SANT’ANNA, Denise B. “Pacientes e Passageiros” (publicado na revista Interface, abril de
2000). In SANT’ANNA, Denise B. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo. Estação Liberdade, 2001.
Há de ser pontuada uma falta de entendimento e de nomes que abarquem as
situações criadas a partir das novas tecnologias hospitalares. O limiar entre vida e morte é hoje mediado por aparelhos sofisticados. Um outro lugar onde tanto uma como a outra parecem suspensas. O espaço entre a vida e a morte é dilatado pela tecnologia. Hospitais modernizados: decoração e arquitetura lembram hotéis, aeroportos e shopping centers. O paciente está suspenso de sua “identidade”: há uma ruptura com o cotidiano que “construía e reconstruía sua identidade”. A imagem do conta-gotas: cada visita e cada informação é fornecida aos poucos contribuindo para a angústia da espera. O corpo dividido é em pedaços, o que importa é como cada órgão está funcionando. A figura das enfermeiras ou dos auxiliares de enfermagem: lembra a imagem de anjos, mensageiros ou mediadores entre a vida e a morte. Auxiliam os pacientes confortando-os com algum tipo de afeto num momento vulnerável. Ao mesmo tempo, manuseiam diversos corpos estranhos que serão ainda analisados e tocados por várias mãos. Parte da fragilidade do paciente está em uma vergonha de estar doente. A doença representa “a interrupção da vida produtiva do paciente”. Paralelo entre hospitais e aeroportos: transportes; fluxo chegadas e saídas; tecnologias próximas, há tecnologias utilizadas em hospitais desenvolvidas pela NASA. Nestes espaços quase que isolados de seu contexto geográfico e temporal, o relógio se torna quase que a única referência, marcado pelas esperas. Aeromoças e comissários de bordo são relacionados aos auxiliares de enfermagem. Há um cuidado atento aos passageiros, a posição das cadeiras, as posturas etc, tudo para que o vôo ocorra bem. “Aeromoça é uma moça do ar”. A quantidade de serviços que se encontram nos hospitais como nos aeroportos modernos os torna quase auto-suficientes. “Aerocidades”; ilhas equipadas como cidades. Mas a esta evolução tecnológica dos hospitais sobrevive “o homem que sofre e morre”. Cita como exemplo dos “templos da modernidade” o aeroporto de Kansai, no Japão, construído sobre uma ilha artificial. Templos freqüentados não mais somente pelas elites. As novas tecnologias produzem novas (escalas de) sensibilidades. Se, por um lado, parece haver uma desconexão com os próprios corpos anestesiados, a sensibilidade que um cirurgião pode desenvolver operando com os aparelhos de ponta para operar é infinitamente mais sutil. A dor parece já não ter uma função pedagógica que impunha limites ao corpo. Operações eram sinônimo de dor, gritos, suplício, e para isto era necessária uma certa coragem. “Tudo é muito diferente de hoje, quando a cirurgia está mergulhada no silêncio, levando médicos e pacientes a travar novas relações com a tecnologia”. Atualmente pode-se simular cirurgias tendo o modelo numérico do paciente, “exatamente como se ele estivesse num simulador de vôo”, possibilitando novas percepções dos acontecimentos. O texto é finalizado com uma importante questão a respeito das conseqüências dos direcionamentos destas novas tecnologias: “Resta saber ainda, e principalmente, se os sonhos e medos criados por elas têm a potência de reconectar os corpos às suas forças, não exatamente para que eles se livrem de uma vez por todas da doença e do acidente, mas para retirar destes o perfil obsceno e antinatural que a contemporaneidade lhes atribuiu”.