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O povo, a palavra e a luta de classes nos passos de Jasão

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Danieli Christovão Balbi

Resumo: Gota d’água, peça de Paulo Pontes e Chico Buarque estaria, em tese, integrada
ao conjunto literatura dramática que busca estratégias de ordenação do material estético
capazes de indiciar o contexto sócio-político-econômico do percurso das décadas de
1960/70, tal como as obras da fase alegórica do Arena –Arena conta Zumbi e Arena conta
Tiradentes – e as construções figurativas que são O berço do herói, de Dias Gomes, e Se
correr o bicho pega, se ficar, o bicho come, de Vianinha e Gullar. Contudo, algumas
vicissitudes ligadas às condições de produção e à conjuntura política do país no momento
em que o projeto da peça era lavado à cabo influem, como linha de força, na formulação
do arco dramático e na concepção cênica dos produtores. A saber: a necessidade de
oferecer horizonte de rearticulação aos setores progressistas e, quando não tanto, o fato
de o texto existir enquanto retomada de outro material.

Palavras-chave: teatro engajado; protagonista; actante; sujeito dramático; Chico


Buarque.

The people, the words and the class struggle in the footsteps of Jasão

Abstract: Gota d’água, a piece by Paulo Pontes and Chico Buarque, would be, in theory,
integrated to the dramatic literature that seeks strategies of ordering the aesthetic material
capable of indicating the socio-political-economic context of the 1960s , As the works of
the allegorical phase of the Arena -Arena conta Zumbi and Arena conta Tiradentes- and
the figurative constructions that are O berço do herói, of Dias Gomes, and Se correr o
bicho pega, se ficar, o bicho come, of Vianinha And Gullar. However, some vicissitudes
related to the conditions of production and to the political conjuncture of the country at
the time when the project of the piece was washed away influence, as a line of force, in
the formulation of the dramatic arc and in the scenic conception of the producers. To wit:
the need to offer a horizon of re-articulation to the progressive sectors and, if not so much,
the fact that the text exists while it is taken up from another material.

Keywords: engaged theater; protagonist; Actante; Dramatic subject; Chico Buarque.

Introdução

À merda, Jasão, co’essa dependência que te divide em


dois...

Gota d’água, peça de Paulo Pontes e Chico Buarque, escrita em 1975, interessa,
dentre outras razões, pelo fato de situar-se em um período de reorganização das forças
que operam nos limites cerrados do cenário cultural brasileiro, em tempos de forte tensão


Doutoranda em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
política. Nela estão condensados alguns consensos que vão nortear a atuação dos que
buscam um espaço oxigenado de produção e, mais que de tudo, uma análise pontual e
bastante ousada da conjuntura político-econômica do Brasil, antes e durante a ditadura
militar-empresarial, cuja proposição das táticas de enfrentamento a peça apresenta e do
que pretende ser figuração e motor.
A apresentação da peça é, por isso, tão importante. É onde os dramaturgos
esquematizam as intenções que os moveram, apresentando uma leitura que a eles parece
bastante justa do movimento complexo das classes sociais no Brasil nos últimos anos. São
três as preocupações centrais da peça, apresentadas na seguinte ordem de importância:
denunciar a brutalidade do modelo de desenvolvimento capitalista que configurou o
milagre econômico da ditadura: desenvolvimento industrial conservador, incentivo à
importação de bens de consumo, pouca diversificação do mercado consumidor interno e
da malha produtiva local, o que gera proletarização massiva; o retorno do povo como
objeto central de representação, como maneira de imprimir cultura e matizar a arte que se
faz no país; e, ainda, promover a centralidade da palavra como elemento cênico angular,
uma vez que, àquela altura, na contradição que se afigurava entre a revolta e anarquismo
sintático versus o processamento de um problema, de forma orientada, ambos tomados
como soluções estéticas, este parece, aos autores de Gota d’água, a forma eficaz de a arte
responder às necessidades da conjuntura. A peça, portanto, lidas as intenções articuladas
umas às outras, é um ensaio trágico de uma situação igualmente trágica cujo rompimento
só pode se dar para além da encenação.
As medidas econômicas do governo de Jânio Quadros sinalizam uma tentativa de
alavancar o setor produtivo nacional e romper com os interesses dominantes da burguesia
dependente, fruto de forte oposição de sua base eleitoreira. Pouco tempo depois de sua
posse, o rompimento com esse setor se efetiva, o que o leva à renúncia. Não sem tensões,
a assunção do então vice-presidente João Goulart ocorre sobre forte intervenção dos
atores conservadores instalados na estrutura do estado. O advento de sua posse, precedida
de forte campanha pela legalidade e de acordos que visavam reduzir-lhe o poder de
atuação, o então presidente assume sob tutela do Congresso nacional, o qual se movimenta
para aprovar o regime parlamentarista. Tal regime só seria revertido quase um ano depois,
através de plebiscito que reinstaurar o presidencialismo no país. Jango, tendo sido eleito
com a promessa de conduzir as reformas de base que, àquela altura, empoderavam a
burguesia nacional, incrementavam e diversificavam a produção e o mercado interno e
aumentavam o poder de compras do povo brasileiro, é tido como ameaça pelo
tradicionalismo. Tendo sido essas medidas amadurecidas, adotadas depois de muitas
divergências, a burguesia tradicional brasileira, aqui denominada burguesia dependente,
articula um golpe com as forças armadas nacionais.
Nesse cenário, imediatamente, no governo de Humberto de Alencar Castello
Branco, desenvolve-se uma política ortodoxa cujo combate á inflação pressupõe
diminuição dos gastos públicos e ajuste fiscal, com fins a conter uma pressão de demanda,
tendo a redução dos salários nominais como consequência (MACARINI, 2000). A
Flutuação dessa política e a retomada do controle da economia pelo estado são assistidas
durante o governo Costa e Silva, que, se em tese permanece baseada no pacote de metas
e pela política de austeridade econômica, na prática significou um controle maior da
atividade econômica via incremento de créditos nominais e empresariais e alastrou o
tamanho da máquina pública.
De 1968 em diante, contudo, a aceleração da indústria vem a cargo do pacto de
modernização conservadora: manutenção da atividade exportadora de matéria-prima e
produtos agrários, incentivo ao estabelecimento de multinacionais no país para sua
industrialização, proletarização em alta e controle cambial para garantia das atividades
econômicas tradicionais, além de uma ainda forte política de importação de bens. Nesse
período, o único incentivo à produção nacional deveu-se à promoção do desenvolvimento
das indústrias de base, fortemente atreladas aos interesses do estado.
No período denominado ―milagre econômico‖, portanto, houve uma abertura
sutil à negociação de mão de obra qualificada às multinacionais, à indústria de base e à
resultante abertura do mercado de serviços que esse arranjo econômico gerou. É
especificamente esse dado que entra na composição da peça em causa.
Desde o modernismo brasileiro – e, se recuarmos mais um pouco, encontraremos
esse movimento em curso a partir do projeto romântico brasileiro – há uma preocupação
com o estabelecimento de uma identidade nacional que leva à busca por uma
caracterização do nosso povo. É no modernismo que as contradições sociais de um país
diversificado, tanto na sua composição geográfica quanto nas formas de exploração de
um contingente significativo de brasileiros, tornam-se latentes e parte mesmo desse
interesse nacional. Após a segunda guerra mundial, a condição de país subdesenvolvido
e a forma com que as contradições geradas pela desigualdade social se evidenciam levam
uma parcela significativa de artistas e intelectuais a lidarem com expressão de um país
socialmente débil e que reclamava reformas profundas (CANDIDO, 1989). Nesse sentido,
uma série de movimentos de arte se engaja em um realismo crítico e propositivo. É o caso
do Teatro de Arena, por exemplo.
Ocorre que, após a ruptura democrática, os artistas e intelectuais preocupados com
o retrato do povo brasileiro e sua desigualdade são duramente perseguidos. Os coletivos
engajadas e não dispostos a referendar a visão oficial da construção de povo e nação são
censurados. Abre-se cada vez mais lugar à cultura de massa, cuja reprodução das camadas
basilares da sociedade brasileira é construída por estereótipos que mantêm o pastiche e
caricaturização grosseira. A tragédia dessa desigualdade também é uma preocupação de
Gota d’água.
No percurso da resistência muitas foram as formas intentadas para burlar o regime
e denunciar o estado de exceção. O reflexo dessa situação no movimento cultural se deu
pela oposição de duas estéticas, obviamente. Aqueles que estavam mais inclinados à luta
direta, à organização da intervenção contra a ditadura, apostavam na estética da agressão,
do choque, que tinha como objetivo a desestabilização do espectador, e verá na proposição
de José Celso Martinez Corrêa e no Grupo de Teatro Oficina seu maior representante.
Os autores dessa peça não creditam a essa forma de processar artisticamente algum
mérito maior que o espetáculo e a perplexidade. Acreditam, isto sim, na possibilidade de
apresentar a complexidade do fenômeno mais amplo que enreda o autoritarismo ao
capitalismo, através da sintaxe linear, do desenvolvimento de uma tese por meio da
expressão de sua tragédia. É isso que determina o manejo de uma forma de enredo
tradicional, a utilização do texto clássico e o cuidado na construção das falas das
personagens, estruturadas em verso.

Nos passos de Jasão

Ah, Jasão, você não vai poder se equilibrar no alto


desse muro...

Quando a dinâmica do capitalismo se torna um dado dramático estruturante,


assistimos à instauração da lógica da promoção e da cooptação de importantes elementos
promovidas pelas classes dominantes, o que, para Buarque e Pontes, tornarase expediente
crucial ao arranjo que, aquela altura, dava feição ao jogo da luta de classes no país. No
manejo da tragédia de Joana e Jasão, metáfora da condição do proletariado brasileiro, à
diversificação da economia, limitada pelas perspectivas da política macroeconômica dos
últimos ditadores da história recente do Brasil, à medida que se agudizava o drama da
classe trabalhadora, era preciso que seus quadros mais perspicazes fossem assimilados
pela lógica cruel da seleção dos melhores, o que, além de mascarar a arbitrariedade na
escolha dos que comem e dos que morrem à míngua, enverniza o arbítrio pela legitimação
da meritocracia e, na realidade, deprime substancialmente a capacidade de se apresentar
resistência, desequilibrando a correlação de forças.
No embate de forças direcionadas de forma mais ou menos conscientes da sua
situação de classes, estão Egeu, Joana, Creonte e Jasão, personagens cujos confrontos
dramáticos indiciam a dimensão política de seus conflitos e cuja sorte, em termos de fatura
da peça, encaminha a tragédia de que trata Gota d'água. É a este último, de todo modo,
que corresponde a escolha trágica, pela posição pendular em que está inserido,
funcionando como alegoria do movimento oscilante a que o prefácio faz referência.
Jasão toma o turno na terceira cena da peça, num diálogo cujos actantes são Alma
e ele, no qual a jovem procura perscrutar suas expressões e emoções, ao que o sambista
retruca, quase sempre de forma irônica. Quando Alma se refere à Joana de forma
depreciativa, Jasão reage, mesmo sem força, constrangido, constrangimento que se torna
mais evidente à medida que a jovem apresenta a descrição do apartamento em que ambos
viverão suas vidas de casado. A suntuosidade torna-o mais encabulado, como bem
percebe a moça. O desfecho desta cena introduz o mote de Jasão:
JASÃO - Eu só não gosto de deixar este fim
de mundo sem levar tudo o que sempre foi
pra mim a vida inteira Uma alegria ou outra,
um pouco de saudade, meus filhos, minha
carteira de identidade, cada bagulho, meu
calção, minha chuteira, a mesa do boteco, o
time de botão, tanto amigo, tanto fumo,
tanta birita que dava pra botar na sala de
visita
mas ia atrapalhar toda a decoração... (VAI NASCENDO UMA
INTRODUÇÃO MUSICAL EM RITMO DE SAMBA; JASÃO
SEGUE
Sabe, Alma, um samba como ―Gota d’água‖ é
feito dos carnavais e das quartas-feiras, das tralhas,
das xepas, dos pileques, todas as migalhas que
fazem um chocalho dentro do meu peito (Canta,
movimentando-se em torno do trono)
Deixa em paz meu coração que ele é
um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
— faça, não
Pode ser a gota d’água
(REPETE O REFRÃO E A MÚSICA ENCERRA COM JASÃO EM
POSIÇÃO DE SE SENTAR NO TRONO)
ALMA (rindo) – Jasão...
JASÃO – O que é?...
ALMA – Escuta o que eu lhe digo:
precisa definir seu repertório Ou
bem você dança a valsa comigo,
ou pula o carnaval no purgatório (BUARQUE & PONTES, 1975)

A cena funciona como apresentação da situação inicial da posição de Jasão na


tragédia que se instaura. O descaso com que trata a persistência de Alma em alcançá-lo
por completo deve ser entendido mais do que como mero desprezo pela empreitada. É a
forma que toma a certeza que ele tem de que não há meio de apreendê-lo através dos
frustrantes expedientes de que a jovem se vale. Existe, isto sim, um desconforto pelo
conflito dos meios através das quais o casal de enamorados aprendera a significar suas
experiências e apreender a realidade, pelos valores que carregam, pelas estimas que
mantém – o que é acentuado no caso da referência direta à Joana. Portanto, pelas pessoas
que são.
É a jovem quem primeiro, tomando consciência da alteridade de Jasão e, já aqui,
procurando dominá-la, tornando-a inteligível e manejável, percebe que a expressão do
sofrimento do noivo não se transfigura em tristeza, mas, ao contrário, em ânsia e fogo;
em energia. Jasão, na fala acima, que encerra o diálogo entre ambos e interrompe um
movimento ascendente de conscientização, suspendendo a crise, aponta sua dificuldade e
mesmo sua resistência em abandonar tudo que aquele universo onde até pouco vivera
significa, uma vez que tudo aquilo o constitui. E constitui de tal forma, que o jovem artista
termina por concluir que a sua arte, e, bem assim, toda compreensão do mundo que ela
carrega está diretamente relacionada às experiências concretas que o formaram.
Nesse momento, a entrada de Creonte interrompe a cena idílica e, com o intuito
de movimentar a dimensão pragmática do conflito de consciência ensaiado anteriormente,
o capitalista age para desestabilizar Jasão em suas ações. Incube-o de procurar Mestre
Egeu e demovê-lo da tentativa de organizar os moradores da Vila do Meio-dia a uma
negociação justa das parcelas restantes à quitação de sua moradia. À essa altura, já
sabemos que Creonte, futuro sogro de Jasão, é o proprietário das construções ali
instaladas, arrendatário inescrupuloso. Temos conhecimento também de que ali que Jasão
fora vivia, com pessoas com quem partilhava as circunstâncias de vida tem até bem pouco
tempo e com as quais estabelecera laços fraternos. Tudo isso antes de o sucesso de seu
samba Gota d’água propiciar-lhe abandonar Joana, sua excompanheira, e seus dois filhos
para estabelecer compromissos com Alma, filha de Creonte.
Jasão, igualmente como ocorrera com Alma, não tem forças para apresentar
oposição às teses de Creonte: é incapaz de prosseguir na defesa de Mestre Egeu, amigo e
compadre a quem o nosso herói credita a aprendizagem do primeiro ofício; não reage à
interrupção brusca de Creonte, ao retrucar que a solução para a inadimplência deve-se à
arbitrariedade e injusta correção aplicada às prestações pagas pelos trabalhadores; e foge
pela tangente quando o sogro trata de sua ex-mulher, garantindo-lhe que solucionará os
transtornos que ela lhe tem causado.
Ao longo de toda cena, um elemento cênico se destaca: a cadeira de Creonte. Ela
simboliza a força do lugar ocupado pelo capitalista, e, nesse movimento, explicita que tal
força existe para além da situação objetiva de apropriação do trabalho de outrem, mas
possui um caráter simbólico que tem por finalidade, justamente, obscurecer, a natureza
dessa relação. Ela instaura o poder e o legitima. Creonte procurar mostrar a seu futuro
genro que o poder, como consequência do acúmulo de capital, precisa ser exercido, sem
o que se torna questionável; exercido, ao contrário, ele é uma força fantasmagórica que
atua concretamente na manutenção da relação de opressão. Na economia da peça, o
quadro evidencia a real fragilidade de Creonte frente à insinuada reação organizada dos
moradores da Vila do Meio-dia, o que ajuda a presentificar como força dramática o
movimento de Egeu.
Mais adiante, Jasão procura Mestre Egeu a fim de cumprir o combinado com
Creonte. Na cena que se desenrola, Egeu constrange o sambista a retomar a profissão que
lhe ensinara, procurando convencê-lo da fatuidade de sua situação. A tensão cresce
quando Jasão e seu compadre começam a tratar do real motivo da visita de Jasão. Egeu
chama-o à responsabilidade que tem com os filhos e justifica a sua iniciativa de organizar
os trabalhadores apresentando a ganância de Creonte como contraponto. A tensão se
acirra ainda mais quando Jasão justifica a autoridade de seu sogro, legitimando-o pela
posse dos imóveis.
Aqui vemos claramente a cisão do personagem Jasão e captamos no núcleo de sua
tragédia. A sorte de Jasão muda bruscamente e o jovem, buscando convencer-se de que
não há contradição entre sua nova situação, a família que escolhera e seus antigos
companheiros, tomado pelo medo de perder o que já considera, trai a si próprio, a tudo
que teria dito à Alma e Creonte se lhe fosse possível. Vocifera, outrossim, o reverso disso
a mestre Egeu, a fim de concretizar a ideologia de Creonte e torna-la tangível, a partir do
que, talvez, procure se convencer dela, ao menos compreendê-la. Procura, ante o
descrédito de Egeu, convencê-lo de que pode ser um peso na balança em favor de seus
companheiros de outrora. Sem sucesso, o jovem abandona o amigo. Mestre Egeu conclui:
―Ah, Jasão, você não vai pode se equilibrar no alto desse muro‖.
Não existe escapatória à Jasão, e, aqui, o desespero do sambista indicia a adiantada
tomada de consciência de sua situação trágica. Ele tomou conhecimento da grande
contradição que há entre os dois mundos em que desejara transitar. Na cena em que
dialoga com Alma, a falta de perspectiva de conciliação já estava nele, e suas reações ali
também evidenciam o terror que essa constatação, cada vez mais sólida, lhe causa. Nela
há uma verdade que parece existir como leitmotiv ao longo da peça, constantemente
recolocada em diversas outras situações dramáticas, cada vez mais concretamente: em
algum grau – e no caso de Jasão, da forma mais esdrúxula – não pode haver mudança da
situação do oprimido sem confronto com o opressor; qualquer outra solução é traição de
classe. A traição de Jasão à Joana e, em seguida, a seus companheiros é metonímia dessa
verdade que a obra se propõe a revelar.
Jasão e Joana se confrontam, enfim, na cena que encerra o primeiro ato. O
exmarido procura desarmá-la com artifícios de sedução que se mostram inúteis, com o
intuito de convencê-la a não mais desafiar Creonte publicamente, o que poderá ser motivo
de sua ruína. Furiosa, Joana assalta seu turno e canaliza todas as suas mágoas e frustrações
que até então apresentava às amigas. O diálogo é marcado pela perspectiva de Joana, para
quem Jasão é um aproveitador que, tendo-lhe usurpado todo o pouco que ela tinha e podia
oferecer, agora a abandona para viver com outra, mais capaz de dar-lhe.
O primeiro ato se encerra, assim, com o fracasso de Jasão. Cientes do que o move,
conhecedores que são do jovem sambista, não cedem às suas investidas. Jasão não
consegue disfarçar suas intenções a Egeu e Joana, e contra eles suas armas são ineficazes.
Ele sequer é capaz de manter por muito tempo o disfarça de que se travestiu para enredá-
los, e, diferentemente da forma como se comporta na presença de Alma e Creonte, com
quem utiliza o dispositivo do silenciamento contra quem não pretende confrontar, acaba
por romper de forma brusca e violenta o diálogo com ambos.
O percurso de Jasão até aqui é elucidativo. Ao voltar para a comunidade pretenso
de seu sucesso, Jasão percebe que tanto Egeu quanto Joana também são cientes da sua
cisão e do processo de transformação que se anuncia com o casamento. Ambos sabem
que não há conciliação efetiva entre opressor e oprimido. Esse saber indisfarçável que, no
mais, está em todo trabalhador, é traçado por Egeu de forma direta e, no embate com
Joana, atualizado pelo seguinte dado: Jasão, ao colocar-se do lado de Creonte, estará se
tornando, de uma vez por todas, um opressor. Casando-se com Alma ele ressignifica a
sua relação pregressa com a ex-esposa e torna-se um gigolô, no passado e no futuro.
Percebemos que a tensão e a fusão entre os ambientes em que o conflito se
desenrola aumentam pela movimentação de Jasão. Em primeiro lugar, a saída dele da Vila
do Meio-dia foi o que ocasionou o conflito dramático que, na lógica de mestre Egeu, pode
levar ao conflito épico por ele intentado. Ainda, ele continua pertencendo aos dois lugares
e transita entre eles, ou pretende transitar, sem maiores perturbações. Ocorre que,
efetivamente, o movimento de Jasão acirra mais ainda os ânimos de todos os personagens.
É o movimento dele, antes de tudo, que põe uns em confronto com os outros: no bar, na
roda de amigas, ele contra Alma, Egeu e Joana.
Quando ele de fato se move na peça – da casa de Creonte à Vila do Meio-dia –,
todos os personagens que se apresentam em praesentia o fazem em função do que ele
indica, todos o veem e quase todos com ele dialogam, ainda que superficialmente. No
encontro com Joana, é ela quem segue em sua direção.
Por esse motivo torna-se tão importante que Jasão tenha fracassado. Todas as
movimentações que esse constituinte empreendeu na peça, seus movimentos concretos e
os sentidos desses movimentos, tornam-se vãos. Através de seus passos, ele não só teve a
dimensão da sua condição de traidor, pela constatação objetiva de que não há conciliação,
como teve de confrontar-se duramente com a face dos companheiros de outrora
transmutada em feição de oponente.
As rupturas com Egeu e Joana são instauradoras de uma resolução que começa a
tomar forma. Tais rupturas conformam em cena o real deslocamento de Jasão de seus
pares, seu alheamento de sua constituição – aquela que lhe permitiu plasmar Gota d’água
– e se tornam, estruturalmente, forças que o constrangem a tomar a decisão que balizará
suas atitudes daí em diante.
Na terceira cena do segundo ato, mais uma vez Creonte interrompe a intimidade
de Alma e Jasão que, também aqui, tratavam dos receios desta em relação aos perigos que
Joana poderia representar. Chegavam, por fim, à consciência partida de Jasão. Mais
ríspido que outrora, Creonte deixa clara sua insatisfação em relação ao que acontece,
instigando Jasão a tomar posição em relação ao caso que o aborrece. Primeiramente, de
forma genérica, tece considerações a respeito do trabalhador em geral, sua ―dificuldade
em colaborar‖ e sua indolência, ao que Jasão contra-argumenta como saturação pelo nível
exacerbado de exploração que a alienação chega: reificação e impotência.
Quando começam a tratar da situação de Joana, Jasão e Creonte, em tensão
crescente, se confrontam de fato.
CREONTE – Pois bem. Eu não quero ela aqui mais não.
JASÃO –Eu...
CREONTE – Alma, agora você pode ir...
ALMA – Então até... (Beija o pai, passa por Jasão e sai).
JASÃO – Seu Creonte...
CREONTE – Não adianta, rapaz. Da outra vez eu transigi. Agora,
atravessou minha garganta.
JASÃO – Olhe... Escute...
CREONTE – Eu bem que lhe adverti. Você me pedia, eu ia deixando,
mas agora não tem mais cabimento!
JASÃO – Posso falar?...
CREONTE – Se quiser vá falando, mas pra mim é como se fosse vento.
JASÃO – Então o senhor...
CREONTE – Vou botar pra fora.
JASÃO – Assim, de uma hora pra outra?...
CREONTE – Agora! Vou co’a polícia e boto ela na rua. E tem mais,
seu Jasão, dentro da lei. Sabe que eu posso, não sabe?...
JASÃO – É, eu sei.
CREONTE – Pois muito bem... (Levanta-se para sair)
JASÃO – Mas se o senhor acua a fera é pior...
CREONTE – Sei...
JASÃO – Então precisa parar pra ouvir uma ponderação...
CREONTE – Se é sobre ela, pra mim é como brisa...
JASÃO – Não, é sobre você...
CREONTE – O senhor...
JASÃO – Não, você!...
CREONTE – Me respeite, seu...
JASÃO – Vai me ouvir agora que eu já tou mais que cansado de te ver
fazer besteira... CREONTE – Vou rir É piada... Que é isso?... JASÃO
– Está errado
CREONTE – O que???...
JASÃO – Pois é, tá tudo errado!...
CREONTE – Errado o que?...
JASÃO – Posso falar?...
CREONTE – Muito engraçado, ora...
JASÃO – Posso? (Tempo). Quero me desculpar primeiro... Falei alto...
CREONTE Anda depressa, fala...
JASÃO – O que é que eu tenho que lhe interessa?
CREONTE – Me interessa? Pra que?...
JASÃO – Pra me aceitar como teu genro...
CREONTE Você?... Bem, Jasão, pra ser sincero, você, não tem nada...
Bom... ―nada‖ é só uma força de expressão. Desde que a mãe morreu,
Alma, coitada, virou um contrapeso pro meu luto E a minha vida é fazê-
la feliz. Se ela te escolheu, gosto não discuto... Tentei... Falei de Europa,
ela não quis. E como tu não tens papel passado co’aquela mulher, acabei
cedendo. Agora até gosto de ti. Tou vendo este bairro ficar mais
comentado com tua canção. Fico agradecido. Quem que não gosta de
ser conhecido, é ou não é? Alma tem vaidade de teu samba e, hoje,
confesso, eu também...
JASÃO – Mas vai ter uma hora da verdade, quer dizer, vai ter a hora
que alguém vai ter que tomar conta do negócio, alguém que vai sentar
nessa cadeira... Se o teu herdeiro é só de samba e ócio, sentá-lo ali é
uma grande besteira.
CREONTE – Você se esquece que inda estou bem vivo. Não morro sem
deixar um bom ativo pra você movimentar... Eu te ensino. JASÃO –
Quero negociar de igual pra igual Entro na firma com meu capital Sabe
quanto eu tenho?...
CREONTE – Boa, menino... Malandro de repente, eu já sabia que tinha
carne embaixo desse angu.
JASÃO – Sabe qual é?...
CREONTE – O que?...
JASÃO – Minha valia?
CREONTE – Qual é?...
JASÃO – Seu Creonte, eu venho do cu do mundo, esse é que é o meu
maior tesouro. Do povo eu conheço cada expressão, cada rosto, carne e
osso, o sangue, o couro... Sei quando diz sim, sei quando diz não, eu sei
o seu forte, eu sei o seu fraco, sei a elasticidade do sei saco. Eu sei
quando chora ou quando faz fita Eu sei quando ele cala ou quando grita.
E o que ele comeu na sua marmita, eu sei pelo bafo do seu sovaco. Eu
conheço sua cama e o seu chão. Já respirei o ar que ele respira. A
economia para a prestação da casa, eu sei bem de onde é que ele tira.
Eu sei até que ponto ele se vira. Eu sei como ele chega na estação.
Conheço o que ele sente quando atira as sete pedras que ele tem na mão.
Permita-me então discordar de novo, que o senhor não sabe nada de
povo, seu coração até aqui de mágoa. E povo não é o que o senhor diz,
não Ceda um pouco, qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota
d’água...
CREONTE – Muito bem. É com esse capital, seu Jasão, que você quer
ser meu sócio?
JASÃO – É. Tem que ceder um pouco. Afinal está em jogo todo o seu
negócio.
CREONTE – Ceder o que? Tu és sócio ou rival?
JASÃO Não fique pensando que o povo é nada, carneiro, boiada, débil
mental, pra lhe entregar tudo de mão beijada. Quer o que? Tirar doce de
criança? Não. Tem que produzir uma esperança de vez em quando pra
a coisa acalmar e poder começar tudo de novo. Então, é como planta, o
povo, pra poder colher, tem que semear. Chegou a hora de regar um
pouco. Ele já não lhe deu tanto? Em ações, prédios, garagens, carros,
caminhões, até usinas, negócios de louco... Pois então? Precisa saber
dosar os limites exatos da energia. Porque sem amanhã, sem alegria, um
dia a pimenteira vai secar. Em vez de defrontar Egeu no peito, baixe os
lucros um pouco e vá com jeito, bote um telefone, arrume uns espaços
pras crianças poderem tomar sol Construa um estádio de futebol, pinte
o prédio, está caindo aos pedaços. Não fique esperando que o
desgraçado que chega morto em casa do trabalho, morto, sim, vá ficar
preocupado em fazer benfeitoria, caralho! Com seus ganhos, o senhor é
que tem que separar uma parte e fazer melhorias. Não precisa também
ser o Palácio da Alvorada, ser páreo pr’uma das sete maravilhas do
mundo. Encha a fachada de pastilhas que eles já acham bom. Ao
terminar, reúna com todos, sem exceção e diga: ninguém tem mais
prestação atrasada. Vamos arredondar as contas e começar a contar só
a partir de agora...
CREONTE – Enlouqueceu!
JASÃO – Ninguém...
CREONTE – Não dá...
JASÃO – Como não dá? Já deu! Ninguém... Ninguém.. Precisa me
pagar os atrasos... É bonificação... Mas... Mas... Atenção pro que eu vou
falar... Aí o senhor pode vociferar pra ninguém mais atrasar prestação...
Está com receio de mestre Egeu? Que já fez política, se meteu em greve
no passado e tal? Isola! Prestação em dia, prédio limpinho, Egeu vai
ficar falando sozinho enquanto o povo está jogando bola! (BUARQUE
& PONTES, 1975)

Essa cena se configura como o nó estruturante da peça. A partir dela, todos os


conflitos e motivos pregressos se justificam e todos os acontecimentos futuros se
encaminham. Creonte, ao anunciar a resolução de expropriar Joana de sua casa, aciona
Jasão em sua defesa. Na tentativa de resguardar Joana e Egeu, Jasão lança mão de uma
desfaçatez que lhe parece perspicácia: procura mostrar a seu sogro todo o calculismo de
que é capaz, afigurando-se como aliado. Para isso, Jasão põe à disposição de Creonte a
sua vida, o seu ―capital‖, buscando convencê-lo de que ganhará mais se ceder ao povo e
isolar Egeu e Joana. Creonte cede à apreciação de Jasão e à sua chantagem, concedendo-
lhe a última entrevista com Joana, na tentativa de que a pobre mulher abandone seu lar
por meio de uma espécie de ―acordo extrajudicial‖.
Pode-se objetar, em favor de Jasão, que toda a cena é montada sobre um artifício
por ele manipulado cuja finalidade é preservar a integridade de Joana e Egeu da fúria
desmedida de Creonte. Não se trata, todavia, de intenções. Jasão já sabe que a conciliação
é impossível. Sua resolução, nesse caso, é ceder uma parte de si a cada lado. Mas ele sabe
também que irremediavelmente será, a partir disso, um traidor. Decido a não romper com
Creonte e Alma, Jasão acata a condição de traidor e procura, assim, resguardar o que é
possível. Resolveu, por bem, manter a integridade dos antigos companheiros. Mas o que
exatamente Jasão entregou para Creonte? Foi o seu maior bem: o segredo da sua
experiência. Ao fazê-lo, Jasão expõe todos os seus companheiros e os fragiliza de tal
forma, que o que há de bem intencionado em seu ato torna-se sem efeito.
Na arte de saber sentar-se, Jasão apreende a força que a simbologia do poder tem.
Ao lançar essa solução, Jasão se resolve pelo sogro, utilizando seu conhecimento para
resguardar o poder de Creonte e inviabilizar a conscientização proposta por Egeu. Ele
sabe, no fundo, que é uma solução ilusória e temporária. Tão ilusória quanto o poder
exercido por Creonte, a sua natureza de proprietário; tão ilusória quanto a verdade dos
juros que oneram seus companheiros. No entanto, a força que elas adquirem, quando se
acredita, quando se impedem os conflitos que permitem acessar a verdade das coisas, é
muito concreta. A naturalidade com que Jasão termina por sentar-se confortavelmente no
trono é a formalização de sua mestria, figurativizando esse domínio do mecanismo de
produção do poder e seu exercício; a sua traição de classe e o seu lugar, afinal.
Após esse embate, Jasão se encontra com Joana mais duas vezes. Já plenamente a
serviço de Creonte, o sambista tem outro embate com a ex-esposa, em que deixa claro
que o motivo do rompimento de sua relação fora a sedução pela paz que encontra em sua
nova vida. Joana, por sua vez, adverte-o de que a sua ansiedade, apresentada por ele como
motivo de seu desinteresse, é parte do mesmo povo que ele, e, abortando-a, ele aborta a
sua identidade, ao que lhe minguará a força do poeta. De certa forma, o interesse pelo
samba de Jasão e seu sucesso são devidos à curiosidade pela maneira como sente o povo.
Jasão, logo, não poderá mais responder a essa curiosidade – que não é desinteressada,
aliás, como bem ilustra a relação de Jasão e Creonte –, pois não será mais capaz de traduzir
o povo, não mais dele fazendo parte. Será, por isso, escamoteado e esquecido.

Conclusão

Resultado: mais negro fica este sumidouro; mais


brilhante fica o outro lado e o seu carnaval, mais
duradouro...

Gota d’água se apropria da fábula de uma tragédia Clássica, Medéia, de Eurípedes,


para por em movimento um enredo que diz respeito à tragédia da classe trabalhadora no
Brasil da década de 1970. É a partir da adaptação livre de Oduvaldo Vianna filho, levada
ao ar pela Rede Globo de Televisão em 1973, que Pontes e Buarque tomam como projeto
adaptá-la para o teatro, como forma de dar continuidade a um dos mais destacados
trabalhos do recém-falecido dramaturgo e movimentar as questões que ele ali propôs. A
grande aposta de Vianinha ao compor sua Medéia era dar forma à tragédia da vida
brasileira, captá-la, ―olhar em seu olho‖ e, assim, encontrar perspectivas para a sua
superação (VIANINHA, 1999).
A adaptação de Vianinha aponta um dado que será levantado por todos os que se
debruçam sobre o estudo e a apreciação de sua obra: a reversão de Jasão, de homem
movido por uma ambição amorfa e constante para um ambicioso em circunstâncias
determinadas. Se na teledramaturgia de Vianinha Jasão é mais complexo do que em Gota
d’água, não se pode negar que talvez isso signifique maior condescendência com esta
personagem e, pior, denote um fundo determinista que baliza a fábula.
De antemão, o prefácio de Gota d’água já apresenta a exigência de certos
compromissos de classe que se afiguram inalienáveis, contra os quais qualquer atentado
a peça cobra. Se a luta contra o capitalismo predatório e pela superação das desigualdades
sociais no Brasil passa pela associação da classe média, dos intelectuais, da força de
trabalho qualificada com o proletariado que ocupa a ponta produtiva, Jasão, nesse sentido,
é um traidor. Como evidenciado pela análise empreendida até aqui, é exatamente assim
que ele se afigura; é personagem cuja consciência da traição, ademais, o acompanha desde
que a peça se inicia.
Se existe, pois, essa disjunção, pouco mais que sutil, entre as intenções de
Vianinha e as de Pontes e Buarque, esse conflito não meramente circunstancial entre o
uso de suas palavras, por que recorrer à apropriação de uma apropriação?
Por algum tempo, as peças políticas Brasileiras recorriam aos mitos para
alegorização e mataforização de situações cotidianas, mais facilmente interditadas pela
censura nacional. Não me parece, todavia, que essa seja a razão pela qual os autores da
peça em questão fizeram a opção de reavivar Medéia, ao menos não o motivo decisivo.
Ser o capitalismo a causa da opressão e da injustiça social, para todos esses
dramaturgos, já era consenso. A forma como as relações capitalistas foram
dramaticamente desenvolvidas no Brasil também levam à conclusão de que o
autoritarismo, na forma do fascismo como o vivenciamos entre 1964 e 1985 existe para
reprimir qualquer tentativa de modificar essencialmente a sua lógica cruel.
Entre os dois projetos, porém, existe uma mudança de horizonte. A Tragédia de
Vianinha visava à conscientização do que estava por trás da conjuntura nacional; era
didática, pois que intentava lançar reflexão e gerar conscientização. O desvelamento da
tragédia nacional era seu fim, e isso, àquela altura, seria um ganho.
Houve, nesse pequeno intervalo de tempo, uma mudança significativa, a qual
Vianinha presenciou e com o que se entusiasmou, sem tempo, contudo, de participar. Com
o fim do governo Médici, as ondas crescentes de manifestações em favor da abertura e a
subida de Geisel ao poder, o afrouxamento da censura começava a aparecer e, ainda,
algumas medidas que indiciavam uma abertura política se ensaiavam.
Em 1975, Gota d’água já podia deixar de ser uma obra de resistência e lançar
alguns desafios mais ousados para o futuro. E foi o que aconteceu. O compromisso de
classes contra o capitalismo predatório, em favor da descentralização de recursos e
desconcentração de rendas, pelo desenvolvimento nacional e a luta pelo estabelecimento
de um estado democrático de direito efetivo parecem pulsar na peça em causa. Questões
como exploração da mais-valia, alienação da força produtiva, estabelecimento do direito
pela letra da lei, questionamento da propriedade privada, direito à voz etc. são motes que,
mais ou menos marcados, compõem a obra de Pontes e Buarque.
Jasão, então, não pode mais ser encarado como elemento que age dentro dos
limites das circunstâncias em que está inserido. Ele tem de ser chamado à
responsabilidade que seus atos têm em um momento em que cada gesto, cada sinal de
classe assume tão importante conotação. Jasão não pode ser mais um mero paciente, cuja
cisão apresentada e desenrolada dramaticamente em Medéia só conclui o peso da
atmosfera que o cerca. O Jasão de Gota d’água é responsável pela tragédia de seus
companheiros, sua ex-esposa, seus filhos e pela sua própria sorte.
Existe, certamente, bastante otimismo no prefácio de Gota d’água, e quase todos
se comprovaram, ao longo da história, apenas isso. Vale ressaltar que é entregar um
instrumento de ação, mais que tudo, ao que se propõem seus autores.
E por que mito de Medéia permaneceu dentro de todas essas experiências? É
possível que seja pelo fato de que a total reversão dos agentes do mito indicie bastante
coisa. Se Jasão é, em Medéia, um traidor ordinário que paga com a vida dos filhos pelo
erro de ter abandonado uma mulher poderosa, tão poderosa e tão essencialmente
aristocrata a ponto de matar seus próprios filhos para se vingar deste homem e contar com
a certeza da aprovação dos Deuses, Joana não tem escapatória. Ela não é dona de seu
destino e nem mesmo as suas imprecações podem atingir a outro que não ela mesma. O
destino da nossa heroína trágica está fora dela, e esse parece ser o motivo essencial da
reversão dos mitos. Enquanto Medéia pode decidir sua moira, Joana, aquela que sofre a
ação essencialmente trágica, só espera.
Nesse sentido, a tragédia Brasileira se coloca: o movimento pendular, mais que
nunca, precisa ser claro. O povo, cujo sentido é a classe trabalhadora, não dispõe dos
instrumentos necessários à sua emancipação e imprescinde dela.
As intenções elencadas no prefácio da obra foram alcançadas.

Referências
BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 1975. 168p.
CANDIDO. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.
MACARINI, José Pedro. A política econômica da ditadura militar no limiar do
“milagre” brasileiro: 1967/69. IEL/UNICAMP. 2000.
MACARINI, José Pedro. A política econômica do governo Médici: 1970-1973.
IEL/UNICAMP. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/neco/v15n3/v15n3a03.pdf>.
Acesso em: 30. Abr. 2016.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas cidades,


1990.
UBERSFELD, Anne. Pra ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. 202p.

VIANNA FILHO, Oduvaldo. Vianinha: teatro, televisão, política. São Paulo:


Brasiliense, 1999.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução Betina Bischof. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002. 272p.

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