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Versão brasileira?

Anotações em torno da incorporação do modelo


norte-americano em filmes silenciosos brasileiros
Luciana Corrêa de Araújo 1

A proposta deste artigo é expor algumas indagações e leituras em torno da


questão: como se dá a incorporação do modelo norte-americano nos filmes si-
lenciosos brasileiros? Quais as assimilações e deslocamentos em relação a esse
modelo que sem dúvida é o dominante na época?
Tomarei como ponto de partida para essas reflexões a relação entre dois filmes:
a produção norte-americana David, o caçula (Tol’able David), dirigida em 1921,
por Henry King, e Tesouro perdido, filme de Humberto Mauro de 1927. É notória
a influência da fita americana sobre Mauro, ao realizar seu terceiro filme de ficção
depois de Valadião, o cratera (1925) e Na primavera da vida (1926). Paulo Emilio
Salles Gomes assegura que “Humberto Mauro não só assistiu a David, o caçula,
mas estudou-o, o que faz pensar que teve ocasião de revê-lo em 1926 na compa-
nhia ou sob a orientação de Adhemar Gonzaga”2.
O cotejo entre David, o caçula e Tesouro perdido irá permitir que eu me de-

1 Professora de História e Teoria do Audiovisual na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Com
mestrado e doutorado em Cinema pela ECA/USP, desenvolveu pós-doutorado na Unicamp sobre cine-
ma silencioso pernambucano. Autora de A crônica de cinema no Recife dos anos 50 (Recife: Fundarpe,
1997).
2 GOMES, Paulo Emilio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.144.
sobre gênero no cinema silencioso

tenha, sobretudo, na figura do protagonista e sua constituição enquanto herói.


No filme brasileiro, percebe-se uma flagrante dificuldade na construção do he-
rói, o que repercute diretamente na condução e desenlace do conflito. Esse é
um traço que chama a atenção em Tesouro perdido e que se torna ainda mais
intrigante na medida em que vamos encontrá-lo em outras produções de ficção
do período, a exemplo de O segredo do corcunda (Alberto Traversa, 1924), Retri-
buição (Gentil Roiz, 1925), A filha do advogado (Jota Soares, 1926) e Canção da
primavera (Fábio Cintra, 1932).
No filme de Henry King, a constituição do herói é a própria matéria-prima da
narrativa. A história se desenrola em torno de David, filho caçula de uma família
no interior dos Estados Unidos. Ele, que sonha em conduzir a mala de corres-
pondência como o irmão Allan, quer provar que já se tornou um homem, mas
todos o tratam ainda como um garoto. Sua futura transformação, entretanto, é
anunciada desde o início: na apresentação dos membros da família Kinemon,
David aparece contemplando uma gravura representando a luta entre David e
o gigante Golias. A harmonia familiar desmorona com a chegada dos Hatburns,
três foras da lei, fugitivos da prisão, que se refugiam na vizinha casa de Esther, pa-
rente distante dos criminosos e interesse amoroso de David. O grandalhão Luke
Hatburn é o vilão mor, cuja maldade gratuita e sempre a postos faz com que até
mesmo o pai e o irmão mais novo procurem, em vão, controlar seus impulsos.
Depois de matar a pauladas o cachorro de David, Rocket, que havia invadido o
jardim dos Hatburns, Luke atira uma pedra em Allan, pelas costas. Grande força
viril dos Kinemon, Allan passa a viver imobilizado na cama – “helpless for life”,
como sentencia o médico. O pai, de saúde débil, não resiste ao golpe e morre de
um ataque do coração. Com isso, a família (David, a mãe, Allan, sua esposa e o
filho recém-nascido) é obrigada a se mudar para uma casa mais modesta, na vila.
Tanto depois do acidente de Allan quanto da morte do pai, David arma-se
para a vingança, no que é sempre impedido. A vida prossegue com o rapaz tra-
balhando numa loja da cidade, tendo que aturar o falatório dos moradores sobre
sua falta de reação. Até o dia em que o condutor da mala postal aparece bêbado e
David é incumbido do transporte. Numa das curvas do caminho, uma das malas
de correspondência cai na estrada e é recolhida por Luke Hatburn. David chega à
casa dos Hatburn, chuta a porta para entrar e enfrenta os criminosos. É atingido
no braço por tiro disparado pelo caçula e revida atirando contra ele. Atira tam-
bém no pai. Luke, que estava do lado de fora se preparando para atacar Esther,
ouve os tiros e volta para a casa. Começa a luta entre David e o gigante Luke.
Vitorioso, David volta à cidade, ferido, mas cumprindo sua missão de trazer a
correspondência. É recebido pela mãe, por Esther e por toda a cidade como he-
rói. O garoto deu provas de sua maturidade e se mostrou um homem, um herói.
A história de Tesouro perdido também se passa em um ambiente rural, no in-

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viagem ao cinema silencioso do brasil

terior de Minas Gerais. Os irmãos Braulio e Pedrinho vivem na fazenda de Hilário,


pai de Suzanna, que os criou depois da morte dos pais. Aqui já se percebe uma
diferença em relação ao filme americano: a ausência de uma família completa. É
comum nos filmes brasileiros encontrar núcleos familiares incompletos, numa
sucessão de irmãos órfãos, de pais e mães viúvos vivendo com seus filhos ou ain-
da de tios e tias que tomam conta dos sobrinhos órfãos. Se por um lado os filmes
reproduzem assim a economia de elenco própria aos filmes norte-americanos de
dois rolos (o que não é o caso da cuidadosa produção do longa David, o caçula),
muito adequada aos precários padrões de produção no Brasil, também evitam
com isso a dificuldade em articular dramaticamente um número grande de per-
sonagens. Não é fácil decifrar, por exemplo, quem é quem e qual o grau de pa-
rentesco em meio ao numeroso núcleo familiar do mineiro Canção da primavera
(Igino Bonfioli e Ségur Cyprien, 1923), composto por pai, mãe e filhos, além das
presenças dos agregados, dos respectivos interesses amorosos e do padre.
Famílias incompletas e filhos de criação permeiam os filmes silenciosos de
Mauro, portanto não é estranho que o mesmo aconteça em Tesouro perdido.
Caberá ao pai adotivo, Hilário, imbuído da autoridade de figura paterna, en-
tregar a Braulio no seu aniversário de 18 anos o mapa de tesouro incompleto,
deixado por seus ancestrais. Dois bandidos estão atrás do tesouro: o “escroque
internacional” dr Raul Litz e seu comparsa local, Manoel Faca. Pedrinho conta
como Braulio deu uma “surra” em Litz, porque ele soltou um gracejo para Su-
zanna. A força física de Braulio é atestada pelo flashback que mostra sua briga
com Litz. Quando o rival tenta fugir no seu automóvel, Braulio impede o mo-
vimento do carro, levantando as rodas traseiras com uma das mãos e, com a
outra, segurando-se a um toco de árvore. Os pneus rodam em falso até que
Braulio solta o carro. Enquanto Braulio tem força física, Pedrinho demonstra
habilidade manual, fabricando e vendendo garruchas.
Litz e Manoel Faca seguem o andarilho Tomaz que possui a outra parte do
mapa do tesouro. Faca observa o velho quando ele é convidado para dormir na
casa de Hilário, em noite de forte tempestade. No dia seguinte, o andarilho está
morto e o cachorro de Braulio, Velludo, aparece ferido mortalmente por uma faca
que tem o desenho de uma caveira, símbolo de Manoel Faca. Na cabana, Litz es-
pera o comparsa, que chega trazendo a bolsa do andarilho contendo o pedaço do
mapa. Numa sequência ambientada na capital do país, surge aviso anunciando
recompensa pela captura de escroque internacional, cuja foto é reconhecida por
um dos frequentadores da região mineira. Na chácara, Pedrinho encontra Hilário
transtornado com o desaparecimento de Suzanna, raptada por Faca, que exige
como resgate a entrega da outra parte do mapa. Hilário espera por Braulio, que
saíra cedo para caçar. Pedrinho não espera por nada e parte, armado, para salvar
Suzanna. Na cabana de Faca, ele luta contra os bandidos, enquanto o local vai

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sobre gênero no cinema silencioso

se enchendo de fumaça, tomado por um incêndio. Os lances da luta são inter-


calados com planos de Braulio e do grupo que rumam a cavalo em direção ao
esconderijo. Quando ele finalmente chega, encontra os bandidos mortos dentro
da cabana. Logo depois Pedrinho se aproxima, carregando Suzanna desacorda-
da. Pedrinho morre nos braços do irmão e Suzanna é socorrida pelos outros do
grupo. Passam-se os dias, Braulio queima as duas partes do mapa. A recompensa
ganha por Pedrinho pela morte de Litz é doada a um orfanato. Em passeio idílico
com Suzanna, Braulio declara: “O teu amor, Suzanna, é o meu tesouro...”.
Em Tesouro perdido são vários os elementos que remetem a David, o caçula.
A começar pelo ambiente rural. Os dois filmes conferem tratamento semelhan-
te à natureza, reforçando o encanto da bucólica paisagem do campo, com rios,
animais, estradas de terra. Em ambos, haverá uma sequência dedicada ao ama-
nhecer no campo e veremos as sempre presentes cercas brancas que convidam
a diálogos e cenas afetuosas. O desdobramento da obra de Mauro, porém, irá
comprovar que sua relação com a natureza constituía algo mais profundo do
que simples referência a David, o caçula. Alguns elementos de Tesouro perdi-
do que descendem diretamente do filme americano: os cachorros, parte inte-
grante da vida afetiva familiar, serão as primeiras vítimas dos vilões, embora a
morte de Rocket desencadeie os conflitos enquanto o esfaqueamento de Vellu-
do acontece no quadro maior do assassinato do velho andarilho; a dancinha
de David ao tocar gaita serve de inspiração direta para a desajeitada dança de
Braulio, depois de entregar sua foto a Suzanna; David sonha acordado, se ima-
ginando todo garboso conduzindo a charrete da mala postal, enquanto em de-
terminado momento Braulio perde-se em devaneios, visualizando a nova vida
que a riqueza do tesouro poderá trazer.
Outro ponto em comum, este bem conhecido, diz respeito à apresentação
do vilão. Costuma-se sempre lembrar a observação feita a Humberto Mauro por
Adhemar Gonzaga diante dos intertítulos abundantes de Na primavera da vida:
quando quiser caracterizar um vilão, não há necessidade de intertítulo explicati-
vo basta apresentá-lo dando um pontapé num gato 3. A lição de “subentendimen-
to” é aprendida em Tesouro perdido, logo que surge na pele do vilão Manoel Faca,
Mauro trata de empurrar um gato e escorraçá-lo com um chicote. A violência
gratuita contra animais é uma das características do vilão Luke Hatburn, em Da-
vid, o caçula, e será o próprio estopim dos conflitos. Além disso, a caracterização
de Mauro como Manoel Faca é semelhante a de Ernest Torrence como Luke – e
semelhante também à tradição iconográfica dos vilões brutais: barba por fazer,
aspecto sujo, gestos animalescos.

3 Cinearte, n.150, 09 jan 1929, p.6.

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viagem ao cinema silencioso do brasil

Outras aproximações também extrapolam particularidades para remeter às


convenções de gênero, às quais tanto David quanto Tesouro se filiam: os grupos
que se formam para resgatar vítimas (Allan e Suzanna); a mocinha em perigo; as
lutas com socos, tiros e tentativas de estrangulamento; as perseguições a cavalo
ou a charrete. Quanto ao gênero, porém, é preciso ressaltar diferenças entre os
filmes. David, o caçula investe muito mais no drama do que na aventura, embora
não faltem cenas de ação promovidas pelos conflitos entre mocinhos e bandi-
dos. O apelo ao gênero mais popular da aventura é, inclusive, criticado em Para
todos..., que no mais não poupa elogios ao filme. Em novembro de 1924, a coluna
“Os filmes da semana – O que se exibe no Rio” considera David, o caçula “um fil-
me fino e de muito valor, altamente dramático e mostrando a verdadeira arte do
cinema”, mas ressalta: “Se não fossem as últimas partes com alguma coisa já vista,
seria o melhor filme dos últimos tempos” 4. As últimas partes concentram justa-
mente as cenas de ação, com o enfrentamento entre David e os bandidos. Já Te-
souro perdido encaixa-se por completo no gênero aventura. Também se poderia
pensar aqui no modelo do “melodrama de sensação” (sensational melodramas),
assim como analisado por Ben Singer, cujos filmes apresentam:

ação rápida em profusão, violência estimulante, cenas espetaculares e a vi-


bração do perigo físico, dos raptos e dos salvamentos cheios de suspense.
No nível narrativo, os melodramas contavam com tramas semelhantes, en-
fatizando a vilania e o heroísmo extremos, desencadeadas pela inveja e/ou
ganância do vilão, e com freqüência se baseando em coincidências extraor-
dinárias, revelações repentinas e inesperadas reviravoltas5.

Relacionado ao melodrama de sensação, o filme de Mauro insere-se no pródigo


filão dos filmes de aventura e dos seriados dos anos 1910 e início dos 20 que aliava
ações espetaculares aos conflitos entre bem e mal. Procedimentos típicos de seria-
do são encontrados em Tesouro perdido, como a carta recebida pelo vilão Litz cujas
letras só aparecem depois de molhado o papel ou ainda a rápida investigação con-
duzida por Braulio depois da morte de Velludo, que a partir de pistas encontradas
(uma roupa largada entre as pedras do rio e um chapéu boiando na água) chega à
conclusão – equivocada, aliás – de que o assassino morreu afogado ao tentar fugir.
Essas aproximações entre os dois filmes tendem a confirmar a observação de

4 “Os filmes da semana – O que se exibe no Rio”. Para todos..., ano VI, n. 308, 8 nov 1924, s.p..
5 No original: “Movies delivered abundant rapid action, stimulating violence, spectacular sights, and the
thrills of physical peril, abductions, and suspenseful rescues. On a narrative level, film melodramas re-
lied on similar story lines emphasizing pure villainy and heroism catalyzed by the villain’s jealousy and/
or greed and often relying on extraordinary coincidences, sudden revelations, and unexpected twists
of circumstance”. IN: SINGER, Ben. Melodrama and modernity – Early sensational cinema and its contexts. New York, Columbia University Press, 2001, p.192.

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sobre gênero no cinema silencioso

Jean-Claude Bernardet a respeito do mimetismo e do fenômeno de aculturação


do modelo industrial norte-americano em filmes brasileiros. Para Bernardet, o
que é imitado “não são os elementos básicos da estrutura dramática mas sim
elementos de ambientação, gestos, happy end, perseguições etc.” 6. É o que ele
chama de “formas epidérmicas”, diferenciando-as das “formas básicas de estru-
turação dramática”. Em Tesouro perdido, o afastamento em relação a David, o
caçula no que diz respeito à estrutura dramática é extremamente significativo,
sobretudo quanto à trajetória do protagonista e ao desenlace da trama.
Na avaliação de Paulo Emilio,

os ecos mais evidentes de David, o caçula em O tesouro perdido referem-se


à personagem principal da fita americana, interpretada por Richard Bar-
thelmess. David é um frágil adolescente do campo que um dia enfrenta
o perigo e vence. Seu correspondente em O tesouro perdido é Pedrinho.
Na fita americana, porém, o herói é o galã, ao passo que na brasileira Pe-
drinho morre e vira inocente sacrificado. A figura do galanteador feliz se
transfere para outra personagem, Braulio 7.

Não deixa de ser surpreendente esse deslocamento em relação ao modelo, op-


tando por uma separação entre as figuras do herói e do galã. Desde o início Braulio
adquire status de protagonista: por ser aquele a quem o mapa do tesouro é entregue,
por ser o mais forte da região e ter vencido Litz numa luta, por ter suas investidas
amorosas correspondidas por Suzanna, por demonstrar iniciativa e inteligência ao
partir para investigar as mortes do andarilho e de Velludo. Seu próprio tipo físico,
forte e bonitão, já o coloca de imediato no posto de protagonista, dentro da “lei dos
tipos” dominante no cinema silencioso de ficção. Quando Suzanna é sequestrada,
é ele quem teria todos os requisitos para salvá-la, a julgar pelo desenvolvimento
da narrativa até então. Daí a imensa surpresa com seu literal sumiço de cena. Um
intertítulo explica que ele saiu cedo para caçar. É quando Pedrinho, até então um
coadjuvante do irmão mais velho, toma a iniciativa, vai até o esconderijo, mata
os vilões e salva a mocinha, morrendo logo em seguida. Quando Braulio chega ao
local, tudo já se resolveu. Ou melhor, quase tudo. Ele ainda tenta conseguir socorro
para o irmão, correndo atrás da charrete que levou Suzanna. E, também aqui, seus
esforços são frustrados. Ele desiste e volta para o lado do irmão, que morre em seus
braços. A impotência de Braulio fica evidente, o que se tenta compensar ressaltan-
do sua nobreza de caráter ao queimar o mapa e doar a recompensa a um orfanato.
Esse deslizamento entre as figuras do galã e do herói – figuras que a princípio

6 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.79-80. A citação seguinte é da mesma fonte, p.80.
7 GOMES, Paulo Emilio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.144.

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viagem ao cinema silencioso do brasil

parecem se aderir para no final se dissociarem – marca um deslocamento em re-


lação ao modelo norte-americano, tanto mais intrigante porque não se restringe
a Tesouro perdido. Pelo contrário, pode ser observado em outros filmes silencio-
sos brasileiros que também se inspiram no modelo do melodrama de sensação. É
o caso do paulista O segredo do corcunda (Alberto Traversa, 1924) e dos pernam-
bucanos Retribuição (Gentil Roiz, 1925) e A filha do advogado (Jota Soares, 1926).
Logo no início de O segredo do corcunda, o protagonista João mostra-se rapaz
destemido, enfrentando o violento administrador da fazenda que agride fisica-
mente o velho Marcos, a quem João toma como pai. Como em David, o caçu-
la e no posterior Tesouro perdido, aqui também irá se recorrer à relação com os
animais para distinguir o caráter dos personagens. Ao intertítulo “Fazer mal aos
animais é indício de mau caráter”, segue-se plano de Pedro atirando o chicote
em um cachorro. Logo depois, a cartela “Amar os irracionais é prova de bons sen-
timentos” completa a apresentação de Marcos, que afaga o cachorro ferido. Ex-
pulsos da fazenda, Marcos e João encontram na estrada o proprietário Sr. Carlos,
um self made man que não esqueceu suas origens humildes. Ele chega de viagem
com a filha Rosa. Nesse momento, João dá mostras novamente de sua coragem
e força física. Perseguida por um touro, a moça desmaia e João salva sua vida,
agarrando o touro pelos chifres, numa cena de “grande sensação”, para usar a
expressão da época.
O bondoso proprietário os leva de volta à fazenda, para revolta do administra-
dor, que se vê tomado por ódio e inveja em relação a João, agora o empregado di-
leto do patrão e interesse amoroso de sua filha. De revólver em punho e com um
lenço amarrado no rosto, em inconfundível estilo cowboy, Pedro ataca João numa
briga acirrada. Marcos tenta interceder, sem sucesso. Quando o vilão está a ponto
de estrangular João, o velho se dá conta do revólver largado no chão. “Momentos
intensos, supremos, nos quais não se admitem hesitações”, reforça o intertítulo.
Marcos aponta a arma para Pedro e dispara contra seu coração. Embora forte e
corajoso, não é o protagonista quem elimina o vilão. Outro personagem vem em
seu auxílio no momento preciso para desempenhar o ato final de heroísmo. João,
entretanto, irá usufruir das benesses dos heróis. Nos planos seguintes, ele será
visto incorporado à família do proprietário: ao lado do sr. Carlos e Rosa, ele ob-
serva os festejos na fazenda, do alto da varanda da casa-grande; nos planos finais,
a cena familiar se completa, com a presença de uma sorridente criança.
Em Retribuição, o galã ajuda a mocinha a procurar um tesouro, deixado por
seu pai antes de morrer. Tendo perdido também a mãe, ela vive com uma senhora
(uma tia?) e o irmão, que está de viagem. O tesouro está na mira de um “bando
terrível” liderado por um “salteador de estrada”, como informam os intertítulos. A
quadrilha é caracterizada com figurinos e atitudes já bem codificadas pelo cine-
ma americano de aventura. Os nomes, contudo, remetem a sonoridades e gírias

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sobre gênero no cinema silencioso

brasileiras: o líder se chama Curisco (nenhuma relação com o cangaceiro Coris-


co, que entraria para o bando de Lampião em 1926, ano seguinte ao lançamen-
to do filme) e seus comparsas são Bala n’Agulha, Timbira e Maciota. Como nos
filmes do gênero, há um particular cuidado na escolha de locações que tornem
mais atraente e dramático o embate entre mocinho e bandidos. Aqui o cenário
escolhido são as minas de giz de Olinda, um terreno acidentado que proporciona
a desejada sensação de perigo, além das obrigatórias quedas e deslizamentos.
Protegendo a mocinha, o galã luta contra os bandidos, mas os dois terminam por
ser feitos prisioneiros. Mesmo sob tortura, o galã não entrega o mapa do tesouro.
O herói da história, porém, não é o galã e sim o irmão da mocinha, que bem
a propósito acaba de voltar à cidade. Ele manda chamar a polícia, vai até o covil
dos bandidos e nocauteia todo o bando com a habilidade que o intérprete, luta-
dor profissional, empresta ao personagem. É o irmão que salva tanto a mocinha
quanto o galã, articulando também a prisão do bando. Isso não impede que o
galã usufrua do final feliz ao lado da mocinha e, ao contrário do filme de Mauro,
se beneficie do tesouro finalmente desenterrado.
Em A filha do advogado, a mocinha mata o estroina que a ataca, sem saber que
se trata do próprio irmão. Seu namorado, um jornalista de renome, esboça uma
investigação no local do crime (assim como Braulio em Tesouro) que não tem
maiores consequências. O pai da moça e também do rapaz assassinado disfarça-
se para defender a filha ilegítima no tribunal. Essas peripécias que se pretendem
sensacionais de nada contribuem para libertar a moça. O salvamento de último
minuto é providenciado pelo jardineiro negro da família que, arrependido por ter
sido comparsa do jovem libertino, confessa no tribunal como facilitou a entra-
da do rapaz no quarto da moça. A construção dramática é urdida de tal forma a
transformar o jardineiro, um cúmplice do crime, no grande vilão da história, pois
o jovem estroina além de estar morto, e portanto já punido, havia se arrepen-
dido de seus atos antes de exalar o último suspiro. Como em João da Matta e O
segredo do corcunda, o final feliz não é selado por um beijo romântico, mas pela
constituição da família completa, com galã, mocinha e um rechonchudo bebê,
observados pelo orgulhoso advogado.
A filha do advogado pode ser incluído na linha de análise desenvolvida por
Jean-Claude Bernardet em Trajetória crítica, ao aproximar os filmes Uma pistola
para Djeca (Ary Fernandes, 1970) e O caçador de diamantes (Vittorio Capellaro,
1933). Como aponta Bernardet em relação a esses dois filmes de épocas distintas,
é o vilão que acaba resolvendo os conflitos e, assim, estabelecendo a justiça. A
categoria dramática do “vilão justiceiro”, escreve,

permite que a força boa possa ao mesmo tempo usufruir do ato justiceiro
e permanecer passiva. Convite à passividade. Cômodo esse vilão justicei-

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viagem ao cinema silencioso do brasil

ro: o mal fazendo o bem sem que o bem tenha que se comprometer [...].
A importância do vilão justiceiro é que os beneficiários de sua ação não
têm que sujar as mãos8.

O “vilão justiceiro” talvez não seja tão frequente no cinema silencioso brasileiro,
além do personagem do jardineiro negro em A filha do advogado, a rigor não o vi-
lão, mas seu cúmplice. A figura complementar a do “vilão justiceiro”, porém, figura
que poderia ser chamada de “herói passivo”, essa se ajusta com precisão a alguns
filmes silenciosos brasileiros, a começar pelo próprio Tesouro perdido. E, lembran-
do do filme de Mauro, talvez seja necessário ainda refinar um pouco a expressão:
não se trata exatamente do “herói passivo” e sim do “protagonista passivo”, já que
os atos heroicos acabam sendo realizados por outros personagens: Pedrinho em
Tesouro perdido, o irmão da mocinha em Retribuição, o amigo do protagonista que
acaba por matar o vilão em O segredo do corcunda. Com esse deslocamento, acaba-
se por driblar o confronto direto final entre mocinho e vilão.
O descolamento entre herói e galã também pode ser observado em um filme
que não se filia ao gênero melodrama de sensação, como os anteriores. No drama
paulista Canção da primavera (Fabio Cintra, 1932), ocorre um interessantíssimo
embaralhamento na construção do mocinho. De início, o mocinho é Roberto, filho
da caseira de uma bela fazenda, onde se isola a jovem e rica Leonor, vítima de um
acidente de carro que a deixou cega. O rapaz tem o rosto deformado, mas canta
e toca violão lindamente, e acaba por conquistar a afeição da jovem, que assim
retoma o gosto pela vida. Os idílios são interrompidos quando chegam à fazenda
um cirurgião e seu irmão, Ricardo, estudante de medicina com toda a aparência de
galã. A cirurgia é um sucesso e a moça recupera a visão. Para impedir que ela volte
a se aproximar do empregado, o “monstrengo”, como diz, seu pai arma o plano no
qual o estudante Ricardo deverá se passar por Roberto, já que os dois têm uma voz
parecida que havia inclusive confundido Leonor. Idílios românticos se sucedem
entre Leonor e Ricardo, que aceita a farsa a contragosto, por estar apaixonado pela
moça. Diante da situação, Roberto se mata com uma picada de cobra, mas antes de
morrer abençoa o casal e em seu leito de morte pede perdão a Leonor por não ter
conseguido resistir a viver seu momento de felicidade com ela. Magoada pela farsa
de Ricardo, Leonor acaba por pedir desculpas a ele, depois de convencida pelo pai
de que “mentira de médico é virtude, não é pecado”.
Cabe ressaltar que, no filme, o desfecho após a morte de Roberto acontece de
maneira bastante truncada. Tanto a conversa entre Leonor e seu pai quanto o idí-
lio final são constituídos por planos reaproveitados de cenas anteriores. Na falta
de recursos para filmar apropriadamente os últimos planos, recorre-se a ima-

8 BERNARDET, Jean-Claude. Trajetória crítica. São Paulo: Polis, 1978, p.214-5.

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sobre gênero no cinema silencioso

gens já realizadas e a uma sucessão de intertítulos para construir e dar sentido ao


desenlace da trama. Embora as limitações de produção sejam flagrantes, não se
deve creditar apenas a elas a fragilidade dramática da conclusão. Como acontece
em Tesouro perdido, a própria condução dramática toma caminhos diferentes do
modelo consagrado, em particular na disjunção entre galã e herói – lembrando
que também Mauro não deixará de recorrer a românticos intertítulos finais (“O
teu amor, Suzanna, é o meu Tesouro...”) para fortalecer um desfecho e um galã
debilitados pela morte do verdadeiro herói da história.
Em Canção da primavera, Roberto se configura como personagem mais he-
roico e também aquele que enfrenta o maior drama, atormentado pela aparência
repulsiva que abriga talento musical e bons sentimentos (“meu coração não é
deformado como meu rosto”, desabafa à mãe). É Roberto e seu coração generoso
quem consegue a proeza de tirar Leonor de sua prostração e desânimo após a
cegueira. O estudante Ricardo se aproveita dessa conquista inicial, assumindo o
lugar do filho da empregada. Seu principal mérito, além de se mostrar sempre re-
lutante em participar da farsa, é ter uma fina estampa que combina com sua bela
voz, ao contrário de Roberto, que seria o “genro feio” (como diz o médico a certa
altura) e, pior ainda, pobre. Como se não bastasse a deformidade física, existe a
diferença de classes. Diante desse duplo impedimento, o filme abandona o en-
canto inicial criado em torno de Roberto para se dedicar a procedimentos que o
enfraquecem dramaticamente (ele se mostra um fraco, chorando pelos cantos,
amparado pela mãe) e enaltecem os valores de Ricardo, adequando assim a figu-
ra do mocinho ao personagem bonito e bem posto na vida.
As qualidades do estudante Ricardo já vêm dadas: a classe social, a carreira
de prestígio, o talento musical, a retidão dos valores. Enquanto o empregado Ro-
berto é quem consegue superar suas limitações (físicas, sociais) e exercer uma
transformação em Leonor. Ele tem uma intervenção efetiva, empreende uma
conquista, ao passo que Ricardo vale-se das condições favoráveis que se lhe apre-
sentam. Esse mecanismo de transmutação pelo qual o estudante Ricardo acaba
incorporando as características positivas do empregado Roberto, conjugando as-
sim o melhor dos dois mundos, faz com que o filme consiga driblar a necessidade
de um confronto direto entre eles. E aqui voltamos à figura do “galã passivo”: ele
não “suja as mãos” em conflitos. O trabalho sujo cabe a outros personagens – ou
a outras instâncias como o destino, Deus.
No paulista Canção da primavera, o responsável maior pela condução e reso-
lução da intriga é o pai, cujas ações vêm chanceladas tanto por sua autoridade
paterna quanto por sua condição de proprietário, de patrão. Curiosamente, em
outro filme de mesmo nome, haverá também um pai determinado a conduzir o
destino de seus familiares. No mineiro Canção da primavera, o fazendeiro Luiz
Roldão, apresentado como “irascível” apesar de ter bom coração, não permite

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viagem ao cinema silencioso do brasil

o casamento de seu filho com a neta de um camponês, criada junto à família, e


tampouco o romance entre sua irmã solteirona e o barbeiro-poeta local. Roldão
se aferra a suas decisões ao longo de todo o filme, até que no final, ao ser alvo
mais uma vez dos argumentos do padre local, deixa-se convencer e consente nos
enlaces. O padre dá graças a Deus por ter iluminado seu amigo. De tão repentina,
a mudança se dá quase como um milagre. Neste Canção da primavera, o deus
ex machina que vem resolver os conflitos é o próprio Deus. Nos dois Canção da
primavera, os confrontos não chegam a se efetuar, pois prevalece a autoridade
maior do pai, a quem todo o poder é franqueado, o que justifica tanto os estrata-
gemas ardilosos (no Canção paulista) quanto os arbítrios inflexíveis (no mineiro).
Nos filmes brasileiros que se filiam ao modelo do cinema de aventura, é
curioso acompanhar como se conciliam elementos obrigatórios do gênero que
implicam em embates (as brigas, as perseguições) e a passividade do galã, do
protagonista. Em Tesouro perdido, Retribuição, A filha do advogado, O segredo do
corcunda o mocinho tem iniciativa e envolve-se em conflitos físicos, trocando
socos com os vilões para contentamento da plateia – e dos próprios realizadores,
eles também fãs das fitas americanas. Saciado o gosto pelas brigas, há um recuo
do protagonista no desenlace da trama, para que outros personagens ou outras
instâncias resolvam o conflito final.
Entre os filmes do gênero que podem ser vistos hoje são raros aqueles nos
quais o protagonista não só entra em confronto direto com o vilão como efe-
tivamente atua na resolução dos conflitos. O resumo e os fragmentos preser-
vados da produção campineira João da Matta (Amilar Alves, 1923) mostram o
protagonista determinado a não mais se submeter aos desmandos do poderoso
coronel local 9. A primeira briga entre eles é provocada quando o coronel ame-
aça expulsar João e sua mãe do sítio que lhes pertence, mas do qual não têm
nenhuma documentação. Em revanche, o coronel acusa João de ter roubado
sua carteira e o rapaz é convencido pelos amigos a fugir para escapar da pri-
são. Depois de meses, João está de volta e procura o coronel. Além de trazer
os papéis que comprovam a propriedade do sítio, João revela que descobriu o
passado criminoso do coronel na Bahia, onde ele matou um rapaz, e ameaça
entregá-lo à justiça. Na briga que se segue, João termina por estrangular o rival,
matando-o sem se dar conta. Seu crime, no entanto, é logo justificado. Ele ma-
tou um “ladrão perigosíssimo”, afirma um personagem, e por isso é absolvido
no julgamento. O caboclo João da Matta se configura como herói irretocável,
tomando as rédeas para a resolução dos conflitos: ele encontra meios de resol-

9 O resumo de João da Matta pode ser acessado na Filmografia Brasileira, no site da Cinemateca Brasi-
leira: www.cinemateca.org.br
Os fragmentos existentes do filme estão reproduzidos no curta-metragem Um drama caipira dedicado a
Caio Scheiby (Carlos Roberto Rodrigues de Souza e José Carvalho Motta, 1973).

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sobre gênero no cinema silencioso

ver as questões familiares e, nesse percurso, desmascara o vilão, enfrentando-o


diretamente e fazendo justiça.
No pernambucano Jurando vingar (Ary Severo, 1925), o protagonista Julio
arranja uma briga com o vilão Aviador e seu comparsa Manoel Rato ao defender
Bertha, a atendente do “café da povoação” por quem logo estará apaixonado.
Por vingança pela humilhação de ter sido derrotado na briga, Aviador não só
mata a irmã de Julio como em seguida sequestra Bertha. No esconderijo dos vi-
lões, Julio enfrenta Aviador, fazendo questão de desarmá-lo logo no início para
que o embate se resolva pela força física (“Agora vamos lutar como homens,
pois eu quero que morras aprendendo”). Não faltam elementos que caracteri-
zam o filme de aventura: a briga de socos entre vilão e mocinho, o rapto e salva-
mento da mocinha, o “café” como correlato do saloon dos faroestes, que estará
presente em outros filmes brasileiros do período como O segredo do corcunda e
surge com frequência nos primeiros longas de Mauro – Tesouro perdido, Brasa
dormida (1928), Ganga bruta (1931).
No dia do casamento de Julio e Bertha, Manoel Rato procura vingar-se da morte
do comparsa, mandando um menino negro colocar veneno na bebida de Julio –
mais um personagem negro colocado no papel de cúmplice do vilão. Nesse ponto,
quem toma a iniciativa não é Julio, mas seu amigo Gustavo, que percebe tudo e
não só evita o envenenamento criminoso como sai em perseguição ao bandido,
matando-o a tiros. No final, Julio conta a um amigo da cidade que “Gustavo ficou
sendo autoridade local, pois eu não quis aceitar”.
Ainda que em Jurando vingar o protagonista seja ele mesmo o responsável
pela morte do vilão, não deixa de ser curioso como também aqui ocorre um re-
cuo do herói no momento do desfecho. É como se a luta e o assassinato do vilão
tivessem sido uma atitude extrema, exigida por motivos igualmente extremos
ligados à honra feminina e familiar: a morte da irmã e o rapto da noiva. Uma vez
defendida a honra, nada há mais que justifique o envolvimento direto do he-
rói. Talvez até porque, devido à bravura de sua façanha, ele tenha conquistado
outro status, que o torna mais prestigiado e superior aos embates diretos com
bandidos. Outro passa a assumir tal função, mas só depois da desistência do
herói, que dessa forma não deixa de demonstrar domínio sobre as decisões lo-
cais, com uma autoridade que prescinde do uso de armas. Mesmo em Jurando
vingar, portanto, que a princípio poderia ser visto como uma exceção, ao lado
de João da Matta, acaba por se observar o recuo do herói, surgindo novamente
a figura do “protagonista passivo”.
O que está implicado nesse mecanismo recorrente encontrado em filmes si-
lenciosos brasileiros? É uma dificuldade na incorporação do modelo? Seria, para
fazer alusão aos termos de Paulo Emilio, uma incompetência no processo de co-

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viagem ao cinema silencioso do brasil

piar 10? A recorrência de um mesmo procedimento, que se observa em produções


mineiras, paulistas, pernambucanas, cujos realizadores muito provavelmente
não assistiram aos filmes uns dos outros, estimula a fazer especulações.
Penso que, ao contrário do que ocorre em David, o caçula, em Tesouro perdido
e outros filmes silenciosos brasileiros o que importa não é tanto a construção
do herói e sim a afirmação do senhor. As categorias de senhor e escravo, pro-
fundamente enraizadas na mentalidade brasileira, impõem outros valores e ou-
tras dinâmicas às categorias consolidadas pelo cinema norte-americano. Na vida
brasileira e na sua representação em filmes silenciosos nacionais, uma categoria
ainda mais elevada que a de herói seria a categoria de senhor. Seria esse o papel
a ser conquistado ou reafirmado pelo protagonista.
As consequências devastadoras da herança dos valores forjados pela escra-
vidão já são apontadas com precisão por Joaquim Nabuco em O Abolicionismo
(1883), como salienta o historiador Evaldo Cabral de Mello ao resumir as refle-
xões do estadista:

Havendo envenenado a existência nacional, a escravidão, mesmo des-


truída como instituição, ainda se faria sentir duradouramente, planando
ainda por muito tempo como uma ave de rapina sobre o futuro do país,
especialmente sob a forma do estigma lançado sobre o trabalho [...] Sendo
“a massa da população brasileira composta de descendentes ou de senho-
res ou de escravos”, ela “tem os vícios combinados dos dois tipos”, os quais,
aliás, “formam um só porque em geral o escravo é um senhor a quem só
falta o escravo e o senhor é um escravo a quem só falta o dono”. Daí que
seria “ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a
lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro”, mediante um esforço
coletivo pelo qual o Brasil faria sua educação para a liberdade 11.

A mentalidade escravocrata e seus rebatimentos no campo artístico embasam


dois artigos de fundamental contribuição para as reflexões aqui propostas. Ao
tratar das relações entre O cortiço (1890), de Arthur Azevedo, e o romance francês
L’assommoir (1877), de Émile Zola, que lhe serviu de inspiração, Antonio Candido
estrutura sua análise a partir de um dito popular no Rio de Janeiro no final do
século XIX: “Para o português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para
vestir, pau para trabalhar” 12. Conclui que a frase equipara o homem ao animal,

10 Paulo Emilio Salles Gomes refere-se a “nossa incompetência criativa em copiar”. IN: Cinema: trajetó-
ria no subdesenvolvimento. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.88.
11 MELLO, Evaldo Cabral de. “Prefácio”. IN: NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro: Topbooks, p.44.
12 CANDIDO, Antonio. “De cortiço a cortiço”. IN: O discurso e a cidade. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/

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sobre gênero no cinema silencioso

mas não o homem em sua universalidade e sim o homem=trabalhador. Aos olhos


do brasileiro livre, existiria uma espécie de animalização do português trabalha-
dor, que se nivelaria assim ao burro e ao escravo. Quem enunciava o dito popular,
sentia-se confirmado em sua superioridade:

Essa gente era cônscia de ser branca, brasileira e livre, três categorias bem
relativas, que por isso mesmo precisavam ser afirmadas com ênfase para
abafar as dúvidas num país onde as posições eram tão recentes quanto a
própria nacionalidade, onde a brancura era o que ainda é (uma convenção
escorada na cooptação do ‘homens bons’), onde a liberdade era uma for-
ma disfarçada de dependência.

As marcas da herança escravocrata em filmes silenciosos brasileiros são abor-


dadas por Arthur Autran ao comentar o tratamento dado a personagens negros,
com destaque para Gerôncio, o jardineiro de A filha do advogado 13. Para Autran, a
atuação de Ferreira Castro, a mais exagerada em esgares faciais, gestos e compor-
tamentos, tem por função criar uma imagem animalizada do personagem negro.
Como se não bastasse ser caracterizado também como ganancioso, covarde e mís-
tico, Gerôncio é quase sempre visto trabalhando – e seu trabalho é braçal. “Aqui
temos um reflexo evidente do preconceito que se formou ao longo da escravidão
contra o trabalho braçal, visto como destinado para os inferiores”, escreve Autran.
A meu ver, é precisamente a dialética entre senhor e escravo, bem assentada
no preconceito em relação ao trabalho braçal, que está na base da dissociação
entre galã e herói, presente em filmes silenciosos brasileiros, nos quais se im-
põem os desdobramentos da “lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro”.
Nos desenlaces, não espanta, portanto, que outros façam o trabalho justiceiro
pelo galã – afinal, ele é o senhor que, ao contrário do escravo, não precisa se sub-
meter ao trabalho para se mostrar valoroso. Outros devem fazer o serviço que
irá beneficiá-lo. As vantagens que resultam desse trabalho justiceiro (seja esse
trabalho realizado pelo herói ou pelo vilão) serão usufruídas sem pudores pelo
protagonista/senhor, merecedor de todas essas vantagens não pela ação, mas
por sua própria condição.
Não deve ser coincidência que um dos poucos exemplos de protagonista ativo
é o de João da Matta, que não deseja ascender à categoria de senhor. Ao contrário,
empenha-se em desarticular o poder do senhor de terras local, explorador e tirâ-
nico. Exemplo também dos mais interessantes vem da produção pernambucana

Ouro Sobre Azul, 2004, p.112-3. A citação seguinte é desse artigo.


13 AUTRAN, Arthur. “O personagem negro no cinema silencioso brasileiro: estudo de caso sobre A filha do advogado”. Sessões do Imaginário, v. 7, n. 07, Porto Alegre,
,
2001 p. 05-09
. A citação seguinte é desse artigo.

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viagem ao cinema silencioso do brasil

Revezes... (Chagas Ribeiro, 1927). O vilão é um coronel déspota, cujos “contínuos


feitos de desumanidade” tornaram sua propriedade conhecida como Fazenda dos
Suplícios. Quando seu filho mata um jovem vaqueiro, na disputa pelo amor de
uma moça, o coronel é enfrentado não por algum protagonista heroico, mas por
empregados da fazenda, que invadem a casa-grande, dão uma surra no patrão e
o expulsam das terras. Ele termina seus dias paralítico, morando em uma caba-
na miserável e vivendo de esmolas. Aqui se observa um raro desenlace no pano-
rama acentuadamente conservador do cinema silencioso brasileiro, não só pela
destituição do vilão senhor quanto por representar uma revolta coletiva, da classe
popular, contra uma situação de exploração econômica. Em contrapartida, o de-
senlace amoroso acaba por imprimir um tom conformista e mesmo lúgubre à últi-
ma sequência: o “final feliz” é a união dos espíritos do jovem assassinado e de sua
namorada que morre por amor, em espectros superpostos à imagem dos pais que
rezam ao lado da sepultura dos filhos. A força dramática e ideológica do confronto
dos vaqueiros com o senhor das terras fica de certa forma amortizada pelos tradi-
cionais valores religiosos que se impõem nos momentos finais. Ao conflito direto
com o senhor, se sucede o recuo a uma postura resignada e passiva.
O desenlace de Revezes... só vem reforçar a complexidade que rege as con-
cepções dos papéis do senhor e do escravo, com suas modulações e ambivalên-
cias. Nos filmes em que as figuras do galã e do herói se dissociam, o alheamento
do protagonista em relação à ação não deixa de comprometer seu estatuto de
senhor. A passividade do protagonista o enfraquece dramaticamente, como no
caso de Braulio em Tesouro perdido. Em compensação, sua força física e correção
moral são dadas desde o início, já estão reconhecidas de antemão, talvez como
justificativa para o fato de não precisar agir para ser reconhecido – ao contrário
do que acontece, por exemplo, com David no filme de Henry King. Quando os
galãs trocam socos com os vilões ou quando empreendem investigações de curto
fôlego, é mais um mecanismo de exibicionismo (do personagem, do filme) do
que uma necessidade dramática de afirmar as qualidades do personagem.
As brigas com socos e estrangulamentos, as investigações e estratagemas tí-
picos dos seriados, as perseguições e revelações sensacionais, os ambientes de
bares que remetem aos saloons de faroeste, a codificada caracterização de vilões
e mocinhos – esses e outros elementos constituem as “formas epidérmicas” a que
se refere Bernardet, dentro do processo de aculturação no Brasil do modelo ci-
nematográfico norte-americano. É evidente o fascínio de diretores, cinegrafistas
e atores ao conseguir reproduzir elementos do modelo de cinema que tanto ad-
miravam. Também perceptível é o distanciamento do modelo, no momento de
articular dramaticamente tais elementos.
Realizadores e filmes brasileiros, eles mesmos desprovidos de reconhecimen-
to e poder, oscilam entre o fascínio pela ação (vinculado às classes populares, ao

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sobre gênero no cinema silencioso

cinema popular americano) e o desejo de ascender a uma esfera de maior prestí-


gio e domínio. A tensão entre as categorias de senhor e escravo, tão enraizada na
vida social brasileira, penetra e contamina o embate entre herói e vilão, operan-
do um deslocamento em relação às fórmulas dramáticas e narrativas do modelo
norte-americano. A fragilidade na construção do protagonista, a separação entre
herói e galã e a eventual inconsistência dramática dos desenlaces desobedecem
aos parâmetros da matriz estrangeira, mas, por outro lado, se mostram em fina
sintonia com as tensões e ambiguidades da sociedade brasileira.

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