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Danieli Christovão Balbi
Resumo: Gota d’água, peça de Paulo Pontes e Chico Buarque estaria, em tese, integrada
ao conjunto literatura dramática que busca estratégias de ordenação do material estético
capazes de indiciar o contexto sócio-político-econômico do percurso das décadas de
1960/70, tal como as obras da fase alegórica do Arena –Arena conta Zumbi e Arena conta
Tiradentes – e as construções figurativas que são O berço do herói, de Dias Gomes, e Se
correr o bicho pega, se ficar, o bicho come, de Vianinha e Gullar. Contudo, algumas
vicissitudes ligadas às condições de produção e à conjuntura política do país no momento
em que o projeto da peça era lavado à cabo influem, como linha de força, na formulação
do arco dramático e na concepção cênica dos produtores. A saber: a necessidade de
oferecer horizonte de rearticulação aos setores progressistas e, quando não tanto, o fato
de o texto existir enquanto retomada de outro material.
The people, the words and the class struggle in the footsteps of Jasão
Abstract: Gota d’água, a piece by Paulo Pontes and Chico Buarque, would be, in theory,
integrated to the dramatic literature that seeks strategies of ordering the aesthetic material
capable of indicating the socio-political-economic context of the 1960s , As the works of
the allegorical phase of the Arena -Arena conta Zumbi and Arena conta Tiradentes- and
the figurative constructions that are O berço do herói, of Dias Gomes, and Se correr o
bicho pega, se ficar, o bicho come, of Vianinha And Gullar. However, some vicissitudes
related to the conditions of production and to the political conjuncture of the country at
the time when the project of the piece was washed away influence, as a line of force, in
the formulation of the dramatic arc and in the scenic conception of the producers. To wit:
the need to offer a horizon of re-articulation to the progressive sectors and, if not so much,
the fact that the text exists while it is taken up from another material.
Introdução
Gota d’água, peça de Paulo Pontes e Chico Buarque, escrita em 1975, interessa,
dentre outras razões, pelo fato de situar-se em um período de reorganização das forças
que operam nos limites cerrados do cenário cultural brasileiro, em tempos de forte tensão
Doutoranda em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
política. Nela estão condensados alguns consensos que vão nortear a atuação dos que
buscam um espaço oxigenado de produção e, mais que de tudo, uma análise pontual e
bastante ousada da conjuntura político-econômica do Brasil, antes e durante a ditadura
militar-empresarial, cuja proposição das táticas de enfrentamento a peça apresenta e do
que pretende ser figuração e motor.
A apresentação da peça é, por isso, tão importante. É onde os dramaturgos
esquematizam as intenções que os moveram, apresentando uma leitura que a eles parece
bastante justa do movimento complexo das classes sociais no Brasil nos últimos anos. São
três as preocupações centrais da peça, apresentadas na seguinte ordem de importância:
denunciar a brutalidade do modelo de desenvolvimento capitalista que configurou o
milagre econômico da ditadura: desenvolvimento industrial conservador, incentivo à
importação de bens de consumo, pouca diversificação do mercado consumidor interno e
da malha produtiva local, o que gera proletarização massiva; o retorno do povo como
objeto central de representação, como maneira de imprimir cultura e matizar a arte que se
faz no país; e, ainda, promover a centralidade da palavra como elemento cênico angular,
uma vez que, àquela altura, na contradição que se afigurava entre a revolta e anarquismo
sintático versus o processamento de um problema, de forma orientada, ambos tomados
como soluções estéticas, este parece, aos autores de Gota d’água, a forma eficaz de a arte
responder às necessidades da conjuntura. A peça, portanto, lidas as intenções articuladas
umas às outras, é um ensaio trágico de uma situação igualmente trágica cujo rompimento
só pode se dar para além da encenação.
As medidas econômicas do governo de Jânio Quadros sinalizam uma tentativa de
alavancar o setor produtivo nacional e romper com os interesses dominantes da burguesia
dependente, fruto de forte oposição de sua base eleitoreira. Pouco tempo depois de sua
posse, o rompimento com esse setor se efetiva, o que o leva à renúncia. Não sem tensões,
a assunção do então vice-presidente João Goulart ocorre sobre forte intervenção dos
atores conservadores instalados na estrutura do estado. O advento de sua posse, precedida
de forte campanha pela legalidade e de acordos que visavam reduzir-lhe o poder de
atuação, o então presidente assume sob tutela do Congresso nacional, o qual se movimenta
para aprovar o regime parlamentarista. Tal regime só seria revertido quase um ano depois,
através de plebiscito que reinstaurar o presidencialismo no país. Jango, tendo sido eleito
com a promessa de conduzir as reformas de base que, àquela altura, empoderavam a
burguesia nacional, incrementavam e diversificavam a produção e o mercado interno e
aumentavam o poder de compras do povo brasileiro, é tido como ameaça pelo
tradicionalismo. Tendo sido essas medidas amadurecidas, adotadas depois de muitas
divergências, a burguesia tradicional brasileira, aqui denominada burguesia dependente,
articula um golpe com as forças armadas nacionais.
Nesse cenário, imediatamente, no governo de Humberto de Alencar Castello
Branco, desenvolve-se uma política ortodoxa cujo combate á inflação pressupõe
diminuição dos gastos públicos e ajuste fiscal, com fins a conter uma pressão de demanda,
tendo a redução dos salários nominais como consequência (MACARINI, 2000). A
Flutuação dessa política e a retomada do controle da economia pelo estado são assistidas
durante o governo Costa e Silva, que, se em tese permanece baseada no pacote de metas
e pela política de austeridade econômica, na prática significou um controle maior da
atividade econômica via incremento de créditos nominais e empresariais e alastrou o
tamanho da máquina pública.
De 1968 em diante, contudo, a aceleração da indústria vem a cargo do pacto de
modernização conservadora: manutenção da atividade exportadora de matéria-prima e
produtos agrários, incentivo ao estabelecimento de multinacionais no país para sua
industrialização, proletarização em alta e controle cambial para garantia das atividades
econômicas tradicionais, além de uma ainda forte política de importação de bens. Nesse
período, o único incentivo à produção nacional deveu-se à promoção do desenvolvimento
das indústrias de base, fortemente atreladas aos interesses do estado.
No período denominado ―milagre econômico‖, portanto, houve uma abertura
sutil à negociação de mão de obra qualificada às multinacionais, à indústria de base e à
resultante abertura do mercado de serviços que esse arranjo econômico gerou. É
especificamente esse dado que entra na composição da peça em causa.
Desde o modernismo brasileiro – e, se recuarmos mais um pouco, encontraremos
esse movimento em curso a partir do projeto romântico brasileiro – há uma preocupação
com o estabelecimento de uma identidade nacional que leva à busca por uma
caracterização do nosso povo. É no modernismo que as contradições sociais de um país
diversificado, tanto na sua composição geográfica quanto nas formas de exploração de
um contingente significativo de brasileiros, tornam-se latentes e parte mesmo desse
interesse nacional. Após a segunda guerra mundial, a condição de país subdesenvolvido
e a forma com que as contradições geradas pela desigualdade social se evidenciam levam
uma parcela significativa de artistas e intelectuais a lidarem com expressão de um país
socialmente débil e que reclamava reformas profundas (CANDIDO, 1989). Nesse sentido,
uma série de movimentos de arte se engaja em um realismo crítico e propositivo. É o caso
do Teatro de Arena, por exemplo.
Ocorre que, após a ruptura democrática, os artistas e intelectuais preocupados com
o retrato do povo brasileiro e sua desigualdade são duramente perseguidos. Os coletivos
engajadas e não dispostos a referendar a visão oficial da construção de povo e nação são
censurados. Abre-se cada vez mais lugar à cultura de massa, cuja reprodução das camadas
basilares da sociedade brasileira é construída por estereótipos que mantêm o pastiche e
caricaturização grosseira. A tragédia dessa desigualdade também é uma preocupação de
Gota d’água.
No percurso da resistência muitas foram as formas intentadas para burlar o regime
e denunciar o estado de exceção. O reflexo dessa situação no movimento cultural se deu
pela oposição de duas estéticas, obviamente. Aqueles que estavam mais inclinados à luta
direta, à organização da intervenção contra a ditadura, apostavam na estética da agressão,
do choque, que tinha como objetivo a desestabilização do espectador, e verá na proposição
de José Celso Martinez Corrêa e no Grupo de Teatro Oficina seu maior representante.
Os autores dessa peça não creditam a essa forma de processar artisticamente algum
mérito maior que o espetáculo e a perplexidade. Acreditam, isto sim, na possibilidade de
apresentar a complexidade do fenômeno mais amplo que enreda o autoritarismo ao
capitalismo, através da sintaxe linear, do desenvolvimento de uma tese por meio da
expressão de sua tragédia. É isso que determina o manejo de uma forma de enredo
tradicional, a utilização do texto clássico e o cuidado na construção das falas das
personagens, estruturadas em verso.
Conclusão
Referências
BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 1975. 168p.
CANDIDO. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.
MACARINI, José Pedro. A política econômica da ditadura militar no limiar do
“milagre” brasileiro: 1967/69. IEL/UNICAMP. 2000.
MACARINI, José Pedro. A política econômica do governo Médici: 1970-1973.
IEL/UNICAMP. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/neco/v15n3/v15n3a03.pdf>.
Acesso em: 30. Abr. 2016.