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TRESLER

por Joaquim Igreja

joaquim.igreja@gmail.com

Emigrar e gritar

1.A condição de emigrante, em qualquer época, mesmo em tempos de conforto,


comunicação e bom acolhimento pelos países recetores, implica sempre uma dose substancial
de voluntarismo e a correspondente capacidade de sacrifício, paciência, solidão,
esquecimento. Olhar para a frente é o essencial para esquecer a distância, os familiares, os
hábitos, as afeições.

Grande parte da minha aldeia beirã, aqui ao lado, emigrou para a França e a Alemanha a
partir dos anos 60 e tenho a perceção, com os olhos da altura e de hoje, da estranheza de viver
numa barraca, da necessidade de poupar para amealhar, da tendência para se fechar no seu
cantinho enquanto as relações não se cimentavam. Os emigrantes adultos, quase analfabetos,
agarraram-se ao trabalho, desligaram-se da sociedade local e não “evoluíram” muito nessas
décadas, voltando para Portugal em cada ano quase iguais ao momento da partida exceto na
carteira. Tornaram-se muitas vezes mansos cordeiros nas mãos dos empregadores, fazendo
“bricolas” e “horas extraordinárias” a esmo, para ocupar o tempo e encher a conta. Entretanto
as coisas evoluíram mas no essencial os portugueses mais velhos continuam estrangeiros
(embora pacíficos) dentro dos países de acolhimento, cabendo à segunda geração ser já mais
local do que portuguesa.

O que não vemos ao analisar assim as coisas é a realidade da qual se partia. E a


realidade nos anos 60 do regime salazarista era de uma incapacidade total do país de se abrir
às novidades, de um fechamento no autolouvor nacionalista, de uma cegueira total
relativamente às tendências da política internacional. Uma espécie de cópia, 80 anos depois,
do Portugal queirosiano retratado n’”Os Maias”. No plano pessoal e social, era uma sociedade
beata, respeitadora do poder autocrático, fechada a dissidências e em que as comunidades,
alicerçadas no regedor e no pároco, exerciam uma força controladora quase total sobre os
indivíduos. Uma leitura recente, “Livro”, de José Luís Peixoto, mostra até que ponto uma vila
do interior revela esse caldo de miséria económica e moral que explodiu fugindo para fora do
país, neste caso para França, salvando a pele e a consciência. A vila deste romance era assim
um misto de puritanismo, promiscuidade, resignação e reverência, vergonha e inveja.
O livro é no entanto inquietante relativamente àquilo que mudou ou não na cabeça dos
que partiram e que mais tarde voltaram, depois de terem feito a sua “maison” e amealhado o
seu pé-de-meia. Na verdade tanto a primeira como a segunda geração que acabam por
regressar (no livro) comportam-se no momento do regresso como alguém que aprendeu muito
pouco, um sinal de um acantonamento excessivo no seu cantinho / gueto em França. No livro
várias famílias portuguesas são capazes de “comprar” médicos para atestarem uma doença
qualquer que os leve mais depressa à reforma; um desgraçado que dá em doido acaba por ser
abandonado em França num lar por mulher e filho que regressam calmamente a Portugal; um
rapaz que atropela uma velha não lhe presta socorro, regressando a Portugal feliz e tranquilo;
uma família insiste em fazer uma casa forrada a azulejos numa vila portuguesa que já não
autoriza esse figurino “champigny”. Será o sentido prático dos portugueses aquilo que os salva
e que ao mesmo tempo lhes dita a condenação? O livro é brilhante pela técnica narrativa, pela
sua circularidade e pela capacidade de mostrar o choque da realidade. No entanto atira-nos
contra a parede mostrando o mundo de ignorância e promiscuidade de que os emigrantes
partiram e simultaneamente o mundo sórdido e sem princípios em que aceitam viver na
prosperidade. O atropelamento da velha, curiosamente (sem que o jovem condutor o saiba)
alguém próximo familiarmente, é uma espécie de esmagamento do passado, uma vitória
(fictícia) sobre um tempo ultrapassado.

2.Ao ouvir o grito “25 de abril sempre” associado à frase “é preciso fazer outra
revolução”, pensava cá para dentro que revolução fariam hoje os sexagenários que enchiam a
sala de espetáculos em que ouvi as frases. Se cada época merece uma revolução, que
revolução podia merecer a época atual? Não certamente a dos antifascistas mais ou menos
“bem instalados” daquela sala, classes médias sobretudo, que desejariam apenas compor um
pouco melhor a sua pensão de reforma ou antecipá-la. Que alterações radicais defenderiam
para uma nova Junta de Salvação Nacional? Quem aceitaria pôr tudo em discussão em nome
de um ideal, incluindo a situação estável dos “bem situados” na vida?

Na verdade, quando a revolução irromper, se isso acontecer, ela será para alguns, e
nomeadamente para os “instalados”, um choque, como o foi para alguns a revolução de 1974.
A nova revolução, se ela vier, terá como protagonistas os deserdados ou os desesperançados
das gerações mais novas. Mas, para já, dentro deste regime democrático, não se afigura
alteração da normalidade a não ser atomizada na reivindicação isolada, cirúrgica e violenta (ex.
coletes amarelos ou greves “a doer”) ou impressiva (ex. manifestações radicais pelo
ambiente). A sociedade funciona e, diante de certos bloqueios sociais, na falta de uma
revolução que neste momento das sociedades “democráticas” não teria caminho seguro, é por
“provocação e choque” que a sociedade é abanada aos solavancos. Não sabemos para onde
vamos, parece tudo um castelo de cartas, mas sabemos para já que não queremos deitar tudo
abaixo.

(Livro, de José Luís Peixoto, Ed. Quetzal, 2010)

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