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CAPÍTULO I

O Pecado Venial
Preconceitos grosseiros – Brado sublime dos
Suas malícias, seus efeitos e seus castigos Santos – As heroicas Catarinas de Gênova e de
Considerações e Exemplos Sena – Morrer, mas não mentir – A luz do tempo
e a luz da eternidade

Grosseiros preconceitos nós nutrimos acerca


dos pecados veniais, que muito prejudicam
nosso progresso espiritual. Persuadidos de que
seja um nadas, o cometemos todo o dia, a
toda a hora, e, direi, a quase todo os
momentos sem pensar na malícia que encerra,
nas tristes consequências que acarreta e nos
Servo de Deus, castigos que merece da Eterna Justiça. “É uma
Padre André Beltrami SDB culpa venial” – dizemos se não com palavras,
ao menos com ações – “é uma imperfeição que
“Non leve est Deum in exiguo contemnere”
se lava com um pouco de água benta, com um
(S. Hier)
Sinal da Cruz ou com uma jaculatória; não há
necessidade de atender a coisas tão mínimas e
fazermo-nos escrupulosos. Se nem temos sequer “Prefiro – exclama Santo Edmundo – lançar-me
a obrigação de confessá-lo, e não nos priva da numa fogueira ardente a cometer
graça de Deus! Pobre de mim! Se tivesse que advertidamente algum pecado contra o meu
guardar-me das mentirinhas, dos gracejos com Deus”. Este outro brado nos chega das amenas
os outros, das pequenas gulodices... não me terras da ligúria.
ficaria tempo nenhum para outra coisa. Teria
que estar continuamente a refrear-me, passaria –––––
dias tristes e correria o risco de cair em
escrúpulos e perder a cabeça.” É Santa Catarina de Gênova, que lança um
olhar sobre a imensidade azul do oceano e
Porém, não é assim que raciocinam os santos. pensa no mar de fogo que submerge os
Considerando tudo à luz divina, eles nutriram condenados do Inferno como os peixes na
um horror extremos pelo pecado venial, água; aí está como fazem os corações amantes,
fizeram-lhe gurra de morte, prontos a sofrer que veem em toda a parte os vestígios do ente
qualquer suplício a cometê-lo. Ouve o concerto amado, elevam o seu pensamento a Deus,
harmonioso que se levanta de suas vidas e que oceano de bondade, meditam sobre os
oferece esplêndida homenagem à justiça e à benefícios feitos aos homens e sobre a malícia
bondade divina,m ao passo que contrasta do pecado, e então como que despedaçados
estranhamente com a nossa vergonhosa pela dor exclamam: “Ó Deus, para fugir do
conduta. pecado, ainda mais leve, eu me lançaria num
abismo de chamas e aí ficaria por toda a
––––– eternidade antes que cometê-lo para pode daí
sair”.
ser ele mesmo o procurado e se declara pronto
––––– a acompanhá-los à corte. Os soldados porém,
possuídos de gratidão pelos benefícios
A Seráfica Virgem de Sena, Santa Catarina, recebidos, aconselharam-lhe a fuga,
saída de um ditoso êxtase, no qual havia assegurando que diriam no tribunal não tê-lo
contemplado a beleza de uma alma na graça encontrado. O santo então, recusou
de Deus e a miséria daquela que está prontamente para não dar aos soldados a
manchada de pecado, escrevia: “Se a alma, ocasião de mentirem, e corajoso se entregou
imortal por sua natureza, pudesse morrer, para ao martírio.
matá-la, bastaria o aspecto de um só pecado
venial que lhe desbotasse a beleza”. –––––

––––– O glorioso Santo Inácio de Loiola assim instruía


seus discípulos: “Quem é zeloso da pureza de
Todos sabem o que acontece àquele santo que, sua consciência, deve confundir-se na presença
condenado à morte e procurado por ordem do de Deus pelos pecados mais leves, considerando
Imperador, acolheu os soldados que o que Aquele contra qual são cometidos, é infinito
buscavam e lhes ofereceu comida e abrigo nas suas perfeições: o que os agrava de uma
durante a noite. De manhã, antes de partirem, malícia infinita”.
lhe perguntaram se por acaso tinha notícia de
um cristão que não vivia conforme às leis do –––––
Império e que por isso, havia sido condenado à
morte. O interrogado confessa ingenuamente Educado nestes santos princípios, Santo Afonso
Rodrigues fez ressoar as paredes do convento Iremos vê-los nos capítulos seguintes.
em que era porteiro com esta admirável e
heroica prece, que acha ainda eco fiel em todos
corações verdadeiramente abrasados de zelo
pela glória de Deus: “Antes sofrer, ó Senhor,
todas as penas do Inferno que cometer um só
pecado venial”.

Na história da Igreja se encontram


frequentemente almas generosas que preferem
sacrificar a própria vida, a resgatá-la a custo de
uma mentira ou de um pecado venial.

Assim pensavam e obravam os santos. Quem


tem razão, o mundo ou estes heróis,
observadores das máximas do Evangelho? Nós
que avaliamos as coisas à luz do tempo ou eles
que as consideram à luz inefável da
eternidade? Nós, que, com o curto olhar só
vemos a terra com seus bens mesquinhos ou
eles que com a pupila da águia contemplavam
os futuros gozos imortais do Céu?
CAPÍTULO II chagas, cobre-a de úlceras. Da mesma forma,
se a enfermidade não é curada, pode levar-nos
à sepultura, assim é a culpa venial, que pode
O suicídio espiritual – A lepra da alma – Celebre dispor e conduzir a alma à sua morte, isto é, ao
resposta de um santo monarca – Coragem, a tua pecado mortal. Ah! Se nós experimentássemos
doença é menos do que uma culpa venial – A os males espirituais como experimentamos os
morte, mas não o pecado temporais, se em relação à eternidade
fossemos mais sensíveis do que para com o
tempo, mudaríamos de opinião sobre a ofensa
de Deus.
O que é o pecado mortal? É a morte e a
sepultura da alma. Quem comete uma culpa Quanta solicitude pela saúde do corpo! Quanto
grave priva-se da graça santificante, mata o descuido pela saúde da alma! Logo que temos
espírito, cobre-o do véu mortuário, fecha-o um ligeiro resfriado, uma pequena febre,
num sepulcro, e se não o ressuscita com a procuramos imediatamente o médico e
Confissão, a eternidade dos tormentos cercará pedimos-lhe receitas e remédios; fazemo-nos
a alma nas chamas devoradoras. Numa palavra: dispensar a abstinência e o jejum,
o pecado mortal é o suicídio espiritual. abandonamos todo e qualquer trabalho e
abalamos meio mundo. O contrário acontece
Que é o pecado venial? É a doença da lama, é a se caímos em pecado: encolhemos os ombros,
lepra do nosso espírito, que o torna asqueroso. descansamos em uma deplorável indiferença,
O pecado venial não dá a morte à alma, não a deixando que a nossa pobre alma desfaleça,
priva da graça de Deus, mas a fere, abre-lhe sem nos importar com os remédios tão fáceis e
abundantes que o Bom Deus nos concedeu a descido do Céu e morto sobre o duro madeiro
custa do seu preciosíssimo Sangue, sobre o entre dois ladrões para expiar o pecado.
cume doloroso do Calvário.
Nos tempos da Idade Média era muito comum
––––– nos países da Europa a lepra trazida do Oriente
pelos cruzados, e em muito lugares edificavam-
Um dia, o glorioso rei da França, São Luiz, se lazaretos ou leprosarias para recolher esses
discorria com um cortesão sobre a enormidade infelizes. Depois houve quem impetrasse de
do pecado. Em certo ponto, o rei perguntou- Deus a terrível doença para expiar seus
lhe se preferiria contrair a lepra ou ofender a pecados e fazer penitência nesta vida. Oh! Estes
Deus. O cavalheiro, mais entendido em coisas tinham por certo a justa ideia da ofensa a Deus,
de guerra e de armas que nas da Religião, saiu e pesavam os males temporais e eternos na
com este despropósito: “Preferiria cometer justa balança do Evangelho.
trinta pecados a apanhar semelhante moléstia”.
“E eu – replicou o santo monarca – escolheria –––––
cem lepras antes que uma só ofensa a Deus.”
Esta resposta parecerá sublime, extraordinária, Conheço um sacerdote religioso a quem Deus
heroica e digna do fervor magnânimo dos visitou com uma longa enfermidade que o leva
santos. Porém, nós nos enganamos. É um continuamente à beira do sepulcro. Muitos são
sentimento que qualquer cristão, qualquer os seus sofrimentos psíquicos e morais. Estava
religioso deveria possuir; é um verdadeiro na flor da idade, concebia as mais vivas
sentimento que deveria ser ordinário, natural, esperanças de trabalhar na santa vinha de
comum a todos aqueles que creem no Deus Deus; sonhava com infinitas conversões de
almas, quando inesperadamente uma doença o Oratório de São Francisco de Sales em Turim,
lenta o abate, cortando-lhe todas as aspirações. escolheu por lema estas generosas palavras: “A
morte, porém nunca o pecado”. E com a graça
Nas horas de desconforto, nos momentos em de Deus conservou-se fiel.
que sente todo o peso de seus males, a
natureza chora tantas e tão belas esperanças Quem o conheceu assegura que nenhuma
desvanecidas. Ele pondera assim: “Que é pois sombra de pecado mortal manchou a cândida
esta minha doença? Suponhamos ainda que, estola de sua inocência, e me é grato acreditar
começada há seis anos, continue ainda por um que, especialmente no últimos anos de sua
século. O que é finalmente? É uma desgraça vida, não tenha cometido com advertência nem
inferior a um pecado venial. Eu deveria chorar sequer um pecado venial.
muito mais amargamente o menor pecado
cometido que a mais perfeita saúde perdida.
Coragem, portanto, minha alma, pois não és
infeliz: mais infeliz é quem ofende a Deus”. Este
pensamento o sustenta, conforta-o e torna-lhe
suave o sofrer.

–––––

Aquele querido menino, São Domingos Sávio,


que, semelhante a um ramalhete de rosas nos
dias da primavera, perfumou com suas virtudes
CAPÍTULO III entre o pecado mortal e o venial. É sempre
uma indigna preferência concedida à vontade
do homem sobre a vontade de Deus, e por isto
O pecado venial diante da fé – A bofetada dada é uma verdadeira ofensa que se faz a Deus. Se o
em Jesus no sinédrio – Os reis da terra e o rei do compararmos com o pecado mortal, o pecado
céu – A balança não pende venial é por certo coisa leve; mas, se o
considerarmos em si mesmo, é uma afronta
que encerra infinita gravidade, porque ofende a
Majestade Divina.
Consideremos o pecado venial nas balanças da
eternidade. O que é, em suma? É uma O nosso planeta comparado com o sol, é um
desordem que se comete com o pensamento, grão de areia perdido nos espaços, mas,
com a palavra, com a ação e com a omissão considerando em si mesmo, não é certamente
contra a lei de Deus, mas que não é tão grave pequeno; as cinco partes do mundo com suas
que nos faça incorrer na sua desgraça. Nos altas montanhas, e os cinco oceanos com sua
limites, pois, desta culpa, já se compreende exorbitante quantidade de água, oferecem por
tudo o que constitui um verdadeiro pecado, certo uma extensão interminável.
isto é, a existência de um preceito de Deus e,
da parte do homem, a recusa de obedecer. Dever-se-ia mudar-lhe o nome de venial. Ao
Portanto, mais ou menos, isto é, com maior ou nosso ouvido, acostumado com as máximas do
menos conhecimento, com um consenso mais mundo, o pecado venial soa como pecado nulo
ou menos completo, com matéria mais ou ou quase nulo: pecado que não é pecado; no
menos considerável, não há diferença alguma entanto, é uma injúria que nós, vis vermes da
terra, destinados à corrupção do sepulcro, chorar as nossas culpas veniais que insultam
amassados de todas as misérias, fazemos ainda mais amargamente o nosso doce Senhor,
àquele Deus que com uma palavra estendeu a digo mais amargamente, porque aquele
abobada dos céus, que com uma palavra nos homem não conheciam em Jesus o Filho de
tirou do nada e que pode com uma palavra, Deus, ao passo que nós o reconhecemos e
quando nós O ofendemos, reduzir-nos ao nada. assim mesmo o ofendemos.

Ponhamos de um lado o homem com suas Um cortesão guarda-se bem de encolher os


misérias, do outro, Deus com suas infinitas ombros quando o rei lhe dá uma ordem, e por
perfeições, veremos então se o pecado venial é que os encolhemos nós a Deus com tanta
coisa de pouca monta. Os santos costumam facilidade? Ah! Porque Deus é bom, nós
comparar a culpa venial com uma pancada que abusamos da sua bondade. Ele não faz como o
dá-se em Deus, com um encolher de ombros rei Assuero, que depôs a rainha Vasti, porque
em sinal de menosprezo, ao passo que do não quis assistir ao seu banquete e a substituiu
pecado mortal dizem ser ele um punhal por Ester: Ele nos perdoa e nós continuamos a
cravado no Coração de Deus; pois, quanto cabe ofendê-lO.
em seu pode, ele nega, destrói e mata o
Criador. Parece-vos pouca coisa dar uma –––––
pancada em Jesus Cristo que vos remiu? Não
temos chorado o suficiente, lendo no Santo Maomé II mandou abrir o corpo de quinze
Evangelho a cruel impiedade daquele homem pagens para saber quem havia comido um
que deu uma bofetada no Divino Redentor no fruto do jardim imperial. Dois filhos seus
sinédrio perante Caifás? Ah! Devíamos antes tinham entrado no parque que este soberano
reservara para suas caçadas, e só por isto ele os astro do dia, assemelhando-o a um enfermo
condenou inexoravelmente à morte. Mas, estendido em leito de dores. A alma na graça
querendo então conservar um sucessor, de Deus é a princesa nas vestes nupciais,
mandou deitar a sorte para ver qual deveria ataviada de pérolas e diamantes,
morrer e qual deveria reinar. resplandecente de seda e de colares preciosos
que vai desposar Jesus Cristo. Pois bem, o
Nos países ainda não iluminados pela suave luz pecado venial mancha este magnífico hábito
do Evangelho, estes fatos se dão nupcial, mancha-lhe o rosto como se o
frequentemente e por isso ninguém se atreve marcasse a varíola, e a torna menos bela e
cometer um só desvio em presença do menos aceita ao amante divino.
monarca, e tremem todos atentos a seus
mandados. Este cuidado nós deveríamos tê-lo Tomemos ainda a balança do Evangelho.
para com o nosso bom Deus, não tanto pelo Ponhamos de um lado todas as lágrimas da
temor dos castigos, mas por esse amor filial pobre humanidade, desde o dia da criação até
que foge de desagradar a um pai afetuoso que ao dia do juízo; todos os tormentos atrozes dos
nos ama como a pupila de seus olhos. A alma mártires; as austeridades esmagadoras dos
na graça de Deus, saída do lavabo salutar do monges; as vexações; os sofrimentos; a
Batismo ou da mística piscina da Confissão é caridade de todos os santos; todas as boas
bela como a luz da aurora, cândida como o obras feitas e as que se farão; as preces dos
lírio, clara como um espelho, mas o pecado anjos e, se porventura os astros forem
venial lhe empana esta beleza divina assim habitados, as satisfações e os merecimentos de
como as nuvens que encobrem os esplendores todas as criaturas que os povoam. Se do outro
do sol e tornam languido e pálido o grande lado pusermos o mínimo pecado venial, a
balança pende para esse lado, e assim ficará pecado venial se pudesse apagar as chamas
até que às satisfações das criaturas juntemos eternas do Inferno e levar ao paraíso todos os
uma satisfação, um suspiro, uma prece ou uma condenados; se pudesse com ele fechar o
gota de sangue do Homem Deus. purgatório e livrar todas as almas aí detidas; se
pudesse converter o mundo inteiro, ainda
O pecado venial é uma ofensa de majestade assim não seria permitido cometê-lo, e nós
infinita, e, para repará-lo, é preciso uma deveríamos renunciar à felicidade de tantas
satisfação de valor infinito. Só Jesus Cristo criaturas para não desgostarmos a Infinita
pode reparar condignamente a ofensa feita a Majestade Divina. A ofensa e o dano, embora
Deus pelo pecado, que nós desprezamos como também eterno, não tem comparação alguma
coisa de nada . Nem Maria Santíssima, nem os com a ofensa feita a Deus, bondade Infinita.
nove coros dos Anjos e dos santos poderiam
fazê-lo. Que motivo de vergonha para a dureza Meu Senhor e meu Deus! Quando acabaremos
do nosso coração, pronto sempre a desprezar a de nos convencer de que pecando, mesmo
Deus por qualquer bagatela, as vezes até por venialmente, contra Ti, cometemos um grande
uma teima, por uma curiosidade para satisfazer mal? Quando amaremos tanto a tua glória que
o nosso amor próprio ou para livrarmo-nos de a tenhamos como superior à vida e à morte,
uma repreensão. aos bens e às riquezas e a todas as coisas
miseráveis do tempo?
Para fazer-nos compreender a sua malícia, os
teólogos recorrem a suposições, embora Oh! Com a tua santa graça ilumina-nos!
impossíveis, mas que demonstram a grande
verdade que estamos meditando. Se com um
CAPÍTULO IV se-á”, cairá em peado mortal. Sim, continuando
a cometer faltas de olhos abertos, continuando
a dizer mentiras, Deus nos tirará as suas graças,
Os micróbios do corpo e os da alma – Astúcia a alma ficará enfraquecida e em breve teremos
fina – A rainha Semíramis e Dido – Celebres de chorar alguma queda fatal. A ciência
palavras de dois grandes gênios moderna, indagando ousadamente as causas
das doenças contagiosas, tem descoberto que
se originam dos micróbios, isto é, de seres
pequeníssimos e “invisíveis” que entram no
Um navio carregado de mercadorias preciosas corpo humano e se multiplicam
saía do Porto de Gênova com direção aos extraordinariamente, atacando e destruindo o
célebres mercados do oriente. Era nosso interior. Imaginemos a tuberculose: o
solidadíssimo, guarnecido de sólidos flancos, que é, pois, esta enfermidade que consome e
parecendo desafiar os ventos e as tempestades. devora tantos jovens na flor dos anos? É um
Mas, na sentina formou-se um pequeno orifício micróbio que invade os pulmões e pouco a
não maior do que o de uma agulha e a água pouco os paralisa.
principiou a entrar. Ninguém reparou nisto, o
orifício foi-se alargando cada vez mais até que O infeliz jovem começa a tossir, descora,
uma noite o navio naufragou. Eis a história das emagrece, e em pouco tempo, quando as
tristes consequências do pecado venial. “Qui árvores perdem a folhagem, ele desce à tumba.
spernit modica, paulatim decidet”: “quem A medicina empregada a tempo ainda pode
despreza as coisas pequenas, quem não faz isolar e destruir o inseto mortífero, mas, se tive
conta das venialidades, pouco a pouco arruinar- apenas esperado e estendido o prazo para
tomar precauções, os remédios servirão nós, para nos precipitar logo na culpa mortal;
somente para atormentar mais o pobre da mesma, um capitão experiente: para assaltar
enfermo sem que lhe afastem da cabeceira o uma cidade, começa por abater as fortificações
transe da morte. avançadas e as trincheiras, e, passo a passo vai
penetrando até debaixo dos muros para
O pecado venial é o micróbio da alma: se não descarregar o golpe definitivo e fatal.
for curado, leva-la-á ao pecado mortal. Se os
anjos pudessem chorar, verteriam lágrimas –––––
amargas ao ver o homem ofender com tanta
facilidade ao seu Criador, ao seu Pai celestial, Um prisioneiro trancado numa altíssima torre,
ao seu Redentor, que por amor dele tomou no para fugir, inventou este estratagema: prendeu
ombros a Cruz e caminhou pelas sangrentas um por um os cabelos de sua cabeça e,
veredas do Gólgota para ser crucificado. O dependurando-os pela janela com um leve
demônio com aquela mesma astúcia e malícia peso na ponta, puxou para si um fio de seda
com que seduziu Eva, não nos atenta logo ao que um amigo lhe tinha dado. Com o fio de
pecado mortal, porque nós o repeliríamos com seda, puxou um cordãozinho mais forte, depois
horror, mas procura primeiro fazer-nos cair em outro e mais outro, tendo puxado afinal uma
culpas veniais, cada uma delas mais consciente grossa corda pela qual escorregou e pôs-se em
do que a anterior e assim enfraquecendo-nos e liberdade.
abatendo-nos invencivelmente. Quando vê que O espírito das trevas, a princípio, nos pede um
estamos privados dos auxílios superabundantes nada, depois alguma coisa de pequeno valor, e
do Senhor, enfastiados das práticas religiosas, em seguida outra mais considerável ainda, e
enfermiços, então investe arrojadamente sobre assim vai adiante até nos arrastar a uma grave
transgressão da lei de Deus. É por isso que o as de modo a abranger uma extensão
Espírito Santo nos adverte pela boca do grande vastíssima onde edificou a poderosa cidade de
Apóstolo São Paulo, que não devemos dar Cartago, que subjugou depois a África inteira.
lugar ao demônio: “Nolite locum dare diabolo”. O desgraçado Jarbas percebeu tarde demais o
engano e maldisse àquela cega concessão.
–––––
O pérfido tentador usa os mesmos artifícios:
Conta-se que Semíramis, rainha da Assíria, com pede pouco para obter muito. Pede-nos o
seu ardis, obteve de Nino o governo do pecado venial e passa depois ao mortal. Ai de
império por um só dia, mas, tendo apenas nós se lhe dermos entrada! Não se chega a ser
conseguido isto, mandou lançar na prisão e perfeito num dia só: nemo repente fit optimus;
degolar o desgraçado marido, reinando nem também se fica ruim de repente: nemo
sozinha em Nínive e no vastíssimo império. repente fit pessimus. É por isso que o glorioso
doutor São Gregório Magno diz que sob certo
––––– aspecto, há mais perigo nas culpas leves que
nas graves; porque as graves, quanto mais se
Conta-se também que a rainha Dido, conhecem, tanto mais pelo conhecimento
aportando às praias africanas, pediu ao rei maior do mal, quando alguém as tenha
Jarbas tanto terreno quanto se pudesse medir cometido, movem-nos a evitá-las e a
com um couro de boi. Consentiu o monarca emendarmo-nos; mas as culpas levez, quanto
sorrindo, mas a astuta mulher tomou o maior menos se conhecem, tanto menos se evitam, e,
couro que pôde achar, mandou fiar o pelo, não fazendo contas delas, as repetimos e
cortou o couro em finíssimas tiras e estendeu- continuamos a cometê-las, estando o homem
descansado nelas sem jamais resolver-se Principiis obsta, sero medicina paratur cum
virilmente a expulsá-las e livrar-se delas, de mala per longas convaluere moras. Acode aos
sorte que, logo, de leves tornam-se graves. primeiro sintomas porque o remédio é inútil,
quando o mal por longo descuido já se tornou
––––– crônico.

O príncipe da eloquência cristã, São João


Crisóstomo, diz ainda que as vezes devemos
considerar mais as culpas pequenas que as
graves, porque as graves trazem consigo
mesmo um certo horror que nos induz a odiá-
las e a fugir delas, mas as outras, pela razão
mesma de serem pequenas, têm-se
descuidados e negligências, e, como as
avaliamos em pouco, não acabamos nunca de
sacudi-las de nós, e assim nos vêm a ser
gravemente danosas. Quem tem deveras
cuidado da própria saúde, acode a tempo
contra os primeiros sintomas das doenças,
curam logo as leves indisposições e até mesmo
os pequenos resfriados, por temor de mais
graves males.
CAPÍTULO V importa ao passarinho ser amarrado com um
fio subtil ou com uma grossa corda se de
qualquer forma não poderá desprender o voo a
Guerra de extermínio – Beleza divina da alma seu gosto nas regiões aéreas? Bela é a rosa
em graça – A esposa do Sagrado Coração – A fragrante e nos atrai com sua coloração
seráfica do Carmelo e a santa virgem holandesa realçada à luz do Sol, mas, se uma sequer de
suas pétalas murchar, logo perderão em muito
o seu valor.
Um fruto maduro e bonito, se tem um ponto
Quem deseja chegar à perfeição deve negro, por menor que este seja, não é mais
absolutamente fazer guerra de extermínio aos digno de ser trazido para a mesa real. Um
defeitos e às culpas, mesmo que sejam leves. A magnífico vestido de seda, reluzente de ouro e
santidade é incompatível com os pecados de pedras preciosas, bordado por uma mão
veniais cometidos de olhos abertos, com pleno amestrada, se apanhar uma pequena mancha,
conhecimento do mal que se faz. É preciso mesmo de longe, a rainha não o vestirá:
sermos generosos para com o Senhor e não sofreria o seu conceito, o vestido deveria ser
desgostá-lo continuamente, se desejamos que limpíssimo, totalmente imaculado, sem a
ele também seja conosco pródigo de suas mínima nódoa. Em um palácio entra somente
graças. coisas convenientes à majestade real.
Deus é a mesma santidade, descobre
A alma que prende-se às criaturas com imperfeições até mesmo nos Anjos (Et in
pequenas afeições, não pode voar livremente Angelis reperit pravitatem, Jó, 4-18). Os Serafins
ao bem aventurado amplexo de Deus. Que tremem na sua presença, velando-se a face
com as asas, e quer que as almas consagradas, companheira. Jesus apareceu-lhe e fez-lhe
de modo especial ao seu amor, procurem compreender que aquele doce apego
adquirir a pureza de consciência. Quem, contristava o Seu Amor zeloso de reinar no
portanto, faz as pazes com seus defeitos, quem coração dela, e que devia absolutamente cortá-
se acomoda relaxadamente com as suas lo. A santa virgem, sensível a qualquer mínima
imperfeições, quem renova sempre as mesmas prova de afeição, lutou por vários meses contra
culpas, comprazendo-se nelas e não cuidando aquele apego, sobre os quais triunfou, então o
na emenda, não espere chegar à perfeição ou Esposo Divino inundou-a de consolações e
ser admitido na intimidade do Amor Divino e enriqueceu-a de favores singulares que lhes até
inebriado de celestes consolações. então não lhe concedera porque não estava
Para que Deus se comunique inteiramente à ainda livre de si mesma.
alma, é preciso que esta esteja despida de todo
o amor terreno e livre de todo o apego às –––––
criaturas. Se o nosso coração está sujo de lodo,
se ama as coisas caducas da terra, não pode ser A seráfica do Carmelo, Santa Teresa de Ávila
iluminado pelos raios divinos e confortado pelo teve uma terrível visão na qual foi-lhe
suave influxo da sua graça. mostrado o Inferno e o lugar preparado para
––––– ela se não se corrigisse de alguns defeitos que
pouco a pouco iriam arrastá-la para a perdição
Santa Margarida Maria Alacoque, a ditosa eterna.
discípula do Coração Divino, recolhida já ao
mosteiro e dando-se à mais sublime perfeição, –––––
conservava ainda apego sensível a uma
Uma alma vista pela Venerável Irmã Ana da
Encarnação, morta em conceito de santidade, –––––
foi verdadeiramente condenada por defeitos
leves que a levaram a uma culpa mortal. A santa virgem holandesa Ludivina que por
––––– trinta e oito anos permaneceu em uma cama e
vexada por todas as doenças, na morte de seu
Santa Clara de Montefalco vangloriou-se um pai, afligiu-se mais do que convinha a um
dia por uma obra sua e, apesar de fazer por cristão, o qual sabe que a tumba não é senão o
esta falta uma dura penitência e pedir perdão berço da imortalidade. Deus, por castigo
com lágrimas abundantes, o Senhor daquele afeto excessivo, privou-a das doces
suspendeu-lhe imediatamente suas luzes e consolações que lhe comunicava e afligiu-a
celestiais consolações. Jesus Cristo é um ainda mais, enviando-lhe muitas penas
esposo zeloso que nas almas a Ele consagradas internas. Um religioso solitário foi avisado
não pode sofrer com a infidelidade ao seu sobre o que se passava naquela alma e lhe
Amor. Ele amou-as demasiadamente a ponto mandou dizer que se corrigisse daquela
de descer do Céu, vestir-se de carne humana, imperfeição e se resignasse inteiramente à
sofrer a dolorosíssima paixão e finalmente adorável Vontade Divina, se queria readquirir
expirar na Cruz, e tem o direito que elas Lhe os primeiros favores.
entreguem por inteiro o coração sem dividi-lo
com as criaturas. É tão pequeno este coração Apelemos agora para a nossa experiência. Não
que não admite dois amores: é conveniente é porventura verdade que, quando caímos em
que todo palpitar de coração seja dado Àquele faltas voluntárias, quando negamos a Deus o
que o criou, remiu e deseja santificá-lo. sacrifício dos nossos pequenos desejos e
consentimos nos desejos desordenados e do tornar santo, pois os auxílios divinos nunca
coração, sentimos logo diminuir a graça de faltam a quem os acolhe com prontidão e os
Deus, a suavidade na prática da virtude e o aproveita com zelo.
ardor no caminho da perfeição? Então nossa
alma dorme no serviço divino: “Dormitavit
anima mea prae tedio; e não é mais capaz de
propósitos generosos e de magnânimas
resoluções. Está adoentada, ferida, como o
desgraçado no caminho de Jericó, e, se não nos
apressarmos a curá-la, em breve morrerá e será
coberta com o lençol funerário.

Se queres pois, tornar-te santo, combate sem


descanso contra os pecados veniais advertidos.
Não sejas avarento e escasso para com Deus,
nem meças até onde chega o lícito e o ilícito, o
mortal ou o venial, a obrigação grave ou leve.
Isto é difícil e perigoso, porque os limites nem
sempre são claros. Procura, pelo contrário,
evitar qualquer ofensa a Deus e praticar os
conselhos evangélicos, obedecendo sempre às
suaves inspirações da graça. Querer é poder: e
quem quer, com força de vontade, consegue se
CAPÍTULO VI
Ainda há mais! As vezes a justiça divina tem
castigado neste mundo certas culpas veniais
Terríveis castigos – A mulher de Ló – Moisés e com uma severidade que nos enche de espanto
Aarão – Davi e Osa – O profeta Semeia – Os e nos demonstra quando Ele odeia o pecado,
meninos e Eliseu – Sê fiel no pouco mesmo que leve. Das Sagradas Escrituras
podemos extrair um catálogo fúnebre
extensíssimo.

Venial significa remissível. O nome de venial –––––


dado ao pecado de que tratamos, é um nome
impróprio, nome que não designa bem a A desgraçada mulher de Ló, por uma simples
natureza dele, o que não pode atribui-se curiosidade foi surpreendida pela morte
igualmente ao mortal, que também é instantânea e mudada em uma estátua de sal.
remissível, capaz de vênia ou e perdão, pois se Ouvia o crepitar das chamas, os gritos
o homem se arrepende, pede a Deus o perdão lastimosos dos cidadãos e voltou-se para
confessando-se ao sacerdote. Outrossim, a observar aquele terrível espetáculo.
culpa venial não obtêm de Deus remissão se
não por meio da penitência ou de algum ato –––––
satisfatório. Se tu pecas, embora levemente e
não te arrependes, Deus castigar-te-á nesta Moisés e Aarão foram excluídos da Terra
vida u na outra e pagarás severamente a culpa Prometida por uma falta de confiança, quando
cometida. repetidamente percutiram o rochedo para
obter um pouco de água no meio das ardentes verão aquele solo afortunado, de longe
areias do deserto. Quão imperscrutáveis são os contemplarão os férteis vales do Jordão, as
juízos divinos! Deus perdoou ao chefe dos colinas povoadas de vinhedos, as planícies de
sacerdotes levíticos pelo grande pecado de ter messes maduras lourejantes; mas lá não
secundado a Israel na fabricação do bezerro de pousarão o pé. Outros recolherão os frutos de
ouro, mas não lhe perdoou essa leve seus trabalhos, outros terão a consolação de
desconfiança! E note-se a gravidade do castigo. pôr termo à longa peregrinação de Israel e
entoar o cântico de agradecimento ao Eterno
Os dois irmãos haviam livrado aquele querido que nutriu seu povo com o Maná do Deserto e
povo da escravidão dos faraós, conduzindo-os que o salvou de mil perigos. Moisés e Aarão,
pelo deserto, através de mil dificuldades e em castigo pela desconfiança praticada,
defendendo-o dos inimigos. Haviam morreram sem completar sua missão.
consumido a vida inteira a beneficiá-lo,
enobrecê-lo depois da longa escravidão e –––––
elevá-lo à verdadeira nação. Nada mais faltava
que introduzi-lo na Terra Prometida que Infeliz Davi! No auge de seu poder esqueceu-
manava leite e mel, o lugar suspirado há tanto se por um instante de que Deus o tinha
tempo, justo e feliz descanso aos longos erguido da solidão de um campo aos degraus
trabalhos. Quão contentes baixariam então ao de um trono, e que em cetro lhe trocara o
sepulcro, abençoados por todas as tribos! Mas, bastão de pastor. Fez arrolar o seu povo e
cometeram um pecado venial, e por causa agradou-se vaidosamente daquele número
deste pecado, não chegaram ao termo, àquele ilimitado de súditos, atribuindo a si a glória de
termo suspirado por tantos anos! De longe Deus, mas logo a ira divina se desencadeou
sobre ele, pedindo uma severa expiação, caindo no chão o cadáver. Ele era um simples
propondo-lhe três horríveis flagelos: a peste, a levita e não podia tocar a Arca. Aquela morte
fome e a guerra. “Venha a peste- exclamou o repentina causou terror em todos, e Davi
humilde monarca arrependido – e assim eu concebeu uma ideia tão alta da grandeza
também correrei o risco comum de ser infectado divina, que não ousou mais receber a Arca em
e punido pessoalmente por minha culpa”, e o seu palácio e mandou levá-la para a casa de
contágio invadiu o povo e os mortos chegaram Obededom.
até o número de setenta mil.
–––––
–––––
Disse um dia o Senhor a Semeia: “Vai, destrói o
Processionalmente, com grande e altar profano que Jeroboão levantou aos ídolos e
extraordinária pompa, era levada a arca santa anuncia-lhe terríveis castigos. Mas não comas
de Abinadab para Jerusalém. Davi, trajando as nem bebas coisa alguma desse lugar maldito, e
insígnias reais e sendo seguido por trinta mil não voltes pelo mesmo caminho por onde fores”.
guerreiras, a flor do exército de Israel, cingidos Solícito, o servo de Deus corre a Jeroboão, fala
por suas brilhantes armaduras, faziam-lhe com voz firme ao ímpio monarca e com um
cortejo ao som das cítaras no meio das nuvens movimento derruba o altar. “Amarrai o
de odorífico incenso e do alegre canto dos temerário” exclamou enfurecido Jeroboão, e
Salmos. De improviso, os bois ao recuarem, estendeu o braço para intimar a ordem aos
fazem pender a Arca e Osa estende a mão para soldados, mas aquele braço logo ficou
segurá-la. Que nunca o tivesse feito! No paralisado, então o soberbo monarca teve que
mesmo instante foi fulminado por um raio, humilhar-se e implorar do profeta a sua cura.
O homem de Deus orou e lha obteve. Acabada ursos ferozes que se lançaram sobre aqueles
sua missão, Semeia, recusando os presentes do míseros, dilacerando a quarenta e dois deles.
rei, voltava por um caminho diferente daquele
por onde tinha vindo, quando encontra um –––––
outro profeta, o qual, para experimentar-lhe a
obediência, o convida com vivas instâncias a Mais terrível ainda foi a punição dos
descansar. Resiste Semeia ao princípio, mas Betsamitas. Milhares e milhares deles foram
afinal deixa-se vencer. Poucos instantes depois fulminados por terem olhado com curiosidade
jazia apenas o cadáver horrivelmente mutilado e irreverência a Arca da Aliança.
por um leão, instrumento da Divina Cólera
somente por aquela transgressão às ordens
recebidas. –––––

––––– Maria irmã de Moisés, por uma murmuração


contra o irmão, foi punida com a lepra.
Subia Eliseu, já velho, à velha colina de Betel,
povoada de verdes florestas, e uma turba de –––––
meninos começou a provocá-lo dizendo: “Sobe
velho, sobe calvo!”. O servo de Deus ficou aflito Ananias e Safira disseram a São Pedro uma
por aquela falta de respeito para consigo e, em mentira e foram punidos com a morte
nome de Deus amaldiçoou os insolentes. instantânea. Diante destas punições terríveis,
vêm espontaneamente as palavras da Sagrada
No mesmo instante saíram do bosque dois Escritura: “Quis non timebit te, o rex gentium?
Quis novit potestatem irae tuae et prae timore tanto rigor o pecado venial, as vezes Ele
tuo iram tuam dinumerare?” presenteia também com preciosos favores às
pequenas correspondências à graça para
Notemos que, em todos estes fatos das convidar-nos a sermos fieis no pouco.
Escrituras, os santos padres nada mais veem do
que uma culpa venial, ou por defeito de –––––
matéria, ou por defeito de conhecimento, ou
por defeito de vontade e outras circunstâncias Foi revelado a São Gregório Magno que o
atenuantes. Acrescentemos agora, para nosso Senhor lhe conferiu a suma tiara pontifícia por
conforto, que segundo os mesmos padres, uma esmola feita a um desconhecido. Euge,
Deus puniu com rigorosa pena temporal tais serve bone et fidelis: quia super pauca fuisti
faltas para depois usar de misericórdia na vida fidelis, super multa te constituam.
futura.
“Muito bem, servo bom e fiel, porque tens sido
Ora, se Deus castiga com a morte, que é a fiel no pouco, irei fazer-vos dono do muito.”
máxima pena temporal, não devemos concluir
que o pecado venial é coisa de nada, como nós –––––
julgamos, mas que é um mal gravíssimo a
evitar-se a todo o custo, ainda que com o Um moço jesuíta, no tempo das férias, estava
sacrifício de todas as nossas riquezas ou até para sair a passeio quando um padre o deteve
mesmo com a própria vida. e convidou-o para ir ajudar-lhe a Santa Missa.
Ele aceitou de boa vontade renunciando assim
Enquanto, porém, Deus costuma punir com ao passeio. Depois de alguns anos partia este
para as missões entre os infiéis, recolhendo
então a palma do martírio.

Foi revelado a um confrade seu que o


afortunado moço tinha sido por Deus
favorecido da graça insigne de derramar seu
sangue pela fé por causa do pequeno sacrifício
feito naquele dia, quando o sacerdote o
convidara à Santa Missa. Oh altitudo divitiarum,
sapientiae et scientiae Dei: quam
incomprehensibilia sunt indicia eius et
investigabiles viae eius.

Oh profundeza dos tesouros da sabedoria e


ciência de Deus! Quão incompreensíveis são os
seus juízos e imperscrutáveis as tuas sendas!
CAPÍTULO VII se acabam, enquanto no Purgatório tem o seu
tempo, que varia segundo a gravidade e o
número das culpas. A menor pena do
Penas atrozes do Purgatório – Terríveis aparições Purgatório é infinitamente superior à maior
– Marca da mão de fogo – Uma gota de suor – deste mundo. O nosso fogo é frio, diz um
Por quão pouco, lá se desça – Também os santos santo, em comparação ao fogo que aflige
canonizados! aquelas pobres almas. Entre o fogo do
Purgatório e o nosso há a diferença que existe
entre o fogo real e o fogo pintado.

Deixemos agora a terra e lancemos um olhar –––––


além da tumba, contemplemos os castigos
terríveis com que Deus pune o pecado venial. Santa Catarina de Gênova escreve: “As almas do
Há um cárcere designado para isso pela justiça Purgatório sofrem tal pena, que a língua
divina, cárcere cheio de fogo e de todos os humana não a pode referir, nem inteligência
tormentos: o Purgatório. Mas o que é o alguma poderá fazer dela alguma noção, salvo
Purgatório? É um Inferno temporário; as se Deus conceder alguma graça especial para
mesmas chamas que atormentam o condenado tal”. Há no Purgatório, assim como no Inferno,
ao Inferno, são as que purificam o escolhido. uma dupla pena: a que consiste na privação de
“Eodem igne – diz Santo Tomás de Aquino – Deus e a privação dos sentidos. A pena do
torquetur damnatus et purgatur electus. Entre o dano é sem comparação maior, pois é mais
Inferno e o Purgatório não há outra diferença intensa quanto aquelas almas, que vivendo na
além da duração das penas. No Inferno nunca amizade de Deus, experimentam mais forte a
necessidade de unirem-se a Ele, assim como o
ponteiro de um bússola há de sempre voltar-se O próprio Divino Redentor nos advertiu que de
para o polo, a flecha há de correr para o alvo e lá não sairemos sem havermos pago antes
a chama de se elevar. todas as nossas dívidas, até o último centavo:
“Donec reddas novissimum quadrantem”.
–––––
–––––
Um religioso de São Francisco de Assis, morto
em conceito de santidade, apareceu depois de Pela metade do século passado, o Senhor, na
muito tempo a um amigo seu, queixando-se Sua Bondade, permitiu uma aparição do além-
altamente de ter sido abandonado por ele. E foi túmulo para confirmar-nos na crença do
verdade, porque o confrade, julgando que o Purgatório de demonstrar-nos a intensidade
defunto já tivesse alcançado a glória eterna, das penas que lá se sofrem.
não rezava mais por ele, e nesta suposição No mosteiro dos franciscanos em Foligno, uma
baseava as suas desculpas. A alma abandonada irmã, falecida havia pouco tempo e em
deu então um lamentável grito e por três vezes conceito de santidade, apareceu àquela que a
repetiu: “Nemo credit, nemo credit, nemo credit tinha substituído no ofício, a impetrar dela
quam districte judicet Deus et quam severe sufrágios: “Ai! Quanto sofro!” disse ela, e, para
puniat”. Ninguém pode crer, ninguém pode dar uma prova, tocou com a palma da mão a
crer, ninguém pode crer quanto lá se apura porta, deixando nela sua mão impressa em
tudo! traços carbonizados, enchendo o quarto de
fumaça densa e um forte cheiro de madeira
––––– queimada. Este sinal terrível ainda subsiste
cuidadosamente conservado no referido se arrependido bastante. Em seguida ainda
mosteiro como um vivo testemunho do fato. disse: “Nada existe sobre a terra que possa dar
uma ideia das minhas penas”, e para que o
––––– dominicano tivesse disto uma prova, estendeu
a mão sobre a mesa do refeitório. No mesmo
Em Zamora, cidade do reino de Leão, na instante viu-se fumaça e chamas, deixando na
Espanha, vivia num convento de dominicanos madeira a queimadura como se a mão fosse
um bom religioso, ligado em santa amizade um ferro em brasa recentemente tirado da
com um franciscanos, assim como ele, homem forja.
de grande virtude e santidade. Um dia Imaginemos a comoção do dominicano diante
enquanto se entretinham sobre coisas deste espetáculo. Foi imediatamente chamar os
espirituais, prometeram reciprocamente, que o confrades, mostrou-lhes o funéreo sinal e
primeiro a morrer, se Deus o permitisse, todos reuniram-se logo na igreja para rezar
apareceria ao outro para informá-lo da sorte pelo infeliz defunto. Esta revelação é narrada
alcançada no outro mundo. na vida de São Domingos, escrita por Fernando
de Castela.
Morreu o franciscano, e sendo fiel à sua A mesa guardou-se religiosamente em Zamora
promessa, apareceu ao religioso dominicano até o fim do século XVIII, no qual as revoluções
quando este aprontava a sua mesa. Depois de políticas a fizeram desaparecer como outra
tê-lo cumprimentado com extraordinária muitas relíquias piedosas de que era rica a
benevolência, lhe disse que estava salvo, mas Europa.
tinha ainda muito o que sofrer por algumas
pequenas faltas em vida pelas quais não tinha –––––
soltando gritos agudos: aquela gota lhe tinha
Na história do Padre Estanislau Chosca, um transpassado a carne e os ossos, saindo pelo
dominicano polaco, lê-se que um dia, quando outro lado, formando uma profunda chaga.
estava rezando pelos finados, viu uma alma Acudiram-lhe logo os confrades assustados, e
toda devorada pelas chamas como um carvão socorrendo-o prontamente fizeram-lhe
no meio de uma fornalha ardente. O pio recobrar os sentidos. Estanislau então, cheio de
religioso a interrogou se aquele fogo era mais espanto, contou o que lhe tinha acontecido e
penetrante do que o nosso. “Ai de mim! – acabou dizendo: “Ah meus irmãos! Se cada um
respondeu a alma – todo o fogo da terra de nós conhecesse os rigores dos divinos
comparado com o do Purgatório é como um castigos, jamais pecaríamos! Façamos
sopro de ar fresquíssimo”. “Mas como é possível? penitência nesta vida para depois não termos de
– Perguntou Estanislau – eu desejaria fazê-la na outra, porque terríveis são aquelas
experimentar com a condição de que isto penas! Combatamos os nossos defeitos e
aproveite para me fazer descontar aqui uma especialmente as culpas veniais advertidas, a
parte das penas que terei de sofrer um dia no Majestade Divina é tão santa que não pode
purgatório”. sofrer a mais pequena mancha dos seus eleitos!”.
“Nenhum mortal – replicou aquela alma – Depois disto foi para o leito e aí ficou por um
poderia suportar a mínima pena sem morrer no ano, sempre atormentado por terríveis dores
mesmo instante se Deus não o sustentasse. Se causadas pela chaga da mão.
queres convencer-te, estende a tua mão”.
Estanislau em vez de intimidar-se ofereceu a No fim do ano, depois de ter ainda exortado os
mão, o defunto deixou cair sobre ela uma gota seus irmão a temerem os rigores da Justiça
de suor. Estanislau caiu no mesmo instante Divina e a fugirem de qualquer pecado, ainda
que leve, expirou suavemente no ósculo de Na história da Ordem Cisterciense, lê-se que
Deus. O historiador acrescenta que este uma irmã de muita virtude foi para o
lúgubre exemplo reanimou o fervor em todos Purgatório porque disse sem necessidade,
os mosteiros e que os religiosos animavam-se algumas palavrinhas com voz submissa
mutuamente no serviço de Deus, afim de se enquanto rezava o ofício divino; e o mesmo
livrarem de tão atrozes suplícios. aconteceu com a outra religiosa, que por não
ter feito a inclinação no Glória ao Pai como
––––– mandava a regra da Ordem. Ambas apareceram
envoltas em chamas a implorar o auxílio e
O venerável Bernadino de Busto, não menos prevenir o convento dos rigores da justiça
douto do que santo religioso, narra que um divina.
irmão seu, chamado Bartolomeu, morto ainda
na pura e inocente idade de oito anos, foi –––––
condenado ao purgatório porque alguma vez
tinha rezado distraído as orações da manhã e Na vida de São Martinho, é visto que morreu
da noite. E mais de uma vez ele foi ouvido a uma virgem chamada Vitalina. Estava esta com
rezar com profunda devoção o Pai Nosso, a Ave tal conceito de santidade que não somente a
Maria e o Credo, naquele mesmo quarto onde cidade, mas toda a diocese tomou parte nas
tinha dormido e que cometera tais exéquias, mas não para sufragar-lhe a alma,
venialidades. porém, para obter de Deus, com a sua
intercessão, graças especiais, persuadidos
––––– todos de que estava no céu.
O mesmo São Martinho não rezou o réquiem
ou do de profundis; somente congratulava-se convento, consumira um pouco de lenha a
com ela por sua ditosa sorte e agradecia a mais do que o necessário, violando assim o
Deus pelos favores a ela concedidos. Então, a voto de pobreza.
defunta deixou-se-lhe ver em hábito escuro,
com olhar triste e esquálido aspecto, com uma –––––
voz lamentável disse-lhe: “Não me é ainda
permitido ver a face do meu Senhor”. Perguntou Até mesmo os santos, canonizados depois pela
então São Martinho: “Oh, Deus! Mas por que?”, Santa Igreja, nem sempre foram isentos destas
respondeu então a pobre alma: “Porque num terríveis chamas expiadoras. Lê-se nas obras de
dia de sexta-feira violei a regra, que manda não São Pedro Damião, que São Severino,
compor os cabelos em sinal de luto pela morte Arcebispo de Colônia, embora durante a sua
do Divino Redentor”. vida se houvesse distinguido pelo zelo
apostólico e extraordinárias virtudes, teve de
––––– ficar por algum tempo nesse lugar de expiação,
por haver, sem necessidade, antecipado as
Um dominicano de grande piedade foi punido horas canônicas.
atrozmente no Purgatório só por excessivo
afeto aos seus escritos. –––––

––––– São Gregório Magno refere em seus diálogos


(Livro IV, cap. 40) que o santo diácono Pascácio
Um capuchinho de santa vida apareceu vestido foi condenado a uma longa expiação, como o
de fogo só porque, sendo cozinheiro do próprio defunto revelou a São Germano de
Cápua. E, no entanto, a sua dalmática estendida carnes, pois temo os teus juízos.
sobre o féretro, obrava grandiosos milagres.

–––––

São Peregrino e São Valério, Bispos de Augusta,


passaram também por aquele fogo. Este
último, estando muito velho, procurou deixar o
arcebispado para um sobrinho seu, aliás,
merecedor pela ciência e pela virtude que o
adornava, mas, como além do seu mérito,
considerou também a pessoa de seu parente, e
por este afeto carnal sofreu dois terríveis
castigos: Deus privou-o logo do sobrinho com
uma morte prematura, e condenou-o a um
severo purgatório, onde foi ouvido a implorar
piedade e misericórdia enquanto o povo o
invocava como santo.

Lendo estes exemplos, lembramos das palavras


que saíram dos lábios dos profetas: Confige
timore tuo carnes meas, a judiciis enim tuis
timui: Subjuga com o teu temor as minhas
CAPÍTULO VIII delas as almas; e nós conhecemos, pelas
revelações, que uma só hora de Purgatório
Duração subjetiva e objetiva do Purgatório – Pai para aquelas almas infelizes, parecem muito
desnaturado – Uma hora me pareceu um ano – mais longas que um século, tanta é a
Outras revelações – Uma digressão que não é impaciência extrema que experimentam de ver
digressão a Deus, e excessivo o rigor de seu suplício.
Também na terra, uma noite de insônia,
especialmente se estamos enfermos, parece-
nos uma eternidade.
É tão grande a nossa cegueira, que muitas
vezes dizemos até: “O que importa que sejam –––––
atrozes aquelas penas? Alguma vez acabarão”.
No início dos Capuchinhos, leio uma história
A objeção foi feita por Santo Agostinho: Sed muito curiosa (Tom. III, ano 1618).
dicet aliquis: non pertinet ad me, quamdiu O Padre Hipólito de Scalvo, eleito guardião e
moras habeam, si tmen ad vitam aeternam mestre dos noviços num convento de Flandres,
pervenero. E responde: “Pelo amor de Deus! esforçava-se por infundir em seus filhos
Não digais isto” - Nemo hoc dicat, fratres espirituais as virtudes próprias do seu sublime
carissimi, nemo hoc dicat. Pois aquelas penas estado. Ora, aconteceu que um dos noviços,
tão atrozes têm duas durações tão dolorosas que fizera grandes progressos no caminho da
que nos contrista apenas o pensar nelas. perfeição, expirou docemente nos braços de
Deus, estando ausente o guardião. Avisado da
A primeira é segundo a estimação que fazem perda, voltou na mesma tarde, e depois das
Matinas ficou no coro, buscando conforto na sem caridade alguma!”.
oração. Subitamente, vê-lhe aparecer a alma do Dizendo isto, desapareceu. O pobre guardião
pobre defunto cercada de chamas, e depois o que julgava ter sido muito indulgente impondo
ouviu falar: “Meu querido e bom Padre! Dai-me aquela penitência, sentiu arrepiar-se os cabelos
por favor a vossa bênção. Por uma pequena de espanto e de pesar: quis então reparar tão
falta que cometi contra a regra, acho-me agora grande erro à custa da própria vida. Porém, não
no purgatório para satisfazer à Divina Justiça. O podendo, tocou o sino do dormitório para
bom Jesus concedeu que eu viesse aqui para me reunir todos os frades no coro; contou-lhes
impordes a punição que julgardes conveniente, com lágrimas o que tinha passado e ordenou
depois da qual, eu voarei ao amplexo de Deus”. que logo se começasse a reza da Prima. Isto
contribuiu talvez para abreviar as penas do
Assustado por aquela vista e por tais palavras, defunto, mas o pobre guardião guardou por
o piedoso guardião logo deu-lhe a sua bênção toda a vida, impressa no coração, aquela cena
com toda a efusão da alma e, por penitência, horrível e confessava muitas vezes que até
lhe disse que ficaria no Purgatório até a hora então havia tido ideia muito imperfeita das
da Prima, isto é, até as oito horas da manhã. Ao penas do Purgatório.
ouvir isto, o noviço começou a correr como um –––––
desesperado pela igreja toda gritando: “Padre
desnaturado! Coração duríssimo e sem piedade! Rossignoli em seu livro: “Maravilhas do
Como quereis vós punir tão severamente uma Purgatório”, que escreveu por exortação do
falta que na vida terias julgado digna apenas de Beato Sebastião Valfré, conta que um santo
leve disciplina? Vós então ignorais a atrocidade religioso teve uma revelação de seu Anjo da
dos meus tormentos? Oh! Penitência imposta Guarda que em breve morreria e haveria de
ficar no Purgatório até que fosse rezada uma Deus que tanto abreviou minha prova, e mil
Missa em seu sufrágio. Alegrou-se ele a esta graças a ti, meu querido irmão, pelo interesse e
notícia e tratou logo de obter de um confrade caridade que me dispensaste. Eu subo agora
a formal promessa de lhe aplicar, logo que ele para o Céu e rezarei a Deus para que lá nos
morresse, o Santo Sacrifício. Pouco tempo una, como estivemos unidos na terra”.
depois ele morreu, e, sendo manhã, o
sacerdote foi vestir logo os sacros paramentos –––––
e celebrou com grande fervor e comoção de
espírito aquela Missa. No atos de Santa Perpétua, escritos em sua
maior parte pela própria santa quanto estava
Quando acabou, estando ainda na sacristia a no cárcere e que é um esplêndido testemunho
despir-se das vestes sacras, apareceu-lhe o contra os protestantes em relação à crença no
companheiro resplandecente de glória e Purgatório do 3º século da Igreja. Lê-se que ela
queixou-se ao amigo de ter esquecido da mesma viu ser atormentado no Purgatório o
promessa, pois tinha-o deixado mais de um seu irmãozinho Dinócrates, morto na idade de
ano no Purgatório. “Enganas-te – respondeu o sete anos por uma úlcera terrível que se
outro admirado – que logo que expiraste fui estendeu por todo o corpo, e que ele aí ficou
para a igreja celebrar e acabei neste exato por muito tempo porque Perpétua tinha se
instante. Teu cadáver está ainda quente no leito esquecido de rezar por ele.
de morte”. Então o defunto, como despertando
de um sono profundo exclamou: “Ai, como são Consideremos o caso: é um menino de sete
terríveis as penas do purgatório! Uma hora só anos apenas, educado santamente, que já em
dessas penas pareceu-me um ano! Bendito seja vida fizera longa penitência com a úlcera que o
tornava objeto de horror aos que se esquecemos tão cedo os pobres finados e tão
aproximavam dele, contudo, é condenado a pouco receamos os rigores da Justiça divina!
longo purgatório, até que a irmã reze por ele.
Sofria atrozmente, pois apareceu em um lugar –––––
tenebrosos, abrasado de sede e com o rosto
carcomido pela úlcera com que morrera. Perto A pia condessa Matilde estava tão
dele estava uma fonte de água fresquíssima, compenetrada de tais sentimentos, que, na
porém com a bora mais alta do que a sua morte de seu esposo, além das suas orações,
pessoa. O infeliz procurava chegar até lá com a mortificações e das abundantes esmolas aos
sua boca para poder saciar a sua sede ardente pobres e aos mosteiros, mandou rezar por ele,
que tanto lhe atormentava, mas inutilmente, um número extraordinário de Missas.
pois a pequenez de sua estatura sempre o –––––
impedia.
––––– Na vida do Beato Hugo, lê-se que um monge
foi condenado ao Purgatório por cinquenta
Santo Agostinho, vinte anos depois da morte anos, e que, depois de quarenta, Deus
de sua santa mãe, Mônica, escrevendo as permitiu-lhe aparecer para pedir sufrágios.
Confissões, suplica aos leitores que rezem por
ela, e ele mesmo dirige ao Céu uma prece –––––
bastante comovente, que arranca lágrimas.
Depois de quatro lustros, o grande doutor No Maggiolo (Par. 1º. Dierum canicularum,
ainda temia que sua santa mãe estivesse no coloq. 2º) lê-se que certa alma passeava e fazia
Purgatório. Que lição para nós, que grande estrépito em um castelo, gritando
dolorosamente porque lhe haviam tocado mil pintou um quadro no qual havia alguma nudez.
anos de terrível Purgatório. Mais tarde, arrependeu-se daquela obra que
pode servir de escândalo às almas e começou a
––––– reparar o mal, executando unicamente imagens
sacras, próprias para excitar a devoção. Sua
No início da Companhia de Jesus, no ano de última obra foi um grande quadro que
1597, é dito que um jovem, modelo de virtude, ofereceu à igreja dos carmelitas para que os
chamado Celso Finetti, a quem no transe da frades celebrassem Missas em sufrágio de sua
morte lhe aparecera a Santíssima Virgem lhe alma quando Deus finalmente o chamasse ao
predizendo a hora de sua morte e de um irmão eterno descanso. Pouco depois adormeceu
seu, que, todavia, seria condenado a quatro placidamente osculando o crucifixo, com toda a
anos de Purgatório, e outro, de Santa Vida, a confiança naquela misericórdia que
catorze. E, no entanto, na Companhia de Jesus, benignamente perdoa, e foi sepultado na igreja
como em todas as ordens religiosas, costuma- dos mesmos Carmelitas. Todos tinham a grata
se fazer inúmeros sufrágios, Missas, certeza de que logo tivesse ido gozar a Eterna
Comunhões, Terços, Ofícios e penitências. Glória, pois a sua vida nos últimos anos havia
sido verdadeiramente edificante. Mas, outros
––––– são os juízos de Deus!

O Padre Rossignoli ainda nas “Maravilhas do Alguns dias depois de ter fechado o sepulcro,
Purgatório”, narra que um pintor, no tempo de tal pintor revestido de chamas, apareceu a um
sua mocidade, se deixou vencer pelo mau religioso que depois das Matinas continuava no
exemplo e, apertado vivamente por um ricaço, coro. Assustado, o carmelita perguntou-lhe se
ele era o bom pintor morto a pouco tempo e dos artistas dos nossos dias que representam
como se achava naquelas chamas. O Infeliz, nudezas não somente nos quadros profanos,
dando altos gemidos, disse que no tribunal de mas até nas igrejas?
Deus, muitas almas escandalizadas por aquele Dá-se por pretexto a arte. Mas a arte é feita
quadro pintado na sua mocidade, tinham para aperfeiçoar e enobrecer o homem, não
deposto contra ele e que Deus o tinha para corrompê-lo e levá-lo para o mal com a
condenado a vários tormentos incomparáveis excitação das paixões. Diz-se: “Arte pela arte”. É
até que aquela pintura fosse destruída. uma expressão sem nenhum sentido. É como
Suplicava-lhe portanto, que fosse falar com o dizer: “Guerra pela guerra”, “Comer para
dono e o persuadisse a queimar logo o quadro, comer”.
anunciando-lhe ao mesmo tempo que, em
castigo de tê-lo constrangido a pintar aquela A arte é virtude e meio para nobilitar o homem
figura, Deus lhe arrancaria com prematura e não fim de si próprio, assim como se faz a
morte os seus dois filhos. guerra para obter a paz e come-se para viver. A
arte, portanto, deve respeitar o pudor e jamais
Deu-se pressa o religioso em obedecer. O rico avilta-se a retratar nudez alguma. Certas
com medo, queimou logo a tela, contudo, no pinturas e certas esculturas seriam permitidas
breve espaço de um mês, um após o outro, somente no caso de estar ainda o homem no
seus queridos filhos morreram. estado de inocência, sem a tentação da
concupiscência; mas depois da queda, depois
Seja-me lícito agora fazer uma breve digressão. que Deus com Suas Mãos revestiu os nossos
Se o pintor e o dono que ordenou a obra, progenitores, não são mais toleráveis. Volte a
foram tão severamente punidos, que há de ser arte, oh, sim! Volta à casta simplicidade dos
primeiros séculos, pelo rasto luminoso de bastante severa, a lhe exprobrar as nudezas da
Giotto, do Beato Angélico e de outros célebres Capela Sistina.
pintores que souberam deleitar e ao mesmo
tempo educar o coração sem oferecer-lhe a –––––
mínima ocasião de escândalo. Empenhemo-nos
com todas as forças em banir da arte, qualquer Salvator Rosa, que não tinha nenhum dedo de
que seja o seu gênero, o naturalismo e o santo, vibrou sátiras mordazes contra os
paganismo. pintores que ousam desenhar anhos e santos
meio nus nas igrejas.
A arte deve conduzir à virtude, estudando o
verdadeiro e revestida dos esplendores do Possa a minha voz encontrar um eco em todos
belo. Antes da renascença ela atingira os corações! Possa a minha pena tornar-se um
realmente, com poucas exceções, o seu nobre estilete que fira em cheio a pornografia, causa
escopo. A chamada Renascença não foi mais de tanto escândalos e pecados! Amo a arte e
do que a introdução do paganismo nas letras e desejo seus progressos, mas lanço anátemas
nas artes, chegando a ser a verdadeira sobre tudo aquilo que a corrompe. Amo as
decadência, degradação e embrutecimento da letras, a pintura, a escultura, a música, mas
arte. detesto o abuso de qualquer delas. Amo como
––––– Dante Alighieri a arte que se mostra
descendente de Deus, a Dio quasi nepote, mas
Sabem todos a vida ímpia e escandalosa que aborreço-a quando é transformada em familiar
levava Aretino, todavia, num movimento de ou até mesmo filha de Satanás e instrumento
bom censo escrevia a Michelangelo uma carta de perversão.
CAPÍTULO IX um religioso do que em um leigo que vive no
meio dos escândalos e enganos do mundo. As
infrações às regras, as pequenas murmurações
Purgatório severo dos religiosos – Uma palavra contra os irmãos e os superiores, as violações –
mordaz – O Sinal da Cruz mal feito – Pequenas mesmo que sejam de leve gravidade – dos
murmurações – Pobre abade! - Expiação no coro votos, especialmente a pobreza e as faltas de
– Horrível leito de fogo – Os fios de lã e as caridade, são punidas no Purgatório com um
migalhas de pão maior rigor.

–––––

Todos os cristãos fieis têm de vigiar Dizia uma alma do Purgatório a uma pia
atentamente para evitar os pecados veniais, religiosa da Bélgica: “Minha filha, vive como
quer porque ofendem ao nosso Bom Deus, uma santa, porque o Purgatório reservado às
quer porque serão punidos severamente na religiosas é terrível!”.
outra vida. Mas esta vigilância há de ser muito
maior nas pessoas consagradas a Deus na –––––
religião por meio dos votos. Elas fazem especial
profissão de tender à santidade e recebem Santa Margarida Maria de Alacoque, estando a
graças em maior número; mais severa será, rezar por três pessoas mortes que haviam
portanto, as contas que deverão pagar. morrido recentemente, das quais duas eram
religiosas e a terceira secular, apareceu-lhe
As culpas veniais desagradam a Deus mais em Nosso Senhor e perguntou-lhe familiarmente:
“Qual das três queres tu que eu liberte?” - um religioso todo envolto em chamas, o qual,
“Senhor – respondeu a santa – dignai-Vos fazer ajoelhado diante dele, suplicava-o que o
Vós mesmo esta escolha, como for para a Vossa perdoasse de uma palavra picante que dissera
maior glória.” Então Nosso Senhor livrou o em vida contra ele há muitos anos. Por apenas
defunto secular, dizendo-lhe que lhe aquela palavra ele tinha sido condenado ao
inspiravam menor compaixão os religiosos aos Purgatório; implorava-lhe então, por caridade,
quais ele proporciona muitos meios para uma Santa Missa, a qual havia de abrir-lhe as
merecer o Paraíso e expiar seus pecados nesta portas do Céu. O santo cuidou logo em
vida com a perfeita observância de suas regras. satisfazer o desejo daquela alma, e na noite
seguinte viu-o resplandecente e glorioso subir
––––– ao Céu.

À mesma Virgem (Santa Margarida Maria de Este fato nos recorda as palavras do Santo
Alacoque) apareceu uma religiosa da Visitação Evangelho: “Quem chamar de estúpido o seu
a pedir-lhe sufrágios, e deplorando a irmão, será condenado ao fogo: reus erit
demasiada facilidade com que se tinha feito gehenna ignis”.
dispensar de certas regras e exercícios comuns.

–––––
–––––
O Padre Nieremberg da Companhia de Jesus,
Certa vez, São Luís Bertrando, que tinha ficado era bastante devoto das Almas do Purgatório.
no coro rezando após as matinas, apareceu-lhe Uma noite, no coro do colégio de Madri
enquanto rezava em sufrágio delas, viu Um religioso de nome Germano, abade de um
aparecer-lhe um irmão que havia morrido mosteiro de São Bento, tivera no curso de sua
recentemente e que tinha ensinado Teologia vida, um único defeito: ser pouco amável para
naquela escola. Ele tinha sido condenado ao com o próximo. O seu zelo austero exigia de
Purgatório e era atormentando por penas que cada um de seus religiosos se tornassem
atrozes porque alguma vez tinha falado do santos, e então acontecia que a sua severidade
próximo sem a devida caridade. A sua língua era excessiva, antes de aproximá-las, afastava-as da
continuamente queimada por um ferro em perfeição as pobres almas.
brasas por tê-la usado mal. A devoção a Maria
Santíssima tinha-lhe merecido a graça de Morreu ainda jovem e foi condenado a um
aparecer ao Padre Nieremberg para que longo e triste Purgatório por causa de seu duro
pudesse lhe impetrar sufrágios. zelo. Feliz dele, por ainda ter Santa Lutgarda,
sua penitente, que se deu a rezar, a disciplinar-
––––– se e a fazer infinitas mortificações para libertá-
lo. Por muito tempo não foi possível fazê-lo sair
A irmã Francisca de Pamplona viu no daquelas chamas, até que a heroica Santa,
Purgatório um pobre padre com úlceras oferecendo-se a si mesma como vítima de
repugnantes em seus dedos porque tinha feito expiação, o Divino Redentor comoveu-se e
o Sinal da Cruz com distração e sem a quebrou as cadeias do infeliz abade. Então
necessária gravidade. apareceu-lhe radiante de luz à Santa Lutgarda e
agradeceu a ela dizendo que sem as suas
––––– orações, ainda teria de sofrer no Purgatório por
meses e anos.
na reza de meu ofício”. Então o beato rezou em
Lendo este fato, lembremos das palavras sufrágio dele várias orações, pelas quais
daquele santo: “Antes das conta de indulgência pareceu que aquela alma recebesse grande
excessiva que da excessiva severidade para com alívio.
o próximo”. E na verdade, quem lê as vidas dos
santos, verá como foram sempre severíssimos Por muitas outras noites continuou a aparecer,
para consigo mesmos e cheios de misericórdia até que uma vez, depois que o Beato Estêvão
e bondade para com os outros. tinha rezado o De-profundis, deixou o seu
assento com um grande suspiro de satisfação,
––––– significando que a sua prova já tinha sido
terminada (Cron. Dos Frad. Min. Livro IV, cap.
O Beato Estêvão, religioso franciscano, tendo o 30).
costume de passar todas as noites algumas
horas diante do Santíssimo Sacramento, uma –––––
vez viu em uma cadeira do coro, um religioso
com o rosto escondido pelo capuz. Santa Margarida Maria de Alacoque narra a
Surpreendido, aproximou-se dele e perguntou- seguinte incrível aparição: “Uma vez, vi em
lhe o que fazia ali àquela hora enquanto os sonho uma religiosa que já era morta há muito
outros frades estavam descansando. Então o tempo, a qual me disse sofrer muito no
encapuzado com uma voz lúgubre respondeu: Purgatório, mas que pouco tempo antes, Deus
“Eu sou um religioso morte neste mosteiro e lhe havia dado uma pena incomparável: a vista
condenado pela divina justiça a fazer aqui o de uma das suas parentas precipitada no
meu purgatório, pelas imperfeições cometidas Inferno. Depois destas palavras eu acordei, mas
tão aflita com tais dores, que me parecia ter-me vós, confortável em seu leito, olha para mim,
aquela alma comunicado as suas, e sentia o deita em um leito de fogo, onde sofro tormentos
corpo tão exausto de forças que mal podia insuportáveis”. E me fazia ver esse leito horrível,
mover-me. que ainda me faz tremer toda vez que penso
Porém, como não deve-se crer nos sonhos, não nele. A parte superior era formada de agudos
dava a isto uma grande importância, até que espinhos, todos em brasa, que lhe penetravam
esta alma forçou-me a pensar no caso, as carnes, enquanto me dizia que isto era por
apertando comigo tão fortemente que nem me causa da sua preguiça e negligência na
deixava tomar descanso, dizendo-me observância das regras e pelas suas infidelidades
continuamente: “rogai por mim ao Senhor, para com Deus. “Rasgam-me o meu coração
oferecei-lhe os vossos sofrimentos juntamente com espetos de ferro ardente, esta é a minha dor
com os de Jesus Cristo para aliviar os meus. mais atroz, em castigo dos pensamentos de
Concedei-me os merecimentos de tudo o que murmuração e de dissipação que tive contra os
fizerdes até a primeira sexta-feira de Maio, em meus superiores. Minha língua é roída por
que comungareis por mim”, – e continua a santa vermes em punição das minhas palavras contra
– então eu fiz isso com a licença de minha a caridade e pelas faltas na observância do
superiora. Mas o meu vexame foi crescendo silêncio: eia, vê, minha boca toda coberta de
sempre de tal forma que me oprimia úlceras. Ah! Quisera, sim, que todas as almas
continuamente, sem poder eu nunca ter lenitivo. consagradas a Deus me vissem nestes horríveis
tormentos! Se pudesse lhes fazer experimentar a
A superiora por isso mandou-me descansar por intensidade de minha penas e as que estão
alguma tempo em meu leito. Mas, logo que fui, preparadas para os que vivem negligentemente
vi a infeliz perto de mim, que me disse: “Eis aí na própria vocação, sem dúvida eles andariam
de outro modo: na exata observância de suas as penas devidas às almas negligentes no
regras e cuidariam bem em não cair nos defeitos serviço de Deus.
que me fazem sofrer tanto”.
Esta narração nos faz tremer. Que horríveis
Diz Santa Margarida Maria Alacoque: “Tudo isto tormentos não sofreu aquela alma por defeitos
me excitava aos prantos, e as irmãs julgando- veniais! As orações, as mortificações, as
me doente, queriam dar-me remédios, mas Comunhões seráficas de uma santa inocente e
aquela alma disse-me: “Pensam bem em aliviar tão querida por Deus, não valeram plenamente
os teus males, mas ninguém pensa em aliviar os para livrar aquela alma, e ainda ficou presa por
meus. Ai! E no entanto, só um dia de silêncio muito tempo no Purgatório! Que será de nós,
perfeito de toda a comunidade curaria minha que somos tão imperfeitos, tão indiferentes e
boca ulcerada. Outro dia passado nas práticas tão apegados à terra?
de caridade e sem nenhuma falta, curaria minha
língua atormentada. Um terceiro dia passado –––––
sem a mínima murmuração curaria meu
coração torturado”. O Padre espiritual da mesma Santa, o Padre De
la Colombiere, foi detido no purgatório até o
Depois de ter recebido a Sagrada Comunhão enterro de seu corpo, só por algumas
que ela me tinha pedido, me disse que seus negligências no exercício do amor divino.
incomparáveis tormentos diminuíram muito,
porque tinha-lhe sido aplicada também uma –––––
Missa em honra da Paixão, mas que devia ainda
ficar por muito tempo no Purgatório para sofrer Todos sabem quão grande foi o fervor das
primeiras companheiras de Santa Teresa de excelente que dela fez o Padre Camilo Mella da
Ávila, daquelas almas eleitas que ela associara a Companhia de Jesus.
si na reforma do Carmelo. Contudo, além da
sua santidade, além de suas heroicas –––––
penitências, quase todas tiveram de
experimentar as penas do Purgatório. As faltas cometidas contra o voto de pobreza
serão gravemente punidas no Purgatório. Já
Ainda mais, nas numerosas visões que teve a citamos o exemplo do frade capuchinho que
Santa de Ávila sobre a sorte futura das almas, passou pelo Purgatório apenas por ter utilizado
viu apenas três delas voarem logo ao Paraíso. um pouco de lenha a mais em seu ofício de
“Observarei simplesmente – diz a santa – que de cozinheiro.
tantas almas eleitas, por mim conhecidas em
vida, vi somente três voarem diretamente ao Santa Gertrudes viu o Demônio apanhar com
Céu sem passarem pelo Purgatório: a do suma presteza e alegria os fios de lã que, no
religioso a quem falei no decurso deste livro, a ato de fiar, ela deixava cair, e compreendeu que
do Padre Pedro de Alcântara (São Pedro de aqueles flocos teria sido apresentados no
Alcântara) e a do Padre Dominicano que era o Tribunal de Deus como faltas contra a santa
seu confessor, o Padre Pedro Ibanez”. pobreza que deveriam ser expiadas no
Purgatório.
Note-se que no tempo de Santa Teresa de
Ávila, muitas pessoas viviam de forma tão –––––
ilustre que eram tidas como santas, como
pode-se ver na sua vida e no comentário Refere Santo Afonso de Ligório, que um
religioso tinha o costume de atirar no chão as
migalhas de pão que ficavam sobre a mesa. As almas mesmas, embora julgadas com
Prestes a morrer, viu em feia catadura o espírito severidade, repetem continuamente em meio
maligno que reunira todas aquelas migalhas àquelas chamas: “Justus es, domine, et rectum
em um saco e lhes mostrava com ironia como iudicium tuum; Justo és, ó Senhor, e retos são
se lhe dissesse: “Em breve iremos nos ver no teus juízos”.
Tribunal de Deus; estas migalhas converter-se-
ão em outros tantos tições para te queimarem Os seculares que lerem estas páginas, não
no Purgatório”. Este fato suscitou no convento concebam a mínima desconfiança na Bondade
uma santa vontade de observar o voto de e Misericórdia Divina. Pensem por um lado, o
pobreza. Os monges revistaram bem cada pecado, embora venial, é sempre ofensa a uma
canto da cela a fim de examinar se tinham Majestade Infinita, e pelo outro, aqueles
alguma coisa supérflua para que fosse castigos, mesmo que rigorosos, são
entregue ao superior. temporários e não eternos, e que a glória do
Paraíso é um bem tão grande que nunca se faz
Não nos admira o rigor que Deus usa com os o bastante para alcançá-lo.
religiosos. São-lhes concedidas graças muito
mais abundantes do que aos seculares, e eles Deus é sempre aquele Pai que recebe o filho
têm o direito de pedirem mais! Cumpre pródigo, que aceita o arrependimento da Maria
recordar a parábola dos talentos, nos quais são Madanela e do Bom Ladrão e lhes concede tal
figurados os dons e os auxílios que Deus abundância de graças que os eleva às mais
concede a cada alma para que possam sublimes alturas da santidade.
trabalhar em sua eterna salvação.
–––––
Deixem portanto de lado a desconfiança,
Li no Santo Sacramento do Faber, em uma nota, concebam pelo contrário horror ao pecado e
que São João Crisóstomo julga que Caim tenha estejam certos de que o Senhor os tratará com
feito penitência e tenha se salvado. Tal opinião imensa bondade, compadecendo-se da
rende homenagem à misericórdia de Deus, fraqueza e fragilidade da natureza. Quando
dando-me muito prazer, porque é um novo uma alma se decide verdadeiramente a amá-lo
estímulo para os pecadores, ainda que os mais e evitar as ofensas contra Ele, ganha-Lhe o
obstinados, a voltarem para o reto caminho. Coração e Dele consegue todos os favores que
desejar.
Os santos Agostinho, Maria Egipcíaca, Taís,
Pelágia, Margarida de Cortona e outros,
estavam entregues a todo o vício, e assim
mesmo receberam do bom Deus o perdão e os
auxílios extraordinários para se tornarem
grandes santos. Jesus Cristo é sempre aquele
Bom Pastor que vai em procura nos montes,
vales e barrancos pelas ovelhas perdidas para
poder reconduzi-las ao rebanho. Maria
Santíssima é sempre a Mãe piedosa dos
pecadores, a Saúde dos Enfermos da alma e do
corpo, o refúgio dos aflitos e dos que são
tentados.
CAPÍTULO X mentira.
Deus, que é a própria Verdade, odeia este
defeito e pune-o severamente. Os bilingue
Pecados veniais mais frequentes – A mentira – A detestor (Prov. VIII, 13), e nos aconselha: “Ante
murmuração – A apostólica firmeza de Santo omnia opera verbum verum precedat te: antes
Agostinho – A tuberculose da alma de cada coisa te proceda a palavra de verdade
(Ecl. XXXVII, 20).

Entre as sete coisas que Deus abomina, está a


Um dos pecados veniais em que se cai de linguam mendacem, a língua mentirosa. Jesus
ordinário muitas vezes, é a mentira. Para Cristo nos deu a regra de como falar: “sit autem
evitarmos uma repreensão; para sermos sermo vester: est, est; non, non (Mt. V, 37). “O
julgados inocentes; para salvarmos nossa vosso falar seja: sim, sim, não, não”, isto é, que
honra; para satisfazermos o nosso amor seja sincero, simples, sem simulação, ficção ou
próprio, negamos a verdade ou a diminuímos. ampliações.
No entanto, não é lícito mentir por nenhuma
coisa do mundo, embora se trate até de salvar –––––
a própria vida ou fazer o bem ao próximo ou
livrá-lo de uma desgraça. A palavra nos foi Santo André Avelino exercia no mundo a
dada para exprimir o pensamento e o profissão de advogado, e, uma vez,
sentimento da alma, não para negá-lo. Santo defendendo uma causa, saiu-lhe da boca uma
Agostinho escreveu um tratado que era mentira. Entrando em si, concebeu por ela
expressamente voltado a afastar os cristãos da tanta dor, que abandonou o foro, consagrou-se
a Deus e tornou-se um grande santo, porque cada uma te custará sete anos de
favorecido por muitos dons sobrenaturais. A Purgatório”. Ninguém pode saber o castigo que
mesma dor deveríamos conceber a nós Deus nos inflige, porque é variável segundo a
mesmos e detestar este defeito que gravidade da culpa e a maldade de quem a
cometemos com tanta facilidade. Façamos do comete, porém, podemos afirmar que a Eterna
nosso, o santo proposito de Jó: “Donec superest Verdade a odeia e fará pagar aqueles que a
halitus in me... nec língua mea meditabitur comete. Por isso, muito santos preferiram a
mendacium (Jó, XXVII, 3, 4): Enquanto me restar morte a uma mentira, ainda que pequena.
um alento, minha língua não inventará
mentiras”. –––––

Falando às almas devotas que aborrecem as Também nesta vida Deus puniu muitas vezes
mentiras patentes, quisera lhes fazer notar um severamente a mentira. O criado de Eliseu, Jesi,
modo de pecar contra a verdade: o de contar foi castigado com a lepra quando negou ter
as coisas exagerando-as, para desafiar a recebido dons de Naaman Sírio.
admiração. A verdade é uma e indivisível, não
admite aumento nem diminuição; e, assim, –––––
tudo o que a ela ajuntarmos é falsidade e erro.
No Purgatório as mentiras serão punidas muito Ananias e Safira caíram mortos no mesmo
severamente. Quantas almas têm aparecido instante por uma mentira dita ao Príncipe dos
com a língua cruelmente atormentada por Apóstolos.
terem mentido! Quando eu era menino, ouvi
muitas vezes me dizerem: “Não digas mentiras, Outro defeito no qual também se cai bastante,
é a murmuração contra os superiores. Não falo injúrias, saíam resolutos a defender o próximo.
da murmuração grave, a que detrai a fama
alheia e destrói a honra, que é mais preciosa –––––
que as riquezas; mas dessas pequenas
desaprovações, destas palavras de censura que Santo Agostinho fizera escrever em sua sala de
não honram os ausentes. Quem quer avançar jantar os seguintes versos: “Quisquis amat dictis
no caminho da perfeição deve guardar-se absentibus rodere vitam, Hanc mensam
absolutamente de qualquer palavra que indignan noverit esse sibi” – “Quem gosta de
ofenda, ainda que levemente, a caridade para falar mal dos ausentes, saiba que não pode
com os nossos irmãos. Nem digamos que as sentar-se a esta mesa”.
coisas contadas são verídicas, porque a E quando certa vez, um convidado se pôs a
murmuração consiste propriamente no murmurar, o santo bispo lhe apontou o escrito
manifestar coisas verídicas, algo que realmente e este logo tapou a boca.
aconteceu; se as coisas fossem falsas não
seriam mais murmuração, mas calúnia. Do O Purgatório dos murmuradores é longo e
próximo, ou falar bem ou calar-se. “Não julgueis terrível, segundo o que consta as aparições.
– diz Nosso Senhor Jesus Cristo no Santo “Seis são as coisas – diz o sábio – que o Senhor
Evangelho – e não sereis julgados”. Só a Deus tem ódio, e a sétima é, para a alma dele, uma
compete pronunciar juízo, a Deus que penetra execração. E qual é esta sétima que Ele odeia
o coração e lhe descobre as secretas intenções, mais que todas? Quem entre os irmãos semeia
e não ao homem que não vê senão a ação discórdias (Prov. VI, 16, 19)”.
externa. Os santos costumam evitar a todo o
custo, qualquer ofensa à fama alheia e, ouvindo –––––
contra o próximo, frouxidão no cumprimento
Por isso os pune severamente nesta vida como de seus deveres, gulodices e impaciências são
puniu Maria, irmã de Moisés, que se tornou culpas de toda a hora. É assim um alma
leprosa por uma murmuração contra o irmão, e vitimada pela tuberculose que a consome, e
aos Israelitas no deserto, quando murmuraram cedo leva-la-á à tumba do pecado mortal. Tal
contra o seu condutor, ou então os espera no conduta causa náuseas e Deus diz a esta alma
Purgatório ou no Inferno, segundo a gravidade. desgraçada: “Scio opera tua; quia neque frigidus
es neque calidus. Utinam frigidus esses aut
As almas religiosas portanto, deverão ser calidus. Sed quia tepidus es et nec frigidus nec
escrupulosas na caridade para com o próximo, calidus, incipiam te evomere ex ore meo (Ap. III,
assim como na castidade e guardar-se bem de 16)”. “Conheço as tuas obras e que não és frio
ofendê-la nem de leve, porque é um espelho nem és quente: mas porque és tibio, e nem frio e
que se empana ao menor sopro; é uma água nem quente, eu começarei a te vomitar da
límpida que em um momento se turva. minha boca”.

Há também um estado habitual de pecado Daqui os santos padres deduzem o perigo de


venial, um estado em que as culpas veniais se condenar eternamente uma alma tíbia, e
sucedem-se continuadamente; é o estado da procuram por todos os meios agitá-la e fazê-la
tibieza. Uma alma tíbia no serviço divino, sair do leito das suas culpas habituais, no qual
comete talvez mais pecados do que os descansa tranquilamente. Se nos encontrarmos
instantes de sua vida. Distrações voluntárias na neste estado miserável, procuremos sair dele o
oração, tédio nos exercícios de piedade, mais breve possível se nos é cara a salvação de
queixas contra os Superiores, murmurações nossa alma, antes que Deus nos puna.
CAPÍTULO XI deliberado de um gênero particular, para o
qual sejam inclinados, como por exemplo,
contra a caridade ou contra a temperança, etc.
Pecados veniais deliberados – Imperfeições da
natureza humana – Palavras memoráveis de –––––
Santa Teresa e do Santo Cura D'Ars – Duas
nobres aspirações Santa Teresa de Ávila fez o voto de obrar
sempre o melhor, o mais perfeito, e neste voto
está – evidentemente – incluída a fuga das
culpas veniais.
Temos agora que responder a uma pergunta:
Pode o homem evitar todas as culpas veniais? Observemos, porém, que antes de emitir tais
promessas deve-se consultar sempre o
Distinguamos duas espécies de culpas: os confessor que nos conhece bem a fundo,
pecados veniais deliberados, cometidos de porque é muito fácil deixar-nos levar por um
olhos abertos, com vontade e conhecimento da fervor momentâneo e assim errar.
malícia e as imperfeições ou fragilidades
inerentes à natureza humana. Os primeiros As fragilidades próprias da fraqueza humana
podem-se evitar com a graça de Deus. Muitas são inevitáveis sem uma graça especialíssima
também fazem votos – de acordo com o seu de Deus, a qual foi concedida à incomparável
diretor espiritual – de não cometer pecado Rainha dos Anjos Maria Santíssima: “Tota
venial nenhum plenamente voluntário, ou pulchra es, amica mea, et macula non est in te”:
então de não cometer pecado venial “Toda bela és tu, minha dileta, e mancha
alguma na há em ti” (Cant. IV, 7).
–––––
Até os santos mais insignes da Igreja não foram
isentos delas. Nessa qualidade de culpas, diz São célebres algumas palavras de Santa Teresa
São Bernardo, tanto é culpável o descuido, de Ávila: “Prouvera a Deus que tivéssemos
como é repreensível o temor excessivo: “In medo, não do demônio, mas de todo o pecado
hujus modi, quasi inevitabilibus (culpis), et venial, que pode prejudicar-nos mais do que
negligentia culpabilis est et timor immoderatus”. todos os demônios do Inferno”. E repetia
Portanto, devemos detestar semelhantes continuamente às suas queridas filhas
defeitos, porém, não perder a coragem, pois espirituais: “De pecado advertido, por pequeno
Deus facilmente os perdoa quando a alma os que seja, Deus nos livre”.
abomina: “Septies cadet justus et resurget (Prov.
XXIV, 16). Sete vezes cairá e o justo se –––––
levantará.
O Santo Cura de Ars, São João Maria Vianney,
––––– entrando às escuras em seu quarto para
acender um candeeiro, queimou por engano
São Francisco de Sales diz que os defeitos uma cédula de grande valor que um cavalheiro
cotidianos, assim como irrefletidamente, assim lhe tinha oferecido para os pobres. Tendo conta
também irrefletidamente se apagam com o isto a um sacerdote que era seu coadjutor nos
Sinal da Cruz, com os exercícios de piedade, trabalhos do sagrado ministério, este, aflito
com os atos de amor a Deus e com os usos dos exclamou: “Que desgraça!” e então o santo
Sacramentos da Igreja. respondeu tranquilamente: “Oh! É desgraça
inferior a um pecado venial”. duas mais nobres aspirações do homem hão de
ser: Fugir do pecado e crescer cada dia mais
O mesmo deveríamos dizer quando nos na graça de Deus, à semelhança do sol, que
acontece alguma desgraça temporal. Sofremos em sua carreira se apressa para o meridiano.
uma humilhação ou um revez de fortuna? É um
mal menor que um pecado venial. Somos
visitados por alguma doença ou feridos pela
perda de algum parente ou amigo? É uma
desgraça inferior a um pecado venial. Se “Justorum semita, quasi lux splendens, crescit et
tivessem pecado venialmente, deveriam chorar procedit usque ad perfectum diem”
muito mais, porque teria ofendido à Eterna
Majestade de Deus.

Devemos acostumar-nos desta forma a


confrontar os males psíquicos e as desgraças
temporais com o mal moral, isto é, com o
pecado, e chegaremos a conceber um justo
horror por este último, que é o verdadeiro,
único e sumo mal que existe no mundo.

Pelo contrário, a graça de Deus é o maior bem


que o homem pode possuir; um bem superior
à fama, às riquezas e à própria vida. Por isso, as

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