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NATURALISMO COSMOPOLITA.

JORDI SOCÍAS

Diz que não percebe nada de câmaras fotográficas. Utiliza a mão como se fosse
um fotómetro infalível e mede a luz fazendo-a girar entre as sombras. Parece
lógico para quem defende a ideia de que os fotógrafos escrevem com esse
elemento, que para ele ainda é um milagre quase quimérico, também porque
nunca sabe por onde é que o vai surpreender. Assegura que, ao olhar para os
álbuns de fotografias de família, muitas vezes descobriu grandes colegas
anónimos.
Anda com uma pasta de cabedal castanho, um bocado gasta pelo uso, que até já
adquiriu uma certa escoliose por causa do peso não muito exagerado mas
constante das coisas que habitam lá dentro: uma câmara velha, uns quantos
rolos, óculos de ver ao perto, esferográficas, um bloco e a «sandocha» da
manhã. Muitas vezes substitui isso tudo – menos o lanchezinho, claro – por
uma Olympus muito diminuta com a qual muitos de nós o vimos tirar
fotografias que depois aparecem a duas páginas.
A verdade é que Jordi Socías é um ser a quem o artifício causa repulsa, e que
não perde muito tempo com parafernálias. Um fotógrafo singular, com estatuto
próprio, que procura nos ricos e diversos mundos retratados o naturalismo que
o aproxima sempre com uma fidelidade absoluta a tudo o que se enfrenta à sua
teimosa forma cosmopolita de ver a vida. Foi autodidacta, foi aprendendo entre
as estocadas e o perfume da vida. Por isso, nas suas fotografias os envoltórios
não são relevantes, predominando as límpidas imagens da sua própria verdade.
É frontal, mesmo quando admite que em cada uma das suas composições há
uma intenção subjectiva, uma representação, um pequeno cenário da vida real,
mas real sempre de acordo com a sua própria intervenção. Joga sem batota, joga
limpo e nessa vocação, lavrada através dos seus próprios méritos, há um
cruzamento tão heterogéneo e diverso como rico, tão natural como excessivo,
em que se encontram os recantos doces daquilo a que ele denomina “momentos
encontrados”, com fotografias que têm cheiro; uma predilecção pelo retrato de
todo o tipo de artistas e que provém da sua admiração obsessiva por qualquer
manifestação de talento; quadros de mulheres em todas e em cada uma das
etapas da sua vida porque, embora viva só e coma em restaurantes, reconheceu
sempre ser guiado pelos sentidos femininos: comprometimento político
permanente e surrealismo militante, além de um gosto pelo sentido absurdo da
vida, mas sempre unido a uma procura da naturalidade permanente, que
resulta de uma infância pegada às calçadas dos passeios, da que nunca soube
nem quis escapar, negando-se mesmo a dedicar mais de três dias seguidos a
uma escapadela pelo campo.
Jamais suspeitou que acabaria colado a uma câmara fotográfica quando
decorriam os dias da sua infância, como numa novela neo-realista italiana no
bairro da Sagrada Família, em Barcelona. Ali nasceu em Fevereiro de 1945, “o
ano do fim da Segunda Guerra Mundial”, diz ele, para que não se perdesse a
referência aos grandes acontecimentos que mais tarde tanto gostou de congelar
num papel. A rua Mallorca era um ninho de famílias de trabalhadores e de
artesãos, em que era costume trazer na testa o sinal do grupo perdedor. “Não
sei por quê e ninguém falava disso, mas claramente sabíamos que o éramos”,
recorda agora. Esse sentimento era provocado por uma infância com carências,
até certo ponto adoçada pelo facto de ser o filho mais novo numa casa de quatro
irmãos – Feli, Enrique, Antonia e ele – cuja cabeça de família era o pai, da
Esquerra Republicana, quem, numa das vezes em que saiu da prisão Modelo,
depois de ter passado pelo exílio e por algum campo de concentração em
França, deixa Felisa, a sua mulher, grávida de Jordi. “Sim. Como de penalti,
mais ou menos, apesar de eu ter a teoria de que todos nascemos assim, de
penalti”.
Foi um «puto» do seu bairro e ali, entre os passeios que não podia atravessar
para não ser atropelado pelos eléctricos, aprendeu a desenrascar-se através da
ciência da vida e das aulas que recebia no colégio Ramon Llull. “Qualquer
desculpa era boa para ir para a rua, eu gostava de ir comprar pão, leite e natas,
buscar gelo à fábrica. Era uma época sem frigoríficos nem televisão”. Com o
estrondo da vida à sua volta e o silêncio uniforme da vergonha que se tem ao
sentir-se oprimido, algo que se adivinhava na tristeza da derrota que o seu pai
trazia selada na cara, e que no menino Jordi, com oito ou nove anos de idade,
lhe imprimiu um carácter rebelde.
Esse traço, longe de se diluir na persistente e suja quotidianeidade da Espanha
nacional e católica, fortaleceu-se com uma experiência traumática no internato
da Universidade Laboral Francisco Franco, em Tarragona. “Meteram-me ali com
uma bolsa porque os meus pais pensavam que seria bom para o meu futuro.
Todos os dias hasteávamos e baixávamos a bandeira com a cara virada para o
sol, e conservámos o tique de cuspir logo a seguir. Não sabia porque é que o
fazia, mas nessa altura já estava claro para mim que aquele não era o meu
mundo”.
Era a única oportunidade que os seus pais viram para ele poder estudar, mas
uma denúncia deitou tudo por terra… Ou o salvou, depende, porque quem
sabe se Jordi Socías teria sido a mesma pessoa que é hoje se tivesse continuado
naquele recolhimento. O caso foi que um miúdo do seu bairro, e ele próprio,
denunciaram don Mariano “o educador”, como lhe chamavam, uma vez que
tinha o costume pouco saudável de os instruir todas as noites com abusos
sexuais à discrição. “Contámos ao director e o que é que aconteceu?...
Aconteceu que nos expulsaram”.
Pelo menos livrou-se daquilo tudo e ficou contente por voltar ao seu bairro e à
sua casa, apesar de que para o seu pai o sucedido significava uma decepção,
pois via que se escapava a possibilidade de chegar a ser uma coisa mais digna,
no seu entender, como se a vida heróica de perdedor silencioso num país
governado por ratazanas, não o fosse já.
Voltou para a escola e Don Enrique, o seu pai, não o queria ver a trabalhar, coisa
que fez às escondidas, pois já se sentia atraído pela ideia de experimentar ter
responsabilidades, e teve-as como aprendiz numa oficina de moldes para
frigoríficos onde trabalhava o seu irmão. “Um dia o meu pai viu-me as mãos
com calos e descobriu”.
Da clandestinidade infralaboral em família passou a meter-se em mais ofícios.
Em todos acabou despedido. Se não era por entornar latas de tinta enquanto
fazia algum recado, era porque se punha a ouvir Elvis Presley às escondidas
durante a Semana Santa. “Eu era traquinas”, assegura. Mas o que eu mais
gostava era de passar a tarde no cinema Versalles, com sessão dupla e um
espectáculo de Variedades, ou então no bar com o mesmo nome, entre tertúlias
cheias de vapor, cigarros e café com leite.
“Era a desgraça da família”, confessa. Mas aparece sempre uma última
oportunidade: foi na relojoaria onde trabalhava uma amiga da sua irmã.
“Sobretudo, não me deixes ficar mal vista”, foi o recado que lhe deu. E assim
foi: para Jordi isso de começar a lidar com o tempo, o que depois foi uma das
constantes da sua fotografia, serenou-o.
Aprendeu a arranjar relógios de parede, carrilhões, despertadores e tirava boas
gorjetas quando ia fazer reparações ao domicílio. Talvez nessas visitas se tenha
ido formando o espírito curioso, de espião e de «mirone», que deve estar
associado a um fotógrafo. Da Portusach, assim se chamava a relojoaria, passou
para outra para preservar o que ele via como sendo uma profissão. Estávamos
já nos anos sessenta, Jordi tinha superado a idade do armário na rua e nos
vários ofícios, e começava a adquirir esse porte de Senhor da Rua, com um certo
ar de Joe Pesci quando faz papéis de bom. Em cada passo iam-se descobrindo
mundos que acabariam por o fascinar durante toda a sua vida. No seu novo
trabalho, em conjunto com o seu chefe, Joan Aleart, entrou em França. Primeiro
entrou na canção de Brel, Aznavour, Brassens. “Descobri que se podiam dizer
coisas a cantar. Para mim foi o primeiro grande choque cultural da minha vida.
Devo muitíssimo àquele homem”, diz. Pela pequena relojoaria passava todo o
tipo de gente e formavam-se tertúlias ou fazia-se escola, porque um vendedor
ambulante, após tê-lo conhecido e ter percebido que ele era um espertalhão,
propôs-lhe ficar rico a vender relógios Duward por toda a Catalunha. Foi numa
biscooter em terceira mão que ele foi às Fallas de Valência e viajou até à fronteira
francesa, e da movilette passou para o seu primeiro SEAT 600, um verdadeiro
símbolo de poder. “Cheguei a fazer 2.000 quilómetros por mês, sem horários e
de pensão em pensão. Foi assim que conheci o país inteiro”. Observando,
devagar, cravando o olhar enquanto passeia, tal como hoje, quando, para ir
trabalhar, prefere meter-se nos engarrafamentos no centro da cidade do que na
M-30: “É que na M-30 é absurdo metermo-nos porque não se vê ninguém”,
responde quando alguém lhe pede para acelerar. A ele não lhe convencem os
ritmos desenfreados. As pressas são uma perda de tempo porque, com isso,
pode passar ao lado da fotografia da sua vida. Foi uma coisa que aprendeu ao
deleitar-se numa tranquilidade surpreendente, filosófica. Naquele tempo, os
anos sessenta em Barcelona, ainda não tinha chegado o dia em que Jordi Socías
pegaria numa máquina fotográfica, mas recorda essa época como sendo
gloriosa. Uma personagem chave para ele andava todas as tardes pelo café
Versalles: Narciso Irizar, aliás Siso. Tinha uma presença taciturna e lia Nietzsche
e Lucaks. “Não parava de lhe pagar os cafés, ele foi a minha iniciação à leitura e
ao cinema”. Eram os dias em que Jordi misturava os ponteiros dos seus relógios
com as grandes ideias: “O tempo da utopia”, em resumo.
Não tinha tirado uma única fotografia, mas naqueles anos já estavam marcados
os pilares desse naturalismo que nunca o abandonou, e começavam a construir-
se os do outro traço fundamental na sua forma de ver a arte, um
cosmopolitismo aberto e decididamente curioso que o levou a perscrutar os
olhares das grandes personagens da cultura, da arte, da política e da
modernidade, fiel aos ares e às vanguardas que nunca passaram em vão à
frente do seu nariz.
Foi viver com Siso e entrou pela sua mão no PSUC. Iniciou-se no marxismo e
foi-se tornando agitador autodidacta, sem pressa mas sem tréguas. Era
economicamente independente e alheio ao mundo estudantil que, em muitos
casos, vivia às custas da família, coisa habitual nos círculos da política
clandestina. “Fui uma espécie de mecenas”, recorda. Um bicho raro, alheio ao
franquismo sociológico, que, com um carro próprio e 150.000 pesetas das de
então por mês, não se conformava com o que o rodeava nem acatava a verdade
absoluta do hediondo regime. Menos ainda quando parou para fazer uma tropa
absurda, só aliviada pelo facto de a ter feito num quartel próximo da fábrica da
ColaCao, pois de aí vinha um constante cheiro a chocolate que adoçava a sua
tarefa: dar de comer a 12 cavalos e a 250 porcos que estavam a cargo de um
coronel.
A política abriu-lhe os olhos com velocidades astronómicas e dedicava-se sem
parar à agitação e à propaganda. O seu aspecto de homem de posses e alguns
sinais externos tornavam-no muito pouco suspeito, e proporcionavam-lhe um
disfarce fantástico. Alternava as namoraditas com a leitura aplicada de Sartre e
Simone de Beauvoir, Marx e Engels, Schopenhauer. “Eu passei do terceiro ano
de filosofia do liceu aos livros em francês”, afirma, consciente de ter dado um
salto que o fez crescer por vontade própria, tal como se forjam os autodidactas
de raça. Desde então, nunca mais deixou de ler. “A fotografia exige formação e
capacidade. É uma parte da cultura e, como tal, alimenta-se das outras artes e
do olhar, uma coisa que neste país ninguém nos ensina a desenvolver”, diz.
Também a sua namorada de então, María Ángeles Martí Alegret, o animava na
questão do comprometimento. Nem o facto de terem sido apanhados na
fronteira com o porta-bagagem do Seat 600 cheio de livros suspeitos trazidos de
Paris – para além de um vírus que o uniu sempre a uma concepção boémia da
vida e a um fascínio pelo surrealismo – lhes arruinou a estratégia mais do que
uns dias que passaram na prisão de Figueres, “isso sim, mortos de medo”. Mas
também esperançados porque aquela experiência lhes mostrou até onde se
estendiam as redes do partido.
“Logo a seguir começaram a chegar-nos caixas de bolachas e de chocolate, para
que não nos faltasse nada na prisão e pudemos comprovar o que era uma
organização que estava a par de tudo”.
Em breve o jornalismo irá irromper na sua vida, à força e pela causa. “A
prioridade era dar à manivela mas rapidamente montámos a API, Agência
Popular Informativa, e foi aí que eu entrei neste mundo”. Encarregava-se de
distribuir pelos líderes sociais, de opinião, e até por oficiais do exército, as
notícias que não apareciam nos diários da época por causa da censura. Além
disso, montavam fóruns sobre cinema. “Fazíamos proselitismo com Bergman,
Rosellini, Saura e as Nove cartas a Berta, de Martín Patino. Nessa altura, tinha
duas metas: acabar com o franquismo e dedicar-me a alguma coisa que tivesse a
ver com a cultura”.
Alguma coisa que conectasse consequentemente com um dos traços que
definem a sua visão das coisas e que hoje conserva como máxima vital, já com
sessenta anos mas sempre com o mesmo optimismo, o mesmo intacto fascínio
pelo talento dos outros e um olhar de mestre que foge da autocomplacência:
“Eu nunca estou de volta, estou de sempre de partida”. É um dos seus lemas.
Uma frase que encaixa noutro dos seus mandamentos preferidos, e que encerra
uma inquebrantável luta contra a nostalgia fundamental para compreender a
sua maneira de ver o mundo quando predica, seria: “Qualquer tempo passado
foi anterior”.
Um belo dia um caixeiro-viajante fez-lhe cair nas mãos um folheto de cursos
por correspondência. Foi assim, dessa maneira, que se meteu na fotografia.
“Comprei uma câmara fotográfica, comecei a disparar e a ver o que é que era
isso”. Mudou toda a sua vida e decidiu dar-lhe uma volta arriscada: deixou de
vender relógios e começou a colaborar com o jornal Cambio 16.
Também foi a época do TeleExpress, do Destino ou do Por Favor, onde muitos o
descobriram através dessa série de entrevistas a duas mãos feitas a personagens
fascinantes, com Martí Gómez e Josep Ramoneda, e que fizeram história.
Assim passaram três anos, de 1972 a 1975 enquanto ele se forjava um novo
ofício.
Foi a época em que retratou a Catalunha em mudança, que circulava nas feiras
e na rua, alternando momentos de vida normal com manifestações e correrias.
A das primeiras señeras (bandeiras catalãs) ao vento, de Cruyff a fazer disparar
a fantasia entre as linhas do Camp Nou, da sanduíche dos miúdos que
alimentava um futuro melhor, das visitas dos então príncipes Juan Carlos e
Sofía protegidos pela polícia – embora não tanto como hoje –, dos recitais
clandestinos da Nova Cançó, que ia alternando com os retratos de grandes
personagens como Josep Pla, Graham Greene e Carrillo no exílio, que na revista
Por Favor viu publicada uma das suas fotos históricas, na qual desejava aos
espanhóis “festas felizes” com um piscar de olhos inadiável, inevitável.
Mas Jordi, que era consciente de estar a viver um período rico e fascinante da
história de um país, queria andar para a frente e foi para Madrid porque, após a
morte de Franco, intuiu que o mundo iria girar bastante à volta dessa cidade
durante uns quantos anos. O seu olfacto não o enganou. Tanto que continua a
viver em Madrid 30 anos depois daquela decisão meio lúcida meio louca. Deixa
a mala em casa de Carlos Elordi e de Gloria Cué, companheiros do partido, e
chega sem agenda. “Conservo os números na memória porque, na
clandestinidade, se te identificassem e encontrassem uma coisa dessas muita
gente poderia cair”. No Cambio 16 começa a trabalhar como fotógrafo e editor,
uma faceta do seu trabalho sobre a qual tem autênticas teorias de mestre.
“Tornei-me editor porque nunca via as minhas fotografias bem colocadas nas
publicações, por isso decido colocá-las eu”. Desde então, essas duas vertentes
foram indissolúveis no seu trabalho até aos dias de hoje, em que as exerce como
máximo responsável máximo das fotografias publicadas na revista El País
Semanal. “A edição de uma revista é como um filme: é preciso colocar as
imagens adequadas para a poder ler. É tão importante que formata o estilo de
uma publicação”, defende Socías. “As revistas têm duas leituras, a das imagens
e a da escrita. É preciso colocá-las de uma maneira que faça o leitor reflectir. O
editor gráfico é o condutor do olhar”.
De maneira que do Seat 600 cheio de problemas na Catalunha profunda e
pujante passou a conduzir o volante dos olhares de boa parte de uma Espanha
desejosa de sair da casca podre da idiotice franquista e romper o casulo que a
levaria a tornar-se num país sério. Jordi estava no miolo da transição durante os
anos em que tudo corria mais depressa porque era preciso alcançar a máquina
de alta velocidade da história. Saía para a rua para determinar as previsões: as
primeiras eleições livres vigiadas pelo tricórnio, os comícios do PCE em que os
participantes utilizavam câmaras de Super 8. “Era fantástico porque finalmente
saíam da clandestinidade e sentiam-se livres para poder filmar-se. Tornavam-se
públicos nas suas vidas privadas”. Nas suas fotos adivinha-se o orgulho
perdido da consciência de classe de alguns manifestantes com o punho ao alto
ou a tensão das caras colectivas nos convénios, a queda dos símbolos, a
precariedade das câmaras municipais, os cães nas ruas das povoações frias e
húmidas à mercê de olhares sombrios, como se estivessem humedecidos na
espera duma mudança iminente. São fotografias nas quais nunca se omite uma
figura humana e se, por casualidade, não se encontra nenhuma alma nos seus
enquadramentos, fica presente a sua pegada, como uma aura da acção do
homem. A sua obra naqueles anos, inegavelmente obra de um repórter, é de um
profundo humanismo, o que mais tarde ele acentuará como sendo parte do seu
ideário, quase de forma inconsciente, através dos retratos que fez ao longo de
toda a sua vida.
Foge sempre da frieza dos objectos, até mesmo a fotografia do candeeiro de La
Coupole de Paris é uma reivindicação do humanismo, como se fosse uma luz
iluminando grandes tardes conquistadas ao talento; as janelas, as floreiras dos
palácios, as balaustradas, as fachadas, são signos que delatam gestos dos
homens. Nenhuma implacável manifestação da natureza aparece nas suas
fotografias, por si só, se não afectar a espécie humana. Tem mais a ver com um
impulso romântico, que foi beber de Caspar W. Friedrich, e com o qual ficou
cheio de intenções humanistas.
“Um recanto pode definir uma pessoa, e se eu os mostro é porque nalgum
momento alguém os povoou. Eu só trato de os oferecer às pessoas para que
reflictam sobre eles”.
Não cultiva a arte levianamente nem de forma afectada e, no seu início, alinha
com as preocupações de Walter Benjamin quando este defende a fotografia
como instrumento implacável de utilidade, distanciada dum fingimento
pseudoartístico, com piscadelas de olho a Brassäi. Com este, Socías coincide na
sua ideia central sobre muitas coisas da rua como grande cenário, assim como
na inocência consciente do pioneiro Atget. É a procura de uma verdade que ele
quer congelar a todo o custo, longe dos artifícios e do maniqueísmo estéril. Era
a hora da mudança para a qual era preciso estar alerta. E essa mudança era o
que Jordi captava, seguindo os passos de outros diversos grandes fotógrafos a
quem admirava, para além dos dois anteriores, e que vão desde Cartier Bresson
ao opositor confesso do grande mestre francês, William Klein, tão elogiado por
Roland Barthes, em conjunto com outros dos referenciados por Socías nessa jóia
que é “La cámara lúcida”, um dos seus manuais de cabeceira, junto a “Sobre la
fotografía” da combativa Susan Sontag.
Não permanecia nos trabalhos mais do que dois anos. Da revista Cambio 16,
onde testemunhou o encerrar de uma época, da morte de Franco às primeiras
eleições, passou para a La Calle, onde entrou com um grupo de gente da Triunfo,
ficando durante um ano e meio, até poder dar forma a um dos seus sonhos:
criar uma agência de referência tal como é a Cover. Socías experimentou,
arriscou e foi-se formando sempre com o olhar bem atento. “Neste país
ninguém ensina a olhar e para se chegar a ser um bom fotógrafo é preciso ler,
mas sobretudo, é preciso saber olhar”, repete, já então um fotógrafo completo e
cheio de intenções. Nessa altura já sabia o que fazia falta à fotografia espanhola:
modernidade. “A Cover é uma agência muito pessoal. Está inspirada sobretudo
em Mágnum e fundei-a com mais dois sócios, Aurora Fierro e Perico Moreno –
de quem fez um retrato tão inquietante que o cataloga como uma personagem
que sai dos moldes convencionais – e com fotógrafos desempregados que eu
achei que podiam contribuir com grandes coisas”.
Em Cover, Jordi empreende um fotojornalismo novo, distanciado das visões
antiquadas imperantes numa profissão que necessitava de lixívia imaginativa
para tirar nódoas. “Queríamos uma fotografia mais estruturada, utilizar a
câmara de outra maneira, manejar a grande angular como uma paleta de cores,
uma forma de expressividade. Trabalhar em cima das pessoas, tal como os
retratos de Klein na 5ª Avenida de Nova Iorque”, assegura.
O seu olhar perdia a inocência viva dos primeiros anos mas ganhava em
intenção. “Sempre que faço o meu trabalho, tento não retratar a realidade mas
sim uma parte subjectiva que eu procuro interpretar e dotar de intenção”,
sustenta.
Concebia a fotografia ainda mais como uma arma construtiva e selectiva. E foi
assim que se enfrentou a acontecimentos como o 23-F, fiel à política que, tanto
ontem como hoje, lhe continua a interessar para o seu trabalho, com retratos
que vão desde os da entrada de Pasionaria no Congresso aos de Zapatero em
funções de governante numa viagem oficial à Argélia, ou as suas fotografias de
Dominique de Villepin no seu gabinete de ministro francês dos Exteriores, em
plena crise do Iraque. Contudo, Jordi depressa se cansava de tudo depressa e
em Cover – que ainda existe – permaneceu quatro anos. Não permaneceu surdo
aos sons de uma sociedade em ebulição, em mudança radial e constante que
pedia aos gritos outros ventos, ar fresco… Movida.
É assim, com essa ânsia, que se adscreve ao insólito projecto de Madrid Me Mata
e logo depois ao El Europeo, duas revistas hoje impensáveis pela sua audácia e
voracidade, e onde vai desenvolver ao máximo outra das facetas que mais o
atraem, o namoro com as vanguardas, a prática dum certo surrealismo e
expressionismo, o sentido do absurdo ao serviço da provocação, o prazer louco
de “fazer o que te dá na gana”, essa máxima que o menino rebelde de Barcelona
continua a cultivar actualmente, ainda sem perder os traços de um teimoso
sotaque catalão, que o situam no mundo e o enraízam.
Dos campos sociais políticos passa para o mundo da cultura, desenvolvendo e
captando o seu mundo de uma forma preferencial e entrando no processo de
criação de tendências. “Foi a época da vida urbana desaforada, nas revistas não
se ofereciam coleccionáveis, ofereciam-se bebidas nos bares”, conta ele como se
fosse um episódio diferenciador de dois tempos. Se na Madrid Me Mata se
dedicava um número especial ao medo e se faziam reportagens com agências
funerárias e coveiros, na El Europeo, escolhiam-se capas com Umberto Eco,
Bertolucci, Paloma Picasso, Jasper Jones, Gades, Gorbachov ou Victorio
Gassman. Nesses anos, fez-se encaixar a vanguarda com o desaforo, não havia
limites nem ideias que pudessem roçar o ridículo. Daí provinham os retratos de
'Don Pepito', a voluptuosa carnalidade de Bridgitte. O seu estilo vai sendo cada
vez mais sofisticado, mas é curioso, milagroso mesmo, que nunca perdesse o
Norte, nunca se estatelasse no vazio, no «sem sentido», no oco. É sem dúvida a
sua etapa mais cosmopolita, e interessantíssima.
Desde então vai crescendo o seu fascínio por retratar mulheres e, coisa que
nunca o abandonou, o seu interesse pelo cinema e pelos cineastas, que
actualmente, para ser retratados, depositam nele uma confiança cega –
sobretudo elas – ao mesmo tempo que leva a cabo um dos seus sonhos
permanentes: estar perto de músicos, seres que admira de forma especial.
“Sempre me interessei por gente com algum talento, é o que mais me atrai”.
Também nunca abandona o mundo da literatura, nem o da arte, com os seus
gloriosos retratos do seu amigo Eduardo Arroyo, feito um marquês das moscas
no meio de uma rua da velha Madrid, o do sempre surpreendente Gordillo a
tomar banho numa piscina todo vestido. Com eles leva as suas experiências
vanguardistas ao limite e a sua paixão pelo surrealismo a consequências tais
que o levaram mesmo a pendurar nas paredes da sua casa Magritte e Freud
numa moldura de plástico ou a colocar André Breton na mesa da sala de estar,
coisa que Dalí, a quem retratou de forma magistral no seu retiro de Port Lligat e
no meio de uma feroz altivez, lhe teria certamente deitado em cara.
Ao cinema dedica profundamente parte da sua vida, como fotógrafo contratado
para rodagens e na revista Cinemanía, que pariu junto com Javier Angulo e
Javier Rioyo, com quem já tinha trabalhado na El Europeo. “A fotografia é
inquietante relativamente ao cinema porque este é principalmente ficção em
movimento e a foto é uma realidade parada para sempre no tempo”, diz. É daí
que passa para a El País Semanal, o lugar que fecha a sua última etapa e onde
desenvolve um trabalho que é a síntese do seu riquíssimo percurso pela vida e
pela fotografia. Já lá está há dez anos, “o lugar onde aguentei mais tempo”,
confessa. “Tenho uma liberdade de decisão que em poucos lugares consegui.
Acho que ainda lá estou porque reúne todas as características de que eu mais
gosto no meu ofício: tirar fotografias e editá-las”, comenta.
Nestes últimos anos insistiu no que mais gosta. Continuou a fazer retratos,
sobretudo, recantos insólitos, permaneceu aberto à surpresa disparando sobre
aquilo que ele define como “imagens encontradas”, que são as fotografias que
mais lhe emociona captar e nas quais se encaixa a descrição que Roland Barthes
faz: “Todas essas surpresas obedecem a um princípio de desafio (é por isso que
me resultam alheias): o fotógrafo, tal como o acrobata deve desafiar as leis das
probabilidades e até mesmo das possibilidades, no seu limite, deve desafiar as
leis do que é interessante: a fotografia torna-se surpreendente a partir do
momento em que não se sabe porque é que foi tirada”.
Nos seus retratos criou o seu próprio mundo. “É preciso captar a beleza, a
atracção. Não me refiro ao físico, o talento é beleza e as coisas mais simples são
atraentes. Todo a gente tem isso, a única coisa que varia é a quantidade”.
Trabalha-os a fundo, ouve sempre as pessoas a quem vai fotografar antes de o
fazer.
“Tento sempre tirar o melhor de quem retrato, mesmo que aquilo que fique
reflectido seja turvo”. Nunca tem pressa para acabar os retratos e, no entanto,
despacha-os de uma forma impecavelmente rápida, discreta. “Concentro-me
em dirigir sempre o seu olhar. Também sou observador e acho que tenho
intuição. O que, sim, procuro é alimentá-la e fomentá-la”. A questão é que o que
tenha lhe sirva para um ofício que ele sempre concebeu como um dádiva e não
como um castigo: “O que os outros vêem, eu vivo-o”. Embora, no seu caso, ele
pertença a essa casta de autênticos magos que nos ajudam, sobretudo ao senti-lo
e ao provocar-nos uma profunda emoção cada vez que o admiramos.
Jesús Ruiz Mantilla

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