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Autores:
Pierre Bourdieu
e
A. Accardo, G. Balazs, S. Beaud,
E. Bourdien, P Bourgois,
S Broccolichi, P Champagne, R. Christin,
J.-P Paguei-, S. Garcia, R. Lenok
P. Oeuvrard, M. Pialonx, L. Pinto,
A. Sayail, C. Soulié, L. Wacquant

A MISÉRIA DO MUNDO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SR Brasil) Tradutores:
Mateus S. Soares Azevedo
A Miséria do mundo! sob direção de l Pierre Bordieu; com contribuições de A. Accardo... Jaime A. Clasen
et. al. I — Pctrdpo lis, RJ: Vozes, 1997. Sérgio H. de Freitas Guimarães
Título original: La mi stre du monde. Marcus Antunes Penchel
Guilherme J. de Freitas Teixeira
Vários tradutores.
Jairo Veloso Vargas
Bibliografia.
ISBN 55.326-1818-9

1.
1. Desfavorecidas socialmente — Estudo de casos 2. França Condições sociais
3. Marginalidade social — Estudo de casos 4. Pobres Estudo de casos I. Bordieu,
Pierre, 1930 — Il. Accardo, Alain.

97-1547 CDD — 305.569

Índices para catálogo sistemático:


1: Miséria`soc 61: Sociologia
2. Pobres: Sociologia
305.569
305.569
V VOZ
EDITORA
ES
Petrópolis
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' encarceramento, reinserção, etc.), sendo que as competências de cada categoria que conhecem resultam de diferentes fatores. Até mesmo no que se refere exclu ;,,
de atores são juridicamente fixadas e hierarquizadas. Se nos limitarmos à ação sivamente à corporação dos magistrados, é claro que essa função remete a situa-
penal, o papel predominante é desempenhado pelos magistrados: não só detêm o ções contrastantes, cuja percepção habitual apenas considera as mais extremas:
monopólio de tudo o que é propriamente da alçada da atividade judiciária (opor- "baixa" e "alta" magistratura. Será que o "declínio da magistratura" diz respeito
tunidade das diligências, julgamento), mas sua autoridade se exerce sobre as ou- • a essas duas categorias de magistrados? Desde os anos 50, o modo de recrutamen-
iras corporações — o ministério público ou os juízes de instrução dirigem os • ="" to da corporação modificou-se e abriu-se para categorias que, até então, pareciam
inquéritos que são feitos diretamente pelos policiais civis ou militares; o juiz da não poder ter acesso a ela, principalmente os jovens oriundos de famílias dos
• execução de penas tem toda a autoridade para fixar as condições da aplicação das escalões inferiores da função pública. Ora, tudo indica que, segundo a origem
condenações, etc. Essa preeminência dos magistrados é inseparavelmente jurídi- social, há diferenças na carreira dos juizes, de tal modo que o que é percebido
ca e social. Com efeito, os. juízes são, globalmente, de origem social mais elevada como um declínio soei aiRoderia ser muito simplesmente o sinal da diversificação
do que os delegados, os diretores de prisão e, ainda mais, os oficiais da polícia crescente da corporaçã
militar; ora, esta superioridade social (sentida profundamente por alguns como
"arrogância") é acompanhada por um ascendente cultural que, entre outras coisas, O crescimento bastante relativo — das diferenSas sociais entre categorias de
comprova seu melhor sucesso escolar. magistrados e, portanto, dauieterogeneidade da corporaçãtem a ver, _por um
lado, com a regressão de um modo de recrutamento em que o fato de fazer parte
Portanto, não é por acaso que, tratando-se da magistratura, falamos de sua de uma família de juristas desempenhava um grãnde papW tal regressão parece
"decadência social", expressão que remete à vertente descendente em ge, ter atingido menos a "alta" do que a "baixa" magistratura'. A uniformização da
tamente, está caindo no espaço social ("juízes de pouca estatura", "um oficiozi- formação, graças à criação, no final dos anos 50, de uma Ecole nationale de ma-
nho para gente sem importância") e, simultaneamente, à "deliqüescência" de seus çt-', gistrature (o Centre national d'études judiciaires) que substituiu os concursos
poderes ("perda de independência", "miséria material", "juízes para todo o servi- . locais dominados pelo corporativismo, não atenuou os efeitos da elevação da
ço")3 _ Em relação aos policiais civis ou militares, o que é apontado é menos a
heteroge neidade social
social do recrutamento'. Pelo contrário, levando em conside-
_posição social do que sua imagem, na maior parte das vezes, desfavorável: os - ração um recrutamento relativamente maciço de magistrados a partir dos anos 70,
primeiros, por sua corrupção ou falta de tino; os segundos, por suas "grosserias". graças ao crescimento do número de cargos colocados em concurso, mas também
Quanto aos guardas de prisão, trata-se sobretudo de suas condições de trabalho: 3i aos procedimentos de recrutamento paralelo (concurso interno e integração com
por vezes, são assimilados —e assimilam-se a si mesmos— à população que está base nos títulos) a diferenciação social da corporação amplificou-se. Além disso,
;.
sob sua vigilância: quando estão em serviço, afirmam estar em "detenção". esse rápido crescimento do número de magistrados (no espaço de 20 anos, 40%
Se, pelo menos na ordem das representações, a crise da justiça é identificada 14 da corporação foi renovada) teve como efeito reduzir bastante as perspectivas de
à crise dos magistrados,6porque a595e£e com CO Ora -:1 5eS lle promoção, sobretudo para as jovens gerações. De tal modo que a concorrência no'
dominam determinado setor da atividade social — estes podem impor a todos a seio da corporação acentuou-se consideravelmente; além disso, se a esses fatbfel
definição de seu mal-estar. E pela natureza de sua posição dominante na ordem de tensão acrescentarmos, a degradação efetiva das condições de trabalho, ogè-
social, estão em condições de converter seus problemas, ligados empane à sua cial mente pela multiplicação e transformação dos contenciosos (fala-se de."ex-
. origem • social sua "independência" ou "poder" — em problemas gerais, "a crise cesso de trabalho feito às pressas"), estão reunidos, efetivamente, todos os
da--•lei", ou em problemas de sociedade, "o crescimento da insegurança", etc. ingredientes de urna "crise". Mas será que se trata de uma única crise? E será que
afetou, da mesma forma, o conjunto dos magistrados?
A utilização de denominações tão genéricas leva a omitir que os atores da '-;„,"
manutenção da ordem são bastante diversificados e que as crises ou dificuldades

Para uma análise mais minuciosa, cf. 1.-L. Bodiguel. La magisirature. mi carps sonsárne4P:aris• PU1 1991.
R. Lenoi r. "Les agents du maintien de l'ordre:contribution à Ia construction soí:iate de res ace "udieiaire". es a nurables au Paris, POP'. 1982.
in Les Cahierx de ii.ecierité inferieure, IHES• ! S Sobre esse ponto, cf. J.-P. Ro er, R. Martina e & P. Lecoc
i-U4Cio t rançaise, n2 10. agosto-outubro de 1992, aucreíson, junho de 1991.
p, 149-178. " 6 Cf. A. Bancaud, La haure magistrature judicialre entre_politique er sacerdoce, v
,_
ote_prafe sk)j,_.
, inelle", in Acres
)Cf. A. Boigeol. "La formation des magistrais: de l'apprentissage sur te tas àag_
3. Cf. entre outros, J.-C, Soyer, Justice en parlition. Paris, Mon, 1982.
2 de la recherrhe en sciences sociales. 76 -77. março de 1989, p. 49 -64.

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,
A passagem obrigatória por uma escola especializaspôs o reconhe- (multiplicação e complexidade de procedimentos, contenciosos cada vez menos
imento dos critérios propriamente escolares (em particular, a classificação no "nobres", etc.) ou ainda dos efeitos do poder hierárquico sobre agentes cuja posi-
Srmino dos estudos) permitindo que os magistrados tenham a possibilidade de se ção social depende, cada vez mais exclusivamente, de sua atividade profissional.
valiarem uns aos outros, de tal modo lie a le atmidade das nomes õesepra- Existe, porém, unia outra dimensão que, embora evocada, é quase sempre
noções é mais facilmente controlável e suscetível de ser contestada. E, de fato, ignorada, exceto em período de crise aguda: tudo o que se relaciona coma rede-
al legitimidade é, cada vez mais, controversa porque as fronteiras entre "baixa" _ finição da divisão do trabalho entre as profissões e as incessantes lutas que estas
"alta" magistratura estão mais embaralhadas do que no século XIX: os "juízes travam para manter e estender sua alçada, o que não é estranho aos mal-estares
e paz", a quem era exigido somente "ter bom senso" e "senso de eqüidade", que venham a sentir. Nesse aspecto, o universo das profissões jurídicas é também
TniiiniCOno única ambição ser "notáveis" em sua terra; aliás, faziam tudo para exemplar. Com efeito, a p reeminênciad~istratura é questionada em seu mo-
áo a d;ii(íiirri. Já não é o que se passa, atuaniei
riinraças ao desenvolvimento nopólio para afirmar o direito: em primeiro lugar, pelos outros atores do meio
o sistema escolar e do modo de recrutamento por concurso, o mercado dos títu- judiciário, emparticular os policiais civis e, em menor medida, os policiais mili-
)s e o âmbito das carreiras estenderam-se ao conjunto do território nacional. No tares, que colocam em questão a função de direção de inquérito a cargo do Minis-
-tomento em que praticamente dois terços dos magistrados são oriundos de famílias tério Público e dos juízes de instrução; em seguida, jelas outras profissões
e executivos de classe A ou de profissionais liberais, nem todos têm possibilidade jurídicas (advogados, mas também conselhos jurídicos, etc.) e pelas múltiplas
e fazer uma carreira profissional correspondente às aspirações tradicionalmente instâncias administrativas que, fora dos tribunais administrativos e do Conselho
ssociadas a seus títulos. de Estado, estão dotadas de poderes quase jurisdicionais Çalfãndegas, impostos,
Quer dizer que, entre os próprios magistrados, não existe um, mas vários etc.).
tal-estares, cujo fundamento varia conforme esteja relacionado com a"alta" ou Na maior parte das vezes, esse fenômeno é relacionado com o desenvolvimento
"baixa" magistratura. N _o que diz respeito à alta magistratura — que é uma ver- da atividade estatal, com a complexidade dos contenciosos-{necessidade de recorrer
adeira "corporação na corporação" — o mal-estar resulta, principalmente, das a "especialistas") e com a multiplicação dos recursos eni-jristiça que, doravante,
Ilações que ela mantém com os membros das outras grandes corporações juris- superam as capacidades de tratamento dos tribunais. No entanto, esses diferentes
icionais do Estado. Com efeito, estas últimas ostentam um trunfo que se tomou fatores não teriam tanto efeito se as bases sociais da supr =emacia dos magistrados
ecisivo desde o desenvolvimento da atividade estatal após a guerra, a saber, a não tivessem sido alteradas. Se nos limitarmos unicamente à atividade penal, ob-
articipação direta do exercício do poder político; ora, a participação da "alta" servamos que uma parte crescente dos delegados de polícia e, em menor medida,
fagistratura não se faz no mesmo grau. Tal situação dá às outras corporações uma dos oficiais da polícia militar, apresenta características, simultaneamente, sociais,
antagem deter minantepara o controle das instâncias, cada vez mais numerosas, culturais e escolares, semelhantes às dos magistrados. Essas novas gerações de
ue colaboram na manutenção da ordem social. Assim, a multiplicação das "co- polícia judiciária estão, assim, mais bem armadas do que as antigas para reclamar
fissões" presididas, muitas vezes, por um membro de uma jurisdição adminis- o que constitui um dos Vieres essenciais da magistratura, ou seja, a direção dos
ativa e que incide diretamente sobre o que é da alçada da instância judiciária inquéritos. A essa ofensiva, sobretudo policial, a maior parte dos magistrados
anfirma o declínio relativo dos hierarcas da magistratura. De forma geral, a po- opõe objeções de princípio cale dissimulam dificilmente — considerando sua ati-
ção destes últimos declinou no campo da classe dominante em decorrência da vidade, efetivamente, reduzida na matéria — o fundamento social de suas prerro-
;tensão de outras profissões, talvez menos no próprio setor público (embora, gativas. Essas lutas de poder e pelo poder podem chegar ao ponto de conflitos,
Jravante, as funções com bom retorno sejam preponderantes) do que abertos que revelam as diferenças de classe — tanto é verdade que a manutenção
a setor privado, especialmente em tudo o que participa da economia e comunI- da ordem pública é sempre um dos componentes da manutenção da própria ordem
içá° — universo tradicionalmente estranho ao dos juízes. social.
Quanto à "baixa magistratura" (fala-se de "juízes de base"), seu "mal-estar" Essas lutas, porém, são de todos os instantes e em todos os planos, entre
devido também ao rebaixamento de seupoder em relação aos outros agentes ttelsammeites (em particular, entre polícias civil e militar) mas também
ae representam a autoridade pública (em particular, os presidentes das regiões dfferer
erioriciseaclaswrae a- l(cf., por exemplo, a "guerra das polícias")221e,
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...

Inunistrativas e respectivos órgãos de governo). No entanto, resulta sobretudo aliás, acaba por ref=22~ninen t e dos magistrados. Além disso, ou-
fatores internos, quer se trate da degradação de suas condições de trabalho tras clivagens
• foram at arecendo. Por exemplo, a postura dos delegados em rala-
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:ão à supremacia do poder judiciário varia segundo a maneira de ter acesso a tal
Unção (já ter exercido ou não unia função na polícia). Ora, o modo de formação
los delegados constitui um pretexto para lutas até mesmo no interior dessa cor-
Remi Lenoir
:oração, entre os "antigos" que defendem a aprendizagem no exercício da função,
: os "jovens" que reivindicam a competência escolar, isto é, sua própria maneira Mulher e policial
le ter chegado ao que são. Tais diferenças também têm seus fundamentos sociais.
\s clivagens de classe deixaram de abranger unicamente as divisões funcionais
lo trabalho de manutenção da ordem para permearem, doravante, as diferentes
:orporações. De tal modo que, nesse como em outros campos — particularmente nas
'orças armadas as lutas entre corporações e no interior de cada corporação deixaram
le estar relacionadas unicamente com conflitos de classe para serem consideradas.
.orno lutas até mesmo no interior de cada classe; quanto aos cargos mais elevados, Agnès tem 24 anos. É filha única. Terminou o curso da École supérieure des
rata-se de lutas entre os diferentes segmentos da classe dominante. inspecteurs dela palite nationale. Entrou nessa escola por concurso depois de ter
": conseguido passar no vestibular. É originária de unia cidadezinha do Sudoeste.
‘,s7 Travei conhecimento com Agnès há três anos, quando eu estava começando um
• estudo sobre a reforma da instrução p -enal.
Se é difícil obter dos policiais afirmações que escapem um pouco às diretrizes
• da hierarquia ou das instruções das organizações sindicais, é menos a conseqüên- 1
, cia do fato de fazer parte de uma corporação —como acontece com os policiais
• militares ou magistrados —do que uma espécie de desconfiança quase instituída
• em relação a tudo o que é estranho ("ao serviço"). Essa espécie de suspeição,
transmutada em virtude profissional — a "vigilância" — é reforçada, diferen-
temente de outras profissões, em que a reserva, o segredo, o anonimato, etc.,
constituem também atributos de função, pela preocupação constante em retificar,
em relação ao "exterior", uma representação depreciativa da corporação. Tal ob-
sessão da "má imagem" da policia manifesta-se de maneiras diversas segundo as
funções e os cargos: no que diz respeito aos superiores, vai da hipercorreção ju-
rídica à impecabilidade lingüística, passando pelo discurso formal burocrático;
quanto aos subordinados, vai do constrangimento paralisante a uma tagarelice
fanfarrona.
Além disso, os profissionais do interrogatório, sempre na defensiva, detêm,
simultaneamente, o projeto e os meios de controlar a situação de inquérito, de
tentar obter o domínio da definição dos problemas e usar todos os subterfúgios
habituais: segredo, itens específicos, conivências superficiais e falsas confidên-
cias, etc.
O problema se coloca menos com os que ainda não estão totalmente identi-
ficados com a função e instituição. É, particularmente, o caso das mulheres; ainda
hoje, estão reduzidas a um pequeno número e são ainda mais relegadas a tarefas
percebidas como "femininas" pois esse universo masculino institui a "virilidade"
e tudo o que lhe está associado como qualidades profissionais. Daí, sem dúvida,

72 .1,

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