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MARGARIDA MARIA MOURA

Z
N
A
MARGARIDA MARIA
MOURA é professora do
FR

Departamento de Antropologia
da FFLCH-USP.

BOAS
A antropologia cultural
no seu nascimento
naquela casa, gosto que o herborista tam-
bém cultuava, graças a uma preferência
marcante pelo Cravo Bem Temperado de
Johann Sebastian Bach e também por Wolf-
gang Amadeus Mozart, com o que, ainda
jovem, tornou-se exímio executante desse
instrumento, usando-o em quase todos os
momentos de lazer, não só por higiene
mental, mas sobretudo pelo quanto amava
a música. Na casa de campo – como con-
tou a irmã – havia ânsia de ar livre, que se
alongava em caminhadas até as margens do
Rio Weser, onde os irmãos conversavam e
também observavam o rico meio ambiente
de fauna e flora, fazendo ali diversas coletas
e herborizações.
Único irmão entre três irmãs, Franz era
muito mimado. Sophie e Meyer, seus pais,
imaginavam desde cedo maravilhas naquele
menino, para o qual almejavam a profissão
de médico, que lhe daria bom sustento, além

F
da oportunidade de servir e se comunicar
socialmente. Talvez não percebessem no
filho mais o descobridor do que o clínico,
mais o pesquisador do novo do que o leitor
atualizado de revistas de medicina.
Entre as duas casas da família, a da
cidade e a do campo, foi crescendo deva-
gar em saúde e inteligência, olhando os
paralelepípedos da praça central de Minden
ou o bosque nos fundos da outra casa, que
traziam, além da visão, o cheiro, o tato e o
ranz Boas nasceu em 9 de julho de 1858 em gosto de mundos conhecidos desde a meni-
Minden, na Vestefália, numa família judai- nice. Descobridor da natureza, pesquisador
ca de alta posição social. Meyer Boas, de um mundo natural povoado de insetos,
seu pai, era comerciante, e sua mãe, Sophie aves, pequenos mamíferos e peixes, era
Boas, fundou o primeiro jardim-de-infância também um espírito questionador, nas aulas
da cidade. Nas suas reminiscências, sua de filosofia, já nos anos do Gymnasium.
irmã Hedwig Lehmann contou como se Apaixonou-se por Goethe muito cedo;
orgulhava de seu irmão mais velho, que a adolescente, leu o teatro grego, a poesia
levava sempre que ia herborizar nas cerca- e a filosofia, tanto as clássicas quanto as
nias da casa de campo da família, próxima a contemporâneas.
Minden, na Vestefália. A amizade de irmãos Corria o ano de 1874. As diferenças
fundia-se como o amor à natureza, uma étnico-religiosas já fervilhavam, entre
vocação de meninos, que se deleitavam nos judeus e não-judeus, na jovem Alemanha
belos espaços abertos dessa região da futura recentemente unificada. Desprendido do
Alemanha, cheia de bosques e retiros, um aconchego uterino da casa familiar, o jo-
rio caudaloso e de muitas corredeiras. vem Boas experimentou o preconceito do
Na casa urbana da praça principal da anti-semitismo à luz do dia. Debates sem
cidade, as atividades eram principalmente fim ocorreram nos corredores e pátios da
literárias e musicais. Tocava-se o piano universidade sobre o papel e a posição dos

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judeus na nova nação. O espírito cristalino Cor da Água) foi publicada em Kiel em
do jovem evocava incessantemente as idéias 1881. Jovem adulto, tinha já aquele toque
da democracia e da igualdade. Afinal, ele genial de petulância intelectual que permitia
nascera num lar entranhado nos ideais da desafiar uma física de observação puramen-
Revolução de 1848, que eram justamente te kantiana, interrogando-se a respeito do
os da abolição definitiva das desigualdades papel do observador.
estamentais, classistas e também étnico- Ecos da América distante entoavam um
religiosas. cântico de atração em seus ouvidos. Um
Sua jovem Alemanha já nascera ran- tio muito querido, Abraham Jocabi, que
corosa e rançosa. De um conservadorismo havia emigrado para Nova York, viajou
decadente, que contrariava em tudo os no verão para Minden e visitou a família.
ganhos políticos da Europa de 1848. Para Chegou também outra emigrada que vivia
um jovem espírito livre letrado e aberto nos Estados Unidos, que veio visitar a terra
– na expressão que ele bem conhecia por já natal: a senhora Krackowizer, mãe de duas
haver lido os primeiros escritos de Wilhelm moças chamadas Alice e Marie. É com o tio
Dilthey –, chegava o momento de uma tran- Abraham e com a senhora Krackowizer e
sição ainda mais notável, que o poria em suas filhas que os irmãos Hedwig, Anna e
contato com idéias novas, conflitante com a Franz viajaram para as montanhas, no ardor
velha ordem estamental em decomposição, do verão. Ardor também que reuniu, num
que o oprimia. abrir e fechar de olhos, os corações de Marie
Foi para Bonn vivenciar os anos univer- e Franz, que se olharam, se falaram e se
sitários. Não estudou muito, ao que parece, gostaram. Uma atração fortíssima reuniu os
nesse início de período. Sendo aceito na dois; os passeios pelas montanhas ensejaram
fraternidade à qual se filiavam os bons trocas de juras; a luz do céu estrelado favo-
alunos dessa universidade, atuou no âmbito receu uma sensação básica de integração nas
dos ideais civis e políticos, participando coisas do mundo, às longas horas diurnas
de debates internos. As causas de caráter do verão se prometeram e se compromete-
histórico, como explicativas das ações hu- ram para toda a vida. Franz começou a se
manas, acendiam sua imaginação. Para isso desprender internamente da preeminência
mesmo, sua inteligência e brilho chamavam que, com grande respeito, conferia a seus
atenção nas salas de aula. Retornou com pais, e da cumplicidade fraterna que o reunia
afinco para a filosofia sob a orientação de a suas irmãs desde os primeiros anos de
Bruno Erdmann e começou a estudar geo- vida. Como num passe se mágica, dali em
grafia, ainda nos anos 70 do século XIX, diante, onde estivesse Marie, seu tesouro,
com Theobald Fischer. aí estaria o seu coração.
Toni, uma das suas irmãs, adoeceu en- “Os objetivos de meus estudos”, dizia
tão. A família mudou-se para Kiel, porto então Franz Boas,
de mar situado ao norte, por ser a cidade
de residência do especialista que cuidaria “variaram bastante durante meus anos de
dela. Franz acompanhou a família. Estava universidade. No curso do tempo convenci-
alegre por voltar a conviver com as irmãs me de que minha Weltanschauung materia-
e os pais. Estava alegre de saber que dois lista anterior – muito compreensível para
dos seus mestres mais amados também es- um físico – era insustentável, e com isso
tavam em Kiel, e com eles voltou a estudar situei-me num novo ponto de vista, que
com afinco. Preparou magnífica tese de me revelou a importância de se estudar a
doutorado em física sobre a cor da água do interação entre o orgânico e o inorgânico,
mar, sob a orientação de Theobald Fischer, acima de tudo entre a vida das pessoas e
problematizando a questão da percepção do seu ambiente físico. Com isso surgiu meu
olho humano na observação dos fenômenos plano de considerar como tarefa de minha
físicos. Beitrage zur Erkentniss der Farbe vida a investigação seguinte: até que ponto
des Wassers (Contribuição ao Estudo da podemos considerar os fenômenos da vida

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orgânica, em especial os da vida psíquica, pessoa que já convivia com sua família nos
de um ponto de vista mecanicista, e que tempos de Minden e também de Berlim,
conclusões podem ser formuladas a partir fiel servidor da família tanto quanto sua
dessa consideração?”. dedicada mulher.
Conhecimentos novos, nova adesão
Numa carta escrita a Abraham Jacobi, sentimental. Terras novas, novos desco-
o tio residente em Nova York, referiu-se brimentos, novas perspectivas e molduras
de forma clara à viagem que estava para do saber: eram sinais também de uma nova
fazer à Terra de Baffin e que áreas científi- disciplina que iria surgir. Na biografia de
cas abrangeria. Tinha a consciência de ser Franz Boas se misturavam e se combina-
um pesquisador novato e solitário ante o vam, com um colorido apaixonante, um
desconhecido. Sobre sua viagem de cam- velho mundo, um mundo velho que ele
po à Terra de Baffin, no Canadá, iniciada foi deixando se diluir dentro do peito e da
em 1883, deixou o seguinte comentário mente, e um mundo novo que foi lentamente
em carta: recebendo o influxo de novas formas e novos
conteúdos, como se o ar frio do convés da
“Meus instrumentos estão em ordem. Es- escuna Germânia trouxesse maior lucidez
tou tomando providências, de modo que às idéias e uma incrível disposição para o
os assuntos de trabalho fiquem em ordem. desconhecido.
É lógico que eu gostaria muito de ter um Partiu munido de presentes do espírito
companheiro cientista, mas ninguém apa- e presentes materiais. Com o dinheiro en-
receu até agora. Um trabalho em todos os viado pelo tio, ele comprou o equipamento
campos é demais para mim, como o senhor necessário conforme narrou em carta:
deve imaginar. Portanto, vou me limitar à
cartografia, à geografia física, à botânica, “Tenho três relógios ‘Prismenkreiss and
à etnografia, deixando de lado a zoologia e Horizont’, um teodolito geodésico para
a geologia. O resto já vai me dar dores de medir distância e uns menores para medir
cabeça suficientes”. ângulos, um grande compasso, barômetro,
termômetro, higrômetro, aneróide e uma
Desprendendo-se nesse momento a máquina fotográfica. Um pequeno barco-
terra natal, deixa-se embarcar num longo trenó para transportar provisões, espingar-
rito de passagem entre os inuítes, que o das e munições, alimento para doze meses,
faria trocar as antigas vestes culturais, que peles e roupas de lã. Estes são os itens mais
se consolidariam com a mudança para os importantes. O senhor sabe qual é o meu
Estados Unidos, anos mais tarde. Deixando trabalho. Estou ansioso por descobrir se
o calor da família de seus pais, das irmãs e terei sorte nos meus planos científicos. O
dos primos, seus sentimentos se acenderam plano é de qualquer modo amplo, embora
com o calor da atração por Marie. Saía suficientemente específico para que eu deva
da piedade filial para o amor romântico, ter algum êxito. Para a viagem, conto com
aspecto profundo de seu rito de passagem, o apoio da Comissão Polar da Alemanha e
que envolvia então o sentimento adulto que de um baleeiro escocês que fica atracado
tinha por uma mulher. em Kikkerton”.
Ainda assim a proteção dos pais se fez
sentir. Ficou combinado que o marido de Sobrevieram enjôos diários a bordo do
Mathilde – a servidora que levava a chaleira barco. Ejetando o conteúdo do estômago,
da água dos banhos na casa de campo da Franz ejetou igualmente o seu passado. Era
família – acompanharia Franz, que partiria preciso estar leve e vazio para realizar os
em breve, do porto de Bremen para a Terra ritos que implicavam novas aquisições e
de Baffin. Ele viajaria acompanhado. Não novas entradas. Os grandes jejuns religiosos
de um colega cientista, que alegou nunca são pródigos em sintomas assim. É preciso
ter aparecido, mas de Wilhelm Weicke, estar inteiramente oco para receber uma

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substância distinta de vida que, no jovem “Como ser pensante, o resultado mais
pesquisador, era o novo conhecimento, importante desta viagem, para mim, está
coligado com o novo sentimento. no fortalecimento do meu ponto de vista
No dia 9 de julho de 1883 o Germânia de que a idéia de um indivíduo ‘culturado’
lançou âncoras no porto de Anarnitung, na (culto), é simplesmente relativa: o valor
Terra de Baffin. Franz Boas e seu servidor de uma pessoa deve ser atribuído pela sua
Wilhelm Weicke chegavam à nação inuíte. Herzenbildung. Esta qualidade está presente
Começava então uma pesquisa etnográfica ou ausente entre os esquimós tanto quanto
totalmente original na história das ciências entre nós. Tudo o que um homem pode fazer
humanas: o pesquisador se dispondo a per- pela humanidade é propiciar a verdade, seja
manecer um ano vivendo com a sociedade ela doce ou amarga. Um homem assim pode
a ser pesquisada e, mais que isso, como um verdadeiramente dizer com convicção que
membro dessa sociedade. não viveu em vão”.
A pesquisa de campo no Ártico era
desafiadora, exigente, difícil. Sobreveio Quando de sua vinda para a costa no-
um inverno duríssimo, e o pesquisador co- roeste do Pacífico, em 1886, Boas passou
mentou, numa carta, que estava num iglu, por Londres, tendo uma acolhida favorável
tomando parte numa grande festa. Alguém a seu trabalho de campo pela Canadian
caçou duas focas, trouxe-as para a aldeia, Royal Society. Nessa ocasião, esteve com
e sua carne estava sendo distribuída de Tylor, encontro que foi referenciado na
modo tal que cada um recebeu um pedaço. carta acima.
Ele admirou então o belo costume desses Boas, que em 1888 havia se casado,
“selvagens” (aspas de Boas), que sofriam agora era pai de família. Marie deu à luz
em comum a carência e a privação, mas uma menina, Helene. De Worcester, no
que se alegravam juntos quando havia caça estado de Massachusetts, escreveu à irmã
abundante, reunindo-se para comer e beber. Toni. Lamentou-se de ter trabalhado rela-
E comentou com Marie: tivamente pouco no seu já vasto material
etnográfico. Em compensação, afirmou
“Muitas vezes me pergunto que vantagens com convicção e bom humor o quanto seu
nossa ‘boa sociedade’ tem sobre a dos interesse havia se voltado para a criança.
‘selvagens’. Quanto mais eu vejo seus Como era difícil educar! Ele e Marie se
costumes, mais reconheço não termos o esmeraram em tornar a filha uma menininha
direito de olhá-los de cima para baixo. independente, deixando que fizesse por si
Onde, no nosso povo, poder-se-ia encontrar tudo que conseguisse. Ensinaram-na a ar-
esta hospitalidade verdadeira? Nós, pessoas rumar suas coisas. Numa referência a seu
‘altamente educadas’ somos bem piores, passado com Toni e as outras duas irmãs, e
relativamente falando. Os esquimós estão também à educação que estava sendo dada
sentados em roda, com suas bocas cheias à filhinha, ele desabafou: “Não há bosques,
de fígado cru de foca (a mancha de sangue nem rios por aqui. Não é uma menina tei-
no verso do papel mostra a você como eu mosa, é fácil conduzi-la”.
estava tomando parte)”. Nesse mesmo período Boas estava
desenvolvendo intensa atividade museo-
Sobreveio, após um momento esplêndi- lógica na cidade de Nova York. W. Putt-
do da sua observação e da sua reflexão, o man, também curador do Departamento
tempo em que conhecimento e sentimento de Antropologia do American Museum of
pareceram fundir-se numa assertiva única. Natural History, se propôs recomendar Boas
Era um momento da observação em que mediante uma carta escrita ao presidente da-
o homem enunciava um pensamento e o quela entidade, Morris K. Jesup, no sentido
pesquisador, um conhecimento. O extraor- de reforçar a proposta de Boas para que se
dinário é a afirmação estar registrada numa efetuasse uma exploração arqueológica e
carta de amor: etnológica das costas do Pacífico Norte, de

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modo que se pudesse compreender melhor logies). Simultaneamente, Boas trabalhou
os contatos primevos entre as populações em orfanatos judeus da cidade de Nova
do continente asiático e do continente ame- York, fazendo antropometria de crianças e
ricano. Esse ramal da pesquisa ampliava, adultos. Sua formação virchowiana fez dele
na direção da Sibéria, temas do trabalho um fino antropólogo físico, que herdou de
de campo que já estava na mente de Boas Rodolf Virchow a mestria em lidar com os
desde a sua primeira ida aos kwakiutl, em antropômetros. É dessa época, igualmen-
1886. Dizia W. Puttman em carta: te, a primeira versão de seu famoso artigo
“Changes in the Bodily Form of Descen-
“Estou confiante que o esquema proposto dants of Immigrants” (“Mudanças na Forma
pelo dr. Boas para uma investigação su- Corporal de Descendentes de Imigrantes”),
plementar das condições pré-colombianas que só terminaria em 1911.
da América do Norte irá receber do senhor Assim, no alvorecer do século XX,
atenta consideração. O dr. Boas, na sua Franz Boas já estava na Universidade de
apresentação do assunto, deu-nos um plano Colúmbia. Era pai de mais um filho, um
abrangente e, visivelmente, de vastas pro- menino, Ernst. Estava tentando morar perto
porções. É altamente improvável que tal da universidade, mas os aluguéis caríssimos
plano possa ver posto em prática a não ser obrigaram a família a se estabelecer longe
que vários patrocinadores ricos da pesquisa de Riverside Drive, onde fica o campus da
científica se interessem pela sua realização. Universidade de Colúmbia. Foram morar
Tenho esperança de que outros juntar-se-ão numa casa simples, porém confortável, em
ao senhor para prover os meios para realizar Grantwood, em Nova Jersey.
esta importante pesquisa, cujo esquema eu Das viagens de campo à Colúmbia Bri-
apóio irrestritamente, e peço urgência na sua tânica voltou sobraçado de peças rituais,
execução, sob a direção do museu”. máscaras, instrumentos musicais e objetos
de uso cotidiano das culturas da região.
As expedições tiveram início em feve- Particularmente dos kwakiutl, sociedade
reiro de 1889. Começou um enorme esforço indígena cuja língua Boas estudou até o
etnográfico, desempenhado pelo próprio final da vida e sobre a qual escreveu um
pesquisador. No continente europeu o mo- texto original sobre o potlatch, o famoso
mento coincidia com o início da publicação sistema de trocas agonísticas que caracteriza
da obra da Émile Durkheim, aliás nascido seu principal ritual.
também em 1858, como Boas, e, tal como Na primeira década do século XX, o
ele, de origem judaica, bem como de um antropólogo não somente reforçou o perfil
grupo de alta capacidade interpretativa que intelectual e público de crítico do evolucio-
fez avançar a antropologia francesa. Na nismo e do racismo, já que ainda ecoavam
França, o campo da etnografia caminhou nos meios universitários norte-americanos
pari passu com o trabalho de Boas na Alema- suas duras investidas, como seu nome já
nha e, agora, no continente americano. Mas apareceu citado respeitosamente nos traba-
enquanto Émile Durkheim e Marcel Mauss lhos de Émile Durkheim e Marcel Mauss.
dependeram da qualidade das anotações de E as citações de Boas que provinham da
campo obtidas por terceiros, foi o próprio Escola Sociológica Francesa reforçavam
Boas, mais uma vez, que foi ao campo e ali seus achados etnográficos, contra um certo
recolheu a sua preciosa etnografia. teoricismo que desgostava os dois mestres
A década de 90 do século XIX na França franceses.
inaugurou a primeira fase da grande revista Sereno e profundo, Boas estava ini-
dirigida por Durkheim, denominada Année ciando três novos focos de interesse: a
Sociologique (1898). Publicaram-se artigos lingüística, as relações raciais e a arqueo-
que tratavam dos sistemas de representação logia. Impressionado com a complexida-
mental, sobre os quais Boas também escre- de incomensurável da língua kwakiutl,
veu, designando-os como mitologia (Mitho- começou a se organizar mentalmente para

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uma pesquisa coletiva de largo espectro:
recolher e analisar, pelo trabalho conjunto
de uma equipe de pesquisadores, as línguas
indígenas da América do Norte, plano que
viria a ser mais tarde o Handbook of North
American Languages, empreendimento
cujo fôlego só é comparável a uma outra
grande obra coletiva posterior, Handbook
of South American Indians, organizado e
editado bem mais tarde por Julian Steward.
Sua introdução ao Handbook, escrita em
1911, é um texto que revoluciona a lin-
güística das línguas indígenas e antecede
mesmo à notável contribuição de Ferdinand
de Saussure.
O estudo das relações raciais se impôs
ao espírito lúcido do antropólogo em função
da forte segregação racial que caracteriza-
va a sociedade norte-americana naquele
tempo, muito mais forte que a de hoje.
Chocou-o a ausência de direitos civis dos
negros americanos que, em alguns estados,
não tinham direito ao voto, iam a escolas
separadas, viviam em bairros apartados,
estavam proibidos de sentar-se nos bancos
da frente das conduções públicas, dispu-
nham de banheiros públicos segregados,
não iam às mesmas universidades, nem aos
mesmos templos; tinham uma cidadania
subalterna, portanto. Em termos concretos,
não eram pessoas, nem mesmo indivíduos, meiro pretendeu abrir oportunidades para
eram coisas, como no tempo do cativeiro, a pesquisa antropológica no seu país, logo
quando os escravos tinham a condição de após a Revolução de 1910; o segundo, mais
verdadeiros semoventes. Preparando já em tarde, foi um dos criadores e artífices do
1906 os esboços de um livro que lançaria Departamento de Antropologia da Univer-
cinco anos mais tarde, chamado The Mind sidade da Califórnia.
of Primitive Man, e que ele, particular- Franz Boas exerceu poderosa influência
mente, achava que deveria ter denominado sobre a antropologia mexicana moderna,
Race, Language and Culture, trocou uma não somente pela direção da escuela, e pela
correspondência altamente esclarecedora presença constante no trabalho de campo,
com o sócio Felix Adler, entre outros, sobre mas por uma forte permeabilidade de toda a
questões de raça. geração de antropólogos que o acompanhou
A terceira área de interesse realizou-se em muitos de seus escritos, entre eles os de
no México. Cientista-cidadão, Boas acom- antropologia física, lendo-os e citando-os.
panhou com interesse a história contempo- Não foi à toa que Manuel Gamio, fundador
rânea do México, seja na sua manifestação da moderna antropologia mexicana, aluno
camponesa, urbana, ou intelectual. O futuro de mestrado de Boas em Colúmbia e que
patrono da antropologia mexicana, Manuel realizou trabalho de campo no México
Gamio, fez mestrado na Colúmbia sob sua em sua companhia, devotou a ele elevada
orientação, nove anos depois de Alfred amizade intelectual. Também não foi à toa
Kroeber. São dois alunos de fôlego; o pri- que Juan Comas, o maior antropólogo físico

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mexicano de origem espanhola, chegado ao tornar-se livres de quaisquer postulados
México na grande leva de sábios fugidos racistas e, por isso mesmo, férteis para o
da vitória franquista na Guerra Civil Es- enfrentamento de novas questões, com o
panhola, e que é certamente também um papel da miscigenação na vida dos povos, a
dos nomes mais elevados da antropologia influência do ambiente nas transformações
daquele país, devotou a Boas veneração biológicas e, mais tarde, o encontro fecundo
filial. Toda a antropologia mexicana, aliás, com a genética humana.
deve a Boas um vasto quinhão. A atualização sofrida pela antropologia
Chegaram os teens do novo século. física, agora tornando-se cada vez mais uma
Boas os inaugurou com a publicação de The antropologia biológica, processo altamente
Mind of Primitive Man, pela MacMillan favorecido pelos numerosos trabalhos de
em 1911, o marco mais importante da an- Boas, dentre os quais The Mind of Primitive
tropologia desde Primitive Culture, de E. Man, não se fez sem provocar muitos e fortes
B. Tylor, no tocante à delimitação da noção descontentamentos dos antropólogos físicos
de cultura, com total claridade. Noção de de tendência conservadora, especialmente
cultura essa que supera a tyloriana, contida os de coloração política direitista, posição
em Primitive Culture, meramente descritiva da qual os nazistas viriam a ser os principais
e enumerativa, ao passo que a boasiana é herdeiros. O acontecimento máximo dessa
interpretativa. corrente eram os Congressos de Eugenia,
The Mind of Primitive Man é dividido cujos trabalhos faziam a apologia aberta
em três grandes seções, denominadas, res- das teses da pureza racial, e até mesmo no
pectivamente, “Race”, “Language” e “Cul- âmbito de uma política de Estado, como
ture”, assuntos que constituem exatamente ficaria claro, a partir da década de 1930,
o nome de um futuro livro, uma compilação quando as medidas de orientação racista
de numerosos artigos seus de 1940 pela começaram a ser implementadas como po-
mesma editora. Depois dos livros Baffinland lítica pública, quando os nazistas chegaram
e The Central Eskimo, monografias resul- ao poder na Alemanha.
tantes de trabalhos de campo etnográficos, Outrossim, sabe-se do extremo interes-
e que o autor considerou eminentemente se que a lingüística despertava no mestre.
descritivos, vieram vários artigos de cunho Com a prévia publicação do Handbook of
metodológico que iluminaram o campo North American Languages, para o qual
intelectual da antropologia tanto quanto a Boas escreveu notável introdução, que por
produção escrita da primeira série da Année si só justifica plenamente sua publicação, e
Sociologique, na mesma década. que veio enriquecer de modo destacado esse
The Mind of Primitive Man correu o trabalho dedicado ao estudo das línguas indí-
mundo na versão original e recebeu vá- genas, viriam a se consolidar ainda mais os
rias traduções. É um marco não somente estudos lingüísticos na comunidade antropo-
por separar a noção de raça da noção de lógica. Assim, a sua proposta de publicação
cultura, mas por restringir, por encolher o de uma revista de periodicidade regular, num
campo da primeira, em privilégio da segun- tema não somente valioso por si próprio,
da. E isso sem jamais anular o campo da mas crucial para o entendimento da relação
antropologia física, o qual se aproximou, entre cultura e língua, foi algo fundamental
mais e mais, da antropologia biológica e da para que se consolidassem a lingüística e a
biologia humana, ampliando um domínio antropologia nos Estados Unidos.
fértil para o diálogo entre biólogos e gene- O início da década de 20 foi turbulen-
ticistas, que não cessaria jamais de crescer. to, nos Estados Unidos, em decorrência
As associações de antropólogos físicos, de crises políticas, sociais e econômicas
já fortíssimas em vários países da Europa menores, mas que pronunciavam o grande
Ocidental e Oriental e também nos Estados desastre de 1929. A vida do antropólogo
Unidos, receberam impulso decididamente não era menos fervilhante: dois episódios,
moderno com as noções boasianas. Puderam um de citizenschip, outro de scholarship,

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agitaram a sua vida pública. O primeiro foi e a alguns colaboradores remanescentes
a sua participação na ação judicial contra organizar a segunda série da revista, na
imigrantes armênios, vindo em sua defesa. década de 20.
E o segundo, a sua suspensão da American Foi esse um momento de insuspeitada
Anthropological Association. Com a moda aproximação etnográfica e interpretativa
dos Congressos de Eugenia da década entre Franz Boas e Marcel Mauss. Ambos
de 20, que eram apenas uma das faces estavam trabalhando no âmbito das repre-
da acentuação do racismo na sociedade sentações mentais, o que ocorreria com o
americana, Boas enfrentou duas situações primeiro quando da redação e publicação,
dignas de nota da sua vida pública. Ele em 1927, de Primitive Art, por uma institui-
havia escrito uma denúncia do trabalho de ção sediada em Oslo, Noruega, denominada
campo etnográfico que se punha a serviço Instituttet for Sammenlignende Kulturfor-
do Departamento de Estado dos Estados skning, ao passo que coube a Mauss a pu-
Unidos, o que na prática fazia com que blicação de notáveis ensaios sobre o corpo,
alguns antropólogos agissem como infor- a noção de pessoa e o sistema de troca de
mantes do governo americano e de seu presentes na organização social: o “Essai
serviço secreto, em troca de financiamento sur le don” foi publicado em 1923-24.
para suas pesquisas. Tal documento não foi A agitação nos meios antropológicos foi
aceito pela revista Science, editada por J. grande. A referida carta, que levantava um
McKeen Cattell, ex-professor de Colúmbia, grande problema ético, foi objeto de reação
por entender que esse periódico científico da Anthropological Society of Washington,
deveria evitar questões polêmicas, que que emitiu um pronunciamento, enviado
pudessem ser interpretadas como dotadas à American Anthropological Association
de caráter político. Boas, então, recorreu ao (AAA), para ser lido em sua reunião de
The Nation, enviando, sob forma de carta à dezembro de 1919. A Anthropological
redação, o texto que saiu publicado em 16 Society of Washington pedia uma rejeição
de outubro de 1919, sob o título “Scientists geral do texto de Boas, e resolveu que o
as Spies”. Em Colúmbia, ele deu um curso autor deveria ser alvo de censura, que foi
que ficou célebre, denominado simplesmen- aprovada por maioria de dois terços dos
te “Methods”. associados da AAA.
A título comparativo, vale dizer que O quadro doméstico dos Estados Unidos
esses anos do século XX não seriam me- repercutia a difícil situação internacional
nos dramáticos para o grupo cujo nome dos anos 30. Racismo e direitismo se
foi consagrado como Escola Sociológica combinavam de forma não raro agressi-
Francesa, com os desastres da Primeira va. Numa carta ao professor Adolf Berle,
Guerra Mundial, que teve na França um dos Boas manifestou suas preocupações de
campos de batalha mais destacados. Émile modo concreto, por meio da proposta de
Durkheim perdera no fronte balcânico o realização de cursos temáticos sobre o que
filho André, em quem depositava tantas chamou de teoria racial em estabelecimentos
esperanças de continuidade intelectual. acadêmicos do país:
Desmantelara-se a equipe de edição regular
da Année Sociologique. Muitos destaca- “Tendo em vista a agitação atualmente em
dos colaboradores da revista e membros nosso país, me parece importante que sejam
representativos desse grupo de sociólogos oferecidos cursos sensatos de teoria racial
e antropólogos também perderam a vida e de significado das raças nos colleges e
durante esse conflito. Um dos mais promis- nas universidades. Eu próprio me organizei
sores deles era o jovem antropólogo Robert para dar um curso desse tipo em Colúmbia
Hertz. O próprio Durkheim não resistiu e no próximo inverno, e um outro curso se-
morreu em 1917, aos 59 anos, de ataque melhante, apesar do ponto de vista distinto,
cardíaco, em conseqüência do sofrimento será dado no Departamento de Psicologia
pela perda do filho. Coube a Marcel Mauss pelo dr. Otto Klineberg [autor do livro Race

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Tratava-se da tropa de assalto hitlerista,
comandada por Heinrich Himmler e dire-
tamente subordinada ao Führer e que dis-
punha de status que chegava a ser paralelo
– e, às vezes, claramente superior – aos
quadros institucionais da Wehrmacht, o
exército alemão. A SS depredou a bibliote-
ca e atirou, numa imensa fogueira armada
no pátio universitário, os chamados livros
perigosos, obviamente, para o nazismo.
Nessa fogueira foram atiradas às chamas
as obras de Marx, de Lênin, de Freud e de
Boas, entre muitas outras. Apesar do obscu-
rantismo militante desse terrível ato, que se
encadeou às perseguições mais hediondas,
que atacavam judeus, esquerdistas, liberais,
homossexuais, o antropólogo militou a fa-
vor da causa dos direitos civis, destacando
suas atividades no American Committee for
Democracy and Intellectual Freedom, de
cunho público e societário, e mantendo-se à
Differences]. De fato, no City College [de frente da New School for Social Research,
Nova York], um curso de extensão desse de cunho acadêmico. Foi a New School que
tipo está sendo dado pelo professor Rudiger se envolveu diretamente com o problema
Bilden [a quem Gilberto Freyre era muito de extradição do antropólogo francês Paul
ligado], o qual, no meu entender, torna claros Rivet, fundador do Musée de l’Homme de
os pontos essenciais. Estou muito desejoso Paris. O governo de Vichy ocorreu depois
de que esse curso seja dado regularmente da queda da França, em 1940, logo no iní-
no próximo ano”. cio da Segunda Guerra Mundial, exerceu
autoridade vigiada sobre a parte meridional
Com sua atuação cada vez mais impor- da França, não ocupada diretamente pelas
tante nos comitês dos direitos civis, que tropas alemãs, e esteve sob a presidência
procuravam contra-arrestar a crescente do marechal Philippe Pétain, preso e con-
entrada de idéias fascistas e mesmo na- denado após a derrota alemã.
zistas nos Estados Unidos, o antropólogo Ao mesmo tempo, no plano puramente
desempenhou, em 1940, papel dos mais acadêmico, Boas acelerou seus difíceis la-
importantes de mediação diplomática por bores lingüísticos trabalhando na gramática
ocasião do chamado episódio Paul Rivet, kwakiutl. A MacMillan, sua editora, propôs
quando pressionado pelo governo de Vichy. a publicação de vários e reedições, entre
Na França ocupada, anos mais tarde, teria artigos, críticas e pequenas monografias,
de se decidir sobre a sua mudança para a que viriam a configurar um novo livro,
América, fosse para o México, fosse para os que se chamou, agora de modo muito
Estados Unidos, o que finalmente ocorreu. justificado, Race, Language and Culture
Boas, nesse momento, voltou a fazer uso (1938). Simultaneamente aos trabalhos de
extensivo de suas forças ainda notáveis, orientador de teses de um punhado de alunos
apesar de diminuídas na sua amplitude e que resolveram, por convicta sugestão sua,
duração. Foi justamente aos 80 anos que pesquisar no Brasil, ofereceu regularmente
sua longa carreira científica chegou ao seu curso de antropologia na Universidade
apogeu, em 1938. de Colúmbia. No final dos anos 30, a ati-
Nesse ano de 1938 deu-se a invasão vidade epistolar boasiana continuou digna
da Universidade de Heidelberg pela SS. de nota. Vários interlocutores estrangeiros,

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americanos e naturalizados – ingleses, que se pudesse tirar Rivet da França, tal
franceses, alemães, mexicanos e brasileiros qual Lehmann. É ilustrativa disso uma das
– se orientaram ou se congratularam com cartas de Lévi-Strauss a Boas:
o mestre sobre assuntos políticos, sociais e
mesmo de pesquisa. Essa rica fase epistolar “[…] Ouvi do dr. Paul Rivet que ele acaba
evidenciou a que altitude havia chegado a de lhe escrever para avisar a chegada em
pessoa de Franz Boas, nos Estados Unidos breve de Henri Lehmann a Nova York.
e no mundo. E como se isso não bastasse, Ele chegou há quatro dias e está detido em
qualquer gesto seu que salientasse, acadê- Ellis Island e em perigo de ser deportado. O
mica ou societariamente, algum aspecto serviço de imigração não acredita que seu
conflitivo dos Estados Unidos e do mundo visto colombiano seja válido e deram-lhe
desencadeava, instantaneamente, uma en- igualmente um visto americano de visitante
xurrada de telegramas. (de modo que ele possa permanecer algu-
A respeito de Paul Rivet, seu nome mas semanas com a mãe que mora aqui);
voltou a aparecer na correspondência boa- suspeitam que ele tenha a intenção de ficar
siana depois da eclosão da Segunda Guerra nos Estados Unidos. Uma vez que não se
Mundial, junto com o de outros cientistas espera nenhuma ajuda para ele da Fundação
sociais perseguidos pelos nazistas ocupantes Rockefeller, Henri Lehmann pretende ir
da França e pelos colaboracionistas de Vi- para a Colômbia tão cedo quanto possível.
chy. Dentro de um mesmo clima de época, Ele deseja retornar a sua pesquisa científica,
Claude Lévi-Strauss escreveu a Franz Boas mas, se não conseguir nenhuma quantia, será
tentando resolver o problema da deportação mais fácil para seus pais sustentá-lo se ele
de Henri Lehmann e Paul Rivet, ambos morar na América do Sul, tendo em vista o
antropólogos franceses de renome. O cerco custo de vida mais baixo. Estamos tentando
aos pensadores e intelectuais judeus estava tirá-lo agora. O advogado de Henri Lehmann
se estreitando na Europa no decorrer da Se- acredita que ajudaria muito o envio de uma
gunda Guerra Mundial, e a França ocupada, carta redigida pelo senhor e dirigida a quem
assim como a que estava sob o regime de interessar possa, dizendo que o senhor foi
Vichy, apresentava perigos para tais pessoas. informado pelo dr. Paul Rivet, diretor do
A abordagem antropológica, apesar de toda Instituto Etnológico de Bogotá, de que está
a sua profundidade, ainda não havia sido su- esperando sua chegada em breve na Co-
ficiente para evitar a irracionalidade política lômbia, para iniciar uma missão científica
que tomava conta de boa parte do mundo. para a qual foi indicado. Tão cedo receba
E, nesse sentido, percebia-se claramente o esta carta, o advogado irá a Washington
abismo entre o pensamento renovador das para discutir o caso com as autoridades da
ciências humanas, com especial destaque Imigração. É desnecessário adicionar que
para a antropologia, e a política de ódio se trata de um caso urgentíssimo. Espero
racial, que no nazi-fascismo chegaria a que o senhor me desculpe meu mau inglês,
formular a idéia de uma limpeza étnica. mas como o senhor sabe eu estava recém-
Lehmann era judeu, e sua vida corria chegado quando lhe fui apresentado há dois
perigo se ficasse na França. Rivet, que meses pela dra. Ruth Benedict. Devo me
não o era, igualmente corria risco, dada a desculpar também por perturbá-lo durante
sua militância socialista, antifascista, anti- suas férias. Tomei essa liberdade tendo em
racista e, depois da queda da França, por vista a gravidade do caso. Sinceramente,
haver organizado um núcleo de maquis no Claude Lévi-Strauss”.
Museu do Homem de Paris, de que fez parte
o brasileiro Paulo Duarte, então refugiado Esse documento magnífico, datado de
do Estado Novo e estudando na instituição. 25 de agosto de 1941, nos permite saber
Por isso, foi de especial importância a luta que foi apenas dois meses antes, ou seja,
de Claude Lévi-Strauss, que já se encontrava em junho de 1941, que Claude Lévi-Strauss
nos Estados Unidos, junto com Boas, para foi apresentado a Franz Boas. Parece que

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o encontro ainda não selava uma amizade obra científica, as idéias sociais e a ação
intelectual que cresceu muito depois, e que política de seu amigo e mestre Paul Rivet,
durou apenas um ano, pois sabe-se que o por cuja liberdade Boas tanto havia se
primeiro estava presente no almoço do empenhado:
Faculty Club da Universidade de Colúm-
bia em 21 de dezembro de 1942, em que “[Boas] disse que a estada de Rivet em
Boas, após o almoço, veio a falecer de um Nova York foi uma delícia até o penúltimo
colapso. Ainda em 31 de agosto de 1941, dia. De fato, na véspera do seu regresso ao
uma carta trocada entre Lévi-Strauss e México resolveu ele oferecer, no restaurante
Franz Boas permite terminar este capítulo da Universidade de Colúmbia, um almoço
com uma nota jocosa, o fato de Boas haver a Franz Boas, agradecendo tudo quanto
pensado que Claude fosse Cláudia, numa este lhe fizera em Nova York. Para esse
troca epistolar em que respondia a uma almoço íntimo fomos convidados apenas
carta dirigida a sua pessoa pelo antropólogo alguns íntimos de Rivet e do ilustre pro-
francês. Dizia Lévi-Strauss a Boas que se fessor que o acolhera. Umas dez pessoas
manifestava favoravelmente à resolução apenas, dentre as quais uma filha de Boas,
dos problemas relativos ao asilo dos dois médica, e que acompanhava sempre o
antropólogos franceses já referidos: velho professor, já com 84 anos. Decorreu
a refeição agradavelmente, e ao fim dela,
“Prezado dr. Boas: muito obrigado por sua Rivet pronunciou um pequeno discurso
carta delicada. Eu estava naquele momento afetuosíssimo demonstrando o poder da
no escritório do sr. Abelson, quando a secre- ciência de aproximar os homens. A prova
tária dele me trouxe a carta de Rivet a qual, estava ali, com dois cientistas, cujos países
penso eu, mostrar-se-ia muito útil para nos se hostilizavam tradicionalmente através
ajudar no caso de Henri Lehmann. Tanto ele da estupidez dos políticos e, no entanto,
quanto eu somos muito gratos ao senhor por nem duas conflagrações puderam abalar a
ter nos proporcionado a oportunidade de amizade existente desde antes de 1914 entre
examinar o referido caso tão rapidamente. um estudioso francês e outro estudioso ale-
Gostaria tão-somente de adicionar algumas mão. Àquele instante mesmo, em que uma
palavras, de modo que lhe faça saber que guerra feroz ameaçava o mundo, ali naquele
não sou uma mulher [I´m not a lady, no canto pacífico de uma universidade ainda
original]. Eu vi o senhor por um período era possível um encontro entre dois velhos
tão breve que imagino que não se lembre de professores e alguns alunos completamente
mim. Eu sou antropólogo que foi professor alheios ao desespero que raiava lá fora. E
na Universidade de São Paulo e agora está Rivet descreveu a amizade entre os dois,
na New School for Social Research, e foi que passaram longo tempo sem se conhe-
apresentado ao senhor na Universidade de cerem pessoalmente, unidos estreitamente
Colúmbia pela doutora Ruth Benedict há apenas pelas coisas do espírito. Franz Boas
dois meses. Ficarei feliz de agradecer-lhe levantou-se emocionadíssimo para respon-
mais uma vez quando o senhor estiver der. A felicidade brilhava em seus olhos
de volta a Nova York. Sinceramente seu, avermelhados, cheios de fadiga, mas onde
Claude Lévi-Strauss”. luzia ainda uma mocidade espiritual estu-
penda. Levantou-se, pois, o velho professor
O almoço no Faculty Club da Univer- e abrindo os braços, como para abraçar o
sidade de Colúmbia ao final do qual Boas velho colega em frente à pequena mesa, co-
veio a falecer em 21 de dezembro de 1942, meçou o seu agradecimento: ‘Meu querido
sabe-se que o compartilhava entre outros Paul Rivet…’. Disse isso, inclinou-se um
com Paul Rivet, Claude Lévi-Strauss e o pouco e caiu devagarinho de bruços sobre
brasileiro Paulo Duarte. Sobre os últimos a mesa! Franz Boas estava morto! Morrera
momentos de Boas, Duarte descreveu-os de alegria… Só as coisas do espírito podem
em minucioso livro em que recapitulou a matar de alegria…”.

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