durante toda a sua vida de escri- assim, representam os jornais nos registro histórico, que reúne a
grino “primitivo” tor, John Steinbeck escutou dizer que quais os textos foram publicados. produção de poetas que partici-
das águas do oceano — “grande seu trabalho pouco tinha de “criati- No álbum Crônicas fluminense, param do movimento Cateque-
o bastante para nele se tentar di- vo” — até porque não foram muitos um debate existencial com uma se Poética — alguns já falecidos.
zer a verdade” —, pregador num os críticos a perceberem o desinteresse colcha de inverno, afinal, apesar Vários poetas marginais com-
deserto de homens sedentos de steinbeckiano (nesse sentido) no ofício de verão, já faz muito frio; no Cor- põem esta antologia, como Luiz
visões e manchados do sangue moderno... E a indiferença ao expe- reio do povo, Azevedo afirma: “tra- Carlos Mattos, Érico Max Mul-
que jorra em Red badge of cou- rimentalismo que afastaria a “com- tar de tudo menos de política”. ler, Iracy Gentili e Iosito Aguiar.
rage (a melhor obra de Crane). preensão humana imediata”, para o
E este é realmente inclassificável Steinbeck dos vales de Salinas, ou seja,
no seu Maggie (1893), fundador o melhor e o mais verdadeiro JS, lon-
da “visão de estrada” que vai ar- ge daquela “versatilidade” que ele pró-
rebatar o subestimado Jack Lon- prio alardearia, depois, como defesa. O
don, autor de histórias “rudes” mergulho desse escritor no seu cená-
até que se lê aquela tão finamente rio – planeta oposto ao de Faulkner —
obra-prima da autodestruição, o aproximou-o de uma simpatia animal
Martin Eden (1902), retrato su- para com as forças da natureza, mas
til do fracasso e do colapso psico- ninguém pode esquecer que o John va- A comédia humana O nome tatuado
Luiz Biajoni Jorge Eduardo Magalhães
lógico. Bem, fica difícil pegar de gabundo da juventude (alguém como
Língua geral Giostri
uma etiqueta dourada e colar na o personagem de William Holden, em
480 págs. 106 págs.
lapela dos merecedores de prê- Picnic) foi um amador de estudos de
mios e altas distinções da crítica biologia, e não por acaso: os instintos Três novelas policiais sacanas. Sem Afonsinho é um homossexual
apenas porque escreveram naque- animais e o “santuário” do Oeste lhe meias palavras, o autor apresen- que vive num apartamento no
le tal modelo que Wilson foi bus- pareciam ao menos seguros no meio da ta a novela marrom, Sexo anal; centro do Rio de Janeiro, e dia-
car no espelho do seu armário de loucura construída — conscientemen- a novela cor-de-rosa, Buceta; e a riamente busca saciar seu apetite
elucubrações refratadas do gosto te — pelos homens: “Meus sentidos novela vermelha, Boquete. O se- sexual por meio das mais sórdidas
do “velho continente” que conta- não estão acima da crítica, mas são tu- xo está sempre presente, mas não e bizarras perversões. Entre lem-
minou Henry James (mas não o do que tenho. Minha ambição é ver o se tratam de bestas selvagens; são branças de sua infância e adoles-
desnaturou) e fez Sinclair Lewis corpo inteiro — da minha janela de sal pessoas comuns e seus problemas cência, o leitor irá acompanhar
se desviar, no final da vida, de ho- e tempestade, joio e trigo derramado normais: o marido que entrou na as humilhações às quais o prota-
téis baratos e cidades pequenas pelo caminho. Eu não quero pôr an- “fase mansa”, o tesão pelo filho do gonista é submetido por Evaldo,
demais para um prêmio Nobel. tolhos para separar o que há de ‘bom’ pastor, uma operação de hemor- que nutre por ele um sentimen-
Após o interregno — meio e de ‘mau’ na estrada, limitando ainda róidas, um inferno astral prove- to dúbio. A trama muda quando
“europeu”, também — dos ro- mais a curta visão que tenho das coi- niente da insatisfação, o desejo Afonsinho vê um nome de ho-
mances da Lost Generation (Fit- sas. Como posso olhar e ter certeza da satisfeito que se torna vício e as- mem no braço de uma prostituta
zgerald, Hemingway, Stein) de ‘bondade’ de uma coisa perdida, sem sim por diante. e procura saber de quem se trata.
permeio entre as duas guerras, o perder a licença de examiná-la de per-
jogo de ambivalências se faz pe- to (porque ela pode conter também o
la retomada do “regionalismo”... ‘mau’, no espelho das coisas bem vis-
Que nunca é apenas regionalis- tas)? Eu quero olhar a coisa inteira”.
mo — como o entendemos no Como escritor americano inte-
Brasil — e que, na América, po- ressado na América, ele não agiu de
de abrigar tanto Ellen Glasgow modo muito diferente de um biólo-
quanto William Faulkner, mas go diante do mapa de algum DNA
que tem seu representante mais incompleto: arregaçou as mangas
largo em John Steinbeck, quei- não costuradas com o “estilo de ou- O cão de Pavlov Enquanto ela
José Carlos Mello contava histórias
ram ou não queiram. ro” anglo-saxão que vinha da Bíblia José El-Jaick
Octavo
Primeiro, não esqueçamos do Rei Jaime e buscou estágios evolu- Rocco
310 págs.
que o mundo de Steinbeck não cionários da memória inconsciente, 352 págs.
se reduz, jamais, apenas ao rea- expressados em mitos culturais como Há mais de um século, um rus-
lismo social dos anos negros, nos o “jardim do Éden”, a “Terra da Pro- so mostrou ao mundo como os Paulo Roberto Bassam é um
quais a sua formação pessoal se missão” e outros signos de culpa e re- cães podem se tornar sistemá- exausto médico brasileiro. Quan-
faz bordejando crises (Depressão, denção subjacentes ao tema da busca ticos. Talvez o cientista não te- do abre o e-mail, ao final do expe-
anos pré-guerra, etc.). Segundo, e da mudança — essas duas obsessões ve tempo para fazer o mesmo diente, descobre que tem parentes
aquele realismo de “superfície tão medularmente americanas, na sa- estudo com humanos, o que vivendo em Granada, na Espa-
cinzenta” usado por ele (e outros) ga de conquista de toda uma região levou o autor deste livro a pro- nha. Não só isso, como o convi-
nunca chegou a confiná-lo lon- ou da simples felicidade doméstica por uma tese — sem pretensão daram para passar o ano-novo por
ge da literatura de sensibilidade que está em Inverno da nossa deses- científica, mas apresentando a lá, livrando-o um pouco da rotina
confidencial, onde se pode cons- perança com um tom melancólico tragicomédia de três indivíduos estressante. Ele parte com o filho,
truir “um mundo dentro de um do qual eu não o achava capaz, quan- e como suas vidas desmoronam Juan, e lá percebe que sua vida
mundo” — por mais tenuous que do li o romance no qual ele tentava quando são obrigados a trocar não será enredada somente pelo
essa “segunda voz” tenha se tor- “recair” na grandeza. os hábitos que cultivaram ao avô até então desconhecido e pela
nando nos seus últimos trabalhos longo do tempo. Quando ten- bela Nádia Morán, mas por Sha-
distantes das terras bravas como tam se rebelar, caem num estra- riar e Sherazade, personagens de
dos pastos infernais das longas CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO nho labirinto. As mil e uma noites.
22 | | novembro de 2014

A literatura e as
máscaras Crônicas de Contardo Calligaris revelam
sentidos que o cotidiano tenta mascarar

Peron Rios | Recife – PE

A
crônica é, para dizer alguma teoria pode ser percebida e formulada. A
com Rubem Braga, o extração teórica é, ou deveria ser, atividade segun-
flash de um instante. da (mas não secundária), e pede necessariamente
E uma captura sem- os eventos que irá glosar.
pre transfigurada, ao Lendo com atenção, veremos que Todos os
ponto de Braga considerar ser “o reis estão nus condensa a fixação dos fatos, mas
luxo do grande artista atingir o sempre com certa nuance de consultoria espiritu-
máximo de matizes com o míni- al. Pautada, porém, em saberes densos e bem assi-
mo de elementos”. Como o pa- milados, como a percepção linguística de Austin,
vão que o autor descreve numa por exemplo, em Amores silenciosos. Ali, depois de
de suas belas crônicas, “de água e fazer a distinção entre as expressões constatativas
luz ele [o artista] faz seu esplen- e as performativas, arremata com uma indagação
dor; seu grande mistério é a sim- reveladora: “Pois bem, nunca sei se as declarações
plicidade”. de amor são constatativas (‘Digo que amo por-
A menção enfática a um que constato que amo’) ou performativas (‘Acabo
cronista com elevado requinte e amando à força de dizer que amo’). E isso se apli-
de posição emblemática em nos- ca à maioria dos sentimentos”. O cronista, agora,
sa literatura não é casual. De es- inverte a observação de Novalis, segundo a qual o
tilo bastante diverso do lirismo discurso é tanto mais verdadeiro quanto mais po-
poético do escritor de Ai de ti, ético. É na surpresa do verdadeiro, na iluminação
Copacabana, Contardo Calli- súbita de certas zonas sombrias que a poesia, mes-
garis revela, ao coligir seus tex- mo involuntariamente, emerge e pulsa.
tos em Todos os reis estão nus, O clichê, o pensamento provável e cons-
a mesma capacidade de revelar tituinte de tópicas muitas vezes milenares (que
sentidos que o cotidiano humil- findam por sedimentar-se em preconceitos), não
de, sob o véu da normalidade, dá perspectivas para a ação, destituída ali de uma
mascara. A coletânea de crônicas bússola ou de uma linguagem imantada. É pe-
curtas — textos a que os leito- la palavra incandescente que interventores como
res têm acesso assíduo, desde os Calligaris fazem-se auctores, no sentido clássico
últimos cinco anos — revela os que os imperadores tomavam, para si, a expressão:
pés leves que poderiam mudar o o de indivíduos que podem anexar à pátria novos
mundo (Nietzsche): trata-se de territórios conquistados. E, então, ampliar os hori-
escritos que discorrem sobre os zontes que os olhos, cerceados pelas fronteiras im-
acontecimentos ainda quentes e, postas, habituaram-se a contemplar. Num tempo
sem o distanciamento temporal de coletividades que sabem, por força das reivin-
que favorece a lucidez, exigem dicações de grupo, dissolver a individualidade e
percepção aguda para análise de reduzir o homem ao credo de sua manada, o escri-
suas circunstâncias. tor altera a endoxa e, corajosamente, expõe: “É ób-
Terapeuta e psicanalista vio que grupos particulares (constituídos por raça,
de formação, Calligaris suspen- orientação sexual, ideologia, etnia, etc.) podem e
de a prática, infelizmente corri- devem militar coletivamente pelos direitos de seus
queira entre nós, de interpretar membros, mas, em uma sociedade de indivíduos,
o real sem auscultá-lo, com um a liberdade de cada um, por mais ‘diferente’ que
instrumental pronto e a priori, ele seja, é condição da liberdade de todos” (“Mi-
que a complexidade do mundo lk”, o preço da liberdade). Reforçando-o ainda, em
só teria o dever de confirmar. outro momento, adverte o cronista: “Todas as li-
Aqui, ao contrário, Procusto berdades são essenciais. As liberdades ‘inessenciais’
não tem vez: os eventos do dia são apenas aquelas às quais já renunciamos, covar-
a dia (que vão dos adultérios na demente (Segurança ou liberdade?)”.
internet à sexualidade dos can-
didatos americanos à presidên- Olhar machadiano
cia) são abordados no que têm A prática do escrutinador, que percebemos
a dizer em “baixo-falante”, pa- na obra o tempo inteiro, exige de Contardo o olhar
ra usar a expressão de Antonio machadiano, que ele exercita com mestria. Ape-
Carlos Secchin. Da leitura sen- sar de todos esses qualificativos, restrições são, sem
sível e desautomatizante dos fa- dúvida, bem-vindas, e dentre elas assoma alguma
tos é que, mostra-nos Calligaris, condescendência crítica em relação a produções
novembro de 2014 | | 23

divulgação
literárias de qualidade no mínimo duvidosa.
Parecendo estar mais interessado nos conteú-
dos dos textos ou no que eles têm de potencial
para ser explorados do ponto de vista analítico
e filosófico, o autor italiano não está atento a
certo continuísmo que as escritas de perfil mer-
cadológico promovem. Exemplo evidente do
que dizemos se lê em seu juízo breve — mas de
forte influência — que Adoráveis vampiros dá a Todos os reis estão nus
ver. Nessa crônica, de 25/12/2008, lemos que Contardo Calligaris
Crepúsculo e Lua nova compõem uma “ma- Três estrelas
ravilhosa” saga elaborada por Stephenie Meyer: 277 págs.
“Também, na semana passada, estreou no
Brasil a versão cinematográfica de Crepúscu-
lo (gostei, embora menos do que dos livros)”.
Aqui, a voz norteadora e formadora de com-
portamentos — ainda que à sua revelia, talvez
— se esquece do valor que a literatura concen-
trada, extraindo da água uma infinidade de
matizes, deve ter na formação daquele público
infantojuvenil, que precisa ver seu universo am-
pliado. E, de saída, a partir de uma experiên-
cia poderosamente estética com a linguagem, o
que os livros citados estão longe de oferecer. Se-
ria muito sugerir, ao menos como contraponto,
a fabulosa obra de Bram Stoker (Drácula) para
os jovens ou para os pais que, às vezes caren-
tes de referências mais requintadas, alargarão os
hábitos de seus próprios filhos?
A observação restritiva ocorre exatamente
em decorrência da perspicácia que Calligaris de-
senvolve e emite. O texto que intitula o volume
nos faz pensar, a partir do filme O discurso do rei
— no qual negamos vocações ou desejos de que,
eventualmente, nos envergonhamos —, sobre
os disfarces que todos trazemos e dos quais ne-
cessitamos para seguir exercendo nosso ofício
ou vivendo nossas escolhas: “Não há como ser
terapeuta nem rei sem alguma impostura. Todos
carregamos máscaras. Avançamos mascarados,
enfeitados por mentiras que nos embelezam”.
Mas o cronista nos faz notar que uma diferença,
no entanto, se impõe: o heterodoxo terapeuta
de Sua Majestade, na obra de Tom Hooper, ti-
nha um trunfo que lhe outorgava o exercício de
intérprete de nossas almas labirínticas: “a leitura
de Shakespeare”.
A alta literatura — e muita gente cer-
tamente torcerá o nariz para um adjetivo tão
“elitista” —, ao potencializar a percepção do
humano, alarga o buraco da fechadura e per-
mite que, vendo melhor o outro, conheça-
mos mais sobre nossas próprias turbulências.
O mundo interior é caótico: aquecido por
paixões efervescentes — e no mais das vezes
subterrâneas —, pede que uma linguagem
plástica, mas rigorosa, lhe dê ordem e expres-
são. Eis a função cosmética da linguagem, que
Platão compreensivamente destacava. Assim, é
pelo convívio com escritos que cultivam o hu-
mor, a ironia, a frase lírica e sintética gerada
pelo olhar dilatado, que as pessoas — sequiosas
pela orientação que o próprio Contardo Calli-
O AUTOR garis entrega — poderão se dar conta dessas TRECHO

Contardo Calligaris fantasias que carregam e das personagens que Todos os reis estão nus
encarnam. Afinal, “acreditar nas máscaras que
vestimos é um delírio que nos torna perigo- Uma das boas razões para se
Nasceu na Itália, em 1948. sos”. A desarticulação dos discursos viciados —
casar é a seguinte: uma vez
É escritor, psicanalista e tão presente em Todos os reis estão nus — é
psicoterapeuta, doutor em um efeito inevitável da participação cívica pe- casados, podemos culpar o
psicologia clínica e colunista la poesia. E isso é tudo o que uma obra mas- casal por boa parte de nossas
do caderno Ilustrada, da Folha carada de literatura, como Cinquenta tons de covardias e impotências. O
de S. Paulo. É autor, entre cinza (E. L. James), que o escritor exalta, não
marido, por exemplo, pode
outros, de Introdução a consegue exercer — contrariamente às notá-
uma clínica diferencial veis perversões que um Marquês de Sade faz responsabilizar mulher, filhos e
das psicoses, A radioativas. E a empatia com o livro — mero casamento por ele ter desistido
adolescência, Cartas reconhecimento espiritual — longe de consti- de ser o aventureiro que ainda
a um jovem terapeuta tuir um argumento plausível (e de que o nos-
dorme, inquieto, em seu peito.
e dos romances O conto so cronista lança mão) apenas ratifica a noção
do amor e A mulher de continuísta que já observamos. A decepção consigo mesmo
vermelho e branco. Paradoxalmente, tal redundância é o que é menos amarga quando é
Calligaris, apreciando-a, efetivamente não traz. transformada em acusação:
E a simples possibilidade de suspender a per-
“Você está me impedindo de
formatividade das declarações que, por força de
circulação, erigem-se em verdades, daria à sua alcançar o que eu não tenho a
coletânea o desejo de frequentá-la. coragem de querer.
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Jane Austen por Osvalter

A boa natureza
De forma delicada e sensata, obra de Jane Austen apresenta personagens e situações palpáveis

Nelson Shuchmacher Endebo | Rio de Janeiro – RJ


novembro de 2014 | | 25

J
ane Austen é possivel- Fanny Price, a heroína de Mans- Na grande tradição Na grande tradição britâ-
mente a mais amada field Park, sobre o qual terei britânica, poucos nica, poucos autores conseguem
das escritoras inglesas. mais a dizer em seguida, desco- representar uma consciência tão
autores conseguem
Inúmeras são as adap- bre uma das principais guina- convincentemente quanto Jane
tações de seus roman- das do enredo em uma notícia representar uma Austen: suas personagens estão o
ces para o teatro, televisão e de jornal. A influência de Fiel- consciência tão tempo inteiro cientes de que são
cinema; ainda mais numerosas ding, grande escritor cômico que convincentemente vistas e ouvidas pelos outros. Por
são as edições de suas obras, re- compreendera que é na experi- quanto Jane Austen: isso, o cálculo se apresenta co-
visitadas e entusiasticamente ência, e não no receituário, que mo antecipação natural, e tem
suas personagens
glosadas geração após geração. aprendemos o bem, se faz sentir lá seus efeitos cômicos. A des-
Assim como William Shakes- sobretudo no volume Juvení- estão o tempo inteiro mesura parece não somente uma
peare, uma de suas leituras pre- lia, reunindo textos de uma Jane cientes de que são aviltação, uma falta de bons mo-
feridas, a autora de Orgulho e Austen mal saída da adolescên- vistas e ouvidas pelos dos e sensibilidade, mas, acima
preconceito, Razão e sensibili- cia (1787-1793), que a Penguin outros. de tudo, denota uma ausência
dade, Emma e Persuasão é uma corajosamente lança no Brasil, de autoconsciência, falta grave.
verdadeira indústria em 2014. em edição e tradução em tudo É, enfim, um estilo clássico, que
Podemos descrever algumas de recomendáveis. Nas primeiras toma os conselhos morais sobre
suas qualidades para compreen- tentativas de ficção, compreen- continência e aplica-os à forma
der a persistência do fenômeno sivelmente incoerentes, Austen do texto. É curioso notar que um
Austen: a mão leve para escrever mostra não apenas um talento dos autores que Austen mais gos-
personagens amplamente reali- cômico, como também um do- tava fosse logo Laurence Sterne,
záveis na mente do leitor; a de- mínio superficial das conven- autor de Tristram Shandy, um
licadeza com que apresenta os ções burlescas, que certamente romance deveras cultuado quan-
dilemas emergentes na tensão aprendera com Fielding. Sobra- do redescoberto pelo modernis-
entre as normas sociais e a éti- vam-lhe as intervenções do nar- mo mas que, no que diz respeito
ca do indivíduo; a maestria no rador no relato, as observações às experimentações formais, não
emprego da ironia, que faz rir e as críticas; faltavam-lhe en- parece tê-la influenciado signifi-
e faz pensar; a técnica “teatral”, tretanto as intuições psicológi- cativamente. O teor de sua pro-
que concentra e agiliza os fios cas que conferem ao burlesco o sa é reflexivo, não digressivo; os
das narrativas nos diálogos — seu potencial ético, ao levar cer- trechos narrados são distribuídos
tamanha é a realização da arte tos tipos humanos ao paroxismo em proporção junto aos diálogos,
de Austen que nem mesmo su- justamente para desarmá-los e ainda que Austen faça, como na
as preocupações perenes, como expô-los como fraude ou engo- terceira parte de Mansfield Pa-
a busca de uma conduta harmô- do. Essas intuições, é provável, rk, uma eventual concessão ao
nica mediante a autodisciplina Austen aprenderia a desenvol- gênero epistolar, que interpola a
e o autoconhecimento e, como ver com as filigranas técnicas dos condução da narrativa.
julgaríamos hoje, a supervalori- romances epistolares de Samuel Charlotte Brontë, a auto-
zação do papel moral e social do Richardson, como o popularís- ra romântica de Jane Eyre, e que
casamento, foram suficientes pa- simo Pamela, um verdadeiro divide com Austen esse intrigan-
ra diminuir o fascínio do públi- best-seller europeu, adorado por te volume de Juvenília, acusava-a
co contemporâneo, certamente figuras como Diderot, e o sofis- incapaz de escrever diálogos em
menos disposto aos ditames e re- ticado Clarissa, que represen- que os participantes não falassem
ceituários do agir decoroso. ta com enorme habilidade, em como ladies e gentlemen. Muito
Isso porque, em Austen, o uma multiplicidade de vozes e já foi dito pela crítica a esse res-
que não passaria de moralismo registros, os jogos emocionais e peito, e há alguma verdade nessa
em autores ineptos resulta de sus- conflitos de interesse na Ingla- contenção: Austen não escreve
tentada meditação sobre o tema terra do século 18, na trágica his- sobre tudo e todos. No fundo,
da boa natureza diante da gran- tória de uma moça que rejeita o ela escreve sobre o mundo que
de vertigem do tempo, e aí está noivado com um tipo detestável. conhece, algo inteiramente condi-
uma razão para a dificuldade em zente com o senso de proporção e
estimá-la: se raramente lida com Sentimental sensatez que propõe em seus ro-
acontecimentos históricos, é por Nesses escritos de juven- mances. Mas o que diria Brontë
deliberadamente alhear-se deles, tude percebe-se ainda uma fran- sobre o grosseirão Tenente Price,
e não por desinteresse; se propõe ca predileção pelo sentimental, o pai biológico da protagonista de
valores dir-se-ia cristãos, não pro- como era o caso da obra de Ri- Mansfield Park, perfeitamente
põe necessariamente o cristianis- chardson e de outras figuras me- caracterizado em sua ignóbil inci-
mo; se compreende que o novo nores, mas populares à época, vilidade? E sobre o mordomo em
século abre uma maior indepen- como Henry Mackenzie. Even- Mansfield Park, que inesperada-
dência às mulheres, dando-lhes tualmente Austen aprenderá a mente confirma-nos, em apenas
voz para protestarem o casamen- zombar do culto ao bom gosto, uma breve intervenção, que a tia
to arranjado segundo os interes- tão em voga no século 18, que Norris é de fato tão desagradável
ses de classe, também não ignora tinha a função de educar a sen- quanto a imaginamos?
que esse alvedrio possa dissimu- sibilidade. A sua obra madura,
lar como aparência valores que parcialmente publicada na úl- Senso da confusão
considera genuinamente bons; se tima década de sua breve vida Brontë, espírito menos
defende sem alarde a liberdade da — Austen morreria aos 42 anos recolhido que Austen, conge-
mulher de casar por amor, con- —, substitui o sentimentalismo nitamente não se adequaria às
testando um certo patriarcalis- reativo típico de uma era eman- restrições auto-impostas por es-
mo instituído, não despreza que cipada, sob certos aspectos, pela ta, nas quais sua arte novelística
a mulher também possa enganar- valorização da razão, mas inca- se circunscreve tanto geográfica
-se na estimativa de seus próprios paz de realisticamente lidar com quanto demográfica e histori-
sentimentos. É preciso relativizar as mudanças em curso, por um camente. Austen, contemporâ-
a modernidade de Austen. estilo sóbrio, comedido, psicolo- nea de Edmund Burke, William
Na juventude, firmaram- gicamente elegante e sagaz, que Blake, William Wordsworth e
-lhe o gosto literário autores acusa também a leitura ponde- Samuel Taylor Coleridge, aden-
imersos no que poderíamos va- rada de um poeta austero como traria a vida adulta nos anos se-
gamente chamar de mundo da George Crabbe: econômico nas guintes à Revolução Francesa,
experiência, como Henry Fiel- descrições de paisagens, ambiên- que tanto marcará as reflexões
ding, o já citado Shakespeare cias e vestimentas; magnânimo, daqueles autores, mas ela não
e o singular Samuel Johnson, o mas concentrado, na caracteriza- trata do evento diretamente.
qual diagnosticara, em 1750, ção de estados emocionais; sutil Tal atitude ela manterá mesmo
uma literatura contemporâ- ao resumir as impressões sobre quando, posteriormente, o te-
nea formada pelos acidentes e as personagens, sem entretanto mor de que Napoleão invadisse
eventualidades da vida moder- “entregar” o uso da ironia nos a Inglaterra torna-se um tópico
na, registrados em periódicos e diálogos, dos quais Austen é um caloroso de debate. Austen trata
folhetins. Não é por acaso que dos grandes mestres na língua. esses assuntos de maneira oblí-
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qua. Não vejo aí demérito. Ora, cernentes e menos egoístas, não tá em Antígua, cuidando dos ne-
se um dos impactos óbvios da por fazê-lo adotar piamente os gócios; Edmund, sabendo que o
Revolução fora a intensificação valores representados por Fanny pai desaprovaria com veemência
das inquietações e discussões so- e Edmund, e sim porque esta- a representação de tanto despau-
bre bem-estar social, privilégios belece com êxito uma relação tério no próprio lar, luta para im-
e o papel do clero, podemos lo- de empatia entre os irmãos e o pedi-la. Fanny não tem objeções
calizar, na pedagogia instalada leitor. Se o leitor mais puritano à peça em si, mas teme falhar no
no centro de seus romances, rea- compreensivelmente “torcerá” palco por “não saber representar”.
ções e respostas àquelas ansieda- Mansfield Park para Fanny e Edmund constitu- Para os demais, trata-se apenas de
des. Em Mansfield Park, alguns Trad.: Hildegard Feist írem um casal ao final da histó- um divertimento inconsequente.
dos melhores diálogos se dão Penguin/Companhia das Letras ria, os demais leitores, sobretudo
entre o ponderado e calmo Ed- 604 págs. os contemporâneos, desejarão Pedagogia cristalizada
mund Bertram, prestes a ser re- acompanhar a transformação As ressalvas contra a repre-
cebido na ordem eclesiástica, e a dos irmãos humanos, demasia- sentação têm uma dupla face, e
moderníssima e assanhada Mary damente humanos, tendo razão aqueles que pensarem em Platão
Crawford, de Londres, que des- Lionel Trilling, ao sugerir que não estarão delirando: em Ed-
denha, duvidosa, dos méritos de nenhum leitor moderno admi- mund e Sir Thomas, há uma re-
uma carreira no clero, cuja fun- raria Fanny Price, a despeito de lação perigosa entre o conteúdo
ção social ela já não reconhece. suas qualidades eminentemen- moral da representação e aquele
Fica claro que, para Austen, a vi- te admiráveis: há um aspecto de que representa; em Fanny, a falta
da no clero é, de certo modo, um constância que a experiência mo- de talento para representar sur-
modelo para a vida em geral; não derna, sob certo aspecto profun- ge como grande qualidade nor-
um modelo institucional, mas damente hostil ao idealismo, não mativa. Ela é sincera demais para
existencial, pois demanda de Mansfield Park consegue tanger. A metamor- representar, e é justamente por sê-
Trad.: Vera Sílvia Camargo Guarnieri
nós um esforço irrevogável para fose, cremos, afirma o tempo e, -lo que, em meio aos fingimen-
Landmark
cultivar o bem, o senso de com- portanto, a vida; ao contrário da tos, dissimulações e mentiras da
551 págs.
prometimento, de sacrifício e de estagnação do eterno, essa dita trama, ela termina feliz e honra-
recompensa. Na casa em Mans- nêmese do vivo. Fanny parece- da pela família, pela sociedade e
field, o patriarca Sir Thomas, au- -nos desumanamente piedosa também pela autora. Por isso, o
toritário e interesseiro, embora e caridosa. Mary Crawford tem que era uma dialética da experiên-
não desprovido de notáveis qua- mais em comum com as ou- cia nas obras anteriores de Austen,
lidades, aos poucos aprende a tras heroínas de Austen do que uma dança de pontos de vista, de
temperança: o bom governo já Fanny Price, que é a verdadeira oscilações entre resignação e forti-
começa em casa, mas sofre a in- protagonista de Mansfield Park. dão, humilhação e coragem, aqui
fluência de seus membros; não Aqui podemos vislumbrar se assemelha mais a uma pedago-
é, portanto, unilateral, embora a o veio utópico da visão de Jane gia cristalizada pelo método pre-
hierarquia seja indispensável. Ao Austen. De todas as suas obras viamente empregado. Mansfield,
mesmo tempo, Edmund reco- acabadas, Mansfield Park tal- idílica e isolada de Londres, por
nhece que o próprio clero com- Juvenília vez seja a menos popular. Nos fim dá a impressão de uma so-
Jane Austen & Charlotte Brontë
porta membros que parecem ter últimos 50 anos, entretanto, es- ciedade ideal, onde reina a paz
Trad.: Julia Romeu
há muito abandonado tal missão, se romance de 1814 mereceu a exterior e interior por meio da
Penguin/Companhia das Letras
enquanto Crawford é forçada a 471 págs.
atenção considerada de grandes disciplina, da constância e do au-
admitir que sua experiência com críticos literários, como Q. D. toconhecimento. Em Mansfield,
clérigos advém mais do disse-me- Leavis e o próprio Trilling; des- Fanny é uma boa sobrinha, mas
-disse do que da prática imediata. de a década de 90, de forças dos em Portsmouth não é uma filha
Há em Austen um senso da con- estudos culturais, como Edward especialmente carinhosa e diligen-
fusão; daí sua constância. Said e Geoffrey Hartman. Hoje te; e é uma amiga sincera até sen-
Fica claro aí que, se Austen o estudam com renovado inte- tir-se ameaçada. Não é tola, apesar
apresenta os diálogos de manei- resse os scholars do pós-colonia- da simplicidade, nem demasia-
ra fluida e realisticamente con- lismo e da narratologia. O livro do humilde, pois excessivamente
vincente, ela também busca no é eminentemente legível e entre- consciente das próprias virtudes.
leitor uma resposta ética envie- tém tanto quanto os demais tra- Em última análise, um raciona-
sada, mas de maneira pluriva- balhos de Austen, mas oferece lismo contemplativo e psicologi-
lente. Seu virtuosismo com o alguns desafios técnicos ao intér- camente arguto disputa com uma
diálogo é utilizado não para for- prete da autora. Uma delas é a ce- utopia conservadora a primazia
çar ou incitar o leitor, mas para na do teatro improvisado pelos na visão de Austen.
provocá-lo. Desde o início esta- moradores de Mansfield, que se Mansfield Park é um tra-
mos dispostos a simpatizar com desdobra no primeiro interstício balho clássico que merece ser lido
o arrazoado Edmund, que, en- do livro e que lembra, na manei- e discutido. No caso de Charlotte
tretanto, é apaixonado pela ma- ra como revela as predisposições Brontë, a publicação de sua Ju-
terialista e — do ponto de vista e inclinações das personagens, da venília pede uma leitura à luz de
da caracterização — irresistível famosa cena da ópera em Guer- suas obras da maturidade, sobre-
Mary Crawford. Esperamos logo ra e paz, de Tolstói. Com perícia tudo do soberbo Jane Eyre, que
que Mary mude de conduta, al- Austen lida com os conflitos lo- não encontra ocasião aqui. Mas
go que Austen resolveria não por cais gerados pela montagem da cabe um comentário pertinente.
meio de um argumento pontua- peça “vulgar” Juras de amor, adap- Brontë, outro clássico inglês que
do, mas de um evento vivido; ou tação inglesa de uma obra de Au- goza de grande popularidade ain-
que Edmund perceba a sua to- gust von Kotzebue, o dramaturgo da hoje, compartilha com Austen
lice. Essa tensão permanece em alemão favorito de Nietzsche, e a busca pela boa conduta, pela
aberto porque Edmund, afinal, cujo enredo prenuncia a própria retidão em um mundo declara-
é o amor secreto de sua prima, a ação do romance. Sir Thomas es- damente estranho, mas o faz sem
heroína Fanny, que em tudo di- reprimir as lições do coração; seu
fere de Mary Crawford. A trama idealismo é, portanto, de outra
do livro é um affaire de família: estirpe. Brontë já tinha o espírito
o orgulhoso e impulsivo galan- do romantismo, ao contrário de
teador Henry Crawford, irmão Austen, que somente o adumbra-
de Mary, resolve se apaixonar ria: a leitura de Byron e de clássi-
por Fanny. Outra tensão se abri- cos orientais como As mil e uma
rá: embora prontamente rejei- noites, traduzidos e avidamente
tado por Fanny, será que Henry apreciados em inglês já no sécu-
se tornará uma pessoa melhor, lo 18, inspiraram-lhe o espírito
merecendo assim o coração da Austen apresenta os diálogos de maneira aventureiro. Frances Beer, em sua
protagonista? Um mérito do li- excelente introdução à Juvení-
vro é dar espaço o suficiente pa-
fluida e realisticamente convincente, ela lia, observa perspicazmente que
ra o leitor querer que os irmãos também busca no leitor uma resposta ética a criatividade da jovem Bron-
Crawford se tornem mais dis- enviesada, mas de maneira plurivalente. të se manifestara na imaginação
novembro de 2014 | | 27

AUTORAS
Jane Austen
expansiva, mas profundamente
solitária, ansiosa por encontrar breves | Internacional
mundos distantes, enquanto a
de Austen se concentrara na ri-

Pela redenção
Nasceu em 1775, em dicularização de tipos hipócritas,
Steventon. É uma das entediantes e desagradáveis. Mas
escritoras inglesas mais seus gênios foram dificilmente
conceituadas da história. compatíveis. A justeza dos arran- Adam ficou vinte e cinco anos
Autora de Razão e jos humanos requer um com- longe de sua terra natal. Quando
sensibilidade (1811), promisso que Brontë, à parte do seu país de origem estava sendo
Orgulho e preconceito pessimismo social e escapismo devastado pela guerra, mudou-se
(1813) e Emma (1816), que nunca deixou de externar, para a França, onde se tornou um
entre outros. Modesta em só aceita com uma resignação fil- historiador renomado. Nesse meio- Os desorientados
relação ao seu talento, trada por uma imaginação feroz, tempo, perdeu contato com os Amin Maalouf
só teve a identidade que distorce a proporção do real amigos, que partiram para diversos Trad.: Clóvis Marques
como autora revelada com uma abundância de senti- lugares diferentes a fim do exílio. A Bertrand Brasil
postumamente. Morreu em mento. Para ela, o amor em Aus- história toma outro rumo quando, 490 págs.
1817, em Winchester. ten era um amor desapaixonado, às cinco horas, Adam recebe uma
estereotípico dos ingleses. Busca- ligação: Mourard está morrendo e deseja vê-lo. Mesmo que não
ra representar o amor “com cora- se falassem há vinte anos, o protagonista retorna a seu país de
ção”. Por isso não pudera aceitar origem para encontrar o moribundo uma última vez, mas não
Charlotte Brontë que Austen fosse chamada, como chega a tempo. Aos poucos, assim, tocado pela morte daquele
fora, de uma escritora realista, pois que já fora um bom companheiro, Adam percebe que se tornou
Nasceu em 1816. Passou faltava nela justamente o coração, um estrangeiro no próprio país e decide reunir novamente o
a maior parte da vida em essa realidade inalienável. Em ca- grupo de amigos da juventude. Se o presente não reserva nada
Haworth, nos pântanos da uma há, à sua maneira, na fe- agradável, ao menos poderão rememorar a melhor época de
de Yorkshire. É autora de liz formulação de Beer, a busca por suas vidas, quando partilhavam ideais e os sonhos ainda eram
quatro romances: Jane uma “transgressão que não trans- palpáveis, longe da condição desconfortável e do caminho
Eyre (1847), Shirley (1849), gride”. São escritoras eminente- indesejável que precisaram trilhar.
Villette (1853) e The mente inglesas nesse sentido.
professor (o primeiro deles, A Juvenília deverá encon-

Lírica urbana
publicado postumamente trar um público menor do que
em 1857). Emma, um Mansfield Park e demais obras
fragmento, foi publicado em das duas autoras. Mas é uma pu-
1860. Morreu em 1855. blicação corajosa, que possibilita Livro de estreia do poeta argentino
ao leitor zeloso uma visão pri- Oliverio Girondo, publicado
vilegiada do desenvolvimento originalmente em 1922. Edição
criativo de duas das maiores ro- bilíngue, com 22 fotografias de
mancistas do século 19. A edi- Horacio Coppola. Os versos
tora merece todos os lauréis por expõem a visão de um jovem 20 poemas para
ter apostado nesse título, editado viajante, interessado em tudo que o ler no bonde
com rigor e critério. Cursos uni- rodeia: mulheres, bebidas, vitrines, Oliverio Girondo
versitários de Letras e estudantes carros, e cidades como Buenos Trad.: Fabrício Corsaletti e
Samuel Titan Jr.
da língua inglesa terão incenti- Aires, Paris, Veneza e Rio de Janeiro.
Editora 34
vo para encomendar e estudar Em Paisagem Bretã, um retrato da
112 págs.
a edição de luxo da Landmark, comuna francesa Douarnenez: o
em capa dura e bilíngue, ofere- cais e os marinheiros, o campanário
cendo o texto em páginas espe- da Igreja e as velhinhas que oram para romper o silêncio que
lhadas. Naturalmente, dada a agride os santos; Veneza, cidade de sensualismo, exala uma brisa
extensão do romance, que soma convidativa de cartão-postal; em outubro em Buenos Aires,
quase 600 páginas na edição da as mesas estão repletas de garrafas de champanhe, enquanto o
Penguin, a versão bilíngue usa cantor dá o ritmo e os homens e mulheres dançam; longe da
uma fonte consideravelmente festa, Noturno versa sobre a noite na capital argentina, quando o
menor, com espaçamento míni- silêncio toma conta e o tempo se torna ameno; no Rio de Janeiro,
TRECHO mo entre as linhas, e um formato o sol amolece o asfalto e o traseiro das mulheres; e em Outro
Mansfield Park de livro maior, o que dificulta o noturno, uma reflexão existencial embalada pela noite em Paris.
manuseio e a leitura, embora esse
não seja um pormenor incontor-
Eu não o defendo. Deixo-o
inteiramente a sua mercê;
nável. Quanto à tradução nessa
edição, embora ela de fato siga Retrato
e, quando ele a levar
para Everingham, não
o texto original corretamente,
peca ocasionalmente por fazê-lo do artista
de maneira rigorosamente fiel: a
me importa que você o
sintaxe às vezes parece artificial O dia 26 de agosto deste ano
repreenda quanto quiser. e, sobretudo nos diálogos, preju- marcou o centenário de nascimento
Mas vou lhe dizer uma dica a fluidez do texto. Ademais, de Julio Cortázar. O autor desta
coisa: esse defeito, essa a revisão técnica poderia ter im- biografia, Mario Goloboff, foi Cortázar — Notas
pedido certos erros de digitação, amigo de Cortázar e pretendeu um para uma biografia
queda para fazer as moças se Mario Goloboff
facilmente justificáveis e, portan- registro íntimo e pessoal, abordando
apaixonarem por ele, não é, to, perdoáveis no processo de tra- diversos temas de sua vida e obra Trad.: José Rubens Siqueira
DSOP
nem de longe, tão perigoso dução, mas incompreensíveis em ao passar pela sua vivência na
303 págs.
para a felicidade de uma uma edição de luxo. Nesse senti- política, questões sociais e seu
do, a edição da Penguin é prefe- experimentalismo literário. O livro,
esposa como a tendência,
rível, apresentando uma tradução que pretende trazer à tona aspectos pouco conhecidos do escritor,
que ele nunca teve, de fluente e idiomática, e um texto demandou uma ampla pesquisa: toda a revisão de sua obra, leitura
também se apaixonar. E limpo com notas elucidativas e de cartas, testemunhos e documentos diversos. O conjunto expõe
eu acredito sinceramente bom aparato crítico. A publica- um Cortázar obcecado por leitura quando criança; um brilhante
ção bilíngue é parte de uma lou- estudante autodidata; os primeiros amores desesperados; sua época
que ele sente por você o que
vável iniciativa da Landmark de de professor em Chivilcoy; o deslumbramento pela cidade de Paris; a
nunca sentiu por mulher disponibilizar clássicos da litera- compra de um apartamento na capital francesa, na década de 1960,
alguma; que a ama de todo tura nesse formato, um projeto de quando recebeu uns 15 mil dólares para traduzir os contos completos
o coração e há de amá-la grande valor educacional, e torce- de Edgar Allan Poe, o que representou seu modesto, porém seguro,
mos para que seja executado com florescimento econômico; uma descrição minuciosa da confecção e
para sempre. Se existe um
o esmero que demanda e que o o lançamento do Jogo da amarelinha; e como, enfim, acabou sendo
homem capaz de amar para leitor, carente de publicações aces- vencido pela leucemia e outros transtornos, falecendo em 12 de
sempre, é Henry. síveis desse tipo, merece. fevereiro, num domingo, de 1984.
28 | | novembro de 2014

a literatura na poltrona | José Castello prateleira | nacional

Clarice no inferno

R
eleio — como se o contra a porta de um armário. perdição. Não tem certeza se
lesse pela primeira Uma gosma branca escorre de conseguirá retornar ao huma- Montanha
Cyro dos Anjos
vez — A paixão se- seu interior. “O que eu estava no — que, visto desde ali, pare-
Biblioteca Azul
gundo GH, o mais vendo era ainda anterior ao hu- ce tão distante. “Se eu conseguir
360 págs.
importante romance mano.” A barata é puro instin- voltar do reino da vida tornarei a
de Clarice Lispector. Comemo- to. É o neutro — nela não existe pegar a tua mão, e a beijarei por- Publicado originalmente em
ramos, em 2014, seu cinquente- ainda a interferência da lingua- que ela me esperou.” O beijo é 1965, este romance oculta per-
nário de publicação. Enquanto o gem. “O neutro era a vida que eu o “a mais”: expressa afeto, mani- sonalidades reais do cenário po-
país se agitava com o golpe mi- antes chamava de nada. O neu- festa um pensamento, ultrapassa lítico brasileiro da época sob
litar de 1964, Clarice publicava tro era o inferno.” Ao defrontar- os automatismos do mundo na- nomes fictícios e passeia pelos
seu livro mais enigmático e per- -se com o anterior ao humano é tural. O humano nasce de um podres da politicagem, lobby,
turbador. Em um ano de grande o próprio humano, por contras- choque: provar da gosma que es- chantagem, repressão policial e
turbulência externa, ela vinha nos te, que se reafirma. corre de dentro da barata agoni- a iminência de golpe militar. O
propor, através da via delicada da Com A paixão segundo zante, como faz GH, produz um personagem central é Pedro Ga-
ficção, alguns parâmetros para GH, Clarice se recolhe para escre- susto que ultrapassa todas as no- briel, um político que, à sombra
uma revolução interior. Apostava ver sobre a mecânica secreta que ções de conforto, de elegância e do fim do Estado Novo, almeja
— contra todos os sinais de desa- nos constitui e que desenha nossa de bem viver. Que despedaça o ascender ao governo da fictícia
lento que se espalhavam pelo real liberdade. Ao buscar um mundo humano para, ato contínuo, nos Montanha. Nessa escalada do
— na grandeza do homem. Cla- anterior ao humano — a barata revelar seu valor. poder, a ameaça de golpe militar
rice sempre apostou no humano. deflagra a presença da “coisa” —, No ano de 1964, enquanto pode pôr tudo a perder.
Mesmo nos momentos mais do- é com o humano e sua potência o Brasil experimenta dias frenéti-
lorosos, dele nunca desistiu. que ela nos defronta. Talvez a agi- cos, Clarice conclui sua travessia
Em contraste com uma tação política tenha levado Clari- do deserto — sozinha, desampa-
realidade irrequieta e difícil, ce a se perguntar por essas relações rada, propositalmente decidida a
Clarice escreve sobre os meca- de fundamento que, na enxurra- se afastar das contingências hu-
nismos secretos que separam da dos acontecimentos e das notí- manas — e nos entrega um livro
a nós, humanos, dos animais. cias — no atordoante deserto dos que, em contraste com o nasci-
Nem sempre conseguimos divi- “fatos” —, costuma se perder. Os mento do regime militar, parece
sá-los. Muitas vezes, sem encon- fatos nos arrastam, nos atrelam à completamente absurdo. Nesse
trar explicações para nossos atos carruagem da história, e esquece- território anterior ao humano, Recife, no hay
Delmo Montenegro
ou sentimentos, nos agarramos mos de simplesmente ser. É o que onde as coisas são o que são, não
Cepe
às lições redutoras da biologia. Clarice insiste em fazer, apesar dos há sentido, mas apenas matéria.
105 págs.
Como se fôssemos biologia pu- movimentos adversos do real. Foi Contudo, é a partir dele que um
ra, transformando-a, assim, em uma mulher politizada que, mais esboço de sentido pode se cons- Sessenta e oito poemas. Para
nosso inferno. Apoiamo-nos, tarde, se engajaria nos movimen- tituir. É só porque estamos vivos Adriana Zapparoli, a lembrança
desamparados, na noção de na- tos sociais de 1968. Isso não a im- que podemos ser. “Eu não que- de um dia que quase se tornou
tureza e nela nos refugiamos. pede, porém, de saltar para dentro ro perder minha humanidade!”, funesto; em Unknow parameter
Trata-se — Clarice nos mostra e de perseguir o núcleo do ser. GH desabafa depois de tudo o value, os versos dividem espaço
em GH — de uma falsificação. Há uma alegria em situar- que viveu. O que fez senão ver a com uma receita de como assar
Não somos apenas animais. É -se nesse mundo que, para além humanização por dentro? O que um pato; em Faculdade, a cons-
muito importante ter contato da linguagem, é matéria pura. fez senão escavar nossos funda- tatação de não ser apto ao estudo
com essa parte instintiva que nos “Vou te dizer: é que eu estava mentos mais dissimulados? formal; em Perfect blue, a solidão
constitui, mas nossa vida não se com medo de uma certa alegria Com seu exercício ínti- de um otaku; n’O quarto, diz-se
resume a ela. Vai muito além — cega e já feroz que começava a mo, GH luta para se afastar das que o “pequeno inferno é o se-
e é nesse além do corpo que o me tomar.” O confronto com repetições do humano e chegar, xo”; em Gonzo!, uma lembrança
humano se decide. a matéria, ou o “neutro”, guar- assim, a seus fundamentos. “A deste gênero jornalístico que se
Mais do que da natureza, da um aspecto assustador, mas humanidade está ensopada de apoia na verdadeira entrega ao
somos habitantes da linguagem. também revelador. “O neutro é falsa humanização, como se fos- trabalho e às alucinações.
Ela é nosso verdadeiro lar. Nela inexplicável e vivo, procura me se preciso; e essa falsa humaniza-
estão nossos fundamentos e tam- entender: assim como o proto- ção impede o homem e impede a
bém as razões maiores de nossa plasma e o sêmen e a proteína sua humanidade.” Ao pensar no
fragilidade. A história de GH é são de um neutro vivo.” Por con- humano, não pode excluir o bi-
conhecida. Arrumando o quar- traste — por falta —, ele revela cho que somos. O “neutro” nos
to de empregada, uma mulher aquele “a mais” que nos distin- habita — a algo dentro de nós
(GH) depara com uma barata. gue dos insetos. Ele nos revela. que nos submete e nos ultra-
Assustada, e em um ato irrefle- A experiência de GH no mun- passa. Diante desse abismo, só
tido (irracional), ela a espreme do da “coisa” é uma espécie de o retorno à linguagem pode nos
salvar. Clarice precisou atravessar Tarantata
Cíntia Lacroix
um deserto para retornar, enfim,
Dublinense
à literatura. GH é um livro de
254 págs.
transição, que marca seu retor-
no ao Brasil depois de se separar Giuseppina Palumbo começa a
do marido diplomata. GH indi- correr e dançar pela praia de San-
ca seu caminho de solidão. Não ta Maria di Lucena, na Itália. To-
como um castigo, mas como um dos tiveram pena dela, pois não
destino. Como o ponto de parti- havia dúvida: sofria de taranti-
da — ponto zero — sobre o qual nismo, isto é, fora picada por
podemos, sem o recurso das más- uma tarântula. Não parecia haver
No ano de 1964, enquanto o Brasil experimenta caras, tomar posse de nós mes- cura definitiva, mas restava recor-
dias frenéticos, Clarice conclui sua travessia mos e nos constituir. rer ao ritual de São Paulo, santo
do deserto — sozinha, desamparada, protetor das tarantatas. Assim,
propositalmente decidida a se afastar das NOTA os Palumbo partem para a cida-
O texto Clarice no inferno foi de brasileira de mesmo nome do
contingências humanas — e nos entrega um publicado originalmente no blog A santo, onde terão por vizinho o
livro que, em contraste com o nascimento do literatura na poltrona, do caderno pianista Marçal Quintalusa, que
regime militar, parece completamente absurdo. Prosa, do jornal O Globo. ficará fascinado pela enferma.
novembro de 2014 | | 29

palavra por palavra | Raimundo Carrero pode ser reduzido a um esquema.


Essa é a verdade absoluta.
endente. Outra das louváveis qualidades de Débo-
ra — surpreender e fustigar o leitor com cenas ou
No momento em que ter- frases inesperadas. Para um destes críticos chama-
mino a leitura do romance de dos de rigorosos, a frase seguinte poderia conter um

Palavra evoca
estreia de Débora Ferraz, En- elemento inadequado, mas não é bem assim. Veja-
quanto Deus não está olhando, mos: “Subo a ladeira. A rua de paralelepípedos está
vencedor do Prêmio Sesc de Lite- deserta apesar de não passar das oito da noite, e à
ratura 2014, sou tomado de en- minha volta só as casas pequenas e imóveis, é que,

o drama e
tusiasmo diante desta revelação. vez por outra, dão qualquer sinal de vida”. Compre-
Mas contenho os meus adjetivos endo perfeitamente que, ao crítico rigoroso, pode-
e procuro investigar, com o má- ria parecer imprecisa e óbvia a palavra “imóvel”. Mas
ximo de rigor, quais as qualida- aí a palavra não tem apenas efeito informativo. Ela

revela o texto
des desta autora ainda tão jovem. carrega toda a pressão, toda a força angustiante da
Em princípio, devo destacar que personagem martirizada. Não é uma palavra, é um
não se trata apenas de um roman- sentimento. Mostra a imobilidade interior da perso-
ce de texto, tão em voga no Bra- nagem e seu impressionante sufocamento. Toda casa
sil, o que leva a crítica, em geral, a é imóvel, sem dúvida, mas sem que isso seja dito do

A
grandes equívocos: trata-se de um ponto de vista da personagem, tudo o mais desaba.
romance de atmosfera, de densa e Portanto, essa é a diferença inequívoca do que
estreia de um artis- ridade de revelar as suas verdadeiras limitações que angustiante atmosfera, represen- vem a ser texto de personagem e texto de escritor. O
ta — em qualquer são, em síntese, as limitações de todo crítico. tada pela dolorosa busca de Érica, escritor nem sempre considera o mundo do persona-
nível e em qualquer Tudo isso para dizer que a posição do crítico é a também jovem personagem que gem, sente-se dono do texto e usa a mão de ferro, que
área — é sempre uma sempre temerária e exige o máximo de cuidado para atravessa o romance procurando interfere, altera e, embora seja objetivo, joga o perso-
aposta, uma busca. não cometer asneiras. Nem o elogio fácil, sem expli- o pai, que se faz presente apenas nagem para longe. Pode até acertar na palavra — que
Quando escreveu sobre Proust, E. cações sinceras, nem a crítica inconsequente, muitas nas lembranças, de forma que costuma chamar de exata — mas que exatidão é esta?
M. Forster destacou que, embo- vezes cheia de lugares-comuns. No Brasil, Macha- se revela pelo passado e só atra- — e perde o sentimento que dever ser, exatamente,
ra o considerasse notável, não po- do de Assis teve que enfrentar este tipo de crítico vés dele. E aí, creio, está a grande o sentimento do texto. Tudo isso sempre me parece
dia fazer dele um definitivo juízo a partir de Silvio Romero, que se deixava conduzir qualidade da autora, cuja prota- fundamental observar, porque o autor não é dono ex-
de valor, porque o francês ainda pela análise impressionista da época, sem conhecer gonista está sempre caminhando, clusivo da narrativa, precisa reconhecer o universo in-
não havia concluído a obra, mes- nem investigar as técnicas que o autor de Dom Cas- caminhando, caminhando. terior dos personagens e suas manifestações.
mo que tivesse publicado os pri- murro usava com grande competência, e que, ain- A primeira frase do livro é
meiros volumes de Em busca do da hoje, não foram suficientemente analisadas. Em forte, muito forte, decisiva: “O NOTA
tempo perdido. Forster teve, pe- todo campo artístico — e literatura é sobretudo arte fim do mundo chegou cedo desta O texto Palavra evoca o drama e revela o texto foi
lo menos, a honestidade e a since- —, o criador não conhece limites nem regras, nem vez”. Sem dúvida, forte e surpre- publicado originalmente no suplemento Pernambuco.

A Flim 2014 vem cheia de novidades. Uma


semana dedicada a expressões artísticas
diversas: apresentações de dança, teatro
e música, exposições de artes visuais,
mostras de cinema e fotografia, bate-papos
e palestras com escritores, e, para encerrar
com chave de ouro, show de lançamento
do CD Zero, de Fred Teixeira, vencedor do
Edital Medianeira Nossa Música.

Palestras: Ricardo Azevedo e Luiz Ruffato.


Bate-papos: Alvaro Posselt, Eliege Pepler, Fabiano
Vianna, Júlio Damásio, Luís Henrique Pellanda,
Rafael Urban, Ricardo Pozzo, Roberto Gomes,
Sandro Moser e Paulo Venturelli.
Show: Fred Teixeira.

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30 | | novembro de 2014

A linguagem
e o jogo Thomas Bernhard
por Robson Vilalba
Para coexistir pacificamente com a consciência da morte,
Thomas Bernhard usou-a como base para sua obra

Maria Aparecida Barbosa | Florianópolis – SC


novembro de 2014 | | 31

T
rês fatos importantes di, passível de ser acompanhado no Arquivo Thomas Bernhard em Gmunden, na
marcam a recepção nos procedimentos de correções Áustria. São anotações do curador sobre o espólio
da literatura de Tho- e nas alterações, através dos di- que tem textos inéditos e curiosidades sobre o pro-
mas Bernhard (1931- versos estágios dos manuscritos cesso de escrita. É difícil destacar fragmentos em de-
1989) no Brasil em e tiposcritos em prosa, em verso, trimento do conjunto dessa coleção que possui um
2014. Em primeiro lugar se trata em drama, em cartas. O escritor, arranjo bem equilibrado de unidades contemplan-
da exposição internacional Tho- que no final das contas conquis- do aspectos diferentes. À guisa de exemplo, chama a
mas Bernhard e seus seres vitais tou tamanha coerência em sua atenção um poema laudatório, A rainha das cidades,
— Fotos — Documentos — Ma- produção de sentidos, rabiscava e O artista do exagero: homenagem à cidade natal do escritor, Salzburg, es-
nuscritos, que em setembro esteve alterava de cima a baixo seus po- A literatura de crito ainda na juventude, em 1948. Não há como
Thomas Bernhard
em Curitiba (PR) e em outubro emas, romances, peças, num pro- evitar o contraste entre esse encantamento e a indig-
Matthias Konzett
chega a Porto Alegre (RS). Os cesso incessante de reelaboração e nação saturada de veneno da inflamada literatura de
Trad.: Ruth Bohunovsky
outros destaques ficam por con- aprimoramento de suas reflexões. Editora UFPR
Bernhard dirigida contra a incapacidade moral da
ta das traduções, tanto do res- É consolador para ensaístas, em 355 págs. Áustria de admitir fatos históricos no pós-guerra.
pectivo catálogo homônimo da constante insatisfação com a qua- O artigo de Buber contém um acervo de fotos.
exposição, como do livro O ar- lidade das expressões em textos, Para elaborar essas complexas implicações do dilema
tista do exagero: A literatura constatar as marcas que mostram em relação à origem (política e familiar), o que se-
de Thomas Bernhard, coletânea vestígios das motivações íntimas rá crucial na definição da singularidade de Thomas
resultante do Simpósio de 1999 de insatisfação, modéstia, bem Bernhard, o escritor empreende exercícios formais
da Universidade de Yale e editada como da busca obsessiva de au- de escritura, passa do poema à prosa, e essa guinada
por Matthias Konzett, ambas pu- toconsciência e de identidade. no percurso é uma passagem que inclui a compo-
blicadas pela Editora UFPR. O Nesse sentido a exposição Thomas sição de várias peças experimentais e fragmentadas
catálogo foi traduzido do alemão Bernhard e seus seres vitais — Fo- de teatro, bem como do ensaio literalmente modi-
por Daniel Martineschen e Ru- tos — Documentos — Manuscri- ficado, Tamsweg, que o escritor não conseguiu ver
th Bohunovsky; o livro é resulta- tos, cujo layout e distribuição das publicado. A versão submetida a alterações se torna
do de um louvável projeto dessa peças pelo espaço é um deleite à uma versão de Frost (Geada), de 1963, o primei-
Thomas Bernhard
professora da UFPR, desenvolvi- parte, constitui uma oportunida- e seus seres vitais ro dos grandes romances (Auslöschung, 1986, e
do com estudantes do Bacharela- de aos estudiosos da crítica gené- Martin Huber, Manfred Mitter- Verstörung, 1967, publicados respectivamente no
do em Estudos da Tradução. tica e a todos os interessados pelo mayer e Peter Karlhuber Brasil como Extinção, pela Companhia das Letras
O escritor Thomas Ber- processo de produção literária. Trad.: Ruth Bohunovsky e em 2000, e Perturbação, pela Rocco em 1999). As
nhard afirmava ser importante a Daniel Martineschen metamorfoses existenciais do escritor Thomas Ber-
informação sobre a personalidade Seres vitais Editora UFPR nhard manifestam-se como uma metonímia formal.
do escritor para a compreensão O catálogo sintetiza a ex- 209 págs. Para elaborar por sua vez a tradição literária
de uma obra. Certamente afetaria posição e está dividido em capí- o escritor afirmou que o processamento da filosofia
a leitura saber se o sujeito era um tulos atribuídos respectivamente escrita consistia para ele num grande desafio. Dias
serial-killer ou se algum dia esti- ao avô materno do escritor, Jo- a fio, ele evitava o caldo, por outro lado, acontecia
vera doente. Sobre a sua própria hannes Freumbichler, ao próprio que justamente aqueles atores que lhe eram mais
concepção existencial ele disse Thomas Bernhard e à sua com- O AUTOR importantes, representavam ao mesmo tempo seus
(no filme documentário Das War panheira, Hedwig Stavianicek. Thomas Bernhard maiores antagonistas, inimigos. O ato ininterrup-
Thomas Bernhard, 1994) que a Manfred Mittermayer as- to da composição era justamente contra aqueles, a
morte provavelmente lhe fora da- sina o ensaio O avô materno Jo- quem incondicionalmente se rendera: Musil, Pave-
da ainda no berço e sempre o per- hannes Freumbichler na literatura Nasceu em Heerlen, se, Ezra Pound, que para ele não escrevia lírica, mas
seguia. Ele a carregava consigo, a de Bernhard. Sobre o avô, que na Holanda, em 1931. prosa absoluta. No mesmo depoimento, Thomas
vida junto com a morte. Não ti- o adotou e foi um interlocutor Importante nome da Bernhard confessou que o afetara profundamente a
nha nada contra ela, nunca tivera afetuoso, Thomas Bernhard le- literatura do século 20, foi literatura do diário de Pavese, de Lérmontov e Dos-
medo dela. A morte até o forta- gou inúmeros depoimentos orais um multipremiado poeta, toiévski, mas não os franceses pelos quais nunca se
lecia, ela, que podia às vezes fra- e literários. Para ilustrar, cito a contista, romancista e interessou tanto, com exceção de Senhor Teste, de
gilizar a pessoa. Sobretudo, sem declaração de amor ao avô, que dramaturgo. Entre seus Valéry, livro que sempre o fascinara, e que ele lera
a consciência da morte, a pessoa ao mesmo tempo se inscreve no títulos renomados estão tantas vezes que seu exemplar estava todo desfeito.
corre o risco de se deixar envolver contexto da vida como teatro a Extinção, Perturbação, O Ante autores como esses, Henry James inclusive, o
e dançar com ela, se afundando que o escritor sempre recorre: sobrinho de Wittgenstein escritor confessou sentir uma hostilidade amarga,
de uma vez por todas, o que ele e O náufrago. Faleceu sempre oscilante. Sentia-se ridículo e achava que
nunca quisera. Sempre se rebela- Os avós são os professores, os em Gmunden, na contra eles não se devia operar. Mas aos poucos
ra contra ela. Recusá-la seria uma verdadeiros filósofos de cada um Áustria, em 1989. crescia nele uma fúria contra os grandes, e assim se
bobagem, não há como recusar a de nós; eles sempre escancaram as tornava possível enfrentá-los, rebelar-se diante de
morte, ela está sempre presente. cortinas que os outros vivem fe- Virginia Woolf e Forster. E isso o levava a escrever.
Era possível seguir com ela, com chando. Quando estamos com eles,
cautela. Mas para conseguir essa vemos o que é real, não vemos ape- Simulacro e vertigem
TRECHO
proeza, dizia o escritor, precisava nas a plateia, mas o palco tam- A coletânea de artigos resultante do Simpósio
da morte em seus livros. bém, e vemos tudo que se passa nos O artista do exagero: de Yale, quando da comemoração de 10 anos da mor-
A literatura de Thom-
Ao admitir portar consigo bastidores. Há milênios, os avós as Bernhard te de Bernhard, contempla as abordagens Bernhard e
inerente à vida já o fardo da mor- criam o demônio onde, sem eles, só seu público, As poéticas de Bernhard, Bernhard e o dra-
te, travando com ela uma cons- haveria o bom Deus. Graças a eles, ma e Os mundos sociais de Bernhard. No que diz res-
Durante sua vida, os textos
ciente disputa de forças, Thomas ficamos conhecendo o drama por peito à recepção positiva em outros países, inclusive
Bernhard argumenta em prol da inteiro, e não apenas a farsa de um de Thomas Bernhard no Brasil, Bohunovsky proporciona uma introdução
exposição com um panorama so- fragmento miserável e mentiroso. provocaram muito à literatura de Thomas Bernhard, o artista do exagero e à
bre a singularidade de sua vida escândalo. Mas é provável sua fortuna crítica, buscando demonstrar que o escri-
e seu trabalho. E as peças dessa Hedwig Stavianicek — fatos tor foi “suficientemente específico nas suas acusações
que o escândalo mais
exposição, que instigam o jogo e ficção é um capítulo com a pers- e insinuações contra seu país para ter se tornado tão
da elaboração autobiográfica na pectiva biográfica sob o viés da duradouro tenha sido o seu aclamado e odiado (...), mas foi também suficiente-
obra literária, contribuem com companheira com quem Thomas último texto, o testamento, mente generalizante para permitir ao público interna-
elementos chaves para a recepção Bernhard viveu mais de 30 anos, que exigia que tudo o que cional uma identificação com os personagens, enredos
dessa literatura que é uma opera- muito apropriadamente desta- e situações”. Além disso, a autora se detém em marcas
ele tivesse escrito, fosse
ção intrincada e infindável. A mis- cada no catálogo, considerando de estilo, a fim de assegurar que o interesse não se res-
celânea de sua autoria — papéis, que em seu livro O sobrinho de aquilo publicado durante tringe ao caráter crítico e incitador, mas depreende em
romances, poemas, peças de tea- Wittgenstein o autor a chama de sua vida ou que fizesse grande parte de artifícios da linguagem.
tro, a colossal pentalogia autobio- “meu ser vital”, e confessa que a parte do seu espólio, não Essa afirmação se coaduna com a hipótese
gráfica em cinco volumes (Sérgio ela devia praticamente tudo. formulada no artigo A poética de Thomas Bernhard,
poderia ser encenado,
Tellaroli juntou A causa, O porão, no qual Wendelin Schmidt-Dengler adverte contra
A respiração, O frio e Uma criança escrevia, escrevia e escrevia... impresso ou até mesmo a pesquisa restrita à qualidade moral dos textos, de-
num único livro, Origem, que a recitado até o fim do prazo fendendo, antes, alternativas espúrias. Consoante,
Companhia das Letras publicou O capítulo central do catá- legal de direitos autorais ele aponta a ambivalência entre o trágico e o cô-
em 2006) — apresenta, não so- logo da exposição é assinado por mico, uma argumentação que pensa a linguagem
dentro das fronteiras legais
mente a perspectiva no sentido Martin Huber que, após a morte sobre o pano de fundo de uma “comediotragédia”
literal de biografia, mas deixa ob- de Bernhard, organizou o espólio da Áustria, “qualquer que (Komödientragödie), longe de pretender atribuir
servar aspectos do modus operan- completo, desde 2001 disponível seja o nome desse país”. rótulo ou síntese à ouevre de Bernhard.
32 | | novembro de 2014

O absurdo
das conquistas
A arte francesa
da guerra
Alexis Jenni
Trad.: Eduardo Brandão
Companhia das Letras
540 págs.

Sem tom heroico, romance de estreia de Alexis Jenni


percorre quase três décadas de colonização francesa

Luiz Horácio | Porto Alegre – RS

A
arte francesa da foram contadas e muito sangue rativa é uma sequência duas vezes
guerra, título do foi derramado. temporal, onde se percebe o tem-
romance de estreia Se anteriormente Salag- po da coisa contada e o tempo da
de Alexis Jenni, traz non manchou a história, o chão, narrativa, desse modo faz a distin-
consigo o teor da a vida, com sangue; no presente, ção entre o tempo do significado
obra, a ambiguidade. Com uma pinta telas com tintas inocentes. e o tempo do significante.
generosa dose de condescendên- Tanto sangue, tanta tinta, seja Diz Genette que uma das
cia deste aprendiz. no papel, seja na tela, que acaba funções do discurso narrativo é
Tudo começa com uma espirrando no general De Gaul- inverter esses dois tempos, im- O AUTOR
citação de Pascal Quignard: “O le, também conhecido como “o bricando-os. Alexis Jenni
que é um herói? Nem um vivo romancista”, pois mentia com a O teórico mostra, entre as
nem um morto, um […] que maestria dos romancistas. consequências dessas diferenças
adentra o outro mundo e volta”. De Gaulle mentiroso? temporais, a exigência de leitu- Nasceu em 1963, em Lyon.
E se a citação deflagra a De onde isso? Antes de maio de ra diacrônica, uma leitura onde Formado em Biologia, é
narrativa, é por meio dela que 1968, o general afirmou que pen- se perceba “pelo menos um olhar professor de Ciências numa
investigaremos a personalidade sar uma Argélia francesa não pas- cujo percurso não é já comanda- escola em Lyon. A arte
do capitão Victorien Salagnon. sava de utopia, mas Argel fervia e do pela sucessão de imagens”. francesa da Guerra é
E ambiguidade é o que não lhe logo se percebeu a possibilidade Vale lembrar que o tempo o seu primeiro romance,
falta. Ex-paraquedista durante de uma amizade franco-muçul- utilizado para narrar uma his- com o qual ganhou o Prix
a “guerra de vinte anos”, desen- mana. Admitiu, então, que estava tória é diferente do tempo do Goncourt em 2011.
volve um diálogo com um de- diante de algo bastante possível. acontecido.
socupado que vive recluso num Mas voltemos a Victorien Desse modo, algo que du-
subúrbio de Lyon. Por vezes dis- Salagnon, o professor de pintu- rou muito tempo pode ser nar-
tribui panfletos publicitários, o ra, e ao narrador, seu aluno. rado em uma, duas linhas, por
que lhe permite uma vida de du- Eles representam a selvage- outro lado um acontecimento
ras limitações. Gasta seu tempo ria colonizadora, as diferenças, o aparentemente insignificante po-
bebendo, fazendo sexo e assistin- nacionalismo, a raça, o fanatismo. de consumir páginas e páginas da
do a filmes de guerra. Com o inimigo a gente não fala. narrativa. Podemos dizer que se
A arte francesa da guerra A gente o combate; a gente o ma- trata de uma estratégia do autor
é a história do encontro desses ta, ele nos mata. Não queremos no sentido de chamar a atenção
dois homens. O ex-paraquedista conversa, queremos briga. No pa- do leitor, dar ênfase a determina-
ensinará o “entregador de pan- ís da doçura de viver e da conver- dos pontos da narrativa.
fletos publicitários” a pintar, e sa como uma das belas-artes, não Mas tudo é guerra, mesmo
este escreverá sua história. queremos mais viver juntos. em tempos de paz. Nos bares,
O ex-combatente tem no- Como amenizar isso tudo? nas filas.
me, seu aluno será simplesmente Amor, arte, luxúria são algumas A violência ao alcance de to-
TRECHO
“o narrador”. Ele revelará os pens- possibilidades capazes de desar- dos, a tortura; “o francês é a língua
amentos de Salagnon, os horrores mar o ódio. internacional do interrogatório”. A arte francesa
da guerra
vividos na guerra, as atrocidades A arte francesa da guerra A violência perpassa a
cometidas. Ao leitor a permanen- é um livro extraordinário. Colo- narrativa de Alexis Jenni. O
te dúvida, até que ponto o narra- cá-lo ao lado de Os moedeiros narrador pergunta ao ex-comba- Victorien Salagnon
dor concorda, tem prazer com o falsos, de Gide, e de Desonra, tente se ele torturara alguém, e possuía um dom que não
que ouve de seu mestre. de Coetzee, é o mínimo que es- seu mestre confessa ter feito pior, havia desejado. Em outras
A história percorrerá quase te aprendiz pode fazer. Calma, esquecera a humanidade.
circunstâncias não o teria
três décadas de colonização fran- calma, as histórias têm algumas Mas atenção, sensível leitor,
cesa, Indochina, Vietnã, Argélia. coisas em comum, eu escrevi al- embora o título, este não é mais percebido, mas a obrigação
Jenni não faz apologia do heroís- -gu-mas. O livro dentro do livro, um livro a relatar apenas as atro- de ficar no quarto o havia
mo. A seu ver, as guerras de colo- Gide, colonizador/colonizado, cidades da guerra. A arte france- deixado diante das suas
nização são guerras sujas. Coetzee. Sigamos, pois. Ocorre sa da guerra também aponta o
mãos. Sua mão enxergava,
E por falar em Argélia, é que a obra de Jenni, mais volu- dedo para a xenofobia francesa,
exatamente esse país que leva mosa, mais repleta de aventuras, para a rota de fuga assinalada pe- como um olho; e seu olho
a comparar Jenni com Camus, tem também mais tempo pa- la arte, seja a pintura, seja a litera- podia tocar como uma
pois o autor de A peste não pen- ra abordar exatamente o tempo. tura. O que for... Se depender do mão. O que ele via, podia
sava a Argélia não francesa. O tempo das várias histórias e as homem, estará sujeito à manipu-
reproduzir a tinta, a pincel,
Muito foi escrito, pelo me- transformações daí advindas. lação, ao cinismo, a toda ordem
nos na França, sobre as guerras Em Discurso da narrativa, de deturpações. Nada a fazer... É a lápis, e reaparecia em
de colonização. Várias histórias Gérard Genette afirma que a nar- a nossa natureza. preto numa folha branca.
novembro de 2014 | | 33

ruído branco | Luiz Bras Não me valorize demais,


por favor. Não memorize este
discurso.
Terminada a leitura, es-

Minha única
queça-o imediatamente.
Não perca seu tempo com
polarizações bestas nem debates
obtusos.

proposta para
Doce ou salgado, fermenta-
do ou destilado, popular ou eru-
dito… De tudo o que os extremos
oferecem, aprecie o melhor.

este milênio
Faça listas inúteis:
Os dez melhores livros que
já leu. Os dez melhores filmes a
que já assistiu. As dez melhores
peças teatrais, composições mu-

N
sicais, obras de arte…
Depois jogue as listas no lixo.
em leveza, nem rapidez, nem exati- Localize o danado. Aprenda a vibrá-lo com Viaje pra fora e pra dentro,
dão, nem visibilidade, nem multipli- intensidade. Sempre com intensidade. pra longe e pra perto, Messias.
cidade, nem consistência. Acenda sem medo todas as luzes de teu texto, Pra fora: visite uma comu-
Minha única proposta é outra. ligue sem receio todos os eletrodomésticos de tua nidade indígena. Organize um
Intensidade, Messias. INTEN- sagrada escritura. grupo de leitura numa prisão.
SIDADE. Coração & cérebro são máquinas que preci- Você perceberá que longe
É o que não pode faltar jamais na literatura sam bombear na potência máxima. não é apenas Paris ou Tóquio.
brasileira. Aprenda também a controlar, apenas com a Longe não é medido somente em
Expandir os cinco sentidos até o limite da sa- voz interior, as avalanches e os maremotos de tua quilômetros. É também a dis-
nidade, acelerar a memória e a presciência no autó- pulsão literária. tância que separa os círculos so-
dromo da razão. A partir de tudo o que você leu & viveu, mol- cioeconômicos.
Messias, meu amigo, acenda todas as luzes de de mundos, vastos mundos, não mundinhos insig- Pra dentro: visite teus me-
tua mente, de teu corpo. Não tenha medo de bri- nificantes. dos & frustrações.
lhar mais que o sol. Intensidade, querido Messias — você já per- Organize uma expedição
Acenda a luz dos quartos, da sala, da cozinha, cebeu, espertinho — quer dizer PAIXÃO. de um indivíduo só — usted,
da área de serviço, dos banheiros e dos corredores. Não escreva um único período ou uma úni- hombre — rumo ao teu futuro
Deixe a eletricidade fluir livremente através ca estrofe que não sejam atravessados num segundo interior.
dos fios de cobre de tua residência mental & corpo- pela eletricidade da paixão. Imagine-se com duzentos
ral, sem temer a sobrecarga. O piloto-automático, amigo meu, atire o mal- anos de idade, depois com mil
Sem temer os vizinhos e a polícia. dito pela janela. Assuma o controle da astronave. anos, então com dez mil.
Messias, querido meu, ligue todos os eletro- Enamore-se da perigosa dinâmica do voo. Imagine-se com duzentos
domésticos. Dissolva-se nela. Torne-se o comandante, a nave e quilômetros de largura, depois
Deixe a tevê e o aparelho de som no volume o próprio voo. com mil quilômetros, então com
máximo. Não tente justificar racionalmente esse amor. dez mil.
Sugue toda a energia da hidroelétrica mais Não invoque motivações pragmáticas — di- Imagine-se estrela. Galá-
próxima. nheiro, sucesso, dever moral, etc. — pra escrever xia. O universo.
Repito: intensidade é a palavra-chave. um poema, um conto, uma crônica ou o capítulo Lembre da simetria que
Pare de pensar pequeno. de um romance. coreografa a dança da realidade.
Antes de começar a escrever um poema, um Escreva porque não escrever não é uma op- Lembre das palavras do chi-
conto, uma crônica ou o capítulo de um romance, ção. Assim como não respirar ou não dormir não leno aloprado-iluminado, parcei-
vá até a janela aberta e grite o mais alto que puder. são uma opção. ro de Moebius: tudo o que você
Expulse de tua vida a autocrítica assassina. Esteja armado, em guerra. Paixão combate a será, já está sendo. O que saberá,
Está entendendo, Messias? doença e a morte. já sabe. O que você busca está a
Antes de começar a escrever, atire pela janela Paixão, querido Messias — você já percebeu, sua procura, porque está em você.
a autocrítica homicida, esse demônio estéril & es- espertinho — quer dizer EPIFANIA. Você, valoroso, é a divinda-
terilizante. Mesmo que você more num deserto gelado de civil de tua própria religião. É
Escancare a porta da geladeira. Deixe a cor- ou fumegante, não escreva nada que não germine um potente gerador de ilumina-
rente de ar frio violentar a corrente de ar quente, rapidamente. ções profanas. Aproveite-as bem.
alimente o furacão que habita tuas entranhas. Não escreva nada cujas raízes não sorvam a Epifania, querido Messias
Não seja tão ponderado, meu amigo. Não se- santidade do solo, cujos galhos não procurem a ilu- — você já percebeu, espertinho
ja tão comedido. minação celeste, cujas folhas não lancem estrelas — quer dizer INTENSIDADE.
Onde você aprendeu a exercitar essa tepidez sobre as pessoas. Expresse tua verdade com
emocional & poética? Enfim, camarada, não escreva se não for pra determinação, mesmo que no
A natureza, quando dá ou tira a vida de suas disseminar uma nova ecologia de valores & vonta- início seja apenas tua verdade.
milagrosas criaturas, não é nem um pouco ponde- des, crenças & desejos. Está entendendo?
rada & comedida. E acima de tudo, Messias, aumente o volume Invista toda a energia na
Intensidade, Messias. INTENSIDADE. da música sempre que os senhores da verdade se pro- renovação. Não perca tempo
Não desenhe personagens mornos ou situ- nunciarem dogmaticamente. com revoluções.
ações cálidas. Não domestique as metáforas e as Querido, não interiorize a dissonância alheia. Revoluções são injustas e
imagens. Não empreste teus ouvidos ao ruído das ruínas. sangrentas.
Teu cotidiano pode e deve ser sossegado, nem Já há uma multidão muito grande em tua Não valorize demais os
muito frio nem muito quente — é saudável que se- mente, em teu corpo. Você não precisa dar abrigo a mistagogos e os consiliários.
ja assim: equilibrado —, mas a ficção e o verso não multidões estrangeiras. Não me valorize demais,
podem e não devem. Não valorize demais os agentes bancários, li- por favor. Não memorize este
Localize o mais rápido possível, no feixe de terários & editoriais que não valorizarem você. discurso.
nervos que aciona teu corpo e teu espírito, o finíssi- Muito menos os jornalistas, os críticos, os Terminada a leitura, es-
mo nervo da invenção. Da fantasia literária. professores e os conselheiros sentimentais. queça-o imediatamente.
34 | | novembro de 2014

prateleira | INTERnacional nossa américa, nosso tempo


| João Cezar de Castro Rocha

As raízes
A playlist da minha vida
Leila Sales
Trad.: Amanda Orlando
O pântano das borboletas
Federico Axat / Trad.: Fátima Couto
Tordesilhas
(ocultas) da
violência?
Globo Livros 512 págs.
310 págs.
1974, na fictícia cidade de Car-
Elise sempre esteve envolvida nival Falls: durante uma violen-
com alguma coisa realmente difí- ta tormenta, Sam Jackson, bebê
cil de suportar. Longe de ser algo de um ano, perde a mãe. Como
ruim, ela adora quando os desa- se não bastasse, o corpo da mãe
fios aparecem. Quando completa some misteriosamente. Anos de-
quinze anos, resolve assumir um pois, já pré-adolescente, vê-se O calor da hora Ayotzinapa pode ser aqui
desafio ousado: tornar-se uma cercado por problemas típicos da O calor da hora parece ter Em Ayotzinapa, povoado de Iguala, municí-
pessoa “legal”. Ela falha, e sua idade, morando na fazenda dos retornado com força ao colunis- pio do estado de Guerrero, no sul do México, no
vida fica ainda pior. Até que um Carroll para crianças sem lar. Suas mo brasileiro. dia 26 de setembro deste ano, 43 estudantes da
dia, numa caminhada durante a amizades, porém, estão distante: Explico. “Escuela Normal” foram sequestrados e seu para-
madrugada, encontra um galpão o inseparável Billy e a rica Miran- A atual polarização que deiro continua ignorado.
onde está rolando uma festa, e é da Matheson, por quem Jakcosn domina o período eleitoral es- O desenrolar das investigações revelou um
aí que a garota encontra o am- se apaixona — sem saber que seus timulou um número crescen- cenário muito próximo ao discutido no filme El
biente propício para se soltar. destinos já estavam traçados. te de colunistas a explicitar suas infierno (2010), escrito e dirigido por Luis Estra-
opções ideológicas e partidárias. da. O filme explorou a presença tentacular do nar-
Trata-se de fato de grande relevo, cotráfico na sociedade mexicana contemporânea,
especialmente porque, via de re- e, pelo avesso, ajudou a desconstruir as celebrações
gra, as páginas do mesmo jornal oficiais preparadas para o ano de 2010: afinal, ao
abrigam decisões opostas. Desse mesmo tempo, comemorava-se o centenário da
modo, dilui-se o mito da impro- Revolução Mexicana e o bicentenário da Indepen-
vável imparcialidade dos meios dência mexicana.
de comunicação. Nas investigações realizadas em Iguala, des-
Pois é: havia planejado cobriu-se que o prefeito, José Luis Albarca, trans-
A tristeza do samurai Reflexões do gato Murr iniciar uma série de artigos de- formara a administração pública num braço do
Víctor del Árbol Hoffmann
dicada à centralidade das artes narcotráfico na região; aliás, envolvido com a fa-
Trad.: Eduardo Brandão Trad.: Maria Aparecida Barbosa
plásticas em certa vertente da li- mília da esposa do prefeito. Os estudantes eram
Companhia das Letras Estação Liberdade
451 págs. 440 págs.
teratura brasileira contemporâ- ativistas políticos e, pelo que já se sabe, foram apre-
nea, com destaque para a ficção endidos pela polícia municipal. Posteriormente,
Barcelona, nos idos de 1970: a Temos aqui um gato-narrador. de Sérgio Sant’Anna e de Evan- foram entregues ao grupo “Guerreros Unidos”, isto
advogada María Bengoechea se Murr, metido a intelectual e lon- do Nascimento. é, ao crime organizado. A execução dos estudantes
torna famosa por colocar atrás ge de ser modesto, resolve pro- Um acontecimento urgente, deveria desestimular futuros protestos e denúncias
das grades o inspetor César Al- duzir a própria biografia com o porém, adiou o projeto. Contudo, de corrupção.
calá. O escândalo, aparentemen- intuito de legar à posteriorida- não tratarei das eleições no Brasil Na busca pelos estudantes desaparecidos, vá-
te solucionado, ressurge dez anos de o registro de sua excepcio- — cujo resultado já será conheci- rias fossas clandestinas foram encontradas e o nú-
depois, quando ela descobre que nal existência felina. Assim, em do quando este artigo for publica- mero de mortos não para de crescer.
outros sujeitos estavam envolvi- meio a reflexões filosóficas e di- do. Discutirei um fato recente, e Em outras palavras, o caso dos 43 normalistas
dos. No decorrer da investigação, vagações banais, o gato passa ao traumático, ocorrido no México. não constitui uma exceção, porém a regra do jogo
o caso inicial se liga com uma mundo momentos marcantes de Avanço passo a passo. político de um Estado transformado em instrumen-
tentativa de assassinato ocorrida sua vida, desde o primeiro hu- Estive no país de Juan to criminoso. Numa expressão que se torna domi-
há 40 anos. Assim, nasce um en- mano que o serviu uma tigela de Rulfo para apresentar um livro, nante, é a emergência definitiva do narcoestado.
redo entrelaçado e cheio de revi- leite até a idade adulta, quando ¿Culturas shakespearianas? Te- E não é tudo.
ravoltas, ligado constantemente estabeleceu uma peculiar amiza- oría mimética y América La- O episódio em Iguala pode ser descrito como
com a história da Espanha. de com o poodle Ponto. tina1. Nele, propus um novo a autêntica crônica de um sequestro anunciado, pois
conceito ao arsenal do pensa- acontecimentos anteriores já haviam explicitado a
mento de René Girard: interdivi- tensão crescente da política local. No entanto, nada
dualidade coletiva; conceito esse foi feito para dirimir os problemas, e, mesmo após o
que implica uma forma própria sequestro, a reação oficial foi praticamente nula.
de tornar o outro invisível, a vi- Mais: somente quando os protestos torna-
sibilidade fraca, que, por sua vez, ram-se nacionais e, especialmente, internacionais,
favorece a inclusão excludente. as autoridades federais assumiram o controle da in-
vestigação sobre o paradeiro dos estudantes, pois os
(Apartação, sugeriu Cristo- Estados Unidos, a ONU e a Comunidade Euro-
As doze tribos de Hattie Inseparáveis vam Buarque, é o tipo de apartheid peia passaram a pressionar o governo mexicano.
Ayana Mathis Alessandro Piperno
social que se perpetua no Brasil.)
Trad.: Claudio Carina Trad.: Marcello Lino
Como entender?
Intrínseca Bertrand Brasil
224 págs. 416 págs.
Através da articulação des- No México, todas as manhãs lia os jornais
ses conceitos, pretendo oferecer tratando de compreender a barbárie ocorrida em
Hattie Shepherd, jovem de 17 O autor volta aos irmãos Ponte- uma hipótese alternativa a respeito Ayotzinapa.
anos, foge da Geórgia devido à corvo, protagonistas de Persegui- da violência endêmica, estrutural, Vale esclarecer que não o digo como um hi-
violenta política racial que assas- ção, neste romance que fecha o definidora da circunstância latino- pócrita europeu ou um arrogante norte-americano,
sinou seu pai. Passados dois anos, díptico O fogo das lembranças. Fi- -americana. Ora, como a teoria “surpreendidos” com a brutalidade dos fatos, como
vive numa pequena casa na Fila- lippo e Samuel Pontecorvo sem- mimética, desenvolvida por René se seus países não multiplicassem eventos de enor-
délfia, com o marido e um casal pre foram inseparáveis, apesar das Girard, propõe uma abordagem me violência contra nações menos poderosas.
de gêmeos. Quando seus filhos personalidades distintas. A boa rigorosa acerca da centralidade da Ao fim e ao cabo, sou brasileiro.
morrem de pneumonia, todos relação muda quando o primei- violência nas origens da sociedade, Isto é, entre nós, nada mais comum do que
seus sonhos são desfeitos. Ao dar ro se torna famoso da noite para o conceito de interdividualidade listar jovens da periferia que sofrem as consequên-
à luz uma nova criança, já caleja- o dia e o segundo entra em uma coletiva almeja imaginar uma lei- cias de uma polícia cuja violência é inversamente
da pelas mazelas da vida, Hattie crise, entre um investimento de tura nova do problema. proporcional ao poder aquisitivo dos cidadãos.
resolve criá-la sem ternura, como risco e um impasse sentimental. Vejamos se o conceito au-
um general preparando o solda- Desta vez, nem mesmo a proteto- xilia a entender um recente (Acrescente-se um dado: todos os dias, vítimas
do para confrontar o inimigo. ra mãe conseguirá evitar a ruína. acontecimento. da violência, 24 adolescentes morrem no Brasil.)
novembro de 2014 | | 35

ilustração: Theo Szczepanski

Leio, releio e tresleio inúmeros artigos e colunis- Tal esquizofrenia coletiva recordar os feminicídios de Ciudad Juárez que concretos) la relación Sur-Norte es
tas, porém não me satisfaço. Recorrer à “banalidade foi plasmada paradoxalmente. ocorrem há pelo menos duas décadas? secundaria. (…) Somos espanãs,
do mal”, de Hannah Arendt, não dá conta da neces- Adotamos como mode- Ou o modo em que o governo brasileiro trata portugales, grecias ultramarinas.
sidade urgente de mirar o contemporâneo com olhos lo um Outro absoluto, a cujos a questão indígena no caso da polêmica construção
novos (e, se possível, livres). Tampouco lança luz sobre valores e ideais buscamos nos da usina de Belo Monte? (Aliás, em outubro desse
o problema limitar-se a descrever (mais uma vez!) o adaptar. Esse Outro sempre foi Isso para não mencionar os casos crescentes e ano-emblema, 1968, o massacre
colapso das instituições estatais ou sua inesperada vo- forâneo e sua autoridade, em tese alarmantes de homofobia no Brasil. de Tlatelolco, no qual centenas
cação mimética com o crime organizado. inquestionável, é derivada tauto- E o que dizer da maneira como os imigrantes de estudantes foram assassina-
No fundo, esse é o dilema constitutivo das logicamente de sua condição de ilegais são recebidos em nossos países? Realizamos dos, esclareceu, pelo avesso, as
culturas latino-americanas; portanto, pouco im- estrangeiro. A reiteração é a regra a façanha de tratá-los de modo mais desumano do consequências propriamente
porta se falamos do Brasil ou do México. de ouro do procedimento. que sempre fomos tratados do outro lado da fron- trágicas da aguda observação do
Ao mesmo tempo, essa teira norte-americana. poeta-pensador mexicano.)
(Férrez, aliás, expôs essa circunstância com adoção acrítica teve como contra- Em vocabulário emprestado à teoria miméti-
agudeza em Manual prático do ódio.) partida o rechaço violento, ainda ca de René Girard, esse “outro outro” é o bode ex- Não há solução possível
que inconsciente, de numerosos piatório de nossos países. para esse dilema sem um en-
Esclareço a noção recordando o voo que fiz grupos que constituíram e ainda Daí a dinâmica perversa fotografada por frentamento radical dessa cir-
numa companhia aérea mexicana. hoje constituem nossa circuns- Cristovam Buarque: cunstância. Em tal contexto, é
Um breve vídeo instruiu os passageiros sobre tância. A visibilidade fraca e a in- sintomático que os governos la-
as regras básicas de segurança. Para além de instru- clusão excludente definem o perfil Um dia desses, no estacionamento de um tino-americanos costumem se
ções ociosas, destacava-se o que não se via: somente dessa assimetria brutal. McDonald’s, em Brasília, dois jovens dentro de um preocupar muito mais com a re-
pessoas brancas apareciam; ninguém que, ao me- Eis a hipótese que anima carro se divertiam despejando batatas fritas no chão percussão internacional de acon-
nos, se assemelhasse a um indígena, nem mesmo este artigo: por que não denomi- para que pivetes pobres fossem atrás catando. (...) O tecimentos como os de Iguala do
alguém que se parecesse aos tantos mestiços que nar tais grupos o outro outro dos que faz com que um grupo se divirta daquela forma e que com a sua prevenção ou sua
são maioria em nossos países. nossos países? Não desejamos re- outro rasteje daquele jeito? efetiva investigação.
conhecer sua centralidade, não O que permitiu a cena repugnante foi que os Vale dizer, mesmo diante
(Brancos, todos brancos. Bem entendido: desejamos vê-lo no espelho de donos do carro se sentiam diferentes dos pobres pivetes. da barbárie produzida pelo des-
brancos na acepção brasileira, diagnosticada por nós mesmos. (...) Apesar da língua comum, da mesma bandeira, prezo vitimário que alimentamos
Oracy Nogueira: trata-se, acima de tudo, de uma Exatamente como no bre- de poderem votar no mesmo presidente, os dois grupos em relação ao “outro outro”, o
questão de aparência.) ve vídeo da companhia aérea se sentiam apartados um do outro, como seres diferen- Outro segue determinando nos-
mexicana. tes. 2 so pensamento e reações.
Eis que as dimensões se cruzam: o sequestro Eis o traço próprio da vio-
dos normalistas de Ayotzinapa e a invisibilização (Ou: exatamente como na Falta, então, formular uma nova pergunta: lência estrutural das sociedades
social do outro. televisão brasileira.) por que se multiplicam os bodes expiatórios nos latino-americanas.
Aqui, talvez, se encontrem as raízes mais pro- países latino-americanos?
fundas do tipo de violência que produz aconteci- Duplo movimento Sugiro uma possibilidade: porque não quere-
mentos como os ocorridos recentemente em Iguala. Eis o duplo movimen- mos reconhecer que, para o Outro absoluto, objeto
Proponho, então, uma hipótese. to que ainda hoje condiciona nada obscuro do nosso desejo, sempre fomos, no Notas
Vejamos. a dinâmica do dia a dia latino- cenário internacional, o “outro outro”. O desprezo
As sociedades latino-americanas foram cons- -americano: aceitação do Outro vitimário que permite barbáries como a de Ayotzi- 1. ¿Culturas shakespearianas? Teoría
tituídas a partir de um movimento duplo e, sobre- forâneo; recusa do “outro outro” napa é a resposta que inventamos para enfrentar o Mimética y América Latina. (Cátedra
tudo, contraditório. Octavio Paz compreendeu no interior de nossas fronteiras. medo multissecular de reconhecê-lo. Eusebio Francisco Kino/ITESO/
perfeitamente o fenômeno ao mencionar a “escisi- Tal recusa costuma traduzir-se Octavio Paz sintetizou o desafio em carta a Universidad Iberoamericana.) Uma
ón psíquica” que atravessa a história mexicana, for- em desprezo vitimário; como se Carlos Fuentes, enviada em 16 de março de 1968: tradução ao português, realizada por
madora do “labirinto de la soledad”, construído a não tivesse o mesmo valor o “ser” Pedro Sette-Câmara, sairá em 2015
partir do divórcio estrutural entre ideias alheias e de tantos “outros outros” — os (...) Como a Hegel no le interesa América y me- (Editora É Realizações) e ao inglês em
circunstâncias locais. indígenas, os mestiços, os pobres, nos aún Sudamérica (para los europeos nosotros los 2016 (Michigan State University Press).
em geral, e todas as minorias. mexicanos también somos el sur… y no se equivocan.) 2. Cristovam Buarque. Apartação. O
(Paz bem poderia ter dito: história latino- Haverá forma mais elo- En el “topos” político y filosófico europeo (hay una to- apartheid social no Brasil. São Paulo:
-americana.) quente de demonstrá-lo que política como hay una topoesía: Mallarmé y los poetas Brasiliense, 2003, p. 9-10
36 | | novembro de 2014

ilustração: Ramon Muniz

Processos críticos
O legado do programa de estímulo à crítica literária para jovens profissionais talentosos

Lourival Holanda | Recife – PE


novembro de 2014 | | 37

E
ste caderno é um mo- marxianos daquele momento. com a tarefa porque a crítica acompanha a litera-
do de sentir o pulso
A democratização Os críticos de agora estão bus- tura, como a literatura a vida; uma sem a outra se
da experiência crítica da palavra crítica cando conjugar certa lucidez empobrece. Ela é mais que um epifenômeno da
fora do espaço acadê- nas redes precisou com alguma leveza. O desafio literatura. Os novos meios pedem novos modos
mico. O gesto deriva perder o peso deles, especialmente no mundo — a democratização da palavra crítica nas redes
do sucesso de duas das edições analítico-discursivo virtual, parece ser encontrar o precisou perder o peso analítico-discursivo para
do Rumos Itaú Cultural — Lite- ponto equidistante entre a mera desposar um modo argumentativo mais rápido.
ratura, 2007-2008 e 2010-2011, para desposar um opinião e a repetição de evidên- Requerendo a coragem de um tom autoral. Helo-
a última, sob minha mediação. modo argumentativo cias conceituais anteriores. ísa Buarque de Hollanda — consultora para essas
Para o programa, o instituto ou- mais rápido. duas edições do programa — diz acertadamente
sou criar um Laboratório online Afastar o mofo que a crítica carrega sempre um traço autobiográ-
de crítica literária — que resultou Algumas vezes acontece de fico. Erich Auerbach enfrentava magistralmente a
nos volumes Protocolos críticos o imaginário literário preceder o questão assumindo sua voz, suas escolhas — que
(Iluminuras, 2008) e Desloca- da ciência; já a crítica literária, pesquisa anterior embasava bem. E, desde cedo,
mentos críticos (Babel, 2011). mais modesta, acompanha es- mostrava a narração literária compondo com o rit-
Dentre todos os selecio- se movimento de adequação de mo do cinema. Affonso Ávila sempre demonstrou
nados para os laboratórios reali- um modo a um tempo. Perio- aguda sensibilidade literária em suas análises aber-
zados no Rumos Literatura, seis dicamente ela se vê instada a se tas, pondo a memória em movimento: inventário
foram convidados a expor suas repensar. Assepsia salutar: afas- e invenção se consorciam. É também o trabalho
ideias nas próximas páginas. Eles ta o mofo do pensamento que que faz Heloísa, pondo sua experiência na acolhi-
avançam nus, expondo o que está se desintegra porque intocado. da de novos talentos. O tom e o tempo são ou-
consubstanciado à sensibilidade E então cria diversos ângulos de tros, mas a paixão crítica segue. Antonio Marcos
analítica de cada qual. Recolhem percepção para tentar apreender Pereira se dá conta disso quando constata que há
o legado com posição renovada: o máximo das experiências lite- “mais crítica, e mais espaços, muitos muito leves,
nem recusam nem repetem nem rárias. Daí os debates, algumas improvisados, e heterodoxos”. Mesmo apontan-
enrijecem. Como se apostassem vezes divergentes e frutuosos — do certo modo gauche de alguns críticos no espaço
numa inteligência possível no e que o virtual incrementou, de- virtual. E esses críticos não temem a vulgata das
imprevisível dos links. mocratizando. No entanto, os escolas, redutoras, para definir suas leituras. Pode-
Andréa Catrópa já apon- novos críticos estão atentos ao -se esperar deles uma necessária refundação da crí-
tava redução nessa crítica “sendo que pode parecer efeito-ameba: tica? Fica em aberto. Cada crítico põe em questão
confinada aos meios acadêmi- aquilo que, nas redes sociais, se a própria literatura — e, com sorte, a alarga. Mas
cos”. Como se aqui já se ouvis- multiplica sendo sempre o mes- a crítica se vê desafiada pelas novas possibilidades
se eco perverso, à la Gregório mo. Fazem ponte entre o rigor e narrativas. Vale ler o texto de Cristiane Costa: a
de Matos: Confinada? Finada. a renovação. Talvez findem por função cultural da crítica em apontar a singulari-
A questão vem desde 1945, com desaguar no que Alckmar dos dade de um modo de expressão que, porque novo,
a passagem da crítica no rodapé Santos — que mediou o labo- ainda vai criar seu público. Uma percepção mais
de um periódico ao espaço aca- ratório da edição 2007-2008 do linkada com o contemporâneo permite ver a joga-
dêmico. Quando então se torna Rumos Literatura — almeja: um da de Amilcar Bettega desde a primeira página do
uma disciplina, um campo de- debate intelectual. Por certo, isso romance Barreira; a sucessão de links aleatórios
marcado e defendido. A deriva se opõe ao anterior espaço sitia- em Matteo perdeu o emprego, de Gonçalo Ta-
hegeliana e positivizante ainda do de reserva de autoridade. vares. Rodrigo Almeida chama para a inteligibili-
vigente pede leis; o método as- No momento, o tem- dade do processo de criação — os imprevistos fios
segura contra delírios interpre- po é de perigosa prevalência do narrativos. O leitor perde a passividade receptiva
tativos; mais fácil que o esforço mercado sobre a criação; e o anterior e já aguça o olhar por esse quarto só seu, de
demandado pela atenção rigoro- mercado pensa o imediato — onde alguém escreve. Machado de Assis continua
sa à imanência do texto. Como portanto, precisa que seus pro- balizando o caminho, certo; mas importa aqui ver
toda grande obra tem dimensões dutos sejam maquiados com a sua recepção na atualidade — é o que traz Victor
fractais — singularidades irre- etiqueta de singularidade, mas da Rosa, conjugando recepções. Com a cautela de
dutíveis — nenhuma teoria casa garantidos, todos, por certa uni- que a leitura atual é uma percepção, não uma defi-
com o real do texto. Ainda assim formização; portanto, vendá- nição: não nega as outras visões.
os tecnicismos teóricos garan- veis. Tudo é espetacularizado, Pode-se pensar que eles negligenciam as re-
tiam prestígio com a fetichização diria Santos. Como se esquecês- ferências? Seria injusto: e justamente porque alar-
desse discurso demarcador. Des- semos de que o pensamento vê gam a liberdade crítica para outros objetos: Hilary
sa forma, tanto Andréa quanto mais — e confiássemos a alma Kaplan dá uma densidade mais vivencial — qua-
Antonio Marcos Pereira apon- aos olhos. Não é de hoje: Mar- se visceral, até — chamando a consciência crítica
tam o risco de as redes repetirem cel Proust observava que ao mer- a responder pela natureza imediata, na abordagem
a falsa garantia dos grupelhos. cado tanto faz vender um texto da ecocrítica. Na literatura a natureza está à distân-
A Academia pode ser uma inovador ou um sabonete; como cia, para ser contemplada. Essa nova via convoca
reserva; não deveria ser um exílio. os modelos de nossos smartpho- a uma responsabilidade face ao conjunto dos se-
Cabe cobrar a pertinência social nes. O igualitarismo, sonhado no res vivos. Há sempre aposta nessa paixão crítica —
de um serviço que dali poderia ser campo social, se fez realidade no mas o saldo pode ser muito positivo.
prestado à comunidade leitora. mercadológico. A crítica literá- Assim, a função crítica continua, entre palpi-
Isso porque, no processo natural, ria anterior pretendia prestar um tes, paixões e proficiências. No futebol, a cada jo-
à formação deveria suceder a cria- serviço alargando as possibilida- go todo torcedor se arvora em árbitro; mas sempre
ção. Portanto, com risco e tudo. des de leitura de um texto. Cer- se crê que o juiz armou de conhecimentos técni-
Uma crítica inventiva se- to, algumas vezes vinha com tom cos sua vulnerabilidade. Os textos teóricos deixam
rá sempre uma crítica instável, de tribuno; as teorias de alguns visíveis certas folgas, como se diz de um mecanis-
sujeita a revisões, com mais go- traziam um carregado sotaque mo não bem ajustado. Mas aqui é um valor: um
zo que angústia, quando se livra teológico com peso de preten- pensamento móvel é mais vivo. Um tom de expe-
desse dever de acerto. Ela pare- são de certezas; coisas do tempo, rimentação prima sobre a experiência. Mas já a in-
ce atenta a não reduzir as mul- aquele. Buscava-se uma excelên- teligência analítica se faz presente. Andréa Catrópa
tiplicidades latentes a unidades cia que se sobrepunha ao apenas ou Antonio Marcos Pereira não se deslumbram,
forçadas. A crítica sistemática, experimental e efêmero. Outros antes, dessacralizam a liberdade aparente do espaço
carregada de conceitos, permi- tempos. Por isso o Itaú Cultural virtual; por ser mais rico em recursos não dispensa
te pouca mobilidade, quase ne- — aqui no Rascunho — deu a postura mais reflexiva: pensar em uma reação crítica
nhum espaço de descoberta ou palavra a esses novos críticos. que se lançasse na aventura de responder criativamen-
imprevisível. Freud reclamando te às características dos meios digitais. Esses novos
já da monotonia das soluções Tom autoral críticos caminham para um ponto meridiano: uma
da vulgata psicanalistas; Marx, Os novos críticos (novos reflexão própria, sem temor das sombras; e a cons-
em carta a Engel, comentando é aqui menos questão de ida- trução de uma exigência que conjugue lucidez e le-
a pobreza das interpretações dos de que de atitude) prosseguem veza. Um bom desafio. Façam suas apostas.
38 | | novembro de 2014

Microensaios
De Salvador,
críticos
Antonio Marcos Seis jovens críticos enfrentam o desafio de pensar o estado
Pereira observa
que a crítica atual da crítica literária brasileira em pequenos espaços

E
abunda. Mas...

m uma edição recen-


te do jornal Cândido,
Eduardo Sterzi an-
tagoniza a ideia de
morte da crítica, e
sugere que “talvez nunca tenha
existido tanta crítica literária no
Brasil como no tempo presen-
te”, apontando para a fartura
de suportes novos e alternativos
para a veiculação de comentário
sobre literatura. Isso me parece
acertado: coisa à beça se faz co-
mo crítica literária hoje, e pro-
vavelmente nunca se fez tanto,
indo dos conhecidos cadernos
associados aos veículos mais
consagrados até os mais mam-
bembes blogs literários, pas-
sando por publicações como

ilustração: Ramon Muniz


aquele Cândido ou este Rascu-
nho e por uma infinidade de
comentários, com toda ordem
de propriedade, constituindo o
conteúdo das redes sociais. Há
uma proliferação de espaços e
uma coisa punk, um “faça você
mesmo”, inscrito no espírito do
tempo, que toca a literatura e a
crítica literária também.
Testemunhar a emergência
dessa multiplicação de possibili-
dades para a crítica literária ca-
racteriza a experiência de minha
geração, que viveu essa passagem
do papel para a internet. Toda-
via, e na mesma medida em que
constato, com Sterzi, a abundân-
cia, imagino estar diante de uma
ordem particular de pobreza.
Pois acima e abaixo o que vejo
passar como comentário de lite-
ratura tende a ser apenas, e tão
somente, isso: algo é lido e co-
mentado, e tal comentário pou-
co sai da aprovação ou censura,
pendendo significativamente
mais para o aplauso. É comentá-
rio, é abundante, mas parece, via
de regra, alheio à própria ideia
de problematização da literatura,
do campo literário, da folia lite-
rária, do que faz o comentador
apreciar o livro lido, do que fa-
lhou no lido a ponto de produzir
o arrependimento pela leitura. A
bola da vez é o posicionamento
inequívoco, que facilmente dá
lugar ao peremptório, em uma
versão de assertividade que tem
relações muito íntimas com a ve-
lha crítica puramente judicati-
va e “impressionista”. O grau de
antagonismo é mínimo e, quan-
novembro de 2014 | | 39

...me pergunto se gente não julgava possíveis, tam- Durante muito De São Paulo,
bém está aí, no mesmo esquema. Andréa Catrópa
vale mesmo chamar Em uma interpretação imedia- tempo, críticos critica a crítica

S
de ‘crítica’ a uma ta, dicção se refere à maneira de literários tiveram virtual
atividade anódina pronunciar a palavra, recobrin- o poder de criar e
de confirmação do do portanto a dimensão mais destruir reputações. e nos remetermos
superficial do que se comunica. a um fenômeno re-
gosto e de cortejo ao Mas hoje não falam
Mas numa acepção igualmente cente no campo
aparato editorial... adequada, e que me parece mais sozinhos nem têm a da crítica literária
interessante aqui, dicção apon- mesma postura. — o espaço aberto
ta para uma marca própria da em alguns sites de editoras e de
enunciação, uma qualidade do grandes livrarias para a inclusão
dizer que seja expressiva e iden- de resenhas de livros, sejam elas
tificadora. E isso, creio, falta à oficiais (redigidas por profissio-
nossa crítica sim — e provavel- nais) ou espontâneas (produzi-
mente falte à nossa literatura das por leitores) —, poderíamos
contemporânea também, mas is- considerá-lo como uma forma
so talvez já seja outro assunto. propícia ao debate e à divulgação
de diferentes opiniões acerca de
um mesmo objeto. No entanto,
Do Rio de Janeiro, a aparente potencialidade desse
Cristiane Costa ambiente para ampliar a discus-
esfarela a crítica são sobre os textos que circulam
do “Tostines entre críticos e leitores ainda traz

Q
invertido” resultados decepcionantes.
Diferentemente dos im-
uem se lembra do pressos, os veículos virtuais
slogan publicitá- idealmente não teriam um li-
rio dos biscoitos mite espacial preciso, nem so-
Tostines — Ven- freriam as restrições habituais
de mais porque é de distribuição dos primeiros.
fresquinho ou é fresquinho porque Além disso, a associação de tex-
vende mais? tos a imagens, animações, sons
Críticos literários  em ge- e links poderia tornar a resenha
ral  costumam torcer o nariz crítica publicada na internet
diante das listas de mais ven- mais rica em recursos associati-
didos. Em seu universo par- vos e referenciais.
do aparece, se lança fácil pro ad ticular, vigora uma espécie de de  fãs emanciparam o público Ocorre que essa aparente
hominem — mas diagramação lógica Tostines invertida: se um de mediadores, sejam eles críti- liberdade ainda não dá o tom
da diferença na opinião, necas. livro é bom, não vende; se ven- cos, jornalistas ou políticos. do que geralmente encontra-
Embora me custe muito de, não é bom. Mas essa posi- Por isso, é urgente repensar mos. E muitas vezes, observa-
parecer estar defendendo uma ção orgulhosamente autônoma o papel do crítico literário. No mos um fato curioso: quando
posição conservadora, não ve- em relação ao mercado edito- artigo A crítica como papel de ba- se trata de obras canônicas, nor-
jo nada de novo no front. Há rial pode camuflar aquilo que la, publicado originalmente no malmente o espaço destinado
abundância? Sim, mas é fartura Pierre Bourdieu, em seu até ho- blog do suplemento literário do a resenhas não recebe colabo-
de uma ortodoxia careta e irrefle- je polêmico  As regras da arte, jornal O Globo, Flora Sussekind rações dos leitores e, quando
xiva, e de uma tendência ao in- chama de subordinação estrutu- sugere que o crítico se afaste ca- muito, abriga um lacônico texto
sulamento tribal mais ferrenho, ral do campo artístico ao cam- da vez mais de sua função como de apresentação fornecido pe-
com linhas de fidelidade cordial po econômico, por se basear guia de consumo, para bus- la editora. Já em se tratando de
muito precisas, e seus equivalen- no mesmo valor primordial do car “condições reais de inter- best-sellers adaptados para o ci-
tes e contrapartes em demoniza- mercado: a vendagem. venção”, formulando questões nema ou amplamente distribuí-
ção. Nesse sentido, me pergunto A dicotomia não seria relevantes e muitas vezes incô- dos ao público em bancas, lojas
se vale mesmo chamar de “críti- gratuita. A crítica literária se modas, apontando tensões onde de departamentos e supermer-
ca” a uma atividade anódina de firma como uma das instâncias o mercado busca consenso. cados, o número de comentá-
confirmação do gosto e de cor- de consagração justamente atri- Não se trata de voltar à ve- rios espontâneos se multiplica.
tejo ao aparato editorial, cujo buindo descrédito ao sucesso lha dicotomia da lógica Tostines, Temos, assim, no meio di-
resultado mais patente é uma comercial. Daí não surpreende mas se os críticos abrirem mão gital a reprodução de uma es-
emissão incessante de juízos, co- que o leitor médio se pergunte: do risco de pensar os livros como pécie de apartheid cultural que
mo se esse fosse o único devir Por que tudo o que os críticos arte literária, a balança pende- vigora no Brasil há séculos. Na
da crítica. Pouco importando gostam eu detesto e porque eles rá inexoravelmente para o polo internet, reflete-se a divisão
sua zona de aparição — o blog detestam tudo o que eu gosto? oposto, puramente comercial. que deixa a obra de arte para
da adolescente nerd ou o evento E que cada vez mais o leitor co- Com isso, o mercado passará a ser apreciada por um especialis-
acadêmico — a questão central mum divorcie suas escolhas dos ser única instância de consagra- ta, enquanto os meros mortais
para a crítica, creio, há de ser a títulos indicados pelos suple- ção válida. Ou seja: um livro só apenas se atrevem a emitir suas
capacidade de inventar um jeito mentos e revistas literárias, dos será bom se vender muito. Pa- considerações sobre produtos de
de fazê-la que seja também uma prêmios ou do cânone dos cur- ra os autores, esse esvaziamento entretenimento.
nova forma de pensar sobre o as- sos de letras. pode ter um preço muito alto, Referi-me anteriormen-
sunto no qual reside sua oportu- Essa crescente perda de especialmente entre os compro- te às qualidades potenciais de
nidade e justificação. Não sendo influência é o grande dile- metidos com a experimentação publicações online que trariam
isso, será sempre reiteração do ma  da  crítica  diante da cultura estética e/ou a densidade inte- novos elementos a serem ex-
que já está dado, e de onde virá em rede, formada por leitores lectual. Caso autores e livros plorados pela crítica literária.
aprendizado ou avanço, assim? que preferem se guiar pelos co- que escaparem ao fast food mer- No entanto, ecos da máxima
Pois na crítica, assim co- mentários dos amadores e fãs do cadológico deixarem de contar macluhaniana de que o meio
mo ocorre com as possibilidades que por críticos literários com os com o aval da crítica, serão rele- é a mensagem parecem operar,
de um gênero literário, a inven- quais não compartilham mais gados ao ostracismo. nesse caso, em via de mão úni-
ção está sempre presente como repertório nem  vocabulário. Não é à toa que a lista ca: a mensagem forçosamente
potência. Ao se arriscar a elabo- Ou mesmo basear suas com- de  worst sellers, que já engoliu se adequa ao meio, mais co-
rar uma investida que apresente pras nos cada vez mais precisos a poesia e o conto, agora amea- mo uma sanção do que como
algum fator de ruptura, tanto o algoritmos dos sistemas de reco- ça também o romance nacional. uma transformação salutar. Isso
artista quanto o crítico podem mendação das livrarias virtuais. Resultado: se a situação persistir, porque os procedimentos críti-
falhar, cair no ponto cego da Durante muito tempo, críticos só dentro de um sistema de cotas cos parecem prejudicados pelo
audiência, ser ignorados. Mas a literários tiveram o poder de a literatura brasileira contempo- deslizamento característico do
promessa de uma ordem insus- criar e destruir reputações. Mas rânea continuaria a ser publica- universo digital e, ainda, pou-
peita de sucesso, que ao mesmo hoje não falam sozinhos nem da pelas grandes editoras. E não co aproveitam de seus recursos,
tempo informe e forme quem lê têm a mesma postura. Sites, blo- é exagero dizer que isso já acon- utilizando a tela apenas como
a respeito de jeitos de fazer que a gs, mídias sociais e comunidades tece em algumas delas. folha em branco.
40 | | novembro de 2014

Além disso, desde mea- çam sobre o ato de criação, tate-


dos do século passado, à me- ando ao seu modo, como lembra
Para apropriar-se
dida que a crítica foi perdendo Philippe Willemart, um cam- dos novos meios,
espaço nos veículos impressos po virtual na ponte enevoada seria interessante
e sendo confinada aos meios entre “significantes do incons- uma reação crítica
acadêmicos, ela foi se exilando ciente” e “significantes linguísti- que se lançasse
na própria especificidade. Es- cos”. Autores participam de mais
se processo, iniciado em mea- eventos, procurando esclarecer a na aventura
dos do século 20, fez com que ligação entre criação e obra por de responder
a crítica fosse deixando de ter meio da gestação de seus livros; criativamente às
um papel importante na forma- críticos apostam nos caminhos características dos
ção de leitores e na divulgação e descaminhos da escrita como meios digitais.”
de novas obras de qualidade. plataforma reflexiva da forma fi-
Acredito que, talvez, esse papel nal. Nessa ampliação de interes-
pudesse ser repensado, ganhan- ses do sistema literário, por um
do novos formatos. Para apro- lado, o perigo reside no desloca-
priar-se dos novos meios, seria mento do olhar das criaturas pa-
interessante uma reação crítica ra os criadores; por outro, rompe
que se lançasse na aventura de com a posição grandiloquente
responder criativamente às ca- de obra final, acabada, redonda,
racterísticas dos meios digitais. intocável, colocando em pauta
Para isso, possivelmente tería- uma noção de processo e dura-
mos que considerar uma nova ção, um passado imperceptível
modalidade de intervenção do inscrito nas linhas que perdu-
crítico coexistindo com os for- ram. Retomando Willemart, os
matos mais tradicionais (que autores Cláudia Pino e Roberto
mereceria uma discussão apro- Zular sugerem, contudo, que o
fundada de seus desdobramen- processo não deve ser entendi-
tos). Essa crítica virtual, menos do por seu seguimento cronoló-
entranhada em seu universo, gico, mas o inverso, como uma
mais experimental e irreverente, partida da versão publicada em
seria uma tentativa de fomentar direção ao ato de criação. Trata-
e ampliar o debate da literatura -se, portanto, de compreender
por tanto tempo restrito ao diá- apropriações do mundo a partir
logo com os pares. do mundo já inventado.
No campo das publica-
ções, encontramos manuscritos, ...encontramos
De Recife, anotações, frases riscadas, desis- manuscritos,
Rodrigo Almeida tências, persistências, nascentes anotações, frases
desenha a crítica e simultâneas possibilidades do riscadas, (...)

A
de processos que foi, do que poderia ter sido
e simultâneas
e do que não foi. O livro Fic-
sobrinha de John cionais (2012), organizado por possibilidades do
Keats, depois de as- Schneider Carpeggiani, reúne que foi, do que
sistir a uma pales- depoimentos e lembranças de poderia ter sido e
tra em que Oscar inúmeros escritores brasileiros do que não foi.
Wilde cita o Soneto sobre os íntimos modos de cria-
sobre o azul do poeta inglês, de- ção, tomando como referência
cide enviar-lhe os manuscritos um de seus livros. Os textos fo-
originais da obra. No artigo que ram publicados na coluna Bas-
relata essa ocasião, Wilde co- tidores do suplemento literário
menta que o texto “mostra-nos Pernambuco. Também pela ex-
as condições que antecederam a periência de boa parte no campo
forma terminada, o crescimen- da crítica, esboça-se uma carto-
to gradual, não o da concepção, grafia de processos constantes,
mas o da expressão e o trabalho repetidos durante toda carreira,
de depuração, que é o segredo e processos inconstantes, sin-
do estilo” (Chá das cinco com cronizados em particular com
Aristóteles, 1999). A anedo- aquela produção. Percorrem
ta serve apenas como gesto pa- destinos multifacetados: ver-
ra pontuar que a investigação sam sobre a experiência cotidia-
sobre processos, a curiosidade na transmutada em ficção; sobre
diante da criação artística, não a necessidade de encontrar um
sob o nome de crítica genética, problema literário, montar uma
perpassa o imaginário humano situação artificial para criar; des-
há muito tempo, por meio de tacam a influência de leituras re-
empreendimentos entre a Fi- centes, antigas ou acumuladas;
lologia e a Hermenêutica. Seja remontam o acaso, uma vela es-
defendendo o ímpeto da ins- quecida no quarto, um quase in-
piração sagrada, do sentimen- cêndio que se transforma num
to inexplicável, misterioso, que romance. A pesquisadora Cecí-
vem subindo pelos pés até che- lia Almeida Salles lembra que as
gar às mãos e rasgar o papel; percepções cronológicas, nesse
seja motivado pela racionalida- caso, já se tornaram lembranças
de, por orientações precisas na ou reminiscências, passíveis de ...a crítica
composição literária, pelo pas- simulações e invenções de nova internacional tem
so-a-passo, métrica, trabalho e ordem, uma espécie de segun- abordado a obra
suor. Entre um extremo e outro, da ficcionalização, colocando o
uma série de nuances a partir da crítico diante da falta de linea- do autor segundo
obra para compreender a cria- ridade no ímpeto criativo. Res- perspectivas
ção e/ou a partir da criação para ta, portanto, um mapa sobre o distintas, exemplo
compreender a obra. processo com pontos de partida da pesquisa
Saltando para o contexto e pontos de chegada, cuja dire-
sobre o tema da
literário brasileiro dos últimos ção dos traços revela um encon-
anos, é notável a tendência de tro metodológico com as várias fotografia em Dom
iniciativas diversas que se debru- camadas literárias. Casmurro...
novembro de 2014 | | 41

De Belo Machado e Borges (2008), de Cabral, Sérgio Medeiros, Jose-


Horizonte, Luís Augusto Fischer, e Roman-
Embora no Brasil ly Vianna Baptista e Manoel de
Victor da Rosa ce com pessoas (2007), de José os poetas não Barros. As obras desses poetas
evidencia as Luiz Passos. Com o estímulo do se identifiquem miram as paisagens nacionais,
críticas póstumas centenário da morte do escritor, muito com o termo mas, para McNee, o tema re-

A
a Machado de Assis celebrado em 2008, alguns volu- ecopoesia, há um gional se conecta com a noção
mes com ensaios menores tam- de ecologia global. No Brasil, a
crítica sobre a obra bém foram organizados, sendo interesse crescente pesquisa de Maria Esther Maciel
de Machado de Assis um deles, Machado de Assis e a entre críticos sobre os animais na literatura
passou por paradig- crítica internacional, composto internacionais de brasileira — em O animal escri-
mas variados e con- apenas por críticos contemporâ- literatura brasileira to: um olhar sobre a zoolitera-
tou com análises que neos de outros países — o que em identificar a tura contemporânea (2008) e a
alteraram (em maior ou menor também não deixa de ser sin- coleção da qual é organizadora,
grau) a maneira de ler sua ficção. tomático, já que a obra macha- ecopoesia nacional. Pensar/escrever o animal: ensaios
Como se sabe, a obra de Ma- diana vem despertando cada vez de zoopoética e biopolítica (2011)
chado, ainda quando vivo, des- mais interesse no exterior. — enriquece as leituras tanto de
pertou o interesse dos principais Em termos de canoniza- poesia como de outros gêneros.
críticos de seu tempo, e assim ção, sem dúvida a inclusão de Para o 12º congresso da
prosseguiu durante todo o sécu- Machado como “um dos gênios Associação de Estudos Brasilei-
lo 20, com leituras marcantes de da literatura mundial”, suges- ros (Brasa, na sigla em inglês), re-
nomes como Lucia Miguel Pe- tão feita em 2002 por Harold alizado em Londres, em agosto,
reira, Helen Caldwell, John Gle- Bloom, é significativa, já que a mesa The Greening of Brazilian
dson, Roberto Schwarz, entre chamou a atenção para seus li- Literature apresentou o poema
muitos outros. vros de forma inédita. De fato, a clássico de Oswald de Andrade,
A variedade e riqueza das crítica internacional tem aborda- Erro de português (interpretado
abordagens, porém, estão longe do a obra do autor segundo pers- pelo professor Charles Perrone),
de esgotar a obra de Machado, pectivas distintas, exemplo da e Sérgio Medeiros depôs sobre
e nem poderia ser diferente. A pesquisa sobre o tema da foto- sua própria obra poética, que
crítica recente em torno de seus grafia em Dom Casmurro, feita inclui perspectivas de animais e
escritos continua se renovando, pelo alemão Thomas Sträter. plantas. Na ocasião também fo-
o que evidencia, além dos recur- Nesse aspecto, creio que ram apresentados os trabalhos de
sos da própria crítica contempo- os livros de Abel Barros Baptis- Odile e McNee sobre os limites
rânea, influenciada por novos ta sobre Machado, lançados em entre o humano e o não-huma-
modelos teóricos, também a Portugal ainda nos anos 1990, no nas obras de Francisco Car-
grandeza de um escritor. devem marcar um período de valho, Astrid Cabral, Vicente
Nos últimos anos, algu- internacionalização da obra do Cecim, Sérgio Medeiros, Dora
mas leituras conseguiram abor- escritor brasileiro. Não só pelo Ribeiro, Josely Vianna Baptista e
dar os livros de Machado através fato de ser estrangeiro, embo- Manoel de Barros, como objeto
de pontos de vista ainda im- ra tenha também o português de reflexão sobre de que manei-
pensados. Hélio de Seixas Gui- como sua primeira língua, mas ra as teorias de perspectivismo
marães publicou Os leitores de principalmente pelo tipo de lei- e multinaturalismo de Eduardo
Machado de Assis (2004), em tura que faz, e com alto nível de Viveiros de Castro podem con-
que analisa todos os romances argumentação, Baptista mostrou tribuir aos estudos globais de
do autor por meio da figura do ser possível pensar Machado ecopoesia. Vale lembrar que os
leitor. Do artista missionário além da exigência nacionalista, estudos de Odile e McNee mis-
empenhado em ilustrar a mas- o que continua gerando alguma turam a leitura de poesia brasi-
sa, posição visível nos primei- controvérsia entre machadianos leira com uma abordagem crítica
ros romances machadianos, até brasileiros, sobretudo os mais plural do Brasil e também do
a proposta mais radical de ani- historicistas. As hipóteses do crí- exterior, sendo enriquecidos pe-
quilação do leitor, que começa tico, no entanto, como a ideia de la perspectiva comparada, que
a ser construída no prefácio de que Machado constrói em seus aprofunda o entendimento geral
Memórias Póstumas de Brás romances da segunda fase uma de ecopoesia por meio de múlti-
Cubas, Machado teria dado “ficção de autores”, não passa- plas culturas e idiomas.
respostas variadas ao problema. ram despercebidas pela crítica   Já a poética do brasilei-
Lançando mão de uma espécie daqui, sendo levadas em consi- como fazê-la universal? Nos Es- ro Márcio-André complica a
de sociologia da leitura, mas ja- deração mesmo por quem dis- tados Unidos, alguns poetas vêm noção da consciência ecológica
mais reduzindo a obra do escri- corda de sua abordagem. escrevendo o que eles mesmos com certa ambiguidade, e tam-
tor a isso, Guimarães conduz Os últimos anos da crí- denominam ecopoesia e críticos bém oferece um complemento
sua análise com rara lucidez. tica parecem deixar claro que de poesia têm abordado a litera- exterior aos estudos da poesia
João Cezar de Castro Ro- o debate em torno de Macha- tura por um viés ecológico, quer do Brasil. Seu Ensaios radio-
cha também se juntou ao grupo do de Assis não tem fim, o que os poemas sejam ecopoéticos ou ativos (2007) é uma coletânea
de críticos machadianos quan- mostra, como no caso de Brás não, por alguma definição (há de ensaios poéticos que docu-
do publicou Uma poética da Cubas, que mesmo depois de várias delas em debate). Embora mentam a viagem que fez do
emulação (2013), sugerindo a morto o nosso autor continua no Brasil os poetas não se identi- Rio de Janeiro até Chernobyl, e
hipótese de que a virada da con- vivo, vivíssimo. fiquem muito com o termo eco- a performance de uma conferên-
cepção de arte de Machado es- poesia, há um interesse crescente cia poética que encenou naque-
taria ligada ao amadurecimento entre críticos internacionais de la cidade ucraniana. O trabalho
da noção “pré-romântica” de Dos EUA, Hilary literatura brasileira em identifi- desse artista, que adota uma po-
emulatio, que começa a ser me- Kaplan aborda car a ecopoesia nacional e a criti- ética encarnada e contaminada,
lhor elaborada, segundo a con- a ecocrítica, car a poesia feita no país sob uma segue uma tradição vanguardista
troversa visão de Rocha, depois por uma poesia abordagem ecológica. Com suas brasileira de poesia para expor-
que Machado sugeriu que Eça ecologicamente leituras ecocríticas, os críticos de tação, insistindo no idioma na-

P
de Queirós teria imitado Zola, correta poesia brasileira dão uma nova cional ao mesmo tempo em que
em crítica a O crime do padre luz a obras clássicas e novas. trata de um problema que aflige
Amaro. O principal mérito do oetas e críticos se A crítica Odile Cisneros, todo o planeta, o de como viver
livro consiste no risco de ana- perguntam como no seu novo site bilíngue portu- num mundo radioativo contem-
lisar a ficção machadiana atra- a poesia orientada guês/inglês ecopoesia.com, defi- porâneo. Assim, a obra introduz
vés da mobilização de conceitos por temas ambien- ne que “Ecopoesia é, de fato, a uma perspectiva de ambiguidade
inusitados, como é o caso da no- tais pode dar conta expressão — consciente ou não e ambivalência à noção de eco-
ção de “plagiarismo”, que costu- de uma proposta ecológica, tão — da consciência ecológica na poesia, quer brasileira quer não.
ma ser evocada para pensar certa em voga no século 21. A respos- poesia”. Malcolm McNee segue E como sugere o livro de Karen
poesia feita após o surgimento ta está no uso de uma linguagem nessa definição em The Environ- Thornber, Ecoambiguity: Envi-
das vanguardas. poética que venha a promover mental Imaginary in Brazilian ronmental Crises and East Asian
Outros estudos interessan- uma sociedade ecologicamente Poetry and Art (2014), com um Literatures (2012), a ambiguida-
tes foram publicados por críti- justa. Mas como fazer essa po- estudo de quatro poetas brasilei- de da consciência ecológica tam-
cos brasileiros, como é o caso de esia num idioma específico, e ros contemporâneos — Astrid bém merece atenção.
42 | | novembro de 2014

Aventuras
críticas
Um olhar sobre a nova geração

Lourival Holanda | Recife – PE


novembro de 2014 | | 43

V
ez por outra volta a da inventividade literária.
questão da crítica li- Crise da crítica? Sempre
terária. E nada mais — e de modo benfazejo. Ain-
anacrônico que jul- da se procura cernir, discernir,
gá-la anacrônica: ela passar pela peneira (é o étimo
volta sempre; ao menos enquan- da palavra; quase gastronômico,
to houver literatura. A crítica é o portanto; mas, tanto excremen-
que se segue à leitura; uma refle- to quanto discreto têm a mesma
xão sobre o sentido, depois do li- raiz; função natural — e cultu-
do. É por esse viés reflexivo que a ral). No julgar há impertinência;
crítica pretende ser também um mas, no abster-se, não há deser-
conhecimento. Um milk-shake ção intelectual? Crítica? Um es-
feito de intuição, frequentação forço para se saber de que se fala.
e aparato conceitual. O crítico:
um leitor sensível em estado de Mudanças
atenção reflexiva. E, nesses tem- Mudou a sensibilidade cul-
pos, sua raridade não implicaria tural, mudou o modo literário.
em sua extinção — o que muda Aos textos atuais já não se pede
é o modo, mas a crítica é uma in- conformação a ideais nacionalis-
variante; um correlato da leitura. tas, como nos idos de 1870. Nem
Portanto, sua revisão sistemática mesmo o critério é mais o nacio-
é seu sinal de saúde. nalismo, como nos idos de 22.
É pelo viés do depois do de- Que preocupação com o regional?
pois do lido, do depois do sentido O pertencimento é um direito;
que Heloísa Buarque de Hollan- não um dever. Benedito Nunes:
da credita à crítica um dividen- O regionalismo tem data certa: nas-
do biográfico. Nem é diferente ceu romântico, foi batizado pelo
com a ciência — que retoman- naturalismo e foi crismado em 30,
do o lugar do sujeito permite um pelos modernistas. Depois, se tornou
corretivo às pretensões científicas crônico e, por fim, anacrônico. A
da crítica desde o positivismo. topografia contemporânea à Web
Quando o rigor, se não basta, 2.0 radicaliza o antropofagismo
já faz muito. Ilya Prigogine, um de Oswald de Andrade, entende
Nobel de Física, dizia ser a ciên- melhor o tout monde de Édouard
cia hoje a escuta poética da reali- Glissant, e já fez seu o “direito à
dade. A crítica segue sendo uma pesquisa”, de Mário de Andrade.
atenção rigorosa às formas narra- Liberdade de escolher, de assimi-
tivas, às propriedades excitantes lar o que está disseminado nas re-
dos modos de dizer — e assim des sociais. O desafio é fazer arte Rumos Itaú
Cultural —
poder detectar os índices acresci- — essa síntese feliz do disperso.
dos ao imaginário social. Esse, o ponto forte — e a fragili-
É o impacto das narrações dade latente: as energias criativas Literatura
renovadas que convoca a crítica. pedem, mais que apenas pulsão,
Pelo imprevisível das excitações o freio da forma. Mesmo — ou: Programa de estímulo que
que um modal discursivo cria. sobretudo — quando desnorteia, de 1999 a 2002 dedicou-se
Por isso não é de espantar o bi- por não evidente. a cursos sobre o diálogo
nômio crítica e insegurança: um A impressão que fica: esses entre a literatura e demais
texto realmente de criação pede críticos são menos belicosos; no áreas de expressão artística,
a aposta de novo conceitual para entanto, são mais ousados. (Não no biênio 2004-2005
pretender acercá-lo. Claro, isso é comum o vocabulário guerreiro, enfocou as adaptações
favorece também certa insusten- a batalha pela expressão; a críti- literárias para peças sonoras
tabilidade, certa inconsistência: ca enquanto luta). Não são pro- (Literatura/Audioficções) e
basta crer poder bastar-se, dis- gramáticos. Veem com saudável em 2007-2008 e 2010-
pensar qualquer arrimo teórico ironia qualquer pretensão siste- 2011 voltou-se à crítica
— em confortável amnésia útil. matizante. Sinal de saúde, segu- literária. Gestão: Claudiney
A crítica feita por cabeças ramente. Crise da crítica, de seus Ferreira; coordenação:
moças, saídas da Universidade e fundamentos, de seu alcance: si- Babi Borghese; mediação
escolhidas pelo Rumos Literatura, nal de sua liberdade — e seu ris- dos laboratórios online de
parece reatar com a suspeita dos co; mas não ter que responder a crítica literária oferecidos aos
românticos alemães com o pe- qualquer demanda nacionalista, selecionados para as duas
so do conceito. Ali como aqui a a qualquer doutrina teórica. For- últimas edições: Alckmar
memória recente traz certo travor midável insegurança que leva, não Luiz dos Santos (2007-
pelo tom redutor e autoritário a repetir fórmulas, mas à possível 2008) e Lourival Holanda
que levava mais à conformação aventura do pensar. Em dado mo- (2010-2011). Saiba mais
que à formação de novos ângulos mento Afrânio Coutinho imagi- em http://novo.itaucultural.
de abordagem: o férreo enqua- nou que era a Academia o lugar org.br/rumo/literatura-7/.
dramento hegeliano, de um lado, por excelência do pensamento.
e as aventuras kierkegaardianas Esses críticos, eles vêm dali, certo,
da subjetividade; entre nós, a de- mas se deslocaram — e largaram Dossiê Rumos
Literatura no
marcação excludente dos ismos... o esquadro. Já não se faz crítica
Essa geração teve certo prazer como antigamente, a crítica aca-
na desconstrução do discurso bou, etc. — Eppur si muove. Rascunho
cristão e do discurso do direito Há um inacabamento no
romano — tomados como bas- projeto crítico que justamen- Curadoria de conteúdo:
tiões inquestionáveis da cultura te deixa espaço para sua con- Lourival Holanda (Recife
ocidental. Em algum momen- tinuidade. É de se esperar que – PE); produção editorial:
to a imagem do pedagogo e su- essa nova geração redinamize o Babi Borghese (São Paulo –
É de se esperar que
as lições, a imagem do gramático vigor de leitura crítica; e recon- SP); realização: equipe Itaú
essa nova geração e suas proibições foram alçadas a sidere a função — e a necessida- Cultural; ilustração: Ramon
redinamize o vigor um superego autoritário. É sau- de — da crítica na cultura. Por Muniz (São Paulo – SP);
de leitura crítica; dável certa iconoclastia; como é ser seu sal. E assim responda a foto: Life Writer, 2005 –
e reconsidere a prudente em qualquer topografia uma suposta apatia atual. É de Crista Sommerer e Laurent
guardar referências. O que parece se esperar que essa nova geração Mignonneau – máquina de
função — e a caracterizá-los é o risco da aven- alargue a crítica às complexida- escrever e software – Acervo
necessidade — da tura crítica. E um certo gozo, des e aventuras da inventividade Instituto Itaú Cultural – foto:
crítica na cultura. uma alegria renovada por conta literária desse momento. Cia da Foto/Itaú Cultural.
44 | | novembro de 2014

rabisco
literatura infantil e juvenil

T
entei com afinco não
prateleirinha

ilustração: Sempé
falar bem de um prê-
mio Nobel de Litera-
tura. Não por moda
ou hype, mas porque
me pareceu uma obviedade,
uma unanimidade burra. Fiz
um esforço no melhor estilo es-
pírito-de-porco para colocar um
probleminha aqui ou ali. Falhei
miseravelmente em minha rabu- Na terra do Nunca-Jamais
Linda Rode
gice. O livro é ótimo.
Trad.: Cecília Camargo Bartalotti
Patrick Modiano, o escri-
Ilustrações: Fiona Moodie
tor nobelíssimo, é francês, mas Martins Fontes
lendo Filomena firmeza eu nem 235 págs.
precisava te contar isso. O livro
tem aquele clima parisiense que Sessenta histórias selecionadas e re-
mesmo quem nunca esteve por lá contadas, abrangendo o vasto mun-
conhece. As ilustrações do Jean- do dos contos populares e folclóricos
-Jacques Sempé ajudam, já que o para crianças. Ao final de cada conto,
traço dele é quase que automati- um pequeno comentário indica a ter-
camente associado à França. Mo- ra de cada narrativa, contextualiza e
diano é filho de um comerciante relaciona entre si os contos de vários

Doce ilusão
judeu e uma atriz de Flandres. continentes. Entre outras, uma lição
Há um paralelo fácil aqui com o sobre o egoísmo em A lebre preguiçosa;
livro, já que o pai de Filomena é e a clássica fábula alemã d’O lobo e os
comerciante e a mãe, bailarina. sete cabritinhos, que ensina: “um lobo
As histórias, biográfica e literá- nem sempre se parece com um lobo!”.
ria, se passam durante a Segunda
Guerra. As comparações simplis-
tas acabam aqui.
Em termos de delicadeza
frente ao bruto, Filomena fir- Filomena firmeza, do Nobel de Literatura Patrick
meza lembra um pouco o filme
brasileiro O ano em que meus Modiano, é um livro delicado sobre pessoas fortes
pais saíram de férias, de 2006.
Há uma apropriação da visão O elefante entalado
Carolina Vigna | São Paulo – SP Alonso Alvarez
infantil — nem sempre naïf —
Ilustrações: Fê
de dores cotidianas e de horro-
Ficções
res históricos. Filomena deixa 72 págs.
de falar dos horrores da guerra,
O ano em que..., dos horrores da O AUTOR inteligente. É ao que podemos Luís sofre com as mazelas da cidade
ditadura. Este “deixar de falar”, Patrick Modiano brindar, afinal de contas. grande: passa todos os dias da sema-
como todos nós sabemos, mui- Para dançar, a narrado- na sozinho no apartamento loca-
tas vezes expressa mais do que a ra precisava tirar os óculos. Há lizado no 13º andar, pois os pais só
verborragia. Expressa um risco, o Nasceu em Boulogne-Billancourt toda uma brincadeira dela com voltam do trabalho tarde da noite;
de contar uma história por seus (França), em 1945. Publicou o pai sobre o ver o mundo em sua diversão, assim, torna-se o ce-
limites, sem impor um fato, sem seu primeiro romance em foco ou não. Tirar e colocar os lular e seus vários “amigos” virtuais.
obviedades. E, ao optar por este 1968. Em 1973, coescreveu óculos como uma decisão so- Certo dia, um elefante indiano de
caminho aberto (e portanto ín- o roteiro de Lacombe Lucien bre a absorção e relação com o cinco toneladas aparece entalado na
timo), ao mesmo tempo que o (1974), dirigido por Louis Malle, mundo. Quem, como eu, de- janela de seu quarto. Nesta fábula, a
autor corre um grande risco, a li- vencedor do Oscar de melhor pende dos óculos para não mor- modernidade é colocada em xeque,
teratura se renova. filme estrangeiro em 1975. No rer atropelado cada vez que sai com a promessa de um fim fantásti-
Filomena firmeza é um meio literário, também venceu à rua, sabe muito bem que sem co sob a ótica do menino.
livro de sutilezas. A história é alguns dos mais prestigiados óculos ficamos também surdos.
narrada por uma personagem já prêmios da França, entre O não escutar sem óculos de
adulta que, ao ver a filha no balé, eles o Grand prix du Roman Filomena, entretanto, é opcio-
lembra de sua infância. São três de l’Académie française em nal, intencional e premeditado:
gerações de bailarinas. A mãe da 1972 por Les Boulevards “Mas eu tinha tirado os óculos e
narradora, a narradora e a filha. de ceinture, o Goncourt em não o escutava mais”.
A guerra é mencionada apenas 1978 por Rue des boutiques Não há característica má-
en passant na página 19: “Uma obscures, o Grand Prix national gica alguma. Não há sequer um
tarde de verão, pouco antes da des Lettres em 1996 e o Prix acaso. Filomena e seu pai sabem Doze lendas brasileiras —
Como nasceram as estrelas
guerra, quando papai era jovem, Marguerite Duras em 2011, o que estão fazendo, com cons- Clarice Lispector
(...)” e não aparece diretamente ambos pelo conjunto da obra. ciência de suas escolhas. Inclu- Ilustrações: Suryara
na história. São indicações mui- sive a escolha de não absorver o Rocco Jovens Leitores
to tênues, como o sumiço da mundo. Fica, então, a ideia mui- 60 págs.
Odile, amiga do balé; a súbita to clara de opção. É uma opção
troca de nacionalidade e sotaque perceber as asperezas. É possível “Faz de conta. Brinca? Não, é muito
inventado da senhora Dismailo- brincar em situações compli- sério. Pois o que é que pode mais do
va, professora; ou o registro no cadas. Há uma predileção pela que um sonho?”, com esses e outros
cartório onde adotam o sobre- afabilidade mas há também um questionamentos, Clarice Lispector
nome Firmeza. Além, claro, da filtro, uma curadoria da realida- dá boas-vindas no texto A força do
mudança da família (primeiro a de. E eu acho que isso é um con- sonho, refletindo sobre a riqueza e a
mãe, depois o pai e a filha) para ceito importante para qualquer importância das histórias da cultura
os Estados Unidos. Filomena firmeza um, não apenas para crianças. popular. Ao todo, são doze histórias
A figura paterna é adocica- Patrick Modiano Podemos escolher. E a escolha do folclore nacional recontadas, uma
da e vista através dos olhos gen- Tradução Flávia Varella nos apodera e nos fortalece. Fi- para cada mês do ano. Entre outras,
tis da filha-narradora, mas o que Ilustrações: Sempé lomena firmeza é um livro deli- a história que dá nome ao livro, que
eu mais gosto é o brinde: “A nós Cosac Naify cado sobre pessoas fortes. conta como indígenas deram origem
dois, senhora Vida”. Parece-me 96 págs. A nós duas, senhora Vida. a “gordas estrelas brilhantes”.
novembro de 2014 | | 45

hq
ramon muniz
46 | | novembro de 2014

Frank O’Hara
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

N
a manhã de 24 de AUTOBIOGRAPHIA LITERARIA
julho de 1966, um
domingo, o poeta When I was a child
Frank O’Hara es- I played by myself in a
tava na praia, em corner of the schoolyard
Fire Island, perto de Nova York, all alone.
quando foi atropelado por um
buggy. Levado ao hospital, com I hated dolls and I JOSEPH CORNELL
o fígado dilacerado, ele morreria hated games, animals were
na manhã seguinte. Seu desapa- not friendly and birds Into a sweeping meticulously detailed disaster the violet
recimento prematuro, aos qua- flew away. light pours. It’s not a sky, it’s a room. And in the open
renta anos, interrompeu uma field a glass of absinthe is fluttering its song of India.
carreira muito peculiar que unia If anyone was looking Prairie winds circle mosques.
os mundos da poesia e das artes for me I hid behind a
plásticas. Naqueles anos em que tree and cried out “I am You are always a little too young to understand. He is
Nova York fervilhava como o an orphan.” bored with his sense of the past, the artist. Out of the
centro mundial da arte de van- prescient rock in his heart he has spread a land without
guarda, Frank O’Hara estava no And here I am, the flowers of near distances.
centro do centro. E era um de center of all beauty!
seus mais refinados poetas. writing these poems!
Nos quinze anos anteriores, Imagine! JOSEPH CORNELL
ele havia passado, no MoMA,
onde trabalhava, do posto de Dentro de um meticulosa-mente detalhado desastre
atendente no balcão de informa- AUTOBIOGRAPHIA LITERARIA emana a luz violeta. Não é um céu, é um quarto. E
ções a um dos mais importantes no campo aberto um copo de absinto está agitando
curadores. Conviveu com artistas Quando eu era criança sua canção da Índia. Ventos da pradaria circundam
como Jackson Pollock, Willem eu brincava sozinho mesquitas.
de Kooning, John Cage e Mer- canto do pátio da escola
ce Cunningham. Figura agrega- totalmente solitário. Você é sempre um pouco novo demais para
dora, ele era conhecido pela sua compreender. Ele está entediado com a sua noção de
generosidade para com seus ami- Eu detestava bonecos e eu passado, o artista. Para além da rocha presciente em seu
gos e pela intensidade com que detestava jogos, os animais não eram coração, ele espalhou uma terra sem flores de distâncias
vivia. Ao mesmo tempo, e, dado amigáveis e os pássaros próximas.
seu ritmo de vida, quase milagro- saíam voando.
samente, escrevia poemas sem
parar, todos os dias, frenetica- Se alguém ficasse olhando
mente. Um de seus livros, Lunch para mim eu me escondia atrás
poems, tem este título justamen- de uma árvore e berrava “eu sou
te porque seus versos foram es- um órfão.”
critos durante os intervalos para
almoço no museu. E aqui estou eu, o
Em geral enquadrada na centro de toda a beleza! POEM
“New York School”, a obra de escrevendo estes poemas!
Frank O’Hara é totalmente pes- Imaginem! Instant coffee with slightly sour cream
soal. As influências são múlti- in it, and a phone call to the beyond
plas e vão do surrealismo francês which doesn’t seem to be coming any nearer.
ao simbolismo, passando por “Ah daddy, I wanna stay drunk many days”
Maiakóvski e a pintura expressio- on the poetry of a new friend
nista. No livro Digressions on my life held precariously in the seeing
some poems by Frank O’Hara, hands of others, their and my impossibilities.
de Joe LeSueur, seu antigo com- Is this love, now that the first love
panheiro, nos damos conta do has finally died, where there were no impossibilities?
quanto seus poemas são autobio-
gráficos, nem tanto no sentido de
antigas reminiscências, mas mui- POEMA
to sobre aquilo que aconteceu
naquele dia, naquela hora. Café instantâneo com um pouco de creme
Frank O’Hara nunca foi azedo, e uma chamada telefônica mais além
publicado, em livro, no Brasil, a qual não parece estar ficando nem um pouco mais
embora seus poemas apareçam próxima.
traduzidos, esporadicamente, “Ah, papai, eu quero me embebedar por muitos dias”
em sites e blogs literários. na poesia de um novo amigo
minha vida se segura precariamente em ver
as mãos dos outros, as deles e as minhas
impossibilidades.
Será isso é amor, agora que o primeiro amor
finalmente morreu, lá onde não existiam
leia mais em www.rascunho.com.br impossibilidades?
novembro de 2014 | | 47

RIVER
POEM
Whole days would go by, and later their years,
“Two communities outside Birmingham, Alabama, are while I thought of nothing but its darkness
still searching for their dead.” — News Telecast drifting like a bridge against the sky.
Day after day I dreamily sought its melancholy,
And tomorrow morning at 8 o’clock in Springfield, Massachusetts, its searchings, its soft banks enfolded me,
my oldest aunt will be buried from a convent. and upon my lenghtening neck its kiss
Spring is here and I am staying here, I’m not going. was murmuring like a wound. My very life
Do birds fly? I am thinking my own thoughts, who else’s? became the inhalation of its weedy ponderings
and sometimes in the sunlight my eyes,
When I die, don’t come, I wouldn’t want a leaf walled in water, would glimpse the pathway
to turn away from the sun — it loves it there. to the great sea. For it was there I was being borne.
There’s nothing so spiritual about being happy Then for a moment my strengthening arms
but you can’t miss a day of it, because it doesn’t last. would cry out upon the leafy crest of the air
like whitecaps, and lightning, swift as pain,
So this is the devil’s dance? Well I was born to dance. would go through me on its way to the forest,
It’s a sacred duty, like being in love with an ape, and I’d sink back upon that brutal tenderness
and eventually I’ll reach some great conclusion, like assumption, that bore me on, that held me like a slave
when at last I meet exhaustion in these flowers, go straight up. in its liquid distances of eyes, and one day,
though weeping for my caress, would abandon me,
moment of infinitely salty air! Sun fluttering
POEMA like a signal! upon the open flesh of the world.

“Duas comunidades próximas a Birmingham, no Alabama, ainda


estão procurando por seus mortos.” — News Telecast RIO

E amanhã cedo às 8 da manhã em Springfield, Massachusetts, Dias inteiros vão-se embora, e depois seus anos,
minha tia mais velha sairá do convento para ser enterrada. enquanto eu penso em nada a não ser na sua escuridão
A primavera está aqui e eu ficarei por aqui, eu não vou. à deriva como uma ponte contra o céu.
Pássaros voam? Eu estou pensando meus próprios pensamentos, de quem Dia após dia eu sonhadoramente persigo sua melancolia,
mais? suas buscas, suas margens suaves me envolvem,
e sobre o meu alongado pescoço, seu beijo
Quando eu morrer, não venha, eu não iria querer que uma folha murmurava como uma ferida. Minha vida
se afastasse do sol — ele a adora lá. se tornou a inalação de suas ponderações de ervas
Não há nada esotérico sobre estar feliz e algumas vezes, sob a luz do sol, meus olhos,
mas você não pode perder um dia, porque isso não dura. cercados na água, terão um vislumbre do caminho
que leva ao grande mar. Porque foi lá que eu vim ao mundo.
E então, será esta a dança do diabo? Eu nasci para dançar. E então por um momento meus braços estendidos
É um dever sagrado, como se apaixonar por um macaco, vão gritar por sobre a frondosa copa do ar
e no fim eu vou acabar chegando a alguma grande conclusão, como suposição, como cristas de ondas, e relâmpagos, rápidos como a dor,
quando eu finalmente encontrar a exaustão nestas flores, vou direto para o alto. passarão através de mim em direção à floresta,
e eu me afundarei diante daquela brutal ternura
que me sustenta, que me segura como um escravo
na sua distância líquida de olhos, e um dia,
ainda que chorando por minhas carícias, me abandonará,
momento de ar infinitamente salgado! O sol palpitando
como um sinal! por sobre a carne aberta da terra.

JUNE 2, 1958 A RASPBERRY SWEATER

Oh sky over the graveyard, you are blue, to George Montgomery


you seem to be smiling! Or are you sneering?
under the captured moss a little girl It is next to my flesh,
is climbing, come closer! why it’s Maude, that’s why. I do what I want.
or Maudie, as she’s sometimes called. I think And in the pale New Hampshire
she is looking for the turtle. Meanwhile, twilight a black bug sits in the blue,
back at Patsy Southgate’s, two grown men strumming its legs together. Mournful
are falling off a swing into a vat of Bloody Marys. glass, and daisies closing. Hay
It’s Sunday and the trains run on time. What swells in the nostrils. We shall go
a wonderful country it is, so black and blue to the motorcycle races in Laconia
airy green, leaning out a window and come back all calm and warm.
thinking of the sea and the uncomfortable sand.

UM SUÉTER FRAMBOESA
2 DE JUNHO, 1958
para George Montgomery
Ó céu sobre o cemitério, você está azul,
e parece estar sorrindo! Ou está zombando? Está junto à minha carne,
sob o musgo aprisionado uma garotinha é por isso. Eu faço o que eu quero.
está escalando, chegue mais perto! por que é a Maude, E no pálido crepúsculo de New Hampshire
ou Maudie, como ela é às vezes chamada. Eu acho um besouro preto senta-se no azul,
que ela está procurando sua tartaruga. Enquanto isso, batendo ao mesmo tempo suas pernas. Vidro
na casa de Patsy Southgate, dois homens crescidos em luto, e margaridas se fechando. Ondulações
estão mergulhando num barril de Bloody Mary. de alfafa nas narinas. Nós devemos ir
É domingo e os trens estão no horário. Que às corridas de motocicletas em Laconia
país maravilhoso é este, tão preto e azul e depois voltar tranquilos e aquecidos.
arejado e verdejante, debruçando-se na janela
pensando no mar e no desconforto da areia.
48 | | novembro de 2014

sujeito oculto | Rogério Pereira

Chove em Frankfurt

E
stive em Frankfurt.
Faz algum tempo. Até
hoje não sei muito
bem por que da tra-
vessia; o pânico do ae-
roporto; as noites insones antes
da partida; o estranho mundo a
minha espera. A imobilidade me
seduz e finca meus pés na como-
didade da casa. Estava lá, um tex-
to na mão, lendo sobre algo que
me atormenta. Não deveria ter
me deslocado — sou sempre al-
guém errado no lugar certo. Ou
alguém errado no lugar errado.
Lia um pedaço da minha infân-
cia: o pai a me entregar a primei-
ra bola de futebol. Uma maldição
de borracha. O ódio ao pai repre-
sado na palma das mãos na tar-
de ensolarada. Num telão, meu
texto transcrito para o alemão —
esta língua sempre a brigar com
o silêncio do mundo. Ao final,
aplausos protocolares. Sento-me
em meio a dezenas de pessoas.
No imenso pavilhão, escritores,
editores e leitores. A milhares de
quilômetros, uma goteira.
O diálogo é aos trancos.
Estraçalhamos as poucas pala-
vras. Dividimos errado as síla-
bas. Não nos acostumamos com
nossos grunhidos. O silêncio nos
acompanha. Temos muito pou-
co a compartilhar. Somos dois ilustração:
estranhos há mais de quarenta Fabiano Vianna
anos. A churrascaria à beira da
rodovia é simpática. Não está
cheia. Os garçons deslizam pe-
lo piso engordurado. Estamos
em Campo Largo — a cidade a
que fomos levados de supetão.
O balcão com as saladas e pratos da mais estranho, um alieníge- Saio e entro no táxi rumo ao ho- do. Com dificuldade, afasto o
quentes nos atrai. Os três levan- na a aterrissar em meio a um dos tel. Amanhã, vou a Paris. Depois, portão. Estaciono o carro na ga-
tamos ao mesmo tempo. raros almoços em família. Ou o retorno a Campo Largo. ragem. A chuva é forte. Estou
Disfarço o tremor das que restou dela. Sentir-me-ia no- Na churrascaria, somos três cansado da longa viagem de vol-
mãos. O texto ocupa duas breves minando um doce alemão qual- órfãos. A mãe do pai — a avó ta. Carrego as malas até o meio
laudas. Leio o mais pausado pos- quer: Apfelstrudel, Zimtsterne, que amaldiçoamos a vida toda da sala. Olho em direção à cozi-
sível. Não enrolo a língua. Evito Bienenstich. O pai levanta os — morreu há muitos anos. Eu nha. O fio de água escorre pelo
que a saliva alague os significados. olhos do prato. Repete quase em era uma criança apavorada dian- piso branco. No canto ao fun-
Desejo me livrar das palavras com silêncio: “Alemanha”. A palavra te daquela velha cadavérica e re- do, a maldita goteira ao lado da
suavidade. Capricho na frase de se estende no ruído seco dos ta- pugnante. Do avô, não lembro. máquina de lavar roupas. É per-
abertura: “Nunca odiei tanto o lheres. Congela-se no início da Acabou bêbado. O pai é um ór- sistente e enigmática. Nada a de-
pai”. A crônica sobre a primeira tarde de pouco sol. Então, a sur- fão antigo. Meu sobrinho nunca tém. Ninguém descobre de onde
bola de futebol se arrasta. Chego presa: “Alemanha... Oriente Mé- conheceu o pai. A mãe — minha brota a água no telhado de vi-
ao final encharcado de suor. Es- dio”. Na cadeira ao lado, ausente irmã mais nova — desapareceu dro. Preciso chamar novamen-
cancaro uma réstia da minha vi- do mundo, meu sobrinho enfia o numa madrugada inesquecível. te o responsável pela obra. Vou
da em Frankfurt. Alguns amigos garfo num pedaço gorduroso de Há poucos meses, chegou a mi- contar-lhe sobre a Alemanha. No
gostam do texto. Outros apenas costela. “É, pai. Oriente Médio.” nha vez. A mãe estirada na ca- pavilhão, havia uma ampla co-
sorriem como se eu fosse um me- Chove quando deixo o pa- ma entregou-me a orfandade aos bertura de vidro. Acho que não
díocre ladrão do meu passado. vilhão da feira de Frankfurt. Uma quarenta anos. Ser órfão aos qua- vi nenhuma goteira. Quando
“Dói menos odiar o pai quando chuva fina, incômoda apenas aos renta anos não dói menos. Cada chove em Campo Largo, talvez
se está feliz.” A frase final se per- óculos. Nos corredores, encontro um a sua maneira, somos três ór- faça sol em Frankfurt.
de na multidão, mas reverbera há escritores brasileiros — todos de fãos a percorrer uma Alemanha
trinta anos na minha cabeça. peito estufado pela honraria de em pleno Oriente Médio. NOTA
Vou pra Alemanha. A in- estar em Frankfurt. Fantasmas de — Consertou o telhado,
formação paira entre folhas de Machado no cemitério de Goe- filho? A crônica Chove em Frankfurt foi
alface, tomates e lascas de carne. the. Desvio de alguns; cumpri- — Ainda não. publicada originalmente no Vida
Não digo Frankfurt. Soaria ain- mento outros. Ignoro a maioria. O cadeado está emperra- Breve (www.vidabreve.com.br).

Editora Letras & Livros Ltda.


Al. Carlos de Carvalho, 655. Cj. 1205. CEP: 80430-180. Curitiba - PR www.rascunho.com.br twitter: @jornalrascunho www.facebook.com/jornal.rascunho

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