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“ESPORREI NA MANIVELA” E A CRÍTICA AO MODELO SOCIAL

BRASILEIRO.

Música: Esporrei na Manivela


Artista: Raimundos
Álbum: Lavô Tá Novo

Continuando nossa série “Análise da Música Brasileira: Uma Abordagem Sociológica”,


iremos dissecar esta que é uma das músicas mais densas e complexas do cancioneiro nacional.
Apresentada ao grande público pela primeira vez em 1995, no álbum intitulado "Lavô Tá
Novo", observa-se em sua letra uma grande influência do pensamento sociológico moderno,
retratando o modo de vida da população encapsulada em um de seus ícones mais relevantes,
o trem urbano - transporte de massa símbolo do proletariado nos grandes centros.

Contada através de crônica, mal-entendida por alguns ouvintes desatentos como


anedota, guarda em suas entrelinhas ferrenha crítica ao capitalismo enquanto modelo
econômico. O próprio título da canção, "Esporrei na Manivela", e seu significado críptico,
fornecem a pista necessária para reconhecermos uma obra ímpar, a qual devemos discutir
sem mais delongas, dada a avidez intelectual do tema.

Entrei no trem, esporrei na manivela


Cobrador filha-da-puta me jogou pela janela

A letra começa nos apresentando a dura realidade da inclusão no mercado de


trabalho, alegoricamente representado pelo “trem”. Ao protagonista, um indivíduo qualquer
de baixa renda, sequer é dado um nome; solitário, é apenas mais um na multidão. Ao
“esporrar na manivela”, demonstra sua incapacidade de se adaptar aos rótulos
comportamentais estabelecidos, provavelmente resultado de uma educação formal
insuficiente, levando à sua posterior exclusão social pelas camadas mais elevadas – no caso, o
cobrador.

Caí de quatro com o caralho arregalado


E uma véia muito escrota me mandou pro delegado

Iniciado seu ocaso, tal qual um Holden Caulfield verde-e-amarelo, o narrador “cai de
quatro”, ou seja, sente-se humilhado, mas retém forças amparado por sua juventude e viril
disposição (o “caralho arregalado”), despertando ciúmes e inveja de uma sociedade
desgastada e conformada, a “véia”, que apela sempre ao paternalismo estatal (na figura do
delegado) para resolver os problemas com os quais não pode lidar.

O delegado tinha cara de veado e me mandou tomar no cu


Tomei no cu, mas tomei no cu errado
Quando eu menos percebi era o cu do delegado

Aqui a história começa a entrar em ebulição no momento em que o protagonista,


rejeitando a autoridade constituída, reconhece no delegado uma figura caricata e
descontrolada e responde à altura, alertando o ouvinte para o óbvio: os ritos autoritários
aplicados contra a população brasileira cedo ou tarde revertem para os próprios algozes, uma
vez que eles também fazem parte deste mesmo esquema social.
O coletivo é muito bom para sarrar
Pois o povo aglomerado sempre tende a se esfregar
Com as nega véia é perna aqui perna acolá
E se a xereca é mal lavada faz a ricota suar

Nestes versos, fica clara a opinião do autor: vivemos em um meio corrompido, onde os
indivíduos perderam seus valores coletivos e buscam vantagens individuais, mundanamente
mesclados em massas acéfalas, sexualizadas, primitivas.

"fala cabeça"
Se é nos calombos ou nas freadas
Se é nas curvas ou nas estradas
São situações propícias para o ato de sarrar

A corrupção e a imoralidade ganham força quanto mais percalços apareçam no


caminhar da sociedade, e é nestas pedras que brotam as sementes da decadência.

No coletivo o que manda é a lei do pau


Quem tem, esfrega nos outros
Quem não tem só se dá mal

Esse é um dos momentos mais singulares, um verdadeiro aforismo moderno. Aqui,


percebemos a cilada do “coletivo” em um ambiente hostil, seja ele o capitalismo ou o
socialismo, pois nestes casos a violência se torna a chave da cadeia hierárquica

"Seu delega
É o seguinte
Seu delegado, lebera aí os minino
O Raimundos é gente boa, seu delega
Você também é chegado no negoço aê doutô
O que que é?
Manera malandro.
Aê doutô
Vamo é cantar o rock pra você
Você é gente boa
Rock Menino, pro cacete do delegado!"

Pesarosamente observamos a transformação do indivíduo, a quebra do seu princípio


moral em função de uma saída fácil, deixando-se levar pelo torpe estado de coisas e apelando
também ele ao coronelismo, haja vista que nunca lhes foram oferecidos os meios adequados
para lutar pelos seus direitos constitucionais. Percebemos também, de forma sutil, que a
música tem caráter autobiográfico.

A letra resume de forma brilhante o ciclo que se repete incessantemente: a perda da


visão geral de mundo, do sentido de coletividade, que acabam fundidos em um sentimento
deturpado de desesperança e falta de horizonte, passado continuamente às gerações
seguintes.

Um verdadeiro monumento conceitual.

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