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Análise de Risco aplicada aos alimentos no Brasil:

TEMAS LIVRES FREE THEMES


perspectivas e desafios

Risk Analysis applied to food safety in Brazil:


prospects and challenges

Ana Virgínia de Almeida Figueiredo 1


Maria Spínola Miranda 2

Abstract The scope of this case study is to discuss Resumo Trata-se de um estudo de caso no qual se
the ideas of the Brazilian Codex Alimentarius discutiram as ideias do Comitê do Codex Alimen-
Committee (CCAB) coordinated by National In- tarius do Brasil (CCAB), coordenado pelo Insti-
stitute of Metrology, Standardization and Indus- tuto Nacional de Metrologia, Normalização e
trial Quality (Inmetro), with respect to the Codex Qualidade Industrial (Inmetro) sobre a norma
Alimentarius norm on Risk Analysis (RA) applied Codex Alimentarius de Análise de Risco aplicada
to Food Safety. The objectives of this investigation aos alimentos (AR). Os objetivos deste trabalho
were to identify and analyze the opinion of CCAB foram identificar e analisar a opinião dos mem-
members on RA and to register their proposals for bros do CCAB sobre AR e levantar as propostas
the application of this norm in Brazil, highlight- para a adoção desta norma no país, destacando as
ing the local limitations and potential detected. limitações e as potencialidades locais apontadas.
CCAB members were found to be in favor of the Os membros do CCAB mostraram-se favoráveis à
Codex Alimentarius initiative of instituting an iniciativa do Codex em instituir a norma AR para
RA norm to promote the health safety of foods that promover a segurança sanitária dos alimentos que
circulate on the international market. There was transitam no mercado internacional. Houve con-
a consensus that the Brazilian government should cordância no sentido de que o governo brasileiro
incorporate RA as official policy to improve the deva incorporar a AR como política oficial para
country’s system of food control and leverage Bra- melhorar o sistema de controle de alimentos do
zilian food exports. They acknowledge that Brazil país e para fortalecer as exportações brasileiras de
has the technical-scientific capacity to apply this alimentos. Reconheceram que o Brasil dispõe de
norm, though they stressed several political and capacidade técnico-científica para aplicar essa
institutional limitations. The members consider norma, porém destacaram várias limitações polí-
1
Diretoria de Vigilância
RA to be a valid initiative for tackling risks in tico-institucionais. Os membros reconhecem a AR
Sanitária da Secretaria de
Saúde do Distrito Federal. food, due to its ability to improve food safety con- como uma iniciativa valiosa para enfrentar os
SGAN 601, Lotes O/P, Asa trol measures adopted by the government. riscos dos alimentos, devido a sua capacidade de
Norte. 70830-010 Brasília
Key words Food safety risk analysis, Sanitary aprimorar as ações de controle sanitário de ali-
DF. anavirginia.figueiredo@
gmail.com surveillance, Food safety mentos realizadas pelo governo.
2
Departamento de Análises Palavras-chave Análise de risco de alimentos,
Bromatológicas da
Faculdade de Farmácia,
Vigilância sanitária de alimentos, Segurança sa-
Universidade Federal da nitária dos alimentos
Bahia.
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Figueiredo AVA, Miranda MS

Introdução na as doenças e potencializa os riscos à saúde da


população10,11.
Nas últimas décadas, a preocupação dos consu- Como produto comercial, os alimentos se
midores com os riscos relacionados aos alimen- apresentam de maneira conflituosa no cenário
tos importados e comercializados no mercado econômico internacional, pois ao mesmo tempo
local tem-se intensificado, sobretudo devido à que se constituem a principal mercadoria do co-
ocorrência de surtos originários de fonte comum mércio entre os países, tornam-se o veículo mais
e da sua rápida disseminação entre os países1-3. importante de transmissão de doenças infeccio-
Tal fato tem pressionado os governos a admiti- sas, comprometendo o comércio e afetando mi-
rem a relevância das questões relativas à segu- lhares de pessoas12. Reconhecido como um pro-
rança sanitária de alimentos e a mobilizarem-se blema amplo de saúde pública, a segurança sani-
em prol da adoção de medidas regulatórias que tária dos alimentos passa a representar um de-
estabeleçam requisitos sanitários para a comer- safio transnacional que requer intensa coopera-
cialização de produtos alimentícios destinados ção internacional no estabelecimento de meios
ao consumo humano, para proteger a saúde da efetivos de proteção à saúde das populações, in-
população. cluindo o fortalecimento dos sistemas de vigi-
Concomitantemente a isso, observam-se, no lâncias6,12, uma vez que as soluções extrapolam a
cenário mundial, a ascensão e o fortalecimento esfera de jurisdição do Estado-nação.
de movimentos sociais que defendem, entre ou- Nas últimas quatro décadas, essa tarefa de
tras bandeiras políticas, os direitos dos consu- disciplinar o comércio internacional, em matéria
midores e a preservação do meio ambiente com de identidade e qualidade sanitária dos alimen-
vistas a enfrentar as contradições econômicas e tos, tem sido delegada à Comissão do Codex Ali-
sociais inerentes ao intenso processo de integra- mentarius, criada em 1961 pelo Fundo das Na-
ção da economia mundial4. Soma-se, também, a ções Unidas para a Alimentação e a Agricultura
contestação contra a abertura dos mercados, em (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde
especial ao dos alimentos, alegando a falta tanto (OMS) para atuar no fortalecimento do comér-
de transparência no lidar com as questões da cio internacional de produtos alimentícios, ali-
saúde quanto de legitimidade dos acordos inter- ando-o aos propósitos de proteger a saúde dos
nacionais do comércio firmados no âmbito da consumidores e de assegurar práticas leais no
Organização Mundial do Comércio (OMC), os comércio de alimentos13.
quais sobrepõem os interesses econômicos, em A década de 90 constitui um marco para o
detrimento dos da segurança sanitária5. Codex, pois ele foi reconhecido como referência
Aliado ao intenso comércio global de alimen- internacional pela OMC, tornando-se elemento-
tos, as viagens internacionais e a circulação in- chave para dirimir as controvérsias de ordem sa-
tensa de turistas e viajantes a negócios passam a nitária, atinentes ao comércio mundial de alimen-
atuar, também, como fatores de risco para o tos14. Com isso, inicia-se o processo de desenvol-
aumento da exposição das pessoas aos agentes vimento de um método capaz de lidar com os
patogênicos nativos – de outras partes do mun- riscos à saúde pública veiculados por alimentos15.
do – e aos perigos emergentes. Esses fenômenos, O Brasil, país atuante no comércio internaci-
decorrentes do crescente intercâmbio entre bens onal de alimentos16 e membro oficial da Comis-
materiais e povos de diferentes culturas, acentu- são do Codex, interessado em manter as con-
am-se com a incorporação de novos hábitos ali- quistas comerciais obtidas, proteger os interes-
mentares; de mudanças nas preferências dos con- ses nacionais e viabilizar o seu mercado em ex-
sumidores; e de práticas de processamento de pansão, necessita atentar para as regras sanitári-
alimentos que, em seu conjunto, definem a nova as internacionais, avaliando a conveniência de
conformação epidemiológica das doenças de ori- incorporá-las ao seu arcabouço legal e de inseri-
gem alimentar no mundo2,3,6-8. las no cotidiano das práticas institucionais. Esses
Em geral, os riscos globais correspondem aos elementos, que se associam à preservação da saúde
efeitos contraditórios dessa nova convivência dos consumidores, podem sensibilizar o gover-
além-fronteiras, própria do processo de globali- no nacional a aderir a essa norma.
zação. Por um lado, ela internacionaliza o siste- Internamente, as discussões sobre os proje-
ma de produção e comercialização de produtos e tos de normas sanitárias internacionais que vi-
de serviços e aumenta a interdependência econô- sam disciplinar o comércio de alimentos são re-
mica, política e social entre os Estados, com a alizadas no âmbito do Comitê Codex Alimenta-
perda da autonomia plena9; por outro, dissemi- rius do Brasil (CCAB), que, nos últimos anos,
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foi incumbido da tarefa de apreciar os documen- mulativos e ou combinados, e os grupos da po-
tos sobre Análise de Risco aplicada aos alimen- pulação vulneráveis ou expostos a alto risco;
tos (AR). Tal condição torna o CCAB uma ins- – Gerenciamento de risco: trata-se do pro-
tância fértil de conhecimentos e de informações cesso de decisão sobre as opções de gerenciamen-
sobre o tema, fazendo suscitar as seguintes inda- to, o qual deve contemplar as incertezas, as con-
gações a serem investigadas neste estudo: qual a sequências econômicas, a viabilidade técnica,
opinião dos membros desse comitê sobre a nor- política e econômica, entre outros fatores;
ma AR adotada pelo Codex Alimentarius (FAO/ – Comunicação de risco: consiste na difusão
OMS)? Quais as recomendações que os mem- das informações às partes interessadas, de forma
bros propõem ao governo brasileiro para viabi- transparente, a fim de garantir a sua adequada
lizar a aplicação prática da norma AR? participação e o gerenciamento eficaz dos riscos19.
Para tanto, foram definidos os seguintes ob-
jetivos: identificar e analisar a opinião dos mem-
bros do CCAB sobre a norma AR do Codex Ali- Metodologia
mentarius e levantar as propostas para a adoção
dessa norma no país, incluindo as limitações e as Trata-se de um estudo de caso único, do tipo
potencialidades locais apontadas. exploratório, baseado no trabalho de Yin21, no
qual foi selecionado um tema da atualidade para
ser investigado com os membros do CCAB. A
A Análise de Risco do Codex Alimentarius experiência acumulada de análise crítica dos do-
cumentos do Codex determinou a eleição desse
Para conter os custos financeiros investidos pelas colegiado como o foco do estudo em tela.
empresas e pelo Estado em razão das mudanças
na complexidade dos riscos decorrentes das gran- Caracterização do caso
des transformações tecnológicas e científicas vi-
venciadas pela sociedade, surge, na década de 80, O CCAB foi criado em 1980, sob a coorde-
o método científico de Análise de Risco, cuja apli- nação do Instituto Nacional de Metrologia, Nor-
cação inicial dirigiu-se à segurança industrial, ao malização e Qualidade Industrial (Inmetro), com
meio ambiente e à saúde17. Fundamenta-se em o objetivo de analisar e adequar os estudos e os
uma abordagem científica com caráter multidis- projetos de normas Codex aos interesses nacio-
ciplinar e integrador para identificar, quantificar nais22. Esse comitê congrega representações de
as relações entre os agentes de riscos e os danos e oito instituições do governo, cinco entidades do
respaldar as alternativas, para mitigar ou aceitar setor produtivo e de uma associação de proteção
os riscos, as quais serão analisadas e decididas e de defesa dos consumidores. Seus membros
coletivamente pelos diversos atores envolvidos17,18. são formalmente indicados por essas 14 repre-
Na perspectiva do controle internacional dos sentações: Inmetro; Ministérios das Relações Ex-
riscos dos alimentos, em 2005 foi aprovada a teriores; da Saúde; da Agricultura, Pecuária e
primeira norma AR intitulada Princípios de apli- Abastecimento; da Fazenda; da Ciência e Tecno-
cación práctica para el análisis de riesgos aplica- logia; da Justiça; e do Desenvolvimento, Indús-
bles en el marco del Codex Alimentarius19. Embo- tria e Comércio Exterior; Associação Brasileira
ra o projeto de norma sobre a aplicação da AR de Indústria de Alimentos; Associação Brasileira
dirigida aos governos encontre-se em tramita- de Normas Técnicas; Confederação Nacional da
ção20, o conteúdo essencial dessa norma recente- Indústria; Confederação Nacional da Agricultu-
mente aprovada foi a ele incorporado. ra; Confederação Nacional do Comércio; e Insti-
A norma Codex de AR aprovada rege-se pe- tuto de Defesa do Consumidor22-24.
los princípios de efetividade, participação, trans-
parência e atualização à luz dos novos dados ci- Coleta, processamento e análise dos dados
entíficos e consiste em um método estruturado
que compreende três elementos distintos, porém Para responder Às perguntas e alcançar os
estreitamente vinculados19: objetivos propostos neste estudo, foram utiliza-
– Avaliação de risco: fundamenta-se em co- das duas fontes de dados: os documentos e as
nhecimentos científicos sobre os perigos e riscos narrativas das entrevistas com oito membros
em toda a extensão da cadeia produtiva, os mé- formais do CCAB.
todos de controle, a incidência de efeitos prejudi- Quanto à documentação, foram analisadas
ciais à saúde, tanto agudos quanto crônicos, acu- 33 atas de reuniões do CCAB, no período de 2000
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a 2006, que continham como pauta a AR para ral da Bahia para conhecimento e, na sequência,
verificar a evolução das discussões. Em comple- entregue o Termo de Consentimento Livre e Escla-
mentação, foram analisadas as sete Posições Bra- recido para ciência, preenchimento e assinatura.
sileiras referentes ao mesmo período, que corres- A gravação das entrevistas realizou-se no pe-
pondem aos documentos oficiais onde constam ríodo de agosto a dezembro de 2006, em Brasília
as considerações, as críticas e as sugestões sobre (DF). Após a leitura das narrativas das entrevis-
os projetos de normas a serem defendidas pelo tas, adotou-se o Plano de Análise com base nas
Brasil na ocasião da Reunião do Comitê do Co- orientações de Bardin25. Os trechos recortados
dex Alimentarius sobre Princípios Gerais (CCGP), foram analisados à luz das referências teóricas
responsável pela condução da temática de AR. relacionadas à globalização da economia, riscos
Optou-se pela técnica da entrevista semies- dos alimentos e segurança sanitária de alimentos
truturada, porque possibilita extrair os signifi- (Quadro 1).
cados que os indivíduos atribuem ao objeto in-
vestigado e compreender a lógica que respalda a
sua aplicação prática. Após a realização do pré- Resultados e discussão
teste, as entrevistas foram previamente agenda-
das e posteriormente programadas, com cada A impressão geral dos membros do CCAB sobre
membro, de forma independente. a instituição da norma de AR do Codex é que tal
Antes de iniciar as entrevistas, os sujeitos da iniciativa visa promover a segurança sanitária dos
pesquisa foram informados sobre o objetivo da alimentos que transitam no mercado internacio-
investigação, a gravação das entrevistas, o sigilo nal; estimular o comércio justo entre os países; e
das informações e o anonimato dos entrevista- fundamentar cientificamente as medidas sanitá-
dos. Em seguida, foi apresentado o Formulário rias impostas pelos países para proteger a saúde
de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do dos consumidores, atendendo ao disposto no
Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Fede- Acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias

Quadro 1. Plano de análise.

Unidade Definição Categoria Perguntas


Motivação do Codex Relação dos motivos que Interesses para o Qual a sua opinião
para AR. impulsionaram o Codex a desenvolvimento da sobre a iniciativa do
desenvolver a norma. AR. Codex Alimentarius em
propor a AR para lidar
Valoração da atitude do Especificação das vantagens Impactos econômicos
com os alimentos?
Codex em aprovar a AR. da norma. e sociais.
Adoção da norma Exposição dos argumentos Ordem do governo O que o governo deve
de AR pelo governo. que embasam a conduta para promover e fazer para implementar
sugerida para o governo. respaldar a AR. a AR?
O que deve fazer para
viabilizar a avaliação de
risco?
Operacionalização da Especificação dos pontos Condutas para Quais as propostas de
norma de AR pelo divergentes da norma. concretizar AR, diretrizes para a
governo. Explicação dos passos e aproveitando as implementação da AR?
estratégias a serem seguidas potencialidades Quais as facilidades e as
pelo governo para adotar a disponíveis e dificuldades no
AR. suplantando as processo de
Listagem dos aspectos dificuldades. implementação da AR?
promissores e dos obstáculos
para a adoção da AR.
Atores sociais da AR. Identificação dos atores sociais Participação dos Quem deve participar
e as razões para o envolvimento atores sociais no do processo de AR?
deles com AR. processo de AR.
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(SPS) da OMC. Os três aspectos destacados se dêmicos supranacionais, a pressão dos consu-
complementam entre si e denotam a validade midores e as demandas comerciais impulsiona-
dessa norma internacional. ram a OMC a reconhecer as normas Codex como
Além disso, os membros acrescentaram que referência internacional, pelo seu fundamento
a AR promoverá o aperfeiçoamento do processo científico, e a criar a demanda por AR.
de elaboração de normas Codex, evitando que O ritmo das transformações econômicas
sejam estabelecidas regras motivadas principal- mundiais dos anos 90, que permitiu o maior in-
mente pelas pressões econômicas e políticas. tercâmbio comercial de alimentos entre os países
É provável que essas pressões não sejam ate- centrais e os periféricos, gerou um descompasso
nuadas, uma vez que o desejo de introdução cres- na capacidade de aprimoramento da segurança
cente de novas tecnologias na produção de ali- sanitária dos produtos em circulação oriundos
mentos – sem a investigação científica exaustiva dos países periféricos. Desse modo, os membros
que avalie e delimite os riscos sobre a saúde hu- acreditam que um dos efeitos positivos da AR
mana e ambiental – é corrente no mundo atual. sobre o comércio leal de alimentos será a harmo-
A lógica imperante é a de regulamentar, mas não nização dos procedimentos entre os países cen-
contrariar o ritmo das tecnologias que aumen- trais e periféricos, levando à equivalência entre os
tam a produtividade e, consequentemente, a lu- produtos similares em circulação no mercado
cratividade dos negócios comerciais26. internacional quanto ao grau de segurança sani-
Os membros reconhecem que, em um pro- tária, uma vez que está se adotando o mesmo
cesso de globalização, as regras internacionais método para controlar os riscos.
terminam por influenciar a condução das políti- Nessa perspectiva, a AR é identificada, por
cas internas, impondo ajustes que merecem ser esse grupo, como uma proposta proveniente dos
incorporados pelo país para que este se mante- países desenvolvidos – os importadores de ali-
nha no patamar de competitividade almejado no mentos. Todavia, é certo que o esboço da AR já
comércio internacional de alimentos. constava da proposta formulada pela comuni-
Esse fato demonstra a perda gradual da so- dade europeia, representada por um grupo de
berania e da autonomia dos Estados-nação de- países que atua de forma articulada e que, por-
vido à globalização, como registram vários au- tanto, exerce influência marcante nas decisões
tores4,10,26,27, e a elevação da competitividade nos adotadas pela Comissão do Codex.
mercados como objetivo máximo das políticas Nos últimos anos, as reestruturações no cam-
estatais. Os Estados-nação passam, então, a so- po da segurança dos alimentos ocorridas nos
frer as interferências das decisões tomadas no países europeus estão alinhadas com o Libro blan-
âmbito das organizações internacionais e perdem co sobre seguridad alimentaria28. O documento
o controle pleno sobre os negócios do próprio reúne as diretrizes da nova política alimentar da
Estado. União Europeia voltada à elevação dos níveis de
Os participantes do CCAB admitem que a segurança sanitária dos produtos alimentícios e
conjunção de interesses comerciais e de proteção define a AR como a base dessa política, condu-
à saúde dos consumidores motivou a Comissão zindo ao planejamento global e integrado da ca-
do Codex a desenvolver a norma internacional deia produtiva de alimentos e à organização co-
sobre AR, e reconhecem que a ligação do Codex ordenada e integrada das ações.
aos interesses do comércio tenha sobressaído Em face do exposto, é possível que essa pu-
devido ao seu vínculo com a OMC. Apontam blicação tenha servido de inspiração para a ela-
como fatos a ocorrência de intensos debates vin- boração da norma Codex, pois, como lembra
culados ao comércio que sobreleva o tema “mer- Lucchesi26, as normas e as recomendações deri-
cado” em comparação com as questões de saúde vadas desses organismos internacionais, em ge-
e a atuação marcante de lobistas no Codex. ral, refletem o conhecimento científico conjuga-
Ao aprofundar a análise, os membros afir- do aos interesses econômicos e políticos dos paí-
mam que a relevância do caráter comercial da ses desenvolvidos.
norma Codex está na inter-relação do Codex com Depreende-se, também, que o poder hegemô-
a OMC. Explicam, ainda, que a busca de alterna- nico exercido por esse grupo de países extrapola
tivas para enfrentar as contradições do mercado as relações econômicas e inclui a capacidade de
de alimentos e ordená-lo segundo a ótica das re- impor seus modelos científicos para a realização
gras sanitárias foi o elemento central para a apro- do controle sanitário oficial nos países periféri-
vação dessa norma. A expansão das relações eco- cos. A esses últimos, que se destacam como ex-
nômicas, a intensificação dos riscos e surtos epi- portadores de alimentos, resta a obrigação de
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controlar os efeitos negativos das tecnologias uti- os riscos –, a qual foi alvo de reflexões e críticas
lizadas na produção de alimentos, segundo os pelos membros do CCAB. Entre os comentários
moldes especificados pelos países importadores mencionados, destacam-se a falta de integração
– os compradores. entre os órgãos, a duplicidade de ação e o mode-
Por essa ótica é que os membros ligados ao lo incompatível com as necessidades atuais, as-
segmento produtivo identificam a AR como par- pectos que demonstram a insatisfação com a es-
te integrante da política comercial dirigida aos trutura vigente.
exportadores de alimentos, pois são eles que ne- Para viabilizar a AR, o grupo entende ser ne-
cessitam adequar os seus produtos aos padrões cessária a identificação de estratégias para admi-
internacionais para se manterem estáveis no nistrar o conjunto diversificado de instituições
mercado externo. envolvidas e apontou três estratégias distintas
Observa-se a clareza que os membros têm para lidar com essa realidade institucional:
sobre a utilidade da AR para o comércio exterior, (1) AR sob um comando político-institucio-
e pouco é destacada a sua importância na preser- nal único. Propõem a reorganização do Estado
vação da qualidade sanitária dos produtos de brasileiro, ou seja, a formação de uma nova es-
circulação interna e na proteção da saúde da co- trutura institucional única, coordenada pelo se-
munidade local. tor público de saúde, mediante a retirada de áre-
as de competências de dentro das estruturas da
Análise de Risco do Codex: agricultura e saúde responsáveis pelo controle
discutindo a sua prática sanitário de alimentos, subordinando-a à Presi-
dência da República. Desta forma, acreditam que
Os membros do CCAB reconhecem a im- as duplicidades e os conflitos de ação possam ser
portância da AR para o Brasil e concordam que superados.
o governo deveria incorporá-la como política (2) AR como responsabilidade da Presidência
oficial para lidar com os riscos relativos aos ali- da República. Os membros reconhecem que esse
mentos. Os argumentos apresentados em sua trabalho extrapola o âmbito das instituições que
defesa se fundamentam no reconhecimento da hoje realizam o controle sanitário de alimentos e,
coerência desse instrumental, dos êxitos para a portanto, é um tema de interesse nacional que
melhoria do sistema de controle de alimentos de deve ser conduzido pela Presidência da República.
qualquer país e das vantagens auferidas ao país (3) AR sob a coordenação de uma instância
ao focalizar o comércio internacional. supraministerial ou interministerial. Os membros
Entendem que os efeitos positivos da AR para sugerem que se organize uma instância colegiada
o mercado externo, em que o agronegócio é o com representação ministerial, selecionada em
motor da economia, estão nos incrementos das razão da competência relacionada com a com-
exportações de alimentos e na ampliação do mer- modity de exportação ou com o segmento da ca-
cado internacional, pois a adoção de padrões in- deia produtiva em questão. A proposta circuns-
ternacionais que representam o consenso mun- creve-se às demandas relativas aos produtos de
dial qualifica a segurança sanitária dos produtos exportação.
alimentícios nacionais e dificulta a existência de As três alternativas suscitam a necessidade de
barreiras comerciais. se repensar a atual estrutura dicotomizada de
Preocupados com a imprevisibilidade dos controle sanitário de alimentos do Brasil, quan-
resultados desse trabalho sobre as exportações to à capacidade de promover agilidade e efetivi-
de alimentos devido às condições político-eco- dade das ações prestadas, racionalização das ati-
nômicas e ao aparato técnico-operacional dis- vidades regulatórias e uso eficiente dos recursos
ponível que possibilitem fornecer uma resposta públicos. Observa-se que essas posições apon-
satisfatória, os membros entendem que é neces- tam trajetórias distintas: a instituição de uma
sário ter cautela quanto à AR. política de Estado, criando uma nova instância
A aplicação da AR implica enfrentar os riscos político-administrativa responsável por gerenci-
presentes na totalidade da cadeia produtiva de ar os riscos, centralizando e concentrando as ati-
alimentos, em vez de tratar isoladamente os ris- vidades de controle sanitário de alimentos; ou a
cos inerentes a cada segmento em particular. Isto formulação de uma política de AR, que mante-
remete, diretamente, à complexa estrutura orga- nha a diversidade institucional e aposte na efeti-
nizacional do país envolvida no controle sanitá- vidade da estratégia de articulação.
rio dos alimentos – constituída por várias insti- Apesar da criação da Agência Nacional de Vi-
tuições com comandos distintos para lidar com gilância Sanitária (Anvisa), na década de 90, con-
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cebida segundo o prisma do modelo gerencial, ridos por Bodstein33. Conforme a autora, trata-
com espaço definido de participação da socieda- se do poder que certas corporações exercem so-
de, mantém-se a responsabilidade parcial sobre o bre o Estado, expressando as suas demandas nos
controle sanitário da cadeia produtiva de alimen- espaços decisórios governamentais e fazendo
tos. A sinalização dos membros do CCAB para com que essas sejam contempladas nas políticas
que a AR seja assumida pela Presidência da Repú- públicas, no caso os produtores e os exportado-
blica sugere a incapacidade político-institucional res de alimentos.
da Anvisa e das demais instâncias de controle de Por fim, aderir à AR significa enfrentar o de-
alimentos para comandar o processo de AR. safio de desenvolver políticas e condutas institu-
Adianta-se que um possível rearranjo insti- cionais articuladas, integrais e dinâmicas, com
tucional não contraria os princípios do Sistema capacidade de intervir sobre os riscos à saúde da
Único de Saúde; ao contrário, para modificar a população derivados dos alimentos com rapidez
lógica de pensar e de atuar em segurança de ali- e com flexibilidade, considerando os impactos
mentos, é necessário atentar para as regras dis- gerados. Implica, também, atuar de forma trans-
postas nesse sistema, tais como comando único, parente, valorizar o conhecimento científico e
integração, participação e descentralização das garantir a participação de todos os interessados
ações. para que se obtenha uma resposta efetiva e legíti-
A emergência e a complexidade dos riscos ma do Estado.
sanitários e a urgência na adoção de medidas para
gerenciar os riscos, em um cenário institucional Análise de Risco do Codex:
de poderes fragmentados e sem coordenação desvendando seus componentes
única, têm mobilizado vários países a promover
uma reorganização administrativa e atualização A condição atribuída às normas Codex, como
institucional, com vistas a reduzir os entraves referência internacional, possibilita aos países-
burocráticos que impedem a atuação eficaz e rá- membros optarem pela adesão parcial ou inte-
pida do Estado, como ocorreu, por exemplo, na gral ao conteúdo dessas normas. Entretanto, os
França29 e na Espanha30. membros entendem que a internalização dessa
Outros países, como Dinamarca, Alemanha, norma, pelo governo brasileiro, deve contemplar
Reino Unido, Países Baixos, Irlanda, Nova Ze- os aspectos de interesse para o país, mediante a
lândia e Canadá, também optaram pela consoli- prévia avaliação da capacidade tecnológica e po-
dação dos seus sistemas oficiais de segurança lítico-institucional disponível para fornecer uma
sanitária de alimentos em uma única agência resposta satisfatória e evitar entraves nas rela-
governamental, para atender ao interesse públi- ções comerciais da nação.
co; aperfeiçoar a segurança sanitária dos alimen- Nesse sentido, os membros fizeram ressalvas
tos; e melhorar a eficiência e a efetividade dos a determinados aspectos constantes da norma
programas de controle nacionais31. do Codex sobre AR.
Esses países suplantaram vários desafios, in-
clusive o de neutralizar as resistências coorporati- Avaliação de Risco
vas, e já alcançaram resultados positivos como a O primeiro ponto refere-se à separação fun-
redução da superposição de ações, a definição clara cional preconizada entre a avaliação e o gerenci-
das responsabilidades e a maior consistência e amento de risco. No entendimento dos mem-
agilidade no processo de regulamentação29-31. bros, a avaliação de risco não deve ser um traba-
Outro ponto de reflexão levantado pelos lho de domínio exclusivo dos cientistas e ser con-
membros do CCAB reside no tratamento discri- cebida totalmente independente das questões
minatório dado aos alimentos pelas instituições políticas e operacionais, pois acarreta um distan-
públicas, concentrando os esforços e adotando ciamento da realidade por parte dos especialis-
critérios rígidos de controle sanitário para os tas. Isso repercutirá sobre as respostas dadas às
produtos destinados ao mercado externo, en- demandas que terminam por, nem sempre, se-
quanto para os alimentos de consumo domésti- rem factíveis de implantação em face dos impac-
co há flexibilidade nos critérios estabelecidos e tos econômicos, sociais e políticos gerados.
investimentos limitados. O risco não se compreende a algo eminente-
Essa diferença de conduta institucional entre mente técnico-científico, pois se apresenta reves-
os alimentos conforme o seu destino deve-se à tido de significado sociopolítico e cultural34. Reti-
valorização das atividades agroindustriais32 e, rar o caráter de neutralidade científica do risco
provavelmente, aos impulsos corporativos refe- possibilita aos atores sociais envolvidos contes-
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tar o objeto estudado, gerando divergências e são consideradas um dos tipos mais frequentes e
antagonismos quanto à forma de intervenção, importantes de barreiras não alfandegárias26. Este
que polariza os benefícios sociais e a expansão fato se comprova quando, no ano de 2006, os
das atividades econômicas. países fizeram 585 notificações à OMC, sendo
Assim, os membros sugeriram que a coor- que 31% delas foram motivadas por questões
denação das atividades de avaliação de risco fi- relativas à segurança sanitária de alimentos36.
casse sob a responsabilidade de um técnico do Porém, o ideal é associar a aplicação do postula-
governo, o qual assumiria o papel de manter o do com investimentos na ampliação dos requisi-
grupo de avaliadores inseridos no contexto da tos de segurança sanitária dos produtos e no
realidade social. aperfeiçoamento dos mecanismos de defesa e de
Apesar de reconhecerem que cabe à instância proteção à saúde dos consumidores.
governamental a incumbência do gerenciamento Outro tema polêmico, expresso pelos mem-
de risco, não constatam inconveniências em ha- bros do CCAB, reside na inserção dos fatores
ver participação governamental como avaliador ambientais na AR. Eles entendem que tal preocu-
de risco, quando forem identificados técnicos do pação extrapola a missão do Codex e é objeto de
governo que atendem aos critérios de qualifica- discussão no âmbito do fórum que administra o
ção estabelecidos e que dominam o objeto a ser Protocolo de Cartagena38.
avaliado. Merece atentar que, no mundo moderno, a
A intenção da norma Codex é proporcionar globalização dos riscos se manifesta em termos
maior independência ao processo de avaliação de intensidade e de expansão27, por ameaçar a
de risco; todavia, flexibilizá-la não implica neces- toda a humanidade ou afetar um grande contin-
sariamente prejuízos na sua aplicação. As críticas gente de pessoas. Desse modo, já não se pode tra-
formuladas apresentam como ponto comum a tar isoladamente os riscos, inclusive os proveni-
ampliação da presença do governo na avaliação entes dos alimentos, dissociados do meio ambi-
de risco, e os argumentos apresentados buscam ente, pois os eventos globais estão em plena inter-
valorizar as potencialidades profissionais existen- conexão39. Essa situação impõe ao CCAB ampli-
tes na esfera do governo e direcionar os traba- ar os horizontes de entendimento dos riscos atu-
lhos da avaliação de risco à luz da realidade con- ais dos alimentos e das tecnologias a eles aplica-
creta em busca de resultados efetivos. das, os quais não se restringem a causar ameaças
O segundo ponto relaciona-se ao princípio à vida humana, mas também ao meio ambiente,
de precaução constante na AR, quando os mem- tanto pela perda da biodiversidade quanto pela
bros reconhecem que há indícios do uso indevi- contaminação ambiental, buscando romper as
do de medidas precautórias como forma de res- barreiras que os impedem de reconhecer as con-
trição do comércio internacional de alimentos, o tradições do “progresso” técnico-econômico.
que coincide com o relato feito por vários auto-
res9,26,35,36; ou quando há omissão do governo Gerenciamento de risco
em utilizar esse postulado em situações que se O gerenciamento de risco, como tarefa a ser
justificam. assumida pelo governo, significa lidar primeira-
Ancorada em pressupostos de que a verdade mente com escolhas e decisões sociopolíticas e cul-
científica é relativa e provisória37 e de que o co- turais e, em seguida, com o estabelecimento das
nhecimento produzido segundo as condições da atividades técnicas e legais necessárias para inter-
modernidade apresenta apenas uma estabilidade vir nos riscos34. A proposta de gerenciamento par-
relativa27, a norma AR considera as incertezas e a ticipativo do Codex busca a extensão da demo-
variabilidade da informação científica no proces- cracia e a incorporação da ciência ao processo
so de Análise de Risco e admite, portanto, o prin- decisório para tornar mais efetiva a capacidade
cípio da precaução. Nessas circunstâncias, esse de intervenção do governo e facilitar a mediação
postulado jurídico torna-se polêmico e suscita dos conflitos, importando disputas de interesses.
reflexões com focos divergentes: como elemento Agir dessa maneira significa ampliar as chances
de estagnação do desenvolvimento científico, por de solucionar os problemas, de modo eficaz, em
impor a suspensão da atividade produtiva ou prol da saúde da coletividade40-42. Embora o go-
comercial; ou como sinalizador da necessidade de verno seja o coordenador do processo de gerenci-
maior investimento em ciência e tecnologia para amento, para os membros todos os atores envol-
tornar o risco cientificamente conhecido5. vidos devem participar dessa atividade.
No entanto, não se pode descartar totalmen- Ao tratar do gerenciamento de risco em uma
te a razão da desconfiança, pois tais restrições perspectiva internacional, os membros atestam
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que a discussão dos projetos de normas interna- tificada uma relação injusta entre os benefícios
cionais em um fórum com representação tripar- para a sociedade e as medidas de intervenção
tite como o CCAB é suficiente para alcançar o pública estabelecidas para limitar o impacto dos
consenso em torno de uma posição que reflita o riscos sobre a saúde do coletivo. Em um ambi-
interesse de todos os participantes. ente democrático, a tomada de decisões envolve
Quanto à participação da sociedade civil na arranjos complexos, devido aos diversos interes-
AR, constata-se que o assunto se comportou ses em jogo, e a decisão é, em parte, resultante do
como o divisor de águas do posicionamento dos conhecimento científico, conjugada a interesses
participantes do Comitê. Para um deles, a parti- políticos e econômicos.
cipação da sociedade civil está devidamente visua- Bodstein33 sinaliza que o avanço da socieda-
lizada no gerenciamento de risco, e aponta a con- de democrática moderna está na geração de no-
sulta pública e a audiência pública como ferra- vos direitos sociais e na ampliação do espaço
mentas úteis para os órgãos gestores envolve- público com a inserção dos novos atores. O es-
rem a sociedade civil. Além disso, menciona, tabelecimento de parceria entre o Estado e a soci-
como importante, a realização de um fórum re- edade civil e o uso da ciência para a mediação dos
presentativo específico – consumidores, indús- conflitos são estratégias para o alcance de ações
trias, universidades – para se discutir e divulgar efetivas contra os riscos globalizados.
os resultados da avaliação de risco, antes de uma Os membros destacaram que a heterogenei-
tomada de decisão. dade no perfil educacional da sociedade brasilei-
Outro posicionamento associa a representa- ra, que não possibilita a todos exercer plenamente
ção da sociedade civil especificamente no momen- a sua cidadania e influenciar nos negócios do
to da comunicação de risco, descartando a sua Estado para que prevaleça o interesse coletivo,
presença nas atividades científicas e gerenciais dos impõe a necessidade de haver uma interlocução
riscos. competente e comprometida com a causa públi-
Por fim, defende-se a ideia da participação da ca. Dessa forma, alertam que a atuação sistemá-
sociedade civil, ou mesmo do cidadão, no pro- tica do Ministério Público e das entidades civis,
cesso integral de AR para garantir que os resulta- como representantes de parte da população bra-
dos decorrentes valorizem os interesses do con- sileira, em especial dos grupos socialmente ex-
sumidor em vez dos do mercado. cluídos, torna-se imprescindível para a defesa de
Observa-se que a norma do Codex20 supera seus interesses.
politicamente alguns posicionamentos dos mem-
bros e amplia o espaço de participação da socie- Aspectos operacionais da Análise de Risco
dade civil, referida como representação dos con-
sumidores, pois contempla a sua participação no De acordo com os membros do CCAB, para
processo de definição da política de avaliação de operacionalizar a AR, no Brasil, cabe efetuar uma
risco e nas atividades de gerenciamento e comu- articulação com os especialistas e as instituições
nicação de risco. afins para envolvê-los no processo, consideran-
A interferência de novos atores sociais nas do a capacidade técnico-científica disponível no
políticas de vigilância sanitária é algo recente e país, nas esferas pública e privada.
surge com o advento do processo democrático O conhecimento das experiências de avalia-
dos anos 80, influenciado pelo movimento da ção de risco aplicada na área de agropecuária,
Reforma Sanitária. Apesar disto, as políticas con- concentradas nas culturas de exportação, e o das
tinuam a manter o traço característico, no de- experiências desenvolvidas em outros países fo-
correr das gestões governamentais, da presença ram apontados como alguns dos caminhos para
marcante do Estado e do setor produtivo como se iniciarem as atividades.
formuladores dessa política e do atendimento Para esse Comitê, o grupo de especialistas res-
restrito às demandas que expressam os interes- ponsável pela avaliação de risco deve ter conheci-
ses coletivos43. mento técnico-científico e independência; refletir
A presença organizada e qualificada dos con- a representação de várias instituições; e ser oficial-
sumidores nas atividades de AR constitui um re- mente formalizado. O CCAB defende a transpa-
forço para a defesa dos interesses coletivos e os rência do processo de avaliação de risco, para que
habilita a exercer o controle social efetivo, tanto a sociedade conheça os critérios que levaram à
contribuindo e conferindo legitimidade às ações conclusão dos trabalhos dos avaliadores de risco.
propostas quanto reivindicando a revisão dos Para solucionar os possíveis conflitos e as
atos decisórios adotados; e sempre que for iden- pressões de interesses diversos a que seriam sub-
2260
Figueiredo AVA, Miranda MS

metidos os especialistas, os membros mencio- rentes estratégias de sensibilização e de divulga-


naram que o ideal seria o aporte técnico-finan- ção da norma foram apontadas como parte inte-
ceiro do Estado para a formação de uma “massa grante dessa política: a realização de seminários, a
pensante”. Segundo Guimarães44, há pessoal qua- formulação de programas de capacitação e a ins-
lificado e capacidade instalada de pesquisa, na tituição de uma comissão. A aplicação da AR pres-
saúde, no âmbito das instituições públicas. Po- supõe o envolvimento de diferentes atores soci-
rém, o Ministério da Saúde necessita reafirmar- ais. São eles, assumindo diferentes papéis, que vão
se como liderança política na condução dos as- explicar os riscos e as incertezas e definir – de for-
suntos relativos à política de ciência, tecnologia e ma participativa – como fazer a intervenção. Por
inovação em saúde e redefinir os padrões de pes- isso, torna-se necessário criar situações que pos-
quisa em saúde no país, considerando as priori- sibilitem sensibilizar esses atores para que pos-
dades da política social no setor. sam não só compreender, mas também partici-
A ampliação do financiamento governamen- par, ativamente, do processo de AR.
tal das pesquisas científicas, associada à verifica- Segundo os membros, a inexistência de lide-
ção da integridade e da independência dos agen- rança nacional na área de segurança de alimen-
tes envolvidos na produção do conhecimento ci- tos amplia os obstáculos para a AR. É preciso
entífico, pode priorizar estudos envolvendo os apresentar-se, no cenário político, um ator ca-
impactos das tecnologias à saúde humana e am- paz de instigar o debate no âmbito da sociedade,
biental que somente interessam às instituições em defesa de propostas atualizadas, que moder-
públicas, assim como evitar situações que indu- nize os conceitos e as práticas de controle de ali-
zam ao descrédito do conhecimento quando os mentos e sensibilize a população sobre a impor-
resultados afetarem os interesses econômicos45. tância de intervir nos riscos transnacionais asso-
Como a ciência é decisiva no processo de ava- ciados aos alimentos.
liação, é conveniente que haja o confronto entre
os diferentes resultados da produção científica e
das experiências acadêmicas para a consolidação Conclusão
da avaliação. Ressalta-se que o conhecimento ci-
entífico que sustenta a avaliação de risco é reco- Os membros do CCAB reconhecem a AR como
nhecidamente instável, permeado por significa- uma iniciativa valiosa da Comissão do Codex
do sociopolítico e cultural34, relativo e provisó- Alimentarius para enfrentar os riscos associados
rio37, e se reestrutura continuamente na ótica da aos alimentos que circulam no comércio inter-
reflexividade da sua aplicação prática27. Essa di- nacional. Os novos espaços sociais de interlocu-
nâmica do saber é que impõe uma atualização ção e de participação, envolvendo o governo, a
frequente da avaliação de risco ante as novas des- sociedade e o setor produtivo e os mecanismos
cobertas científicas. de transparência das ações adotadas, previstos
Embora os membros admitam ser uma ques- na norma AR, possibilitam a tomada de valiosaa
tão de difícil controle, a observância dos princí- para debatendem que a de AR.envolvimento da
pios éticos pelos especialistas responsáveis pela AR erdecisão efetivamente compartida para a
avaliação de risco é fundamental para que os re- contenção dos riscos da modernidade, que ame-
sultados produzidos não se desviem em prol da açam a saúde do coletivo.
valorização dos interesses privados. As inquieta- O CCAB é favorável que o governo brasileiro
ções dos membros envolvem desconfiança, pre- incorpore a norma AR na sua prática institucio-
ocupação e mecanismo de controle do compor- nal, com o fim de aprimorar o sistema nacional
tamento ético do especialista, próprios da socie- de controle de alimentos e ampliar a proteção da
dade moderna, em que há desencontros entre a saúde dos consumidores e, consequentemente,
lógica do capital e a da ética. Para Dallari46, a fortalecer as exportações brasileiras de alimentos.
globalização da economia é incompatível com os Não obstante a capacidade técnico-científica
preceitos éticos ao reger-se pelas leis mercadoló- para desencadear o processo de AR, a presença
gicas, uma vez que o poder econômico influencia de vários poderes institucionais, a fragmentação
decisões e utiliza meios diversos para converter das ações e a condução de políticas distintas pe-
em proveito econômico os resultados científicos las instituições envolvidas com o controle sani-
e os avanços tecnológicos no campo da saúde. tário de alimentos constituem-se em dificulda-
Considerando a publicação recente dessa nor- des, cuja superação está na condução da AR pela
ma19 e a absorção lenta do tema pelas universida- Presidência da República ou em novos rearran-
des e demais instituições públicas e privadas, dife- jos institucionais em direção a um comando ins-
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titucional único. Esta última alternativa pode fa- Colaboradores
cilitar o processo decisório da AR e o desencade-
amento de medidas plenas, sistemáticas e pre- AVA Figueiredo trabalhou na coleta, na análise
ventivas dos riscos dos alimentos, que afetam as dos dados e na redação final do artigo; MS Mi-
comunidades interna e externa, considerando o randa atuou como orientadora e revisora.
perfil agroexportador brasileiro.

Agradecimentos

Ao apoio dos membros do Comitê do Codex


Alimentarius do Brasil, o qual foi fundamental
para o desenvolvimento deste estudo.

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