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VIEIRA, Alberto (1998),

Dados para a História da alimentação


na Madeira,

in Folclore, 1998, pp.34-36

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (1998), Dados para a História da alimentação na Madeira, in Folclore, 1998,
pp.34-36, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeira-
edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/1998-alimentaçãomadeira.pdf, data da visita: / /

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I I L I W W U ~ rira a história..da
No mundo actual a culinária adquiriu elevado Como a prova disso, a documentação permite
requinte. A sociedade chamada de consumo uni- estabelecer a ementa diitria do convento e do
versalizou os nossos habitas gastronómicos. Os nível das raqões diárias de carne e peixe.
hiperrnercados, os restaurantes são a expressão Tambkm aqui é evidente uma diferenciação
disso e ninguém os dispensa. O acto de comer social forte na mesa. Enquanto as freiras se deli-
deixou de ser uma necessidade fisiológica para ciam com as carnes de vaca e galinha, o peixe
se tornar um prazer. O requinte da cozinha, a nos dias de jejuns e as diversas guloseimas da
arte e mestria dos cozinheiros assim o demon- doçaria, aos servos e trabalhadores da cerca do
stram. convento apenas chega o milho e o centeio. Na
A mesa transformou-se num espaço impor- verdade, a diferenciqão social, que marcou de
tante*A mesa selam-se contratos, decidem-se os forma evidente estas históricas sociedades, teve
destinos de um país, ou celebra-se um evento na mesa uma expressão muito evidente.
particular. Ainda há bem pouco tempo a inaugu- Os forasteiros, de passagem ou em busca de
ração da Ponte Vasco da Gama fez-se com uma cura para a tísica pulmonar, isto nos séculos
monumental feijoada. XVIII e XIX, são os criadores e apreciadores da
A nossa culinária não está aIheia a esta reali- nossa gastronornia. Habituados 5s lautas mesas,
dade. Ela é fruto duma herança europeia dos reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio
colonos que lançaram a semente no séc. XV e está no Funchal, nos salões das quintas ou do
dos demais que foram atraídos pela sua magia e Palácio do Governador,. Assim, em 1793, saiu
beleza. Os ingleses são os segundos descobri- da ilha agradado com a mesa do governador da
dores da ilha e aqueles que mais influência nos ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho "A sua
legaram. A mesa toma-se variada, ajusta-se ao mesa é uma das mais variadas e delicadas e em
paladar dos convivas e à disponibilidade dos poucas partes do mundo se poderia apresentar
produtos. A posição da ilha, o seu protagonismo cousa semelhante.
histórico contribuíram para a sua

I
Por outro lado não é fácil conhecer
a culinária madeirense de outros tem-
pos, Carecemos de tratados de
culinária e de textos que retratem as
ambiências quotidianas, e acima de
tudo, caseiras, até meados do séc.
XVII. Perante isto, poderá optar-se
por soluções alternativas, como o
recurso aos livros de despesa com os
doentes do hospital da Misericórdia
do Funchal ou dos conventos. Neste
último caso, temos o livro de
Eduarda de Sousa Gomes sobre o
Convento da Encamaçiio do Funchal. L
Travessas esplêndidas sustentam animais Depois, o calendário religioso e o ano agrícoia
inteiros; ali deparei com um parquinho rechea- estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa é
do, rodeado de laranjas, uma lebre armando um tradição o inharne cozido com bacalhau, no S.
salto, faisões tentando levantar voo, ornados Martinho o atum salpresado. Hoje, todavia este
com a sua vistosa e flamejante plumagem". calendário gastronómico perdeu algumas das
Esta opulência contrastava com a frugalidade suas raz6es de ser. As actuais técnicas de con-
da alimentação do povo, Diz-nos George Forster servação dos produtos, a actual sociedade de
que "os camponeses são excepcionalmente consumo permitem que a disponibilidade dos
sóbrios e frugais; a alimentqão consiste em pão, produtos e o seu consumo percam a sazonali-
cebolas, vários tubérculos e pouca carne". dade.
Na verdade, a mesa madeirense foi sempre A tradição estabeleceu a matriz, mas os diver-
muito frugal, situação que era quebrada nos sos contactos e a presença & forasteiros vieram
momentos festivos, nomeadamente no Natal, quebrar a monotonia da ementa diária e transfor-
Espírito Santo e festividades em honra dos mar o acto de comer. A ilha, terra de passagem
diversos oragos das paróquias da ilha. É em de gentes, assistiu também à movimentação e
tomo do calendário religioso que o rnadeirense descoberta do mundo animal e vegetal. A ilha
estabelece os vários momentos que marcam a foi, na verdade, o espaço de passagem das plan-
sua gastronomia. Para ele, o Natal# a festa, isto tas do continente Europeu para o novo mundo e
é, o momento mais importante do ano da vivên- vice-versa. Da Europa chegaram á ilha os
cia festiva quotidiana. A devoção religiosa mis- cereais, a vinha e a cana de açiicar. Os dois
tura-se com os folguedos e as delícias da mesa. primeiros por exigência da cultura cristã. A
A tradição anota mesmo um calendário para este América e a África revelaram-se aos europeus
ritual. A 8 de Dezembro faz-se o bolo de mel. A pela sua peculiaridade e variedade dos frutos. Os
15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que descobrimentos peninsulares foram também a
as linguiças e a carne de vinho e alhos estejam descoberta disso,
prontas para o Natal. Neste dia no regresso da Aos poucos a mesa europeia torna-se rica e
Missa do Galo, prova-se a carne. A mesa man- variada, Cedo o ocidental assimilou aquilo que
tém-se farta de licores, doces e bolos para gáu- foi encontrado. A aventura marítima dos home-
dio dos que estão e dos visitantes. O caldo de ns foi acompanhada de perto pela das plantas.
galinha caseira e a carne assada completavam o Pirnentos, feijão, mandioca, amendoim, choco-
repasto natalício. late, café, chá, baunilha, ananás, banana, milho e
Em 1842 o mildio atacou a batata
irlandesa, provocando uma das maiores
mortandades na população, que se
repercutiu noutros espaços europeus. A
Madeira foi vítima dessa situação entre
1846 e 1847. A fome vitimou milhares
de madeirenses e forçou outros tantos à
emigração. Note-se que esta situação
conduzirá inevitavelmente a uma outra
revolução alimentar com a plena afir-
mação do milho na dieta popular. Este,
sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da
mesa madeirense na primeira metade
do nosso século, apenas as guerras
mundiais condicionaram o seu con-
sumo e conduziram a novas crises de
fome.
Hoje a nossa culinária é resultado
dessa herança cultural dos colonos
europeus, das aportações dos
forasteiros e rotas marítimas. Os
- cereais perduram soba forma de pão
batata chegam á mesa europeia. A nossa va- ou diferentes formas de cozinhado. O
riedade de frutos é resultado disso. A viagem de milho conhece-se hoje mais como frito do que
Vasco da Gama (1497- 1499) veio contribuir como papas. A batata persiste na mesa. E a
para a generalização do consumo das especia- sobremesa é hoje a mais requintada e rica, quer
rias, já conhecidas dos europeus, mas só agora em aromas e sabores. Tudo isto obra da
com uma rota segura da sua divulgação. Assim Natureza e do Homem.
ao tradicional agafrão, a mesa apura-se com as
pimentas orientais. Bibliografia
Por muito tempo alguns produtos foram iden-
tificados com determinadas regiões, A ma@
apela-nos à grande metrópole de Nova Iorque,
AMORIM. Roby, Da máo B boca. Para uma história I
da Alimentapão em Portugal, Lisboa, 1987.
enquanto o ananás nos recria as paradisíacas
ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir ARNAUT, Salvador Dias, A arte de comer em
do séc. XVIII. A alimentação progrediu e as Portugal na Idade Média, Lisboa, 1986
ementas universalizaram-se. os produtos perder- Cousas e Lousas das cozinhas madeirensas,
Funchal, 1987
am o selo de identidade de origem e entraram
definitivamente no quotidiano. A mesa do GOMES, Eduarda de Sousa, O Convento da
mundo ocidental uniformiza-se. As divergências Encarnaçáo do funchal, Subsídios para a sua
e o exotismo sucedem no confronto com outras históría, 1660, 1777, Funchal, 1995 , - . -,
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culturas, como o mundo árabe e as regiões ori- ':"h ,;,"*?
A

entais. PORTO DA CRUZ, Visconde do, A "cblTnClria


Madsirense, in Das Arfes e da história da
fi neste longo processo de transformação que
Madeira,n"3, 1963
se enquadra a afirmação da batata, que teve ma
Irlanda o principal centro difusor do tubérculo RITCHIE, Larson, I. A. A Comida s civilização de
descoberto no novo mundo. Entre n6s, a sua
generalização aconteceu em princípios do d c .
XiX, mas de imediato se transformou no produ-
como a História foi ínfluenciada pelos gostas
humanos, Lisboa, 1995 I
to preferido d a mesa de subsistência SARMENTO, Alberto A., A sobremesa, três frutos I
exóticos, Funchal, 194E
madeirense, retirando lugar aos cereais.
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VIEIRA, Alberto (2006),

Madeira. Da Terra às Tradições


Gastronómicas

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VIEIRA, Alberto (2006), Madeira. Da Terra às Tradições Gastronómicas, Funchal, CEHA-Biblioteca


Digital, disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/ gastronomia-1.pdf,
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MADEIRA
DA TERRA ÀS TRADIÇÕES GASTRONOMICAS

Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es


Jean Athelme Brillant-Savarin(1755-1826} Aforismes, 1825

Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és (Provérbio alemão)

O universo só existe porque há vida, e tudo o que vive se alimenta.


O destino das nações depende da forma como elas se alimentam.
O prazer da mesa é de todas as idades, de todas as condições, de todos os países e de todos os dias; pode se
associar a todos os outros prazeres e sobra como último para consolar-nos da perda dos outros.
O Criador, ao obrigar o homem a comer para viver, convida-o com o apetite e recompensa-o com o prazer.
BRILLAT-SAVARIN. A Fisiologia do Gosto. Rio de Janeiro: Salamandra, 1989

Cada um é o que come, com quem come e como come.


A nacionalidade não é determinada pelo lugar onde se nasceu, mas pelos sabores e cheiros que nos
acompanham desde a infância.
LAURA ESQUIVEL, Intimas suculências (tratado filosófico da cozinha), Lisboa,1998

Ler é beber e comer. O espírito que não lê emagrece tal como o corpo que não come.
Lire, c'est boire et manger. L'esprit qui ne lit pas maigrit comme le corps qui ne mange pas.
(Victor Hugo[1802-1885],Faits et croyances, p.151, in Océan, Éd.Robert Laffont coll.
Bouquins)

Le besoin de créer est dans l'âme comme le besoin de manger dans le corps.
Christian Bobin (La folle allure, p. 26, Éditions Gallimard 1995)

ALBERTO VIEIRA
CEHA-MADEIRA
avieira@madinfo.pt
Os aforismos acima enunciados dão conta da importância que assume a alimentação na
vida da humanidade e a forma como ela condiciona o nosso modo de vida. Todavia a
forma como cada um de nós ou dos nossos antepassados se relaciona(va) com a
alimentação parte de diversas condicionantes resultantes da nossa cultura material, da
disponibilidade e expansão de culturas e das condições da terra, e, acima de tudo, dos
condicionantes civilizacionais, que quase sempre têm origem nas determinações e preceitos
religiosos. Aliás, a religião teve e ainda continua a ter um papel destacado na alimentação,
determinando a afirmação ou proibição de produtos.

A LITERATURA E A CULTURA GASTRONOMICA

Podemos afirmar que foi a França o berço da revolução ocidental da alimentação. São os
franceses que a partir do século XVIII se especializam na arte da cozinha, criando à volta
da mesa uma atitude distinta. A alimentação deixa de ser apenas uma necessidade para ser
tornar algo prazeroso, como nos afirma Jean Arthelme Brillat-Savarin (1755-1826) em a sua
Fisiologia do Gosto (1825). A gastronomia como forma de prazer tem em Roland Barthes
algumas das suas melhores expressões estruturalistas: Mythologies (1957), Systéme de la Mode
(1967). O turismo levou à valorização do chamado café francês, surgido em 1674, e do
restaurante moderno que surge também aí a partir do século XVIII.

Podemos ainda testemunhar a existência de uma literatura gastronómica, anterior a esta


exaltação do gosto, que hoje acabou por assumir uma posição relevante na sociedade. Por
outro lado a literatura universal regista a presença da gastronomia. O acto de comer e beber
é uma constante na trama literária, desde a poesia, teatro ou romance. A Literatura
universal regista de forma clara uma ligação entre o trama da criação literária e a
gastronomia.

O brasileiro José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), um dos mais acérrimos defensores
da comida caipira, apresenta em 1941, em A Reforma da Natureza, algo de inovador. Apresenta
o livro como algo comestível, propondo-se a impressão em papel fabricado de trigo e o uso
de uma tinta inócua. Deste modo, O leitor vai lendo os livros e comendo as folhas. Leu uma, rasga e
come! Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado. (...) O livro-pão! O pão-livro! Quem
souber ler lê o livro e depois o come; quem não souber come só, sem ler. Desse modo, o livro pode penetrar
em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos.

A cada parte da estrutura do livro corresponderia uma situação do repasto gastronómico.


Parte-se da sopa, para a salada aos pratos de assado, arroz e tutu de feijão com torresmo,
concluindo-se com a sobremesa – manjar branco, pudim de laranja, doce de batata. Ao
índice ficava reservado o espaço do cafezinho e, certamente, o digestivo. E conclui: Dizem
que o livro é o pão do espírito. Porque não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas.
Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente
com o pão e o leite. Deste modo ficava resolvido o problema do analfabetismo:.. o livro pode ter
entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos.

No mesmo continente deparamo-nos com a ousadia da escritora mexicana Laura Esquivel,


que associa o romance à culinária. Assim em 1989 em água para chocolate, o trama do
romance está construído em torno da culinária, sendo cada capítulo iniciado por uma
receita invulgar. Aqui, o trama amoroso de Pedro e Titã, constrói-se em torno da
gastronomia, sendo o cozinhar um acto de amor, paixão e sensualidade. Entretanto em
Intimas suculências (Tratado filosófico da Cozinha) [1998], apresenta-nos estórias com sabores.

A literatura portuguesa não é tão arrojada na sua valorização da gastronomia, mas o comer
e o beber são uma constante no retrato da sociedade. Tenha-se em conta que Eça de
Queirós afirmava que a cozinha e adega exercem uma larga e directa influência sobre o homem e a
sociedade. Daqui resulta a assiduidade das referências gastronómicas no mesmo Eça em O
Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, A Cidade e as Serrras e os Maias. Em Júlio Dinis, como
Ramalho Ortigão, temos, por exemplo, a exaltação da gastronomia do Alto Minho.

A RELIGIÃO E A ALIMENTAÇÃO

A religião, por força dos preceitos limitadores ou da valorização de alguns produtos e


bebidas no ritual religioso, foi responsável pela forma como se definem os hábitos
alimentares dos crentes, conduzindo à diferenciação de povos e espaços geográficos. A
religião ao mesmo tempo que promove a presença dos produtos no quotidiano dos crentes
pode também proibi-los. A presença dos cereais e da vinha na civilização ocidental cristã e
do arroz e chá no Oriente(China, Índia, Japão…) são resultado disso.

O Catolicismo é o mais tolerante de todos apenas estabelecendo o preceito do período


pascal, como de abstinência do consumo de carne. Posições distintas têm o judaísmo e o
Islamismo. O primeiro faz depender a dieta alimentar de um conjunto de regras
estabelecidas na lei Kashurt, de que se destaca a abstinência de comer carne de porco. Já
para o mundo islâmico as determinações são mais expressas, com o jejum no mês do
Ramadão e algumas limitações quanto ao tipo de alimentos. Assim existem três tipos de
alimentos: halal ou permitidos, Makruh, podem ser consumidos e Haram., os proibidos, em
que se destacam o álcool, carne de porco, macaco, cão, gato. A dos demais animais, a
exemplo do que sucedeu com os judeus, só pode ser consumida se o animal for morto de
acordo com as regras estabelecidas pela lei casher, de forma a minimizar o sofrimento do
animal.

As Religiões e filosofias orientais, assumem uma atitude semelhante na hora de definir o


cardápio. Todavia aqui a alimentação enquadra-se num ritual dominado pela vivência
espiritual. Noão será por acaso que Gandhi recomendava que bebe a tua comida e mastiga as
tuas bebidas. Em todas é evidente uma incidência na dieta vegetariana. Assim o hinduísmo
afirma a santidade dos animais, nomeadamente da vaca, de modo que não está permitido o
uso da carne na alimentação. O budismo não proíbe totalmente a carne, mas incentiva os
crentes a uma dieta vegetariana. Aliás, o próprio Buda havia determinado que os monges
deveriam abster-se de comer alguns tipos de carne: humanos, elefantes, cavalos, cachorros,
cobras, leões, tigres, porcos-do-mato e hienas

Hoje a dieta vegetariana é defendida por razões religiosas, no caso dos adventistas do
sétimo dia, budistas, os espíritas e os hindus, ou por razões filosóficas, como por exemplo
os Rosacrucianos da Fraternidade Rosacruz (Max Heindel). Por fim podemos salientar a
dieta macrobiótica que tema as suas bases no Taoismo e Zen Budismo, surgiu no séc.
XIX com um médico japonês, Sagen Ishizuka (1850-1910). No caso do
Taoísmo afirma-se o princípio de uma alimentação saudável para o corpo,
mente e espírito.A presença da carne é rara e mesmo assim a que se
apresenta é por vezes desadequada aos hábitos ocidentais. Assim o
consumo de carne de cachorro é aconselhado em face do frio intenso do
Inverno, pelo seu alto poder calórico. Por outro lado no processo de
purificação (Chai) os rituais determinam a abstinência da carne e produtos
lacteos. Estes rituais, quase só reservados aos mestres espirituais e aos
monges, antecedem alguns dias das cerimónias festivas mais importantes do
ano lunar.

O vinho é uma presença indelével no devir histórico da cristandade Ocidental e esta


comunhão perfeita que não pode ser ignorada. O vinho acompanhou os primeiros cristãos
nas catacumbas, expandiu-se com a Europa monástica e perseguiu a diáspora cristã além
oceano. A dupla presença no acto litúrgico e alimentação traçou-lhe o caminho e o
protagonismo. As ilhas atlânticas são exemplo disso. Mesmo em casos onde a cultura teria
dificuldades em se adaptar, como foi o caso de Cabo Verde, os europeus fizeram aí chegar
algumas cepas.

No princípio da ocupação as necessidades da alimentação e ritual cristão comandaram a


selecção das sementes que acompanharam os primeiros povoadores. Assim, o cereal
acompanhou os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração dos
europeus. A fertilidade do solo, pelo estado virgem das terras e das cinzas fertilizadoras
resultantes das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis inatingíveis, criando
excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa
e praças do norte de África. Segundo alguns autores eles foram a base do processo de
povoamento da Madeira, uma vez goradas as iniciativas de penetração no comércio do
produto no norte de África.

A afirmação da cana-de-açúcar é fruto da afirmação e expansão do budismo e islamismo.


Aliás, Buda (c.563-c.486) é considerado o “rei do Açúcar” e a região do Nepal onde nasceu
era terra de açúcar. Por outro lado no ano de 450 Buda autorizou aos seus súbditos a
bebida do suco da cana. Os monges budistas divulgaram o fabrico do açucare encorajaram
o consumo, que tem lugar em alguns rituais. Deste modo a expansão do budismo na Índia
e China, entre os séculos I-VI AC, favoreceu a expansão da cultura.

A expansão da cana-de-açúcar no Mediterrâneo persegue a expansão do Islão, entre os


sécs.VI-VIII. No mundo islâmico o doce assume um papel fundamental e na sua tradição
culinária é considerado o condimento fundamental. Para o mundo árabe o doce assume
um papel fundamental no relacionamento, sendo a representação de uma sadia relação e de
uma boa acolhida a qualquer forasteiro.

O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa.
Foi D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim ficaram como o principal
presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco da Gama, que
também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha 1 . Os confeiteiros, que
fabricavam as conservas, eram pagos pela Fazenda Real. Sabemos que em 1513 Diogo de
Medina recebeu 8$000 réis pelo fabrico de 40 arrobas e conserva para o rei. Já em 1521
Inês Mendes recebeu 92$000 réis por 60 arrobas com o mesmo destino 2 . No período de
1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e frutas
secas 3 .

1 . Confronte-se Sousa Viterbo, Artes e Indústrias Portuguesas - A Indústria Sacarina, II0 Série, Coimbra, 1910, pp. 10-11.
2 . Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990, pp. 120, 168
3 . Informações recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no

Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990.


Também na Madeira o fenómeno religioso esteve presente. A mesa madeirense foi sempre
muito frugal, situação que era quebrada nos momentos festivos, nomeadamente no Natal,
Espírito Santo e festividades em honra dos diversos oragos das paróquias da ilha. É em
torno do calendário religioso que o madeirense estabelece os vários momentos que marcam
a sua gastronomia. Para ele o Natal é a festa, isto é o momento mais importante do ano da
vivência festiva quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os folguedos e as delícias
da mesa. A tradição anota mesmo um calendário para este ritual. A 8 de Dezembro faz-se o
bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as linguiças e a carne de
vinho e alhos estejam prontas para o Natal. Neste dia no regresso da missa do galo prova-
se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para gáudio dos que estão e
dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada com cuscuz completavam o
repasto natalício. É em torno desta quadra religiosa que o madeirense estabelece o
momento nobre da gastronomia. Para ele o Natal é a festa, isto é o momento mais
importante do ano da vivência quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os
folguedos e as delícias da mesa. Podemos estabelecer um calendário para este ritual. A 8 de
Dezembro faz-se o bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as
linguiças e a carne de vinho e alhos estejam prontas para o Natal. Neste dia no regresso da
missa do galo prova-se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para
gáudio dos que estão e dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada com
cuscus completavam o repasto natalício.

O calendário religioso e o ano agrícola estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa é a


tradição do inhame cozido com bacalhau, no S. Martinho o atum salpresado. Hoje, todavia
este calendário gastronómico perdeu algumas das suas razões de ser. As actuais técnicas de
conservação dos produtos, a actual sociedade de consumo permitem que a disponibilidade
dos produtos e o seu consumo percam essa sazonalidade.

A GASTRONOMIA COMO EXPRESSÃO DE CULTURA, HISTÓRIA E


CIVILIZAÇÃO

A História da Humanidade, a partir do momento em que o homem adquiriu hábitos de


nomadismo houve necessidade de domesticar as plantas e a terra, surgindo a agricultura
como a actividade dominante da vida das populações. A agricultura, a expansão de culturas
e produtos tiveram grande impacto a partir do século XV, com a expansão europeia,
permitindo a globalização da actividade. culturas e alimentos.

O processo decorrente da expansão europeia, a partir do século XV, foi fundamental para a
evolução da cozinha europeia. Cedo o ocidental assimilou aquilo que foi encontrando.
Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café, chá, baunilha, ananás, banana,
milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de modo especial a Madeira foram os
viveiros de aclimatação aos solos europeus. A nossa variedade de frutos é resultado disso.
As ligações da ilha com outras regiões tiveram impacto directo na culinária.

A Madeira exerceu um papel fundamental na revolução da dieta alimentar ocorrida a partir


do século XV no Ocidente com a expansão europeia. A ilha, como a primeira área a
merecer uma ocupação efectiva e a provar o sucesso do empreendimento, adquiriu uma
posição particular na História da Alimentação. Foi a partir dela que o açúcar assumiu um
papel fundamental à mesa, como também a partir da ilha o europeu teve oportunidade de
saborear os frutos exóticos e as novas culturas, que rapidamente entraram na dieta
alimentar, como foi o caso do milho e batata. Tudo isto é corolário de um conjunto de
situações que define o entorno subjacente ao protagonismo madeirense na História do
mundo atlântico.

Os descobrimentos europeus não podem ser vistos apenas na perspectiva do encontro de


novas terras, novas gentes e culturas, pois a isto deverá associar-se o movimento de
migração humana, que arrastou consigo um universo envolvente de fauna, flora, tecnologia,
usos e tradições que tiveram um impacto evidente em todo o processo. Estamos perante
aquilo a que Pierre Chaunu define como desencravamento planetário, vinculado às
transformações operadas pela a expansão europeia do século XV, que retirou ao europeu a
ideia restrita de mundo e fez com que se avançasse paulatinamente para o que hoje
definimos como aldeia global. Os Descobrimentos foram também responsáveis pela
transformação e revolução ecológica, com impactos positivos ou negativos. Uma das
transformações fundamentais ocorreu ao nível alimentar com a descoberta de novos
produtos e condimentos que enriqueceram a dieta alimentar.

Foi o arquipélago madeirense o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro e


mais proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores que se conjugaram para
este protagonismo. A inexistência de população, em consonância com a extrema
necessidade de valorização para o avanço das navegações ao longo da costa africana,
favoreceu a rápida ocupação e crescimento económico da Madeira. Por isso, a afirmação
nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de escala ou apoio para as
precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o oceano; importante área económica,
fornecedora de cereais, vinho e açúcar; modelo económico, social e político para as demais
intervenções portuguesas no Atlântico.

A Madeira foi no século XV uma peça primordial no processo de expansão. A ilha,


considerada a primeira pedra da gesta descobridora dos portugueses no Atlântico, é o
marco referencial mais importante desta acção no século XV. De inicial área de ocupação,
passou a um entreposto imprescindível às viagens ao longo da costa africana e, depois, foi
modelo para todo o processo de ocupação atlântica, Por tudo isto a Madeira firmou nome
com letras douradas na História da expansão europeia no Atlântico. O Funchal foi, por
muito tempo, o principal ancoradouro do Atlântico que abriu as portas do mar oceano e
traçou caminho para as terras do Sul. Aí a abundância do cereal e vinho propiciavam ao
navegante o abastecimento seguro para a demorada viagem. Por isso, o madeirense não foi
apenas o cabouqueiro que transformou o rochedo e fez dele uma magnífica horta, também
se afirmou como o marinheiro, descobridor e comerciante. Deste modo algumas das
principais famílias da Madeira, enriquecidas com a cultura do açúcar, gastaram quase toda a
fortuna na gesta descobridora, ao serviço do infante D. Henrique, ao longo da costa
africana ou, de iniciativa particular, na direcção do Ocidente, correspondendo ao repto
lançado pelos textos e lendas medievais. A juntar a tudo isso temos o rápido progresso
social, resultado do porvir económico, que condicionou o aparecimento de uma
aristocracia terra tenente. Esta, imbuída do ideal cavalheiresco e do espírito de aventura,
embrenhou-se na defesa das praças marroquinas, na disputa pela posse das Canárias e
viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e, até mesmo, para Ocidente.

A valorização da Madeira na expansão europeia tem sido diversa. A historiografia nacional


considera-a um simples episódio de todo o processo e, em face da posição geográfica,
hesita no enquadramento, sendo levada, por vezes ao esquecimento. A europeia, ao invés,
não duvida em realçar a singularidade do processo. Vários são os factores que o
propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que fosse,
no século XV, uma peça chave na afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O
Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em
expansão. Além disso é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para
os anais da História do oceano que abraça o litoral abrupto. O fundamento de tudo isto
está patente no protagonismo da ilha e gentes. Á função de porta-estandarte do Atlântico, a
Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio às delongas
incursões oceânicas, sendo um espaço privilegiado de comunicações, contando a seu favor
com as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas,
propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outras condições contribuíram
para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um
permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.

A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna


dominaram a admiração dos protagonistas. A descoberta da nova realidade fez-se não só
pelo valor alimentar e económico, mas também científico, Sendo de destacar os estudos de
Garcia da Horta, Cristóvão da Costa, Duarte Barbosa. O processo de povoamento
implicava obrigatoriamente um processo de migração de plantas, animais e técnicas de
recolecção, cultivo e transformação destes. De acordo com João de Barros os portugueses
levavam “todas as sementes e plantas e outras coisas com quem esperava de povoar e assentar na terra” 4 .
O retorno foi igualmente rico e paulatinamente revolucionou o quotidiano europeu e
algumas das novas plantas entraram rapidamente nos hábitos das populações que cedo se
perdeu o rastro da origem passando a ser considerada como indígena. No processo foi
importante o papel de portugueses e espanhóis na troca de plantas entre o Novo e o Velho
Mundo. Dos quatro cantos do mundo o contributo para a valorização do património
natural foi evidente. No Oriente foram as especiarias que dinamizadora as rotas comerciais
e cobiça dos europeus. A América revelou-se pela variedade e exoticidade das plantas e
frutos, com valor alimentar, que contribuíram em África para colmatar a deficiência. O
processo de migração de plantas e culturas não foi pacífico, pois em muitos casos
provocou alterações catastróficas no quadro natural. Isto aconteceu em regiões e paisagens
sujeitas à violência de uma monocultura solicitada pelos mercados internacionais. Estão
neste caso a cana sacarina, o cacau, o café e o algodão.

As ilhas assumiram em todo este processo um papel fundamental ao assumiram o papel de


viveiros de aclimatação das plantas e culturas em movimento. A Madeira foi o viveiro de
aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna e flora
identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo que
tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta
disso. O processo de imposição da chamada biota europeia, no dizer de Alfred Crosby 5 , foi
responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos.

A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em
que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois,
utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi
o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo
atlântico: os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses
aportaram. A par disso a ilha foi, nos alvores do século XV, a primeira experiência de
ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi
depois utilizado em larga escala noutras ilhas e no litoral africano e americano. O
arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do
mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras

4 Ásia, década I, p.552


5 Imperialismo Ecológico. A Expansão biológica da Europa: 900-1900, S. Paulo, 1993.
onde os portugueses aportaram. Madeira não se posiciona apenas nos anais da História
universal como a primeira área de ocupação atlântica, pioneira na cultura e divulgação do
açúcar ao Novo Mundo.

A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas


também marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio
ambiente. O europeu carrega consigo a fauna e flora do seu convívio e com valor
económico, que irão provocar profundas mudanças nos novos ecossistemas. Com isto
acontece que o espaço vivido e natureza se universalizam. Nos séculos XV e XVI foram as
viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e
descoberta da natureza, comandadas por ingleses e franceses.

A GASTRONOMIA MADEIRENSE UMA HISTÓRIA POR CONTAR

Se fosse necessário caracterizar a culinária madeirense seríamos forçados a afirmar, que de


uma forma genérica, é em simultâneo rica e pobre. Parece um paradoxo, mas não é. Para
entendermos isto temos que ter em conta um conjunto de factores que condicionaram a
evolução ao longo dos séculos, através dos produtos que alimentam o cardápio e a
disponibilidade ou não de meios de conservação dos produtos alimentares. As dificuldades
na conservação dos produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e
consumo. A maior parte dos produtos, como é o caso dos frutos, tinha uma durabilidade
limitada, sendo consumidos apenas na época de maturação. A sazonabilidade do quadro
vegetativo condicionava a forma de orientação do cardápio e obrigava o madeirense a estar
dependente dos condicionalismos do ciclo rural. Na mesa madeirense acresce ainda outro
factor significativo. A dificuldade, desde o século XV, em encontrar na ilha a garantia de
subsistência para a população, que obriga à extrema dependência do exterior. As crises de
subsistência foram uma constante na História da Madeira.

A Madeira estava situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV promoveu a expansão das culturas
europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de novos
produtos e frutos com valor alimentar levou a que servisse de entreposto de expansão ao
velho continente. Dos inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se afirmaram
rapidamente na dieta alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no decurso da
segunda metade do século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na
dieta alimentar. Em princípios do século XX é ainda visível a expansão dos produtos
hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais.

A batata é originária do Andes, sendo conhecida pelos europeus em 1539, mas foi a Irlanda
o principal centro difusor do tubérculo na Europa. A presença na Madeira está
documentada a partir de 1760, mas a generalização só aconteceu em princípios do século
XIX. A batata-doce, também oriunda da América do sul aparece na Madeira no século
XVII, sendo referenciada na década de setenta do século XVIII como o principal sustento
do camponês. Já a batata, dita semilha para o madeirense, só se generalizou no consumo
desde 1845 com a introdução de uma nova variedade de Demerara. Em 1842 o míldio
atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população da ilha.
O próprio governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em 1847 que a
batata era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas eram
abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para comer “algum
inhame e pouco milho”
A crise da batata conduziu inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena
afirmação do milho O milho, sob a forma de pão ou de farinha, transformou-se
rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso século. O milho
introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de parceria com a batata,
no sustento preferencial dos madeirenses.

O CARDAPIO MADEIRENSE
A ilha, terra de passagem de gentes assistiu também à movimentação e descoberta do
mundo animal e vegetal. A Madeira foi, na verdade, o espaço de passagem das plantas
do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa. Da Europa chegaram os
cereais, a vinha e a cana-de-açúcar. Os dois primeiros por exigência da cultura cristã. A
América e a África revelaram-se aos europeus na sua exoticidade e variedade dos frutos.
Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia tornava-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou
aquilo que foi encontrando. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café,
chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de
modo especial a Madeira são viveiro de aclimatação aos solos europeus. A nossa
variedade de frutos é resultado disso. A Banana é conhecida na ilha desde o século XVII
e outros mais frutos tropicais foram chegando e contribuíram paulatinamente para o
alargamento do cardápio. A mais antiga referência surge em 1687 no testemunho de
Hans Sloane, sendo repetido em 1689 por John Ovington. Paulatinamente impõe-se na
dieta alimentar tornando-se numa importante fonte de riqueza da ilha.

Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões. A maça
apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o ananás nos recria as paradisíacas
ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do século XVIII. A alimentação progrediu e
as ementas universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de identidade de origem e
entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo ocidental é igual. As
divergências e exoticidade sucedem como resultado do confronto com outras culturas,
como o mundo árabe e as regiões orientais.
A Madeira está situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV foi a ilha que promoveu a expansão das
culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de
novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que a ilha servisse de entreposto de
expansão dos mesmos no velho continente. Tudo isto acontece porque a ilha continua a
ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de microclimas
propícios à fixação de novas plantas e sementes. Aliás, a singular condição levou a que nos
séculos XVIII e XIX a ilha se transformasse num viveiro de aclimatação de plantas. Dos
inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se afirmaram rapidamente na dieta
alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no decurso da segunda metade do
século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia dos cereais na dieta alimentar. Em
princípios do século XX é ainda visível a expansão dos produtos hortícolas e dos
tubérculos em desfavor dos cereais. Em 1908 a produção média por hectare era de 15.000
quilos, dando a ilha vinte e cinco toneladas.
A batata é originária do Andes mas foi a Irlanda o principal centro difusor do tubérculo na
Europa. A presença na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a generalização só
aconteceu em princípios do século XIX. A batata-doce, também oriunda da América do sul
aparece na Madeira no século XVII, sendo referenciada na década de setenta do século
XVIII como o principal sustento do camponês. Já a batata, dita semilha para o madeirense,
só se generalizou no consumo desde 1845 com a introdução de uma nova variedade de
Demerara. Em 1842 o míldio atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores
mortandades na população da ilha. O mais evidente é que a situação teve eco noutros
espaços europeus, como foi o caso da Madeira em 1846 e 1847. Tendo em conta que havia
adquirido um lugar dominante na alimentação é fácil de adivinhar as dificuldades daqui
resultantes. O próprio governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em
1847 que a batata era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas
eram abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para comer
“algum inhame e pouco milho”
A crise da batata conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena
afirmação do milho O Milho, na dieta popular. Sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso
século. O milho introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de
parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses. Em 1847 a ilha produzia
apenas vinte moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841 a ilha importava
9000 moios de milho e 8000 de trigo, passando em 1852 para cerca de 10.000 de milho e
5500 de trigo. Já nas décadas de setenta e oitenta o milho era a base da alimentação das
populações mais pobres. Em Câmara de Lobos já em princípios do século o milho
dominava a dieta alimentar.

A culinária madeirense pode ser considerada de uma forma genérica rica e pobre. Parece
um paradoxo, mas não é. Para entendermos isto temos que ter em conta um conjunto de
factores que condicionaram a evolução ao longo dos séculos, através dos produtos que
alimentam o cardápio e dos meios de conservação. As dificuldades na conservação dos
produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e consumo definindo
uma sazonalidade. A maior parte dos produtos, como é o caso dos frutos, tinha uma
durabilidade limitada, sendo consumidos apenas na época de maturação. A sazonabilidade
condicionou a forma de orientação do cardápio e obrigava o madeirense a estar dependente
dos condicionalismos do ciclo rural. Acresce ainda outro factor significativo na mesa
madeirense. A dificuldade, desde o século XV, em encontrar na ilha a garantia de
subsistência para a população, o que obriga à extrema dependência do exterior. As crises de
subsistência são uma constante na História da Madeira.
Os estrangeiros visitantes não se cansam de referir o contraste entre a mesa das famílias
distintas e a da maioria da população. Entre os primeiros estávamos perante a boa mesa
onde os excessos de comida eram frequentes. E as evidências aí estavam. A obesidade era
uma característica do grupo social e do clero. Rodolfo Schultze em 1864 chama a atenção
para o facto de os jovens das famílias mais importantes, entre os 10 e 14 anos, tinham a
tendência para o peso excessivo. A ideia é também corroborada pelos autores portugueses.
Assim, Eduardo Grande é peremptório em afirmar que o “regímen alimentar das classes menos
abastadas deste distrito” era pobríssimo, constando quase sempre de pão, mas de má
qualidade.
Mas isto parece ter sido o privilégio de um grupo restrito da sociedade, uma vez que de
acordo com John Ovington em 1689 a alimentação dos madeirenses era muito frugal,
referindo que os pobres no tempo da vindima comiam apenas de uvas e pão. Diz-nos
George Forster que “os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em
pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne”. Na verdade, a alimentação consistia em vegetais
algum pão, inhame e castanha e os frutos da época.
Os forasteiros são os principais divulgadores da gastronomia. Habituados às laudas mesas
reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das quintas ou
do Palácio do Governador. Em 1793 John Barrow saiu da ilha agradado com a mesa do
governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho “a sua mesa é uma das mais variadas e
delicadas e em poucas partes do mundo se poderia apresentar coisa semelhante. Travessas esplêndidas
sustentam animais inteiros; ali deparei com um porquinho recheado rodeado de laranjas, uma lebre
armando um salto, faisões tentando levantar voo, ornados com a sua vistosa e flamejante plumagem”.
A mesa madeirense apresentava por vezes alguns pratos estranhos os forasteiros. No texto
editado por J. Payne em 1740 dá-se conta de”um prato de misturas, muito apreciado pelos naturais
composto de peras, passas, pão e ovos, tudo fervido ao mesmo tempo, com salsa e outras ervas aromáticas”.
Noutro prato misturava-se uvas com nozes, inhame cozido, a que se juntava uma massa
frita e melaço.

O VINHO MADEIRA NA GASTRONOMIA

Segundo Anatole France [1844-1924] refere em “Le Petit Pierre” o vinho Madeira
acompanha bolos secos e apenas “un doigt de vin de Madere anima les regards, fit sourire les levres. »
Já para Alfred Musset o Madeira caia bem com uma asa de perdiz 6 . Mas Proudhon queixa-
se que este vinho e outros europeus não está acessível a todo o povo 7 .Ao contrário do que
sucede hoje, em que o Madeira é conhecido apenas na culinária, a literatura do século XIX
e princípios do século XX revela-nos um vinho distinto que tinha lugar à mesa, sendo
apreciado pelas classes altas e cobiçado pelos pobres.

No mundo de expressão em língua inglesa o vinho Madeira assumiu desde o século XV um


papel destacado à mesa e nas tabernas, primeiro na Inglaterra e depois em todo o mundo
colonial britânico, desde o Atlântico ao, Indico. A documentação história é reveladora
desta posição dominante do mercado inglês. Para o quotidiano londrino a obra de
Shakespeare, nas diversas incidências valorativas do vinho madeirense, eram já o indício
seguro de que o vinho madeirense era uma constante no quotidiano.

A vida política inglesa no século XV foi pautada por várias disputas pela posse do ceptro
real, em que se envolveram os Lencastre, Yorks, Tudors e Angevins. Foi esta ambiência
sanguinolenta que fascinou a pena do dramaturgo, Shakespeare, que nos legou nas suas
peças uma visão impressionista dessa época. É neste contexto de violência que surgem as
primeiras referências ao vinho da Madeira, para muitos a única alegria do quotidiano. Mas o
vinho também se envolveu, através dos apreciadores, na conturbada conjuntura politica:
em 1478 Eduardo IV, rei de Inglaterra, ordenou a execução de Jorge Plantageneta, Duque
de Clarence, irmão do futuro rei Ricardo III (1483-85) por atentar contra a sua soberania;
de acordo com a lenda este preferiu morrer afogado numa pipa de malvasia. Um século
mais tarde Shakespeare ao dramatizar a vida de Ricardo III, irmão do malogrado duque,
retoma o acontecimento, retratando no cenário da Torre de Londres. O mesmo
dramaturgo coloca noutra peça—"Henrique IV"-coloca o herói desta e demais peças suas,
John Falstaff, a render a sua alma "por um copo de Madeira e uma perna fria de capão".
O Vinho Madeira chegou a este mercado a partir de meados do século XVII e cedo se
impôs o consumo nos meios aristocráticos. No século seguinte o processo de

6 . Titre Lettres de Dupuy et Cotonet / Alfred de Musset, in Revue des deux mondes, 1836
7 . Proudhon, Pierre-Joseph, Système des contradictions économiques ou philosophie de la misère, Paris : Librairie internationale, 1872
independência e o interesse manifesto de muitos dos presidentes fizeram com que o Vinho
Madeira se transformasse numa realidade indelével da sociedade e política americana.

Um dado evidente desta fugaz análise do vinho na escrita inglesa é a revelação de que o
Madeira não se resume apenas a deliciar as papilas gustativas dos apreciadores, pois
também surge com muita frequência em livros de culinária, como em tratados de medicina.
É, aliás, na voz dos romancistas e poetas que se encontram as maiores e mais elogiosas
referências ao Vinho Madeira. O Madeira não era um vinho comum ou para todos os
momentos, pois segundo Gabriel Furman 8 era apenas usado em ocasiões especiais, como o
nascimento de uma criança, um casamento ou funeral. Aliás, segundo Nathaniel Parker
Willis [1806-1867] em “Dashes at Life” (1845) era conhecido como “vinho de casamento”. O
Madeira acabava por assumir um lugar especial até mesmo junto dos abstémios. Assim
sucedia com Philip Hone 9 que nunca bebeu qualquer outra bebida espirituosa na vida a não
ser um ou dois cálices diários de vinho Madeira.

Algumas das publicações periódicas de prestígio, do século XIX e princípios do século XX,
insistem na referência frequente ao vinho Madeira o que demonstra mais uma vez que era
um dado referencial do quotidiano que não podia ser ignorado 10 . O panorama de
referências alarga-se a todo o tipo de publicações, que vai desde os tratados de culinária 11
aos manuais de bons costumes e etiqueta 12 , como aos tratados de medicina 13 . Neste último
caso dando razão a uma tradição de defesa das capacidades profiláticas do vinho.

Os cereais são componentes importantes da dieta alimentar. Da farinha de trigo nascem as


rosquilhas, bolo do caco e cuscus ou então o frangolho, isto é, uma papa feita com farinha
integral. Ao bolo do caco e cuscus aponta-se como uma reminiscência da presença mourisca
na ilha. Com o milho são também diversos os usos. O grão é consumido cozido, escaldado
ou estroçoado em sopa, enquanto com a farinha se faz uma papa que depois dá origem ao
conhecido milho frito, que acompanha muitos dos pratos da nossa gastronomia.

Mais rica é a doçaria. Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na sua
História é natural a dominância da doçaria na culinária regional. Na memória de todos
persistem as receitas conventuais, pois que as demais se perderam. Nos conventos de Santa
Clara, Mercês e da Encarnação a doçaria é uma arte que ocupa de forma dedicada as freiras.
Os doces faziam-se em momentos festivos para consumo interno ou para retribuir os
benfeitores. Das suas mãos saíram os bolos de mel, talhadas, batatada, coscorões, arroz-
doce e queijadas. Cada doce tinha a sua época: a batatada pelo Natal, os coscorões no
Entrudo, as talhadas na Páscoa e no dia de Nossa Senhora da Encarnação.

De todos o que persiste e afirma-se como o rei da doçaria madeirense é o bolo de mel. Em
muitas das suas receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho Madeira. Um das
receitas mais conhecidas é a das freiras do Convento da Encarnação. É também com vinho
Madeira que o mesmo deve ser servido. Aliás, o vinho Madeira é uma das melhores iguarias
para acompanhar a doçaria regional ou doutras paragens. A par disso o vinho adquiriu

8 . Antiquities of Long Island, N. York, 1874, p.160


9 . Philip Hone, The Diary of Philip Hone 1828-1851, vol. I, N. York, 1889.
10. Magazine of Domestic Economy(1927-39), The New england Magazine(1892), Putman`s Montly Magazine(1854), The Bay State

Montly(1885),Harpers New Montly Magazine(1852, 1854, 1878), New England Angale Review(1860), The Century Popular Quartely(1885), The
Living Age(1857), The Atlantic Montly(1884, 1872), Harpers New Magazine(1856), The New England Magazine(1900), The North American
Review(1824).
11 . Grace Clergue Harrison: Allied Cookery(1916),
12 . A Manual of Politeness(1837), Sophie Orne Johnson: A Manual of Etiquette(1873), Clara S. J. Bloomfield-Moore, Sensible Etiquette(1878),

William A. Alcott: The Young Housekeeper(1846)


13 . Edward Parrish, A Treatise on Pharmacy, Philadelphia, 1865p.819; H. Beasley, The Druggist General Receipt Book, Philadelphia, 1857,

p.193;Joseph H. Pulte, Homeopatic domestic Physician, N. York, 1856, p.52.


grande prestígio na arte de cozinhar dos grandes mestres da cozinha francesa, sendo um
dos ingredientes fundamentais nos mais variados pratos ou de molhos. A sua presença
alarga-se aos mais variados pratos de carne, mariscos e peixe. Foi a França que nos revelou
mais esta potencialidade e é para lá que se exportam as maiores quantidades de vinho
Madeira com este objectivo.

A tradição anota uma etiqueta do vinho que o faz acompanhar o quotidiano do


madeirense. O vinho bebe-se por diversos pretextos com solenidade. À mesa segue-se um
ritual. Como aperitivo oferece-se um sercial ou verdelho. Este último poderá ser servido
ainda com o boal junto com a sopa. A sobremesa, consoante o que se sirva poderá beber-
se um malvasia, sercial, boal e terrantez.
Shakespeare nas suas peças refere com assiduidade o vinho Madeira, sendo a mais célebre a
de Falstaff, o afamado beberrão que dizia vender a alma por uma taça de Madeira e uma
perna fria de capão. Esta simples referência denota que o vinho Madeira podia também
acompanhar os vários pratos de carne. Noutros casos, que nos retratam a ambiência dos
britânicos do outro lado do Atlântico dá-se conta do seu uso diário ao pequeno-almoço
com biscoitos. Aliás diz, a tradição que o conde de Torre Bela se conservou muitos anos
por ter bebido todos os dias em jejum um cálice de malvasia. Daqui resulta que o vinho da
ilha, tendo em conta as diversas variedades em que se pode encontrar no mercado, pode
ser consumido em qualquer momento pelos seus admiradores.

Um das questões pouco pacíficas prende-se com a utilização do vinho Madeira na culinária,
isto é, o célebre "Madeira Sauce", que encontramos em alguns países europeus,
nomeadamente a França. Note-se que esta situação acontece um pouco com todos os
vinhos, sem lhes retirar valor. Aliás, a culinária madeirense é ela própria usufrutuária desta
situação. Ao nível dos molhos temos o molho Madeira de vinho seco para acompanhar
carnes e o molho doce para acompanhar fruta e saladas. Nos pratos temos a considerar a
presença do mesmo no caldo de carne e carne assada na panela e rolo de carne. Mas é na
doçaria que o vinho é um componente essencial. Nos diversos bolos (bolo preto, da
família, de frutas de cerveja, da avó de noivos) pudins (de vinho madeira, de pão, de
bananas, de requeijão de pêros de água, gelado), broas, geleia de vinho rosquilhas, com
forte incidência de vinho Madeira.
Rua das Mercês, 8 Email: ceha@madeira-edu.pt
9000-420 – Funchal
Telef (+351291)214970
alberto.vieira@madeira-edu.pt
Fax (+351291)223002 http://www.madeira-edu.pt/ceha/

VIEIRA, Alberto (2004),

A Madeira e a História da Alimentação


no Ocidente

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (2004), A Madeira e a História da Alimentação no Ocidente, Funchal, CEHA-


Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeira-
edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/gastronomia-4.pdf, data da visita: / /

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A MADEIRA
E A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NO OCIDENTE

ALBERTO VIEIRA

A Madeira exerceu um papel fundamental na revolução da dieta alimentar ocorrida a


partir do século XV no Ocidente com a expansão europeia. A ilha, como a primeira área
a merecer uma ocupação efectiva e a provar o sucesso do empreendimento, adquiriu
uma posição particular na História da Alimentação. Foi a partir dela que o açúcar
assumiu um papel fundamental à mesa, como também a partir da ilha o europeu teve
oportunidade de saborear os frutos exóticos e as novas culturas, que rapidamente
entraram na dieta alimentar, como foi o caso do milho e batata. Tudo isto é corolário de
um conjunto de situações que define o entorno subjacente ao protagonismo madeirense
na História do mundo atlântico.

1. O ENTORNO

Os descobrimentos europeus não podem ser vistos apenas na perspectiva do encontro de


novas terras, novas gentes e culturas, pois a isto deverá associar-se o movimento de
migração humana, que arrastou consigo um universo envolvente de fauna, flora,
tecnologia, usos e tradições que tiveram um impacto evidente em todo o processo.
Estamos perante aquilo a que Pierre Chaunu define como desencravamento planetário,
vinculado às transformações operadas pela a expansão europeia do século XV, que
retirou ao europeu a ideia restrita de mundo e fez com que se avançasse paulatinamente
para o que hoje definimos como aldeia global. Os Descobrimentos foram também
responsáveis pela transformação e revolução ecológica, com impactos positivos ou
negativos. Uma das transformações fundamentais ocorreu ao nível alimentar com a
descoberta de novos produtos e condimentos que enriqueceram a dieta alimentar.

Foi o arquipélago madeirense o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro


e mais proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores que se conjugaram
para este protagonismo. A inexistência de população, em consonância com a extrema
necessidade de valorização para o avanço das navegações ao longo da costa africana,
favoreceu a rápida ocupação e crescimento económico da Madeira. Por isso, a
afirmação nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de escala ou
apoio para as precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o oceano;
importante área económica, fornecedora de cereais, vinho e açúcar; modelo económico,
social e político para as demais intervenções portuguesas no Atlântico.
A Madeira foi no século XV uma peça primordial no processo de expansão. A ilha,
considerada a primeira pedra da gesta descobridora dos portugueses no Atlântico, é o
marco referencial mais importante desta acção no século XV. De inicial área de
ocupação, passou a um entreposto imprescindível às viagens ao longo da costa africana
e, depois, foi modelo para todo o processo de ocupação atlântica, Por tudo isto a
Madeira firmou nome com letras douradas na História da expansão europeia no
Atlântico. O Funchal foi, por muito tempo, o principal ancoradouro do Atlântico que
abriu as portas do mar oceano e traçou caminho para as terras do Sul. Aí a abundância
do cereal e vinho propiciavam ao navegante o abastecimento seguro para a demorada
viagem. Por isso, o madeirense não foi apenas o cabouqueiro que transformou o
rochedo e fez dele uma magnífica horta, também se afirmou como o marinheiro,
descobridor e comerciante. Deste modo algumas das principais famílias da Madeira,
enriquecidas com a cultura do açúcar, gastaram quase toda a fortuna na gesta
descobridora, ao serviço do infante D. Henrique, ao longo da costa africana ou, de
iniciativa particular, na direcção do Ocidente, correspondendo ao repto lançado pelos
textos e lendas medievais. A juntar a tudo isso temos o rápido progresso social,
resultado do porvir económico, que condicionou o aparecimento de uma aristocracia
terra tenente. Esta, imbuída do ideal cavalheiresco e do espírito de aventura,
embrenhou-se na defesa das praças marroquinas, na disputa pela posse das Canárias e
viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e, até mesmo, para
Ocidente.

A valorização da Madeira na expansão europeia tem sido diversa. A historiografia


nacional considera-a um simples episódio de todo o processo e, em face da posição
geográfica, hesita no enquadramento, sendo levada, por vezes ao esquecimento. A
europeia, ao invés, não duvida em realçar a singularidade do processo. Vários são os
factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram
com que fosse, no século XV, uma peça chave na afirmação da hegemonia portuguesa
no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao
encontro da Europa em expansão. Além disso é considerada a primeira pedra do
projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o litoral
abrupto. O fundamento de tudo isto está patente no protagonismo da ilha e gentes. Á
função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol”
Atlântico, o guia orientador e apoio às delongas incursões oceânicas, sendo um espaço
privilegiado de comunicações, contando a seu favor com as vias traçadas no oceano que
a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana
sacarina e vinha. Uma e outras condições contribuíram para que o isolamento definido
pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho
continente europeu e o Novo Mundo.

A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna


dominaram a admiração dos protagonistas. A descoberta da nova realidade fez-se não só
pelo valor alimentar e económico, mas também científico, Sendo de destacar os estudos
de Garcia da Horta, Cristóvão da Costa, Duarte Barbosa. O processo de povoamento
implicava obrigatoriamente um processo de migração de plantas, animais e técnicas de
recolecção, cultivo e transformação destes. De acordo com João de Barros os
portugueses levavam “todas as sementes e plantas e outras coisas com quem esperava
de povoar e assentar na terra” 1 . O retorno foi igualmente rico e paulatinamente
revolucionou o quotidiano europeu e algumas das novas plantas entraram rapidamente
1
Ásia, década I, p.552
nos hábitos das populações que cedo se perdeu o rastro da origem passando a ser
considerada como indígena. No processo foi importante o papel de portugueses e
espanhóis na troca de plantas entre o Novo e o Velho Mundo. Dos quatro cantos do
mundo o contributo para a valorização do património natural foi evidente. No Oriente
foram as especiarias que dinamizadora as rotas comerciais e cobiça dos europeus. A
América revelou-se pela variedade e exoticidade das plantas e frutos, com valor
alimentar, que contribuíram em África para colmatar a deficiência. O processo de
migração de plantas e culturas não foi pacífico, pois em muitos casos provocou
alterações catastróficas no quadro natural. Isto aconteceu em regiões e paisagens
sujeitas à violência de uma monocultura solicitada pelos mercados internacionais. Estão
neste caso a cana sacarina, o cacau, o café e o algodão.

As ilhas assumiram em todo este processo um papel fundamental ao assumiram o papel


de viveiros de aclimatação das plantas e culturas em movimento. A Madeira foi o
viveiro de aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna
e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo
Mundo que tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do
Funchal resulta disso. O processo de imposição da chamada biota europeia, no dizer de
Alfred Crosby 2 , foi responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas
ecológicos.

A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação
em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois,
utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago
foi o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo
atlântico: os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os
portugueses aportaram. A par disso a ilha foi, nos alvores do século XV, a primeira
experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas
institucionais. Tudo isto foi depois utilizado em larga escala noutras ilhas e no litoral
africano e americano. O arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da
nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais
arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Madeira não se
posiciona apenas nos anais da História universal como a primeira área de ocupação
atlântica, pioneira na cultura e divulgação do açúcar ao Novo Mundo.

A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas


também marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio
ambiente. O europeu carrega consigo a fauna e flora do seu convívio e com valor
económico, que irão provocar profundas mudanças nos novos ecossistemas. Com isto
acontece que o espaço vivido e natureza se universalizam. Nos séculos XV e XVI foram
as viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e
descoberta da natureza, comandadas por ingleses e franceses.

No traçado das rotas oceânicas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com um papel


primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. A Madeira e as Canárias foram
nos séculos XV e XVI como entrepostos do comércio no litoral africano, americano e
asiático. Os portos principais da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e
Lanzarote animaram-se de forma diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas
da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel,

T2 Imperialismo Ecológico. A Expansão biológica da Europa: 900-1900, S. Paulo, 1993.


foram a escala necessária e fundamental da rota de retorno. Esta posição demarcada do
Mediterrâneo Atlântico no comércio e navegação atlântica fez com que as coroas
peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato
comercial. As ilhas foram os bastiões avançados, suportes e os símbolos da hegemonia
peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento no oceano fazia-se na
área definida por elas e atraiu piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos
das riquezas em circulação. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares foi
a defesa das embarcações das investidas dos corsários europeus.

A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores foi o principal foco de
intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao
velho continente. Por outro lado o protagonismo das ilhas não se fica só pelos séculos
XV e XVI, pois as navegações e explorações oceânicas nos séculos XVIII e XIX
levaram-nas a assumir uma nova função para os europeus. De primeiras terras
descobertas passaram a campos de experimentação e escalas retemperadoras da
navegação na rota de ida e regresso. Finalmente, no século XVIII desvendou-se uma
nova vocação: as ilhas como campo de ensaio das técnicas de experimentação e
observação directa da natureza. A afirmação da Ciência na Europa fez delas escala para
as constantes expedições científicas dos europeus. O enciclopedismo e as classificações
de Linneo (1735) tiveram nas ilhas um bom campo de experimentação. Tenha-se em
conta as campanhas da Linnean Society e o facto de o próprio presidente da sociedade,
Charles Lyall, ter-se deslocado em 1838 de propósito às Canárias. De entre as culturas
que a Europa deu ao mundo atlântico aquelas que assumiram maior valor económico e
condicionaram a História dos espaços onde foram lançadas merecem destaque a vinha, a
cana sacarina e o pastel.

Uma das funções privilegiadas das ilhas nos últimos quinhentos anos foi o serviço de
escala oceânica, servindo de apoio a todos os que sulcavam o oceano em distintos
sentidos. Primeiro escalas de descobrimento que abriram os caminhos para as rotas
comerciais e depois escalas do percurso de afirmação da Ciência através das expedições
científicas que dominaram os areópagos europeus a partir do século XVIII. Umas e
outras entrecruzam-se por diversas vezes e revelam-nos quão importante foi para a
Europa o mundo das ilhas.

O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos
veleiros, pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que
ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta multiplicidade
de rotas que resultou da complementaridade económica das áreas insulares e
continentais surge como consequência das formas de aproveitamento económico aí
adoptadas. Tudo isto completa-se com as condições geofísicas do oceano, definidas
pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens.

A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as
Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Foi ela que galvanizou o empenho
dos monarcas, populações ribeirinhas e acima de tudo os piratas e corsários, sendo
expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e
orientais do mar: primeiro as Canárias e raramente a Madeira, depois Cabo Verde, Santa
Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a
intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a
Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago,
Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago afirmou-se uma ilha,
servida por um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo
insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira,
Santiago e Terceira como os principais eixos.

ESCALAS DA CIÊNCIA. Desde o século dezoito que a literatura científica e de


viagens definiu de modo claro este conjunto de ilhas como uma unidade merecedora de
atenção. São as Western Islands que encabeçam os títulos das publicações 3 . Aqui
entendia-se quase sempre os Açores, mas muitas vezes associava-se as Canárias, a
Madeira e, raramente Cabo Verde. Esta unidade ficou estabelecida na designação de
Macaronésia, dada às ilhas para fazer jus à mais antiga designação da Antiguidade
Clássica. Note-se que o mais antigo testemunho que se conhece da vida vegetal e animal
aparece nas volumosas Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (1522-1591), escritas no
último quartel do século XVI. Aliás, ele pode ser considerado precursor dos naturalistas
do século XVIII. Aí é possível fazer um percurso por todas as ilhas e constatar a riqueza
natural e a que resultou da acção do colono europeu. Mesmo assim o rastreio não é
exaustivo tornando-se difícil ao cientista saber com exactidão quais os elementos
vegetais e animais indígenas e os que resultaram da ocupação europeia. A descoberta é
tardia, como veremos. Apenas o homem do século XVIII sentido necessidade de o fazer
e é a partir de então que temos notícia do quadro natural das ilhas. Mas. Entretanto
haviam passado mais de três séculos de presença europeia em que as espécies do velho
continente se haviam mesclado com as do novo.

As ilhas entraram rapidamente no universo da ciência europeia dos séculos XVIII e


XIX. Ambas as centúrias foram momentos de assinaláveis descobertas do mundo
através de um estudo sistemático da fauna e flora 4 . Daqui resultou dois tipos de
literatura com públicos e incidências temáticas distintas. Os textos turísticos, guias e
memórias de viagem, que apelavam o leitor para a viagem de sonho à redescoberta
deste recanto do paraíso que se demarca dos demais pela beleza incomparável da
paisagem, variedade de flores e plantas. Já os tratados científicos apostam na divulgação
através daquilo que o identifica. As técnicas de classificação das espécies da fauna e
flora têm aqui um espaço ideal de trabalho. Algumas colecções foram feitas para deleite
dos apreciadores, que figuram em lista que antecede a publicação 5 .

O século XX anuncia-se como o momento ecológico. As preocupações com a


preservação do pouco manto florestal existente e da recuperação dos espaços ermos
eram acompanhadas da crítica impiedosa aos responsáveis. Não será inoportuno
recordar que as preocupações ambientalistas que vão no sentido de estabelecer um
equilíbrio do quadro natural e travar o impulso devastador do homem não são apenas
apanágio do homem do século XX. Na Madeira como nas demais ilhas sucedem-se
regimentos e posturas que regulamentam esta relação. Nas Canárias e nos Açores a
situação das diversas ilhas não foi uniforme. Os problemas de desflorestação fizeram-se
sentir com maior acuidade nas do primeiro arquipélago, Assim em Gran Canaria já em
princípios do século XVI a falta de madeiras e lenhas era evidente, assim o
testemunham as posturas e intervenção permanente das autoridades locais e a coroa 6 . A

3
. Victor Morales Lezcano, Los Ingleses en Canarias. Libro de Viajes e Historias de Vida, Las Palmas de Gran Canaria, 1986, p.124
4
. Mary L. Pratt, Imperial Eye.Travel Writing and Transculturation, N.Y., 1993; STAFFORD, B. M., Voyage into Substance - Science, Nature and the
Illustrated Travel Account 1770-1840, Cambridge, Mass., 1984, pp. 565-634
5
. Estampas, Aguarelas e desenhos da Madeira Romântica, Funchal, 1988.
6
. Francisco Morales Padron, Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria(1531), Las Palmas, 1974; José Peraza de Ayala, Las Ordenanzas de Tenerife, Madrid,
solução estava no recurso às demais ilhas, nomeadamente Tenerife e La Palma. Mas
mesmo nestas começaram a fazer-se a sentir as mesmas dificuldades. Nos Açores o
facto de a cultura da cana não alcançar o mesmo sucesso da Madeira e Canárias salvou
o espaço florestal deste efeito predador.

O homem do século XVIII perdeu o medo ao meio circundante e passou a olhá-lo com
maior curiosidade e, como dono da criação, estava-lhe atribuída a missão de perscrutar
os segredos ocultos. É este impulso que justifica todo o afã científico que explode na
centúria. A ciência é então baseada na observação directa e experimentação. A
insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a Europa, mas
foram os ingleses quem entre nós marcaram presença, sendo menor a de franceses e
alemães 7 . Aqui são protagonistas as Canárias e a Madeira. Tudo isto é resultado da
função de escala à navegação e comércio no Atlântico. Foi também na Madeira que os
ingleses estabeleceram a base para a guerra de corso no Atlântico. Se as embarcações de
comércio, as expedições militares tinham escala obrigatória, mais razões assistiam às
científicas para a paragem obrigatória. As ilhas, pelo endemismo que as caracteriza,
história geo-botânica, permitiram o primeiro ensaio das técnicas de pesquisa a seguir
noutras longínquas paragens. Também elas foram um meio revelador da incessante
busca do conhecimento da Geologia e Botânica.

Instituições seculares, como o British Museum, Linean Society, e Kew Gardens,


enviaram especialistas para proceder à recolha das espécies. Os estudos no domínio da
Geologia, botânica e flora são resultado da presença fortuita ou intencional dos
cientistas europeus. Esta moda do século XVIII levou a que as instituições científicas
europeias ficassem depositárias das mais importantes colecções de fauna e flora das
ilhas: o Museu Britânico, Linnean Society, Kew Gardens, a Universidade de Kiel,
Universidade de Cambridge, Museu de História Natural de Paris. E por cá passaram
destacados especialistas da época, sendo de realçar John Byron, James Cook, Humbolt,
John Forster. Darwin esteve nas Canárias e Açores (1836) e mandou um discípulo à
Madeira. No arquipélago açoriano o cientista mais ilustre terá sido o Príncipe Alberto I
do Mónaco que aí aportou em 1885. James Cook escalou a Madeira por duas vezes
em1768 e 1772, numa réplica da viagem de circum-navegação apenas com interesse
científico. Os cientistas que o acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à
busca das raridades botânicas para a classificação e depois revelação à comunidade
científica. Em 1775 o navegador estava no Faial e no ano imediato em Tenerife.

Os Arquipélagos da Madeira e Canárias, devido à posição estratégica na rota que ligava


a Europa ao mundo colonial, foram activos protagonistas nos rumos da Ciência dos
séculos XVIII e XIX. Já aos Açores estava, ao contrário, reservado o papel de
ancoradouro seguro antes de se avistar a Europa. Foi este papel desempenhado pelo
arquipélago desde o século XVI que o catapultou para uma posição privilegiada na
história de navegação e comércio do Atlântico. Nas Canárias a primeira e mais antiga
referência sobre a presença de naturalistas ingleses é de 1697, ano em que James
Cuningham esteve em La Palma. Os Séculos XVIII anunciam-se como de forte
presença, nomeadamente dos franceses. O contacto do cientista com o arquipélago
açoriano fazia-se quase sempre na rota de regresso de Africa ou América. Para os

1976; Pedro Cullen del Castilho, Libro Rojo de Gran Canaria o Gran Libro de Provisiones y Reales Cédulas, Las Palmas, 1974. Alfredo Herrera Piqué, La
Destrucción de los Bosques de Gran Canaria a comienzos del siglo XVI, in Aguayro, n1.92, 1977, pp.7-10; James J. Pearsons, Human Influences on the Pine
and Laurel Forests of the Canary Islands, in Geographical Review, LXXI, n13, 1981, pp.253-271.
7
Cf. "Algumas das Figuras Ilustres Estrangeiras que Visitaram a Madeira", in Revista Portuguesa, 72, 1953; A. Lopes de Oliveira, Arquipélago da Madeira.
Epopeia Humana, Braga, 1969, pp. 132-134.
americanos as ilhas eram a primeira escala de descoberta do velho mundo. Por outro
lado os Açores despertaram a curiosidade das instituições e cientistas europeus. Os
aspectos geológicos, nomeadamente os fenómenos vulcânicos foram o principal alvo de
atenção. Mesmo assim o volume de estudos não atingiu a dimensão dos referentes à
Madeira e Canárias pelo que Maurício Senbert em 1838 foi levado a afirmar que a
"flora destas ilhas [fora]por tanto tempo despresada", o que o levou a dedicar-se ao
estudo 8 .

As ilhas recriavam os mitos antigos e reservavam ao visitante um ambiente paradisíaco


e calmo para o descanso, ou, como sucedeu no século dezoito, o laboratório ideal para
os estudos científicos. O endemismo insular propiciava a última situação. As ilhas
forram o principal alvo de atenção de botânicos, ictiólogos, geólogos. A situação é
descrita por Alfredo Herrera Piqué a considerar como "a escala científica do
Atlântico" 9 . Os ingleses foram os primeiros a descobrir as qualidades de clima e
paisagem e a divulgar junto dos compatriotas. É esta quase esquecida dimensão como
motivo despertador da ciência e cultura europeia desde o século XVIII que importa
realçar

Na Madeira aquilo que mais os emocionou os navegadores do século XV foi o


arvoredo, já para os cientistas, escritores e demais visitantes a partir do século XVIII o
que mais chama à atenção é, sem dúvida, o aspecto exótico dos jardins e quintas que
povoam a cidade. Nas Canárias a atenção está virada para os milenares dragoeiros de
Tenerife. O Funchal transformou-se num verdadeiro jardim botânico e segue uma
tradição secular europeia. Eles começaram a surgir na Europa desde o século XVI: em
1545 temos o de Pádua, seguindo-se o de Oxford em 1621. Em 1635 o de Paris preludia
a arte de Versailles em 1662. Em todos é patente a intenção de fazer recuar o paraíso 10 .
As ilhas não tinham necessidade disso pois já o eram. Diferente é a atitude do homem
do século XVIII. Aliás, desde a segunda metade do século XVII que o seu
relacionamento com as plantas mudou. Em 1669 Robert Morison publica Praeludia
Botanica, considerada como o princípio do sistema de classificação das plantas, que tem
em Carl Von Linné (Linnaeus) (1707-1778) o protagonista. A partir daqui a visão do
mundo das plantas nunca foi a mesma. Contemporâneo dele é o Comte de Buffon que
publicou entre 1749 e 1804 a "Histoire Naturelle, Générale et Particuliére" em 44
volumes. Perante isto os jardins botânicos do século XVIII deixaram de ser uma
recriação do paraíso e passaram a espaços de investigação botânica. O Kew Gardens em
1759 é a verdadeira expressão disso. Note-se que Hans Sloane (1660-1753), presidente
do Royal College of Physicians, da Royal Society of London e fundador do British
Museum, esteve na Madeira no decurso das expedições que o levaram às Antilhas
inglesas 11 .

A aclimatação das plantas com valor económico, medicinal ou ornamental adquiriu cada
vez mais importância. Aliás, foi fundamentalmente o interesse medicinal que provocou
desde o século XVII o desusado empenho pelo estudo 12 . Assim em 1757 o inglês
Ricardo Carlos Smith fundou no Funchal um dos jardins onde reuniu várias espécies
com valor comercial. Já em 1797 Domingos Vandelli (1735-1816) e João Francisco de

8
. "Flora Azorica", in Archivo dos Açores, XIV(1983), pp.326-339.
9
.Las islas Canarias, Escala Científica en el Atlántico Viajeros y Naturalistas en el siglo XVIII, Madrid, 1987.
10
. Richard Grove, Ecology, climate and Empire. Studies in colonial enviromental. History 1400-1940, Cambridge, 1997, p. 46; J. Prest, The Garden of Eden:
The Botanic Garden and the Re-creation of Paradise, New Haven, 1981.
11
Raymond R. Stearns, Science in the British Colonies of America, Urban, 1970
12
K. Thomas, Man and the Natural World. Changing attitudes in England. 1500-1800, Oxford, 1983, p. 27, 65-67.
Oliveira no estudo sobre a flora apresentou no ano imediato um projecto para um
viveiro de plantas. O viveiro foi criado no Monte e manteve-se até 1828. O naturalista
francês, Jean Joseph d'Orquigny, que em 1789 se fixou no Funchal foi o mentor da
criação da Sociedade Patriótica, Económica, de Comércio, Agricultura Ciências e Artes.
Também na ilha de Tenerife, em Puerto de La Cruz, Alonso de Nava y Grimón criou em
1791 um jardim de Aclimatação de Plantas.

Na Madeira tivemos a proposta de Frederico Welwistsch13 para a criação de um jardim


de aclimatação no Funchal e em Luanda 14 . A ilha cumpriria o papel de ligação das
colónias aos jardins de Lisboa, Coimbra e Porto. O botânico alemão que fez alguns
estudos em Portugal, passou em 1853 pelo Funchal com destino a Angola. Já a presença
de outro alemão, o Padre Ernesto João Schmitz, como professor do seminário
diocesano, levou à criação em 1882 um Museu de História Natural, que hoje se encontra
integrado no actual Jardim botânico. Só passado um século a temática voltou a merecer
a atenção dos especialistas. E, várias vozes se ergueram em favor da criação de um
jardim botânico. Em 1936 refere-se uma tentativa frustrada de criação de um Jardim
Zoológico e de Aclimatação nas Quintas Bianchi, Pavão e Vigia, que contava com o
apoio do Zoo de Hamburgo 15 . A criação do Jardim Botânico por deliberação da Junta
Geral do Distrito Autónomo do Funchal a 30 de Abril de 1960 foi o corolário da defesa
secular das condições da ilha para a criação e a demonstração da importância científica
revelada por destacados investigadores botânicos que procederam a estudos 16 .

Nos Açores foi evidente a aposta nos jardins de aclimatação. Um dos principais
empreendedores foi José do Canto que desde meados do século XIX criou diversos
viveiros de plantas de diversas espécies que adquiriu em todo o mundo. Na década de
setenta as suas propriedades enchiam-se de criptomérias, pinheiros, eucaliptos e
acácias 17 . Tenha-se em conta os contactos com as sociedades científicas e de
aclimatação francesas, as visitas aos mais considerados jardins europeus. Tudo isto
permitiu que o mesmo e alguns dos compatriotas micaelenses transformassem a
paisagem da ilha em densos arvoredos e paradisíacos jardins de flora exótica. A José do
Canto podemos juntar António Borges que em 1850 lançou o parque das Sete Cidades e
oito anos após o jardim de Ponta Delgada que ostenta o nome. Outro entusiasta da
natureza foi José Jácome Correia que nos legou o jardim de Santana. Tenha-se em
consideração o facto de António Borges ter permanecido desde 1861 oito anos em
Coimbra onde trabalhou no Jardim Botânico e manteve contactos estreitos com a
universidade, mercê do apoio do patrício Carlos M. G. Machado. Daqui resultou uma
estreita cooperação como envio à ilha de Edmond Goeze 18 com a finalidade de recolher
espécies arbóreas para a estufa do jardim coimbrão. Já nas Canárias a preocupação
fundamental foi a política de florestação. Para isso contribuíram a partir do séc.XVIII as
Sociedades Económicas de los Amigos del Pais em Gran Canaria (1777),
Tenerife(1776) e La Palma. Das actas da de Las Palmas rapidamente se extrai a
preocupação e aposta na política de reflorestação 19 . Os Jardins botânicos surgem aqui a

13
. Cf. Ebarhard Axel Wilhelm, "Visitantes de língua Alemã na Madeira(1815-1915)", in Islenha, 6, 1990, pp.48-67.
14
. "um Jardim de Aclimatação na ilha da Madeira", in Das Artes e da História da Madeira, n1. 2, 1950, pp.15-16
15
César A. Pestana, A Madeira Cultura e Paisagem, Funchal, 1985, p.65
16
Cf Boletim da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Abril de 1960; Rui Vieira, "Sobre o 'Jardim Botânico' da Madeira ", in Atlântico, 2, 1985,
pp.101-109.
17
. Fernando Aires de Medeiros Sousa, José do Canto. Subsídios para a História micaelense (1820-1898), Ponta Delgada, 1982, pp.78-113
18
. A Ilha de S. Miguel e o Jardim Botânico de Coimbra, in O Instituto, 1867, pp.3-61.
19
. Jose de Viera y Clavijo, Extracto de las Actas de la Real Sociedad Económica de amigos del Pais de las Palmas(1777-1780), Las Palmas de Gran Canaria,
1981.
partir da década de quarenta do nosso século: em 1943 o de Puerto de La Cruz em
Tenerife e em 1953 o de Viera y Calvijo em Gran Canaria.

Em qualquer dos momentos assinalados as ilhas cumpriram o papel de ponte e espaço


de adaptação da flora colonial. Os jardins de aclimatação foram a moda que na Madeira
e Açores tiveram por palco as amplas e paradisíacas quintas. O Marquez de Jácome
Correia 20 identifica para a Madeira as quintas do Palheiro Ferreiro e Magnólia como
jardins botânicos. São viveiros de plantas, hospital para acolher os doentes da tísica
pulmonar e outros visitantes. O deslumbramento acompanhou o interesse científico e os
dois conviveram lado a lado nas inúmeras publicações que o testemunham no século
XIX. Os jardins, através da harmonia arvoredo e das garridas cores das flores tiveram
nos séculos XVII e XVIII um avanço evidente. Os bosques deixaram de ser espaços de
maldição e as árvores entraram no quotidiano das classes altas. Os jardins adquiriram a
dimensão de paraíso bíblico e como tal de espaço espiritual. Eles são a expressão do
domínio humano sobre a Natureza 21 . A Inglaterra do século XIX popularizou os jardins
e as flores 22 . A ambiência chegou à ilha através dos mesmos súbditos de Sua Majestade.
As ilhas exerceram um fascínio especial em todos os visitantes e parece que nunca
perderam a imortal característica de jardins à beira do oceano. Poderemos afirmar que
as ilhas foram jardins e que os jardins continuam a ser o encanto dos que a procuram,
sejam turistas ou cientistas.

No século XVIII as ilhas assumiram um novo papel no mundo europeu. Assim, de


espaços económicos passaram também a contribuir para alívio e cura de doenças. O
mundo rural perde importância em favor da área em torno do Funchal, que se
transforma num hospital para a cura da tísica pulmonar ou de quarentena na passagem
do calor tórrido das colónias para os dias frios e nebulosos da vetusta cidade de
Londres. A função catapultou as ilhas da Madeira e Canárias para uma afirmação
evidente. O debate das potencialidades terapêuticas da climatologia propiciou um grupo
numeroso de estudos e gerou uma escala frequente de estudiosos 23 . As estâncias de cura
surgiram primeiro na bacia mediterrânica europeia e depois expandiram-se no século
XVIII até à Madeira e só na centúria seguinte chegaram às Canárias 24 . Dos visitantes
das ilhas merecem especial atenção três grupos distintos: invalids (=doentes), viajantes,
turistas e cientistas. Enquanto os primeiros fugiam ao Inverno europeu e encontravam
na temperatura amena das ilhas o alívio das maleitas, os demais vinham atraídos pelo
gosto de aventura, de novas emoções, da procura do pitoresco e do conhecimento e
descobrimento dos infindáveis segredos do mundo natural. O viajante diferencia-se do
turista pelo aparato e intenções que o perseguem. Ele é um andarilho que percorre todos
os recantos das ilhas na ânsia de descobrir os aspectos mais pitorescos. Na bagagem
constava sempre um caderno de notas e um lápis. Através da escrita e desenho ele
regista as impressões do que vê. Daqui resultou uma prolixa literatura de viagens, que
se tornou numa fonte fundamental para o conhecimento da sociedade oitocentista das
ilhas. Ao historiador está atribuída a tarefa de interpretar estas impressões 25 . Aqui são
merecedoras de destaque duas mulheres: Isabella de França 26 para a Madeira e Olívia

20
. A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.173, 178
21
. Peter J. Bowler, Fontana History of environmental Sciences. N. Y., 1993.,p.111.
22
. Cf. K. Thomas, ibidem, pp.207-209, 210-260
23 . James Clark, The Sanative Influence of Climate, Londres, 1840; W. Huggard, A Handbook of Climatic Treatment, Londres, 1906; Nicolás González Lemus, Las Islas de la Ilusión. Británicos en Tenerife 1850-1900, Las Palmas, 1995; Zerolo, Tomás,
Climatoterapia de la Tuberculosis Pulmonar en la Península Española, Islas Baleares Y Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1889. O debate sobre o tema provocou a publicação de inúmeros estudos a favor e contra. Cf. Bibliografia textos de S. Benjamin (1870),
John Driver (1850), W. Gourlay (1811), M. Grabham (1870), R. White (1825).
24 . M. J. Báguerra Cervellera, La Tuberculosis y su História, Barcelona, 1992.
25 .António Ribeiro Marques da Silva. Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994, N. González Lemus, Viajeros Victorianos en Canarias, Las Palmas, 1998.
26 Journal of a visit to Madeira and Portugal (1853-1954), Funchal, 1970. Todavia, a primeira viajante na ilha foi Maria Riddel que em 1788 visitou a ilha durante 11 dias: A Voyage to The Madeira..., Edinburgh, 1792.
Stone 27 para as Canárias. O turista ao invés é pouco andarilho, preferindo a bonomia
das quintas, e egoísta guardando para si todas as impressões da viagem. O testemunho
da presença é documentado apenas pelos registos de entrada dos vapores na alfândega,
das notícias dos jornais diárias e dos "títulos de residência" 28 , pois o mais transformou-
se em pó.

A presença de viajantes e "invalids" nas ilhas conduziu à criação de infra-estruturas de


apoio. Se num primeiro se socorriam da hospitalidade dos insulares, num segundo
momento a cada vez mais maior afluência de forasteiros obrigou à montagem de uma
estrutura hoteleira de apoio. Aos primeiros as portas eram franqueadas por carta de
recomendação. A isto juntou-se a publicidade através da literatura de viagens e guias.
Os guias forneciam as informações indispensáveis para a instalação no Funchal e
viagem no interior da ilha, acompanhados de breves apontamentos sobre a História,
costumes, fauna e flora. Para a Madeira, um dos mais antigos guias que se conhece é
anónimo 29 , seguindo-se os de Robert White 30 , E. V. Harcourt 31 , J. Y. Johnson 32 e E. M.
Taylor 33 . O primeiro guia de conjunto dos arquipélagos é de William W. Cooper 34 e A
Samler Brown 35 . O último tornou-se num best-seller, pois atingiu 14 edições. Tenha-se
em conta os destinatários dos guias. Assim em 1851 James Yate Johnson e Robert
White36 fazem apelo aos "invalid and other visitors", enquanto em 1887 Harold Lee 37
dirige-se aos "tourists" e em 1914 temos o primeiro guia turístico de C. A. Power 38 .
Este deverá marcar nas ilhas o fim do chamado turismo terapeutico e o início do actual.
Aos dois grupos junta-se um terceiro que também merece atenção dos guias, isto é, o
naturalista ou cientista 39 .

A Madeira firmou-se a partir da segunda metade do século dezoito como estância para o
turismo terapêutico, mercê das qualidades profiláticas do clima na cura da tuberculose,
o que cativou a atenção de novos forasteiros 40 . Aliás, a ilha foi considerada por alguns
como a primeira e principal estância de cura e convalescença da Europa 41 . No período
de 1834 a 1852 a média anual de Invalid's oscilava entre os 300 e 400, maioritariamente
ingleses. Em 1859 construiu-se o primeiro sanatório. O último investimento foi dos
alemães que em 1903 através do príncipe Frederik Charles de Hohenlohe Oehringen
constituiu a Companhia dos Sanatórios da Madeira. Da polémica iniciativa resultou
apenas o imóvel do actual Hospital dos Marmeleiros 42 .

Não temos dados seguros quanto ao desenvolvimento da hotelaria nas ilhas, pois os
dados disponíveis são avulsos43. Os Hotéis são referenciados em meados do século
XIX mas desde os inícios do século XV que as cidades portuárias de activo movimento
27 .Teneriffe and its six Satellites(1887)
28 . Na Madeira as autorizações de residência estão registadas para os anos de 1869 a 1879 e 1922 a 1937.
29 . A Guide to Madeira Containing a Short Account of Funchal, Londres, 1801.
30 . Madeira its Climate and Scenery containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a tour of the Island, Londres, 1825.
31 . A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller or Invalid Visitor, Londres, 1851.
32 Madeira its Climate and Scenery. A Handbook for Invalids and other Visitors, Edinburg, 20ed., 1857, 30ed., 1860.
33 .Madeira its Scenery and How to See it with Letters of a Year's Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, Londres, 10ed., 1882, 20 ed., 1889.
34 . The Invalid's Guide To Madeira With a Description of Tenerife..., Londres, 1840.
35 . Madeira and the Canary Islands.
36. Madeira Its Climate and Scenery. A Handbook for Invalid and Other Visitors, Edimburgo, 1851.
37 . Madeira and the Canary islands. A Handbook for Tourists, Liverpool, 1887.
38 . Tourist´s Guide to the Island of Madeira, Londres, 1914.
39 . C. A. Gordon, The Island of Madeira for the Invalid and Naturalis- "the Flower of the Ocean. The Island of Madeira: A Resort for the Invalid; a Field for the Naturalist, Londres, 1896.
40 . As mais antigas referências a esta situação surgem em 1751 em texto de Thomas Heberden em Philosophal Transactions, sendo corroborado pelo Dr. Fothergill em On Consuption Medical Observation (1775). Veja-se ainda J. Adams, Guide to Madeira
with an Account of the Climate, Londres, 1801; W. Gourlay, Observations on the Natural History, Climate and Desease of Madeira During of Period os Sixteen Years, Londres, 1811.
41 . Hugo C. de Lacerda Castelo Branco, Le Climat de Madère. Ébauche d'une étude Comparative:Le Meilleur Climat du Monde: Station Fixe et la Plus Belle d'Hiver, Funchal, 1936.
42 . Nelson Veríssimo, A questão dos Sanatórios da Madeira, in Islenha, 6, 1990, 124-144; Desmond Gregory, The Beneficient Usurpers: A History of the British in Madeira, Londres, 1988, pp.112-124; F. A. Silva, Sanatórios da Madeira, in Elucidário
Madeirense, 10 ed. 1921-22.
43 . Apenas a partir de 1891 temos o Registo de Licenças de Botequins, tabernas, Hoteis, Estalagens, Clubes e Lotaria(1891-1901). Cf. Fátima Freitas Gomes, Hotéis e Hospedarias (1891-1901), in Atlântico, n1.19, 1989, 170-177.
de forasteiro deveriam possuir estalagens. A documentação oficial faz eco desta
realidade como se poderá provar pelas posturas e actas da vereação dos municípios
servidos de portos. No caso da Madeira assinala-se em 1850 a existência de dois hotéis
(the London Hotel e Yate's Hotel Family) a que se juntaram outros dez em 1889 44 . Em
princípios do século XX a capacidade hoteleira havia aumentado, sendo doze os hotéis
em funcionamento que poderiam hospedar cerca de oitocentos visitantes 45 . A
preocupação destes visitantes em conhecer o interior, nomeadamente a encosta norte
levou ao lançamento de uma rede de estalagens que tem expressão visível em S.
Vicente, Rabaçal, Boaventura, Seixal, Santana e Santa Cruz 46 . Tenha-se ainda em conta
um conjunto de melhoramentos que tiveram lugar no Funchal para usufruto dos
forasteiros. Assim, desde 1848 com José Silvestre Ribeiro temos o delinear de um
moderno sistema viário, a que se juntaram novos meios de locomoção: em 1891 o
Comboio do Monte, em 1896 o Carro Americano e finalmente o automóvel em 1904.

As Canárias, nomeadamente Tenerife e Furteventura, juntaram-se à Madeira no turismo


terapeutico desde meados do século XIX47. Note-se que em 1865 Nicolás Benitez de
Lugo construiu em La Orotava (Tenerife) "un estabelecimiento para extranjeros
enfermos". Deverá ter sido nesta época que a ilha de Tenerife se estreou como health
resort, passando a fazer concorrencia com a Madeira, tendo a favor melhores condições
climáticas 48 . O Vale de La Orotava, através do seu porto (hoje Puerto de La Cruz),
afirma-se como a principal estância do arquipélago. Isto provocou o desenvolvimento
da indústria hoteleira, que depois alastrou também à cidade de Santa Cruz de Tenerife49 .
Vários factores permitiram a rápida ascensão das ilhas de Tenerife e Gran Canária na
segunda metade do século XIX que assumiram rapidamente a dianteira face à Madeira.
A afirmação de Santa Cruz de Tenerife como porto abastecedor de carvão aos barcos a
vapor, a declaração dos portos francos em 1852 fizera atrair para aqui todas as linhas
francesas e inglesas de navegação e comércio no Atlântico. A aposta no turismo e
serviços portuários permitiu uma saída para a crise económica do arquipélago e uma
posição privilegiada face à concorrência da Madeira ou dos Açores 50 .

Nos Açores o turismo teve um aparecimento mais recente. Não obstante Bullar (1841)
referir a presença de doentes americanos na Horta foi reduzido o movimento no
arquipélago. Todavia, isto conduziu ao aparecimento do primeiro hotel conhecido no
Faial, em 1842. Em 1860 chegou o primeiro grupo de visitantes norte-americanos, mas
só a partir de 1894 ficaram conhecidos como tourists 51 .

A partir de finais do século XIX o turismo dava os primeiros passos. Foi como corolário
disso que se estabeleceram as primeiras infra-estruturas hoteleiras e que o turismo
passou a ser uma actividade organizada e com uma função relevante na economia. E
mais uma vez o inglês é o protagonista. Este momento de afluência de estrangeiros
coincide ainda com a época de euforia da Ciência nas Academias e Universidades
44 . Isto de acordo com as informações de J. Driver (Guide to Visitors, Londres, 1850) e C. A. Mourão Pita (Madère, Station Mèdicale Fixe, Paris, 1889).
45 . Marquês de Jácome Correia, A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.232
46 . Para S. Vicente veja-se nossos estudos sobre "Retratos de Viajantes e Escritores", Boletim Municipal. São Vicente, n1.3, 1995,pp.3-7; "O Norte na História da Madeira", in Boletim Municipal. São Vicente, n1.8, 1996,pp.7-15
47 . W. Cooper, The Invalid's Guide to Madeira with a Description of Tenerife, Londres, 1840; M Douglas, Grand Canary as a heatlth Resort for Consummptives and Others, London, 1887; John Whiteford, The Canary Islands as a Winter Resort, Londres,
1890; George Victor Pérez, Orotava as a Health Resort, Londres, 1893.
48 . Note-se que em 1861 Richard F. Burton (Viajes a las Islas Canarias I. 1861, Puerto de La Cruz, 1999, p.26) que na sua viagem todos os tuberculosos ficaram na Madeira.
49 .A. Hernández Gutiérrez, De la Quinta Roja al Hotel Taoro, Puerto de La Cruz, 1983; IDEM, Cuando los Hoteles eran Palacios, Islas Canarias, 1990; A.Guimera Ravina, EL Hotel Marquesa, Puerto de la Cruz, 1988; IDEM, El Hotel Taoro, 1890-
1990.Cien Años de Turismo en Tenerife, Santa Cruz de Tenerife, 1991.
50 . Madeirenses e açorianos cedo se aperceberam desta realidade culpando as autoridades de Lisboa. Vide: João Augusto d'Ornellas, A Madeira e as Canárias, Funchal, 1884; João Sauvaire de Vasconcelos, Representação da Câmmara Municipal da Cidade
do Funchal ao Governo de S. M. sobre Diversas Medidas Tendentes a Conservar e Arruinar a Navegação de passagem neste Porto dos Paquetes Transatlânticos, Funchal, 1884; Visconde Valle Paraizo, Propostas Apresentadas pela Commissão Nomeada em
Assembleia da Associação Commercial do Funchal de 14 de Novembro de 1894 para Estudar as Causas do Desvio da Navegação do Nosso Porto e do Afastamento de Forasteiros, Funchal, 1895; Maria Isabel João, Os Açores no século XIX, Economia,
Sociedade e Movimento Autonomista, Lisboa, 1991.
51. Ricardo Manuel Madruga da Costa, Açores, Western Islands. Um Contributo para o Estudo do Turismo nos Açores, Horta, 1989.
europeias. Desde finais do século XVII as expedições científicas tornaram-se comuns e
a Madeira (Funchal) ou Tenerife (Santa Cruz de Tenerife e Puerto de La Cruz) foram
portos de escala, para ingleses, franceses e alemãs.

2. NOVOS PALADARES E PRODUTOS.

Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões. A
maça apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o ananás nos recria as
paradisíacas ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do século XVIII. A
alimentação progrediu e as ementas universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de
identidade de origem e entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo
ocidental é igual. As divergências e exoticidade sucedem como resultado do confronto
com outras culturas, como o mundo árabe e as regiões orientais.
A Madeira está situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV foi a ilha que promoveu a expansão das
culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de
novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que a ilha servisse de entreposto de
expansão dos mesmos no velho continente. Tudo isto acontece porque a ilha continua a
ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de
microclimas propícios à fixação de novas plantas e sementes. Aliás, a singular condição
levou a que nos séculos XVIII e XIX a ilha se transformasse num viveiro de
aclimatação de plantas. Dos inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se
afirmaram rapidamente na dieta alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no
decurso da segunda metade do século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia
dos cereais na dieta alimentar. Em princípios do século XX é ainda visível a expansão
dos produtos hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais. Em 1908 a produção
média por hectare era de 15.000 quilos, dando a ilha vinte e cinco toneladas.
A batata é originária do Andes mas foi a Irlanda o principal centro difusor do tubérculo
na Europa. A presença na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a
generalização só aconteceu em princípios do século XIX. A batata-doce, também
oriunda da América do sul aparece na Madeira no século XVII, sendo referenciada na
década de setenta do século XVIII como o principal sustento do camponês. Já a batata,
dita semilha para o madeirense, só se generalizou no consumo desde 1845 com a
introdução de uma nova variedade de Demerara. Em 1842 o míldio atacou a batata
irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população da ilha. O mais
evidente é que a situação teve eco noutros espaços europeus, como foi o caso da
Madeira em 1846 e 1847. Tendo em conta que havia adquirido um lugar dominante na
alimentação é fácil de adivinhar as dificuldades daqui resultantes. O próprio
governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em 1847 que a batata
era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas
eram abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para
comer “algum inhame e pouco milho”
A crise da batata conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a
plena afirmação do milho O Milho, na dieta popular. Sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso
século. O milho introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de
parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses. Em 1847 a ilha
produzia apenas vinte moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841 a ilha
importava 9000 moios de milho e 8000 de trigo, passando em 1852 para cerca de
10.000 de milho e 5500 de trigo. Já nas décadas de setenta e oitenta o milho era a base
da alimentação das populações mais pobres. Em Câmara de Lobos já em princípios do
século o milho dominava a dieta alimentar.
Por diversas vezes a imprensa do tempo de guerra refere-nos que o milho era o principal
alimento do povo. E quase todo ele era importado do estrangeiro, ou das colónias: a ilha
produzia uma ínfima parte daquilo que consumia. O milho era servido de diversas
formas na mesa rural madeirense: papas de milho, milho escaldado e estroçoado. Com a
farinha faziam-se as papas de milho e com o milho pilado com que faziam um caldo
com cebo de carneiro ou boi, ou então umas papas com leite. No “Diário de Noticias”
de 4 de Setembro de 1941 dizia-se: - “o milho é, há muitos anos, um elemento
fundamental da alimentação das nossas classes menos remediadas. Barato, de fácil
preparação e de forte poder alimentar, nenhum produto da terra o pode substituir ou
sequer igualar”. Dai, deverá ter resultado a expressão popular: “Vai-se ganhando para
o milhinho...”.0 milho era o alimento das classes pobres e a ausência atingia
principalmente estes, por isso o articulista do D.N. apelava em Agosto de 1943 às
classes mais abastadas, que lhe reservassem este privilégio: - “O milho é o alimento das
classes pobres, das classes populares (...) o milho, repetimos, é o alimento dos pobres:
assim aqueles que o podem dispensar, deixem-no aos pobres -porque para as almas
bem formadas, deve constituir amargura, provocar, impensadamente, as faltas de
alimentação nos lares onde o dinheiro não abunda”. Mais tarde, no Inverno de 1945 em
face de novas dificuldades as páginas do mesmo jornal abriram-se para expressar o grito
plangente ecoado por todos os madeirenses em surdina. O Racionamento de 1 kg
semanal por cabeça propiciou o seguinte comentário: -“Não era bastante para as
necessidades duma população que tinha afeito a sua economia doméstica ao consumo
quase diário daquele produto.., numa terra onde o milho se podia chamar o pão-nosso de
cada dia.”
A Madeira tinha necessidade de importar anualmente 13.000 toneladas. Todavia em
1941 ainda eram grandes as reservas de cereal e a frequência de embarcações. Os
problemas de abastecimento só começaram a surgir no Outono de 1943, mas já no
anterior começou o racionamento e distribuição do milho. Mas aqui, mercê da iniciativa
da Comissão Regulador do Comércio de Cereais, a situação não foi tão gravosa como
havia sucedido no decurso da primeira guerra. A política de intervencionismo
económico definida por Salazar levou à criação em 1954 do Grémio do milho colonial
português e em 1938 surgiu a delegação madeirense da Junta de Exportação dos
Cereais, que passou a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços
do grão e farinha. Foi responsável Ramon Honorato Rodrigues, que em 1962, no
momento de extinção, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela junta que
presidiu. Por ai se ficou a saber das dificuldades sentidas nos anos da guerra e da acção
da Junta e Governador Civil para solucionar a situação por meio do racionamento do
milho e da solicitação de carregamento à ordem do governo. Para termos uma ideia das
dificuldades sentidas basta-nos aludir à capitação estabelecida pelo racionamento e
relacioná-la com a média anterior à guerra: entre 1937-39 ela foi de 123 kg/ano,
enquanto de 1942-44 passou para apenas 80 kg. Mas houve anos em que a situação se
agravou: por exemplo em Março e Abril de 1945 a ração semanal por cabeça era de
apenas 550 gramas de milho. A partir de 1941 o racionamento foi determinado por
concelho de acordo com o número de cabeças de casal, variando o quantitativo
conforme os stocks disponíveis.
À SOBREMESA: DOCES E FRUTOS. Parte significativa do açúcar produzido na ilha,
e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São
vários os testamentos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico dos
produtos. Tal como se deduz de um documento de 1469 o fabrico de conservas era
indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava
"mulheres de boas pessoas e muitos pobres que lavraram os açucares baixos em tantas
maneiras de conservas e alfenim e confeitos de que têm grandes proveitos que dão
remédio a suas vidas e dão grande nome a terra nas partes onde vão...". Os livros do
quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico
de conservas, frutas seca e marmelada. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas
de açúcar de vários tipos, sendo na maioria para consumo dos proprietários do referido
açúcar.
A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o
expoente máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa.
Segundo Gaspar Frutuoso compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha de
conservas, e o sacro palácio todo feito de açúcar, e os cardiais todos feitos de alfenim,
dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem".
São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes
produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável
aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos
depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se
exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos), quase
desaparecendo em finais do século XVIII e arrastando inevitavelmente a indústria para
o fim.

Um dos factores de promoção desta indústria ao nível das conservas foi a importância
assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação
atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de
conservas de citrinos para a dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial
das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. D. Manuel foi o
consumidor preferencial e aquele que divulgou as qualidades na Europa. Assim, ficaram
como o principal presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco
da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha. No
período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em
conservas e frutas secas. A par disso o rei havia estabelecido a partir de 1520 o envio
anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres. A indústria manteve-se por
todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção local ou com as
importações dele do Brasil. No último caso sabe-se que em 1680 foram importadas
2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao
governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio
muito grande porque há ano que se carregam com aquela terra mais de 20
embarcações de um só doce para o qual é necessário comprar açúcar da terra ou
manda-lo vir do Brasil". A correspondência de William Bolton refere que a conserva de
citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo
usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas
para Lisboa, Holanda e França.
O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível para
distribuir às conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram mais
trinta dias de árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para a exportação. Da
existência ou não de açúcar, da sua qualidade dependia a disponibilidade para o fabrico
destes derivados, que activavam o comércio com as praças do Norte da Europa, donde
nos províamos de cereais e manufacturas. Estamos perante uma indústria muito instável,
dependendo das possibilidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto
acabado pelos mercadores europeus. A correspondência particular de alguns
mercadores, como é o caso de Diogo Fernandes Branco e W. Bolton, testemunha de
forma evidente esta realidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697: "Pensou-se fazer
uma grande quantidade de conserva de citrinos mas muitos fabricantes desistiram por
não saberem se os barcos os viriam buscar".

São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes


produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável
aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos
depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se
exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos). Um dos
principais factores de promoção da indústria das conservas foi a importância assumida
pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas
embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos para
a sua dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e
doçaria madeirense foi, no início, a Casa Real portuguesa e, depois, as cidades do Norte
da Europa.

No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do


Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás em 1687 Hans Sloane referia-
se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao
referir que "nunca vi coisas tão boas". Num breve relance pelos livros de receita e
despesa do Convento da Encarnação, Misericórdia do Funchal e Recolhimento do Bom
Jesus, constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil
para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmolas que recebia
em açúcar ou marmelada consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia
dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3
arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são conhecidas
outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce.
Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34
arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de
1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de
açúcar e 14 canadas de mel.

Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação. Aí, de


acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do
convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso
deste convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última
festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso
parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer"
e fazer conserva. No total despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois
anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas.
Extintos os conventos quase que também desapareceu a tradição da doçaria. No século
XIX a doçaria teve divulgação através das pastelarias. Um das mais famosas foi a
Pastelaria Felisberta criada em 1837 na Rua da Carreira. Também ficou célebre a
doçaria da panificação Blandy na rua do Hospital Velho. Uns anos mais tarde, Isabella
de França continuava deslumbrada com a cozinha doce da ilha. Nos anos vinte a cidade
estava servida de onze confeitarias. Hoje, o único testemunho que resta dessa
importante industria do doce madeirense é o bolo de mel. O alfenim manteve-o a
tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo na ilha Terceira, único local onde
ainda persiste a tradição.
No século XIX eram também muito apreciados os sorvetes e doces gelados feitos com
neve trazido do alto das montanhas para o Funchal. Ficou famosa a casa de Baxixa, tal
como o testemunha John Dix. Este fabricava os melhores sorvetes, servindo-se da neve
que recolhia da casa de gelo das montanhas. A partir de 1867 o fabrico de gelo por John
Peyne & Son com água das Fontes de João Diniz tornava mais fácil o fabrico de
sorvetes. Na década de vinte persistem ainda duas fábricas de gelo que continuarão por
muito tempo a deliciar a gulodice dos amantes dos refrescos de Verão.
A sobremesa não se resumia apenas à rica doçaria, pois que a ilha desde o começo do
povoamento sempre se mostrou terra fértil onde medrava todo o tipo de árvores de fruta.
Primeiro foi o domínio daquelas conhecidas na Europa e depois a partir do século XVI,
as exóticas de África e América. Enquanto as primeiras se anicham nas áreas acima dos
300 m de altitude as segundas preferem as zonas ribeirinhas e soalheiras. A mais antiga
referência que temos é da banana, referida em 1552 por Thomas Nichols, mas a lista é
variedade, incluindo-se o abacate, ameixas, amoras, anonas, goiabas, mangos, ananás,
araçá, maracujá. Esta variedade de frutas sempre servida à mesa na época não era de
agrado de todos os forasteiros. Maria Carlota da Bélgica em 1860 não era adepta de
bananas, goiabas e maracujás, reclamando de um “odor infecto” e um “sabor horrível”.

3. A MESA DO MADEIRENSE

A ilha, terra de passagem de gentes assistiu também à movimentação e descoberta do


mundo animal e vegetal. A Madeira foi, na verdade, o espaço de passagem das plantas
do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa. Da Europa chegaram os
cereais, a vinha e a cana-de-açúcar. Os dois primeiros por exigência da cultura cristã. A
América e a África revelaram-se aos europeus na sua exoticidade e variedade dos frutos.
Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia tornava-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou
aquilo que foi encontrando. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café,
chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de
modo especial a Madeira são viveiro de aclimatação aos solos europeus. A nossa
variedade de frutos é resultado disso. A Banana é conhecida na ilha desde o século XVII
e outros mais frutos tropicais foram chegando e contribuíram paulatinamente para o
alargamento do cardápio. A mais antiga referência surge em 1687 no testemunho de
Hans Sloane, sendo repetido em 1689 por John Ovington. Paulatinamente impõe-se na
dieta alimentar tornando-se numa importante fonte de riqueza da ilha.
A viagem de Vasco da Gama (1497-1499) veio a contribuir para a generalização do
consumo das especiarias, já conhecidas dos europeus, mas só agora com uma rota
segura da divulgação. Assim ao tradicional açafrão, a mesa apura-se com as pimentas
orientais. A posição da ilha, o protagonismo histórico contribuiu para a afirmação desde
o século XV e definiram uma evolução peculiar da mesa. As ligações da ilha com outras
regiões tiveram impacto directo na culinária. Assim, a presença dos escravos de
Canárias, ou a iniciativa de madeirenses que mantiveram contactos com este
arquipélago é responsável pela presença do gófio ou gofe, isto é uma farinha de cevada
torrada que se consumia com leite de cabra ou de vaca. Sabemos do seu consumo no
século XVIII no Porto Santo e que as freiras do Convento da Encarnação o tinha na
ementa. Do Norte de África terá vindo o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco.
A culinária madeirense pode ser considerada de uma forma genérica rica e pobre.
Parece um paradoxo, mas não é. Para entendermos isto temos que ter em conta um
conjunto de factores que condicionaram a evolução ao longo dos séculos, através dos
produtos que alimentam o cardápio e dos meios de conservação. As dificuldades na
conservação dos produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e
consumo definindo uma sazonalidade. A maior parte dos produtos, como é o caso dos
frutos, tinha uma durabilidade limitada, sendo consumidos apenas na época de
maturação. A sazonabilidade condicionava a forma de orientação do cardápio e
obrigava o madeirense a estar dependente dos condicionalismos do ciclo rural. Acresce
ainda outro factor significativo na mesa madeirense. A dificuldade, desde o século XV,
em encontrar na ilha a garantia de subsistência para a população, o que obriga à extrema
dependência do exterior. As crises de subsistência são uma constante na História da
Madeira.
Os estrangeiros visitantes não se cansam de referir o contraste entre a mesa das famílias
distintas e a da maioria da população. Entre os primeiros estávamos perante a boa mesa
onde os excessos de comida eram frequentes. E as evidências aí estavam. A obesidade
era uma característica do grupo social e do clero. Rodolfo Schultze em 1864 chama a
atenção para o facto de os jovens das famílias mais importantes, entre os 10 e 14 anos,
tinham a tendência para o peso excessivo. A ideia é também corroborada pelos autores
portugueses. Assim, Eduardo Grande é peremptório em afirmar que o “regímen
alimentar das classes menos abastadas deste distrito” era pobríssimo, constando quase
sempre de pão, mas de má qualidade.
Mas isto parece ter sido o privilégio de um grupo restrito da sociedade, uma vez que de
acordo com John Ovington em 1689 a alimentação dos madeirenses era muito frugal,
referindo que os pobres no tempo da vindima comiam apenas de uvas e pão. Diz-nos
George Forster que “os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a
alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne”. Na verdade, a
alimentação consistia em vegetais algum pão, inhame e castanha e os frutos da época.
Os forasteiros são os principais divulgadores da gastronomia. Habituados às laudas
mesas reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das
quintas ou do Palácio do Governador. Em 1793 John Barrow saiu da ilha agradado com
a mesa do governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho “a sua mesa é uma das
mais variadas e delicadas e em poucas partes do mundo se poderia apresentar coisa
semelhante. Travessas esplêndidas sustentam animais inteiros; ali deparei com um
porquinho recheado rodeado de laranjas, uma lebre armando um salto, faisões
tentando levantar voo, ornados com a sua vistosa e flamejante plumagem”.
A mesa madeirense apresentava por vezes alguns pratos estranhos os forasteiros. No
texto editado por J. Payne em 1740 dá-se conta de”um prato de misturas, muito
apreciado pelos naturais composto de peras, passas, pão e ovos, tudo fervido ao mesmo
tempo, com salsa e outras ervas aromáticas”. Noutro prato misturava-se uvas com
nozes, inhame cozido, a que se juntava uma massa frita e melaço.
A actual culinária madeirense é herdeira da tradição cultural dos colonos europeus, das
aportações dos forasteiros e rotas marítimas. Os cereais perduram sob a forma de pão ou
diferentes formas de cozinhado. O milho conhece-se hoje mais como frito do que como
papas. A batata persiste na mesa. E a sobremesa é hoje a mais requintado e rica, quer em
aromas e sabores. É tudo obra da Natureza e do Homem.

BIBLIOGRAFIA. A Cozinha Madeirense: Lucillia Boullosa Valle, O Paladar Madeirense, Funchal, SD.
PORTO DA CRUZ, Visconde do, A Culinária Madeirense, in Das Artes e de História da Madeira, VI, nº
33, 1963, IDEM, A Culinária Madeirense, in Das Artes e de História da Madeira, 1949, pp.191, 197-198,
206-207, 214-215, 221-223, 231. SARMENTO, Alberto A., À sobremesa, três frutos exóticos, Funchal,
1945.Zita Cardoso, Segredos da Cozinha Madeira e Porto Santo, Funchal, 1994. Margarida R. Camacho,
Cozinha Madeirense, Funchal, 1992. Lidia Góes Ferreira, Gastronomia Tradicional. Três Plantas
Utilizadas na alimentação dos Portosantenses, Xarabanda, 6, 1994, 27-30. Ana Maria Ribeiro, O Fabrico
dos Bolos de Mel na Calheta, Xarabanda, 5, 1994, 23-26. Rui Camacho, Peixe Seco na Madeira,
Xarabanda, 4, 1993, 2-7. Luísa Gonçalves, Malassadas à Moda de Santana, Xarabanda, 12, 1991, 45-48.

Estudos sobre ou com referência à História da Alimentação: Cousas & Lousas das cozinhas madeirenses,
Funchal, 1987. Ramon Honorato Rodrigues, Questões Económicas, 2 vols, Funchal, 1953, 1955. IDEM,
Notas Sobre a Actuação da Delegação da Junta de Exportação dos Cereais na Madeira, Funchal, 1962.
Rui Carita, O Colégio dos Jesuítas do Funchal, 2 vols, Funchal, 1987. João Adriano Ribeiro, 125 anos de
Cerveja na Madeira, Funchal, 1996. Jayme Câmara, Senhora da Luz. Subsídios Etnográficos, Funchal,
1938. João C. Nascimento, As Freiras e os Doces do Convento da Incarnação, Arquivo Histórico da
Madeira, V, 1937. IDEM, A Restauração e o convento da Encarnação, Funchal, 1940. IDEM, O que as
Freiras Comem, AHM, V, 1937. Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação, Das
Artes e da História da Madeira, 1948-49. IDEM, Um Ovo por Um Real, DAHM, Funchal, 1948-49, p.68.
IDEM, Os Bolos de Mel do Ti Caetano, DAHM, vol.I, nº4, 1950. Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira, O
Natal na Madeira. Estudo folclórico, Funchal, 1956. André Simon e Elizabeth Craig, Madeira, Wine,
Cakes and Sauce, Londres, 1933. Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou..., Lisboa, 1928.
NATIVIDADE, J. Vieira. Fomento da Fruticultura na Madeira, 1947. Carlos de Meneses, Os Inhames e
a Norça na Madeira, Portugal Agrícola, nº.20, 1908. IDEM, A Batata Doce na Madeira, Portugal
Agrícola, 24, 1909, IDEM, A Batata na ilha da Madeira, Portugal Agrícola, 11, 1908. António Aragão, A
Madeira Vista Por Estrangeiros, Funchal, 1981. João Adriano Ribeiro, A Indústria de Conservas de
Peixe, in Porto Santo. Aspectos da sua Economia, Funchal, 1997. João Adriano Ribeiro, A Fábrica de
águas do Porto Santo, in Porto Santo. Aspectos da sua Economia, Funchal, 1997. Jorge de Freitas Branco,
Camponeses da Madeira, Lisboa, 1987. Rui Nepomuceno, As Crises de Subsistência na história da
Madeira. Ensaio Histórico, Lisboa, 1994. José de Sainz-Trueva, Loiça Brasonada Relacionada com a Ilha
da Madeira, Islenha, 13, 1998, 123-135. Carlos Cristóvão, a Melhor Casa e Chá era em Machico, Islenha,
15, 1994, 54-56. David Ferreira de Gouveia, O Açúcar Confeitado na Madeira, Islenha, 11, 1992, 35-52.
Ramon Honorato Rodrigues, Questões Económicas, II, Funchal, 1955. Idem, Notas Sobre a Actuação da
Delegação da Junta de Exportação dos Cereais na Madeira, Funchal, 1962.

Testemunhos de estrangeiros sobre a alimentação: PENFOLD, Jane Wallas. Madeira Flowers, Fruits,
and Ferns, London, 1845. John Ovington, Antologia- A Ilha da Madeira, Atlântico, nº1, 1985, 70-79.
George Forster, ANTOLOGIA- Uma Visão da Madeira, Atlântico, 5, 1986, 69-78. Isabella de França,
Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal (1853-54), Funchal, 1969. Missa Katherine Parry, Diário de
uma Visita à Madeira, Atlântico, III, 1987. Eberhard Axel Wilhelm, A Vida no Funchal por 1860. Uma
descrição pelo médico Alemão Rodolfo Schultze, Xarabanda Revista, 11, 1997, 20-27. IDEM, Os
Madeirenses na Visão de Alguns Germânicos. O Seu Aspecto e Carácter e a Sua Maneira de Viver,
Ibidem, 7, 1995, 2-13. IDEM, O Concelho de Câmara de Lobos entre 1850 2 1910 Visto por Alguns
Germânicos, Girão 5, 1990, 185-195. IDEM, A Madeira entre 1850 e 1900. Uma Estância de Tísicos
Germânicos, Islenha, 13, 1993, 116-121. IDEM, Seis Meses e Meio na Madeira (1854-1855). Os Diários
da Governanta Alemã Augusta Werlich, Islenha, 16, 1995, 60-71, IDEM, Ibidem, 17, 1995, 75-83.
IDEM, Na Madeira Há 125 Anos. Observações dum Médico de Tuberculosos Alemão, Atlântico, 12,
1987, 274-285. Maria dos Remédios Castelo Branco, As Impressões de Jean Mocquet sobre o Funchal em
1601, Atlântico, 11, 1987, 222-226. IDEM, Testemunhos de Viajantes Ingleses sobre a Madeira, I
Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989. IDEM; Perspectivas Americanas na
Madeira, II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989. António Marques da Silva,
Apontamentos sobre o quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994.
Rua das Mercês, 8 Email: ceha@madeira-edu.pt
9000-420 – Funchal
Telef (+351291)214970
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VIEIRA, Alberto (2004),

A Mesa e a Cozinha na História


Madeirense,

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (2004), A Mesa e a Cozinha na História Madeirense, Funchal, CEHA-Biblioteca


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A MESA E A COZINHA
na História madeirense

ALBERTO VIEIRA

No mundo actual a culinária adquiriu elevado requinte. A sociedade, chamada de


consumo, universalizou os nossos hábitos gastronómicos. Os hipermercados, os
restaurantes são a expressão disso e ninguém os dispensa o acto de comer e beber
deixou de ser uma necessidade fisiológica para se tornar num prazer. O requinte da
cozinha, a arte e mestria dos cozinheiros assim o demonstram.
A mesa transformou-se num espaço importante. À mesa selam-se contratos, decide-se
os destinos de um país, ou celebra-se um evento particular. A culinária não está alheia a
esta realidade. É fruto duma herança europeia dos colonos que lançaram a semente no
século XV e dos demais que foram atraídos pela magia e beleza. Os ingleses são os
segundos descobridores da ilha e aqueles que mais influências nos legaram. A mesa
torna-se variada ajusta-se ao paladar dos convivas e à disponibilidade dos produtos.
A ilha, terra de passagem de gentes assistiu também à movimentação e descoberta do
mundo animal e vegetal. A Madeira foi, na verdade, o espaço de passagem das plantas
do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa. Da Europa chegaram os
cereais, a vinha e a cana-de-açúcar. Os dois primeiros por exigência da cultura cristã. A
América e a África revelaram-se aos europeus na sua exoticidade e variedade dos frutos.
Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia tornava-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou
aquilo que foi encontrando. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café,
chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de
modo especial a Madeira são viveiro de aclimatação aos solos europeus. A nossa
variedade de frutos é resultado disso. A Banana é conhecida na ilha desde o século XVII
e outros mais frutos tropicais foram chegando e contribuíram paulatinamente para o
alargamento do cardápio. A mais antiga referência surge em 1687 no testemunho de
Hans Sloane, sendo repetido em 1689 por John Ovington. Paulatinamente impõe-se na
dieta alimentar tornando-se numa importante fonte de riqueza da ilha.
A viagem de Vasco da Gama (1497-1499) veio a contribuir para a generalização do
consumo das especiarias, já conhecidas dos europeus, mas só agora com uma rota
segura da divulgação. Assim ao tradicional açafrão, a mesa apura-se com as pimentas
orientais. A posição da ilha, o protagonismo histórico contribuiu para a afirmação desde
o século XV e definiram uma evolução peculiar da mesa. As ligações da ilha com outras
regiões tiveram impacto directo na culinária. Assim, a presença dos escravos de
Canárias, ou a iniciativa de madeirenses que mantiveram contactos com este
arquipélago é responsável pela presença do gófio ou gofe, isto é uma farinha de cevada
torrada que se consumia com leite de cabra ou de vaca. Sabemos do seu consumo no
século XVIII no Porto Santo e que as freiras do Convento da Encarnação o tinha na
ementa. Do Norte de África terá vindo o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco.
A culinária madeirense pode ser considerada de uma forma genérica rica e pobre. Parece
um paradoxo, mas não é. Para entendermos isto temos que ter em conta um conjunto de
factores que condicionaram a evolução ao longo dos séculos, através dos produtos que
alimentam o cardápio e dos meios de conservação. As dificuldades na conservação dos
produtos perecíveis obrigaram ao estabelecimento de regras no uso e consumo definindo
uma sazonalidade. A maior parte dos produtos, como é o caso dos frutos, tinha uma
durabilidade limitada, sendo consumidos apenas na época de maturação. A sazonabilidade
condicionava a forma de orientação do cardápio e obrigava o madeirense a estar
dependente dos condicionalismos do ciclo rural. Acresce ainda outro factor significativo na
mesa madeirense. A dificuldade, desde o século XV, em encontrar na ilha a garantia de
subsistência para a população, o que obriga à extrema dependência do exterior. As crises de
subsistência são uma constante na História da Madeira.
Os estrangeiros visitantes não se cansam de referir o contraste entre a mesa das famílias
distintas e a da maioria da população. Entre os primeiros estávamos perante a boa mesa
onde os excessos de comida eram frequentes. E as evidências aí estavam. A obesidade
era uma característica do grupo social e do clero. Rodolfo Schultze em 1864 chama a
atenção para o facto de os jovens das famílias mais importantes, entre os 10 e 14 anos,
tinham a tendência para o peso excessivo. A ideia é também corroborada pelos autores
portugueses. Assim, Eduardo Grande é peremptório em afirmar que o “regímen
alimentar das classes menos abastadas deste distrito” era pobríssimo, constando quase
sempre de pão, mas de má qualidade.
Mas isto parece ter sido o privilégio de um grupo restrito da sociedade, uma vez que de
acordo com John Ovington em 1689 a alimentação dos madeirenses era muito frugal,
referindo que os pobres no tempo da vindima comiam apenas de uvas e pão. Diz-nos
George Forster que “os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a
alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne”. Na verdade, a
alimentação consistia em vegetais algum pão, inhame e castanha e os frutos da época.
Os forasteiros são os principais divulgadores da gastronomia. Habituados às laudas
mesas reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das
quintas ou do Palácio do Governador. Em 1793 John Barrow saiu da ilha agradado com
a mesa do governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho “a sua mesa é uma das
mais variadas e delicadas e em poucas partes do mundo se poderia apresentar coisa
semelhante. Travessas esplêndidas sustentam animais inteiros; ali deparei com um
porquinho recheado rodeado de laranjas, uma lebre armando um salto, faisões
tentando levantar voo, ornados com a sua vistosa e flamejante plumagem”.
A mesa madeirense apresentava por vezes alguns pratos estranhos os forasteiros. No
texto editado por J. Payne em 1740 dá-se conta de”um prato de misturas, muito
apreciado pelos naturais composto de peras, passas, pão e ovos, tudo fervido ao mesmo
tempo, com salsa e outras ervas aromáticas”. Noutro prato misturava-se uvas com
nozes, inhame cozido, a que se juntava uma massa frita e melaço.

A COZINHA E A SALA DE JANTAR. A opulência contrastava com a frugalidade e o


espaço dedicado pelo povo à alimentação. Um casebre coberto de colmo e de chão de
terra batida servia de cozinha, sala de estar e de dormir. Perante isto o espaço deveria
ser bem gerido. A um canto a cama e a caixa, do outro a lareira com os diversos
apetrechos e a “gaiola”, a dispensa que antecedeu o aparecimento dos frigoríficos. Nos
utensílios de cozinha é evidente a sobriedade. Poucos tachos, ausência de talheres e o
recurso às mãos, situação que provoca a admiração e reprovação dos ingleses. No meio
rural a imagem de uma tampa com comida de onde todos tiravam à mão. A loiça era
uma raridade pois muitos dos utensílios eram feitos em madeira, somente na segunda
metade do século XIX começaram a aparecer os instrumentos de cobre e latão.
O forno era uma exigência apenas das casas mais destacadas. Os demais estavam
dependentes do forno público. Foi no início era propriedade do capitão. Nalgumas casas
solarengas do meio rural apresentavam mais do que um forno em que se cozia o pão
para a família, colonos e criados. António Carvalhal em Ponta Delgada é exemplo disso,
tendo nos seus fornos lugar à cozedura de mais de trinta moios de trigo por ano.
A mesa do Governador era um espaço especial de encontro de convivas e de recepção
de visitantes que aportavam ao porto. Nas recomendações dadas em 1698 ao
Governador D. António Jorge de Mello assinala-se a necessidade de ter uma mesa
grande para comer, a presença de um copeiro e de um cozinheiro. Só assim seria
possível assegurar a imagem de excelência da mesa tão celebrada pelos estrangeiros que
tiveram oportunidade de a fruir. O requinte dominava muitas das mesas o que era
notado por parte dos convidados estrangeiros. Isabella de França insiste no aprumo dos
criados que serviam à mesa, a finura da decoração, dos guardanapos e flores. Até os
pormenores das flores purificadoras embebidas na água, pormenor é realçado por D.
Carlota, imperatriz do México que ficou encantada com o uso “de lavar as mãos, depois
de jantar, em bacias cheias de pétalas de rosas”. A contrastar com esta ambiente estava
a casa das famílias importantes do meio rural ou urbano e as quintas dos ingleses. O
fausto era evidente para os forasteiros que não se cansam de o enunciar. A cozinha liga-
se à faustosa sala de jantar. Em um espaço amplo coberto por um tecto ricamente
decorado com estuques pintados ou não. A maior na ilha, segundo Isabella de França
em meados do século XIX, era a do Morgado Nuno de Freitas na Quinta do Carvalhal
nos Canhas.
No século dezoito os ingleses trouxeram para a ilha a valorização deste espaço com os
estuques pintados. A mesa estava sempre a conduzir com o ambiente. Loiças e
porcelanas brasonadas, da companhia das índias, rivalizavam com os apetitosos
conteúdos de acepipes, carne, peixe, doces e frutas. Tudo isto era rematado por toalhas
de linho bordadas e de ramos de flores de garridas cores. Os testemunhos da opulência
de algumas das mesas madeirenses repetem-se. A imperatriz do México ficou
impressionada com todo este fausto: O jantar foi magnífico. Tudo quanto se encontrava
sobre a toalha, candelabros, centro, desaparecia quase debaixo de uma profusão de
flores, que substituíam graciosamente a riqueza metálica e às quais serviam de
complemento pães e açúcar com diversas bandeirinhas”.
Para muitos dos forasteiros que não tinha a oportunidade de fruir da hospitalidade da
mesa do madeirense ou estrangeiros residentes estavam sujeitos aos poucos espaços
públicos onde se serviam comida. Não podemos falar ainda de restaurantes, mas a
informação que recolhemos das posturas municipais nos séculos XV e XVI falam-nos
desse serviço feito por regateiras, vendeiras, taverneiras e estalajadeiras. No século
XVIII com o advento do turismo os diversos hotéis começaram a disponibilizar alguns
desses serviços. Mesmo assim parece que estávamos perante algo incipiente uma vez
que a maioria dos aristocratas que buscavam a ilha para a cura da tísica faziam-se
acompanhar de cozinheira. Aliás, o primitivo Reid’s Palace Hotel apresentava os
quartos em sistema de aparthotel de hoje, uma vez que dispunha de cozinha e anexos
para os criados. Também muitas das quintas madeirenses eram alugadas a forasteiros
com louça, roupa e mobília.
Fora da cidade o único espaço de acolhimento e apoio estava nas diversas vendas,
estrategicamente colocadas nos caminhos principais da ilha que passavam pelas
povoações. A venda foi durante muito tempo um espaço de convívio. Era aí que
acudiam os viandantes à procura de guarida e de uma ração de pão para matar a fome.
Os primeiros restaurantes foram uma criação do nosso século. Célebre ficou o Golden
Gate que mereceu de Ferreira de Castro o epíteto da “esquina do Mundo”. A posição
estratégica à entrada da cidade, uma vez que primeiro se situou ao princípio da Avenida
Zarco e só depois se transferiu para a actual situação, da fazia-se com que fosse o ponto
de encontro de todos os forasteiros. As casas de chá, como foi o caso da do Terreiro da
Luta (1939), deram o mote para a mudança no sentido da restauração dos anos sessenta.
A afirmação do turismo no após guerra conduziu ao aparecimento destas infra-
estruturas de serviços, como foi o caso da Seta (1966), Cachalote no Porto Moniz
(1969), Romana (1969), o Galo (1970), o Facho (1973) e Cervejaria Coral (1972).

A MESA FARTA Ou VAZIA. Não é fácil perceber o que caía diariamente na mesa do
homem humilde ou aristocrata. Apenas temos alguns dados avulsos sobre a mesa do
governador, estrangeiros e famílias importantes. Mas, para além do eventual encontro
com a mesa festiva, podemos acompanhar o quotidiano nos conventos e colégio dos
jesuítas.
O Colégio dos Jesuítas parece apresentar uma das mais fartas mesas da ilha, a que
acolhiam diversas entidades, nomeadamente o governador. O mesmo detinha uma
importante retaguarda com as Quintas do Pico Frias, do Cardo e Grande servidas de
celeiros e adegas. No século XVII a casa das quintas do Cardo e Frias acolhia com
frequência o governador, nomeadamente D. Diogo de Mendonça Furtado (1659-1665),
que parecia ser amante de doces, fruta e queijos alentejanos e flamengos. A ementa de
carnes era variada, sendo servida de galinha, peru, frangos, leitões coelhos, cabritos, não
faltando a carne de porco e os presuntos.
Através dos livros de receita e despesa podemos acompanhar o dia à dia da mesa
conventual. No eixo de Santa Clara às Mercê e Encarnação estava o melhor da doçaria
madeirense. Para além da doçaria é insistente a presença da carne e peixe, frescos ou
salgados. A galinha assume um lugar de destaque em dias festivos, isto é, no Advento,
Quaresma, Natal, Páscoa e dia de Santa Clara, ambos servidos com pão, por norma
demolhado. Ao nível dos cereais domina o trigo, em que as freiras contam com os
proventos das suas benfeitorias e por vezes socorrem-se da compra. O trigo era
convertido em farinha que estava na origem do pão, bolos, empadas, pastéis, doces e
cuscuz.
No Convento da Encarnação a mesa dos séculos XVII e XVIII era farta. Diariamente as
freiras reuniam-se para duas refeições: o jantar e a ceia. O pão corria todos os dias à
mesa, e por isso havia duas amassaduras, à Quarta e ao Sábado, acompanhado de carne
ou peixe. A carne era aí mais abundante pois a falta de peixe no mercado local não o
facilitava. Mesmo assim o peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos
pela Igreja. Isto poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Em
dias festivos, como o Natal, a Páscoa e Santa Clara, a mesa era rica e recheada de doces,
isto é, pão-de-leite, massapão, laranjada, cidrada, coscorões. Era notória uma
diferenciação social da mesa das freiras e dos servos e trabalhadores. A carne de porco e
o milho não ia à mesa das feiras mas estavam sempre presentes na dos criados e
trabalhadores.
A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe
resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Servia-se quase só do que a terra dava,
isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Na Primavera e no Verão
dominavam as diversas qualidades de frutas, que podiam ir desde a laranja, pêra e maçã,
enquanto no Outono eram as castanhas e as nozes. Consumia-se algum peixe fresco ou
seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. A frugalidade
esta presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim na segunda
metade do século XVIII George Forster destaca que “os camponeses são
excepcionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários
tubérculos e pouca carne”, mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, “o
principal consumo na alimentação do camponês”. A isto juntava-se o consumo de peixe
fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto a inhame,
batata e ao pão.
À mesa do povo a carne e o peixe eram escassos. O peixe era maioritariamente
importado, o que demonstra o pouco desenvolvimento da pesca local, baseando-se em
bacalhau dos Estados Unidos e peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa.
Destaca-se o arenque de fumo ou salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto
para o pão e batatas. No Norte da Europa o arenque ficou conhecido como o trigo do
mar. Ainda de acordo com Isabella de França o gaiado e o chicharro eram espécies
“raramente comidas por pessoas que não sejam pobres”. A situação perdurava na
década de cinquenta do século XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de
duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de
conservas. É de notar que a disponibilidade de pescado era pouco variado assentando
em atum, peixe-espada, chicharro, carapau e cavala.
A carne parece ser rara e, a ter em conta alguns dos testemunhos de estrangeiros, de má
qualidade. Durante muito tempo a informação sobre o gado para engorda é escassa. Isto
quer significar que não havia, o que fazia aumentar o preço de venda ao público da
carne e reduzir a possibilidade de consumo por todos os estratos sociais. A partir de
meados do século XIX é evidente o aumento da carne que se repercute num aumento da
capitação média do consumo. Em 1904 Anna Von Werner queixa-se que a carne que
comeu no Hotel Royal não se podia trincar. É a mesma quem nos dá conta do ambiente
pouco salubre que rodeia a cozinha. Assim refere-nos numa casa uma velhota que
assava castanhas e fritava peixe pouco fresco numa frigideirinha com óleo.
Não havia tradição de criação de gado para engorda e abate o que provoca uma situação
deficitária da oferta dos açougues. Isto foi uma dificuldade permanente desde o século
XV o que levou algumas instituições a solicitarem à coroa a possibilidade de disporem
açougue próprio, como sucede com o Cabido da Sé do Funchal, o Colégio dos Jesuítas e
os conventos. A situação permitia que o abastecimento fosse feito com regularidade
estando libertos das regulamentações do mercado. Os açougues públicos existem desde
o século XV e estavam sob a alçada da câmara. O primeiro matadouro surgiu em 1791
no Cabo do Calhau, sendo transferido em 1825 para a proximidade da Ribeira de Santa
Luzia. Este foi demolido em 1851 mas só em 1941 teremos novo matadouro na margem
da Ribeira de S. João que se manteve até a actualidade.
Papel fundamental assumia o porco na dieta familiar e em torno dele existia um ritual.
Não havia casa onde pelo S. João e Natal não acontecesse a célebre matança do porco.
Com ele conseguia-se a carne salgada, os enchidos e a banha que tornavam mais rica a
dieta alimentar. Era o principal tempero da alimentação A importância está bem patente
no recenseamento do gado. Em 1873 temos 23.510 suínos, que entram em queda no
século vinte com 22.772 em 1928, descendo para 16.462 em 1940, para assumir a
retoma em 1950 com 23.046 suínos.
A manteiga tinha também lugar à mesa dos funchalenses mais abastados. Desde a
década de setenta do século XIX que temos notícia da importação de Londres, pois a
produção comercial na ilha deverá ter-se iniciado após a data. A primeira exportação
acontece em 1881 com 129 kg que sobre para 48.124 em 1893. O final do século é o
momento de afirmação da pecuária, permitindo um melhor e mais alargado uso do leite
e derivados na dieta alimentar.

OS NOVOS PRODUTOS. Por muito tempo alguns produtos foram identificados com
determinadas regiões. A maça apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o
ananás nos recria as paradisíacas ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do
século XVIII. A alimentação progrediu e as ementas universalizaram-se. Os produtos
perderam o selo de identidade de origem e entraram definitivamente no quotidiano. A
mesa do mundo ocidental é igual. As divergências e exoticidade sucedem como
resultado do confronto com outras culturas, como o mundo árabe e as regiões orientais.
A Madeira está situada numa posição estratégica fundamental para acolher as rotas de
migração de plantas e produtos. No século XV foi a ilha que promoveu a expansão das
culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de
novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que a ilha servisse de entreposto de
expansão dos mesmos no velho continente. Tudo isto acontece porque a ilha continua a
ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de
microclimas propícios à fixação de novas plantas e sementes. Aliás, a singular condição
levou a que nos séculos XVIII e XIX a ilha se transformasse num viveiro de
aclimatação de plantas. Dos inúmeros produtos que chegaram às ilhas dois há que se
afirmaram rapidamente na dieta alimentar. São eles a batata, o inhame e o milho, que no
decurso da segunda metade do século dezanove destronaram rapidamente a hegemonia
dos cereais na dieta alimentar. Em princípios do século XX é ainda visível a expansão
dos produtos hortícolas e dos tubérculos em desfavor dos cereais. Em 1908 a produção
média por hectare era de 15.000 quilos, dando a ilha vinte e cinco toneladas.
A batata é originária do Andes mas foi a Irlanda o principal centro difusor do tubérculo
na Europa. A presença na Madeira está documentada a partir de 1760, mas a
generalização só aconteceu em princípios do século XIX. A batata-doce, também
oriunda da América do sul aparece na Madeira no século XVII, sendo referenciada na
década de setenta do século XVIII como o principal sustento do camponês. Já a batata,
dita semilha para o madeirense, só se generalizou no consumo desde 1845 com a
introdução de uma nova variedade de Demerara. Em 1842 o míldio atacou a batata
irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população da ilha. O mais
evidente é que a situação teve eco noutros espaços europeus, como foi o caso da
Madeira em 1846 e 1847. Tendo em conta que havia adquirido um lugar dominante na
alimentação é fácil de adivinhar as dificuldades daqui resultantes. O próprio
governador, José Silvestre Ribeiro, testemunha a situação refere em 1847 que a batata
era “de há longos anos o alimento principal dos camponeses, e quando as colheitas
eram abundantes, viviam sofrivelmente” isto, porque além deste produto só tinham para
comer “algum inhame e pouco milho”
A crise da batata conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a
plena afirmação do milho O Milho, na dieta popular. Sob a forma de pão ou de farinha,
transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso
século. O milho introduzido cedo conquistou a mesa do madeirense, tornando-se, de
parceria com a batata, no sustento preferencial dos madeirenses. Em 1847 a ilha
produzia apenas vinte moios, tendo necessidade de importar o restante. Em 1841 a ilha
importava 9000 moios de milho e 8000 de trigo, passando em 1852 para cerca de
10.000 de milho e 5500 de trigo. Já nas décadas de setenta e oitenta o milho era a base
da alimentação das populações mais pobres. Em Câmara de Lobos já em princípios do
século o milho dominava a dieta alimentar.
Por diversas vezes a imprensa do tempo de guerra refere-nos que o milho era o principal
alimento do povo. E quase todo ele era importado do estrangeiro, ou das colónias: a ilha
produzia uma ínfima parte daquilo que consumia. O milho era servido de diversas
formas na mesa rural madeirense: papas de milho, milho escaldado e estroçoado. Com a
farinha faziam-se as papas de milho e com o milho pilado com que faziam um caldo
com cebo de carneiro ou boi, ou então umas papas com leite. No “Diário de Noticias”
de 4 de Setembro de 1941 dizia-se: - “o milho é, há muitos anos, um elemento
fundamental da alimentação das nossas classes menos remediadas. Barato, de fácil
preparação e de forte poder alimentar, nenhum produto da terra o pode substituir ou
sequer igualar”. Dai, deverá ter resultado a expressão popular: “Vai-se ganhando para
o milhinho...”.0 milho era o alimento das classes pobres e a ausência atingia
principalmente estes, por isso o articulista do D.N. apelava em Agosto de 1943 às
classes mais abastadas, que lhe reservassem este privilégio: - “O milho é o alimento das
classes pobres, das classes populares (...) o milho, repetimos, é o alimento dos pobres:
assim aqueles que o podem dispensar, deixem-no aos pobres -porque para as almas
bem formadas, deve constituir amargura, provocar, impensadamente, as faltas de
alimentação nos lares onde o dinheiro não abunda”. Mais tarde, no Inverno de 1945 em
face de novas dificuldades as páginas do mesmo jornal abriram-se para expressar o grito
plangente ecoado por todos os madeirenses em surdina. O Racionamento de 1 kg
semanal por cabeça propiciou o seguinte comentário: -“Não era bastante para as
necessidades duma população que tinha afeito a sua economia doméstica ao consumo
quase diário daquele produto.., numa terra onde o milho se podia chamar o pão-nosso de
cada dia.”
A Madeira tinha necessidade de importar anualmente 13.000 toneladas. Todavia em
1941 ainda eram grandes as reservas de cereal e a frequência de embarcações. Os
problemas de abastecimento só começaram a surgir no Outono de 1943, mas já no
anterior começou o racionamento e distribuição do milho. Mas aqui, mercê da iniciativa
da Comissão Regulador do Comércio de Cereais, a situação não foi tão gravosa como
havia sucedido no decurso da primeira guerra. A política de intervencionismo
económico definida por Salazar levou à criação em 1954 do Grémio do milho colonial
português e em 1938 surgiu a delegação madeirense da Junta de Exportação dos
Cereais, que passou a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços
do grão e farinha. Foi responsável Ramon Honorato Rodrigues, que em 1962, no
momento de extinção, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela junta que
presidiu. Por ai se ficou a saber das dificuldades sentidas nos anos da guerra e da acção
da Junta e Governador Civil para solucionar a situação por meio do racionamento do
milho e da solicitação de carregamento à ordem do governo. Para termos uma ideia das
dificuldades sentidas basta-nos aludir à capitação estabelecida pelo racionamento e
relacioná-la com a média anterior à guerra: entre 1937-39 ela foi de 123 kg/ano,
enquanto de 1942-44 passou para apenas 80 kg. Mas houve anos em que a situação se
agravou: por exemplo em Março e Abril de 1945 a ração semanal por cabeça era de
apenas 550 gramas de milho. A partir de 1941 o racionamento foi determinado por
concelho de acordo com o número de cabeças de casal, variando o quantitativo
conforme os stocks disponíveis.
MERCADOS, VENDAS... O pão, elemento fundamental da dieta alimentar,
apresentava-se sob a forma de confecção caseira ou por padeiras de profissão. Em
muitas das casas o forno assume um lugar de prestígio social. E ainda hoje podemos ver
vestígios nos bairros de Santa Maria e Corpo Santo. Noutros casos havia os fornos
públicos, servidos por forneiros que cobrava uma percentagem por cada alqueire de pão
cozido. Já no primeiro quartel do século XX a cidade estava servida de um conjunto
variado de padarias que dispunham de pão fresco pela manhã e tarde, permitindo comer-
se o pão fresco a todas as refeições. Com a farinha dos cereais fabricava-se, para além
do pão, o cuscuz, uma espécie de massa granulada, que depois é cozida e acompanha a
carne, o bolo do caco, as mal-assadas, isto é, massa de farinha com ovos cozida no
azeite, o frangolho, uma papa de farinha de trigo estraçoado e o gófio. Temos ainda a
escarpiada, uma massa de farinha de milho cozida em pedra de barro, que se consumia
no século XVIII no convento da Encarnação e que hoje persiste no Porto Santo.
A venda dos produtos necessários à subsistência das populações fazia-se em mercados e
feiras que se realizavam diariamente ou uma vez por semana em espaços determinados,
onde se vendia fruta, peixe e outros mais produtos. Na cidade o mercado desde o século
XV é um espaço de permanente intervenção do município no sentido de facilitar a livre
concorrência, salvaguardar a qualidade dos produtos à venda e o seu justo valor. No
século dezanove testemunham-se três mercados na cidade. O primeiro de D. Pedro,
também conhecido como da feira velha, situava-se entre o Largo dos Lavradores e o
Largo do Poço, mais propriamente nas traseiras da actual alfândega. Era o mercado de
venda de legumes, hortaliças, frutos e outros géneros alimentícios. Foi o principal
mercado da cidade até que em 1 de Dezembro de 1940 abriu ao público o actual
mercado dos lavradores. Juntam-se os da União, no actual Largo da Feira e o de São
João, no sítio onde hoje está implantado o Teatro Municipal. A venda dos produtos
fazia-se e faz-se em barracas arrematadas à câmara pelos chamados barraqueiros.
O mercado apresentava por norma os produtos da terra, enquanto a venda dava
preferência aos de fora. A oferta dos produtos completava-se com os vendedores
ambulantes ao domicílio. Aos últimos vendiam líquidos, como azeite, vinagre e leite,
hortaliças, aves, lenha e carvão. A figura do leiteiro que ainda hoje sobrevive define
também uma forma de venda de leite fresco ao domicílio. Ademais os interessados
podiam ainda encontrar na cidade vacarias onde se servia o leite fresco, ordenhado no
momento. Era assim na vacaria Burnay no Largo da Sé e da vacaria Sousa na Rua de
João Tavira. A ilha apresentava em 1928 cento e setenta mil vacas de ordenham que
produziam vinte milhões de litros. O Funchal consumia anualmente um milhão e
quinhentos mil litros de leite, o que equivale a cerca de quatro mil litros diários. O
restante leite era usado no fabrico de manteiga e queijo. Em 1928 a produção de
manteiga orçava as mil toneladas, sendo exportada mais de três quartos. A situação é
demonstrativa do rápido incremento que teve a actividade na região uma vez que em
1880 a exportação foi de apenas cento e vinte e nove kilogramas.
O abastecimento local fazia-se a partir das mercearias e tabernas. Aí vendia-se em
simultâneo bebidas, nomeadamente o vinho da produção local, géneros alimentícios e
artefactos locais ou de importação. A abertura de um estabelecimento obrigava ao
requerimento da licença que só poderia ocorrer da necessária autorização camarária
depois do pagamento de uma taxa. Ao infractor era atribuída uma pesada multa.
Acrescem ainda outros requisitos que foram regulamentados ao longo do tempo. Assim,
em 1931 a sua localização deveria estar a mais de 500 metros de distância das escolas. E
antes havia-se estabelecido padrões de higiene e sanidade no funcionamento. De acordo
com regulamento de 1946 todos os estabelecimentos comerciais foram obrigados, num
prazo de noventa dias, a ter água canalizada e pia, caso se situassem a mais de 100
metros da canalização pública a obrigação revestia-se na presença de um reservatório de
barro com capacidade para 50 litros. Por outro lado os géneros alimentícios deveriam
ser guardados em prateleiras envidraçadas ou caixas fechadas. Depois foi a proibição a
partir do dia 1 de Junho de vender no mesmo compartimento os géneros alimentícios,
tintas, óleos, guanos, sulfato de cobre e substâncias tóxicas ou nocivas à saúde.

À vereação estava acometida também a tarefa de estabelecer os preços de venda ao


público dos diversos géneros de produção local. Todos os anos entre Outubro e Janeiro
eram estabelecidos preços para todos os produtos colhidos no concelho: vinho, cereais,
cebolas, feijão, favas, batata, carne, laranjas, limões, inhame, vimes, cana doce. As actas
das vereações e as posturas municipais revelam-nos muitos dos problemas resultantes
do abastecimento de bens alimentares e artefactos no mercado madeirense.

Em todos os tempos existiram os espaços abertos ou fechados de venda pública dos


produtos. O correr dos anos apenas fez mudar os locais ou a designação, bem como
aperfeiçoou os hábitos de consumo. A par disso é de salientar na cidade e localidades
circunvizinhas outro tipo de venda ambulante que contemplava, não só o leite, como
também,.o azeite, petróleo, hortaliças, aves, cebolas, mel, sorvetes e outros gelados,
carvão vegetal. A década de sessenta demarca um momento importante da evolução das
estruturas de apoio à venda dos produtos alimentares. As vendas perderam actualidade
dando lugar a novas formas de apresentação e venda com os supermercados. Eles são o
princípio da transição para as actuais grandes superfícies, que se iniciou em 1963 com o
supermercado BACH.

À SOBREMESA: DOCES E FRUTOS. Parte significativa do açúcar produzido na ilha,


e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São
vários os testamentos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico dos
produtos. Tal como se deduz de um documento de 1469 o fabrico de conservas era
indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava
"mulheres de boas pessoas e muitos pobres que lavraram os açucares baixos em tantas
maneiras de conservas e alfenim e confeitos de que têm grandes proveitos que dão
remédio a suas vidas e dão grande nome a terra nas partes onde vão...". Os livros do
quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico
de conservas, frutas seca e marmelada. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas
de açúcar de vários tipos, sendo na maioria para consumo dos proprietários do referido
açúcar.
A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o
expoente máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa.
Segundo Gaspar Frutuoso compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha de
conservas, e o sacro palácio todo feito de açúcar, e os cardiais todos feitos de alfenim,
dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem".
São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes
produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável
aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos
depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se
exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos), quase
desaparecendo em finais do século XVIII e arrastando inevitavelmente a indústria para
o fim.

Um dos factores de promoção desta indústria ao nível das conservas foi a importância
assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação
atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de
conservas de citrinos para a dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial
das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. D. Manuel foi o
consumidor preferencial e aquele que divulgou as qualidades na Europa. Assim, ficaram
como o principal presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco
da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha. No
período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em
conservas e frutas secas. A par disso o rei havia estabelecido a partir de 1520 o envio
anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres. A indústria manteve-se por
todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção local ou com as
importações dele do Brasil. No último caso sabe-se que em 1680 foram importadas
2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao
governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio
muito grande porque há ano que se carregam com aquela terra mais de 20
embarcações de um só doce para o qual é necessário comprar açúcar da terra ou
manda-lo vir do Brasil". A correspondência de William Bolton refere que a conserva de
citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo
usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas
para Lisboa, Holanda e França.

O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível para
distribuir às conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram mais
trinta dias de árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para a exportação. Da
existência ou não de açúcar, da sua qualidade dependia a disponibilidade para o fabrico
destes derivados, que activavam o comércio com as praças do Norte da Europa, donde
nos províamos de cereais e manufacturas. Estamos perante uma indústria muito instável,
dependendo das possibilidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto
acabado pelos mercadores europeus. A correspondência particular de alguns
mercadores, como é o caso de Diogo Fernandes Branco e W. Bolton, testemunha de
forma evidente esta realidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697: "Pensou-se fazer
uma grande quantidade de conserva de citrinos mas muitos fabricantes desistiram por
não saberem se os barcos os viriam buscar".

São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes


produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável
aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos
depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se
exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos). Um dos
principais factores de promoção da indústria das conservas foi a importância assumida
pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas
embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos para
a sua dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e
doçaria madeirense foi, no início, a Casa Real portuguesa e, depois, as cidades do Norte
da Europa.
No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do
Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás em 1687 Hans Sloane referia-
se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao
referir que "nunca vi coisas tão boas". Num breve relance pelos livros de receita e
despesa do Convento da Encarnação, Misericórdia do Funchal e Recolhimento do Bom
Jesus, constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil
para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmolas que recebia
em açúcar ou marmelada consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia
dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3
arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são conhecidas
outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce.
Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34
arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de
1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de
açúcar e 14 canadas de mel.

Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação. Aí, de


acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do
convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso
deste convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última
festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso
parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer"
e fazer conserva. No total despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois
anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas.

Extintos os conventos quase que também desapareceu a tradição da doçaria. No século


XIX a doçaria teve divulgação através das pastelarias. Um das mais famosas foi a
Pastelaria Felisberta criada em 1837 na Rua da Carreira. Também ficou célebre a
doçaria da panificação Blandy na rua do Hospital Velho. Uns anos mais tarde, Isabella
de França continuava deslumbrada com a cozinha doce da ilha. Nos anos vinte a cidade
estava servida de onze confeitarias. Hoje, o único testemunho que resta dessa
importante industria do doce madeirense é o bolo de mel. O alfenim manteve-o a
tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo na ilha Terceira, único local onde
ainda persiste a tradição.
No século XIX eram também muito apreciados os sorvetes e doces gelados feitos com
neve trazido do alto das montanhas para o Funchal. Ficou famosa a casa de Baxixa, tal
como o testemunha John Dix. Este fabricava os melhores sorvetes, servindo-se da neve
que recolhia da casa de gelo das montanhas. A partir de 1867 o fabrico de gelo por John
Peyne & Son com água das Fontes de João Diniz tornava mais fácil o fabrico de
sorvetes. Na década de vinte persistem ainda duas fábricas de gelo que continuarão por
muito tempo a deliciar a gulodice dos amantes dos refrescos de Verão.
A sobremesa não se resumia apenas à rica doçaria, pois que a ilha desde o começo do
povoamento sempre se mostrou terra fértil onde medrava todo o tipo de árvores de fruta.
Primeiro foi o domínio daquelas conhecidas na Europa e depois a partir do século XVI,
as exóticas de África e América. Enquanto as primeiras se anicham nas áreas acima dos
300 m de altitude as segundas preferem as zonas ribeirinhas e soalheiras. A mais antiga
referência que temos é da banana, referida em 1552 por Thomas Nichols, mas a lista é
variedade, incluindo-se o abacate, ameixas, amoras, anonas, goiabas, mangos, ananás,
araçá, maracujá. Esta variedade de frutas sempre servida à mesa na época não era de
agrado de todos os forasteiros. Maria Carlota da Bélgica em 1860 não era adepta de
bananas, goiabas e maracujás, reclamando de um “odor infecto” e um “sabor horrível”.

DA COPA À TABERNA. Os líquidos também corriam nas fartas mesas. O vinho era
permanente na ração diária dos conventos e Colégio dos Jesuítas, servindo-se para tal da
produção aquele que provinha das propriedades. Foi durante muito tempo o líquido
presente à mesa. Na mesa das famílias pobres bebiam-se apenas a água-pé nos dias
próximos da vindima. Mesmo assim a maioria dos testemunhos dos estrangeiros insiste
na sobriedade dos madeirenses no consumo de bebidas alcoólicas. No princípio do
nosso século a generalização do fabrico de aguardente e a abundância conduziram ao
despoletar do consumo da bebida. O consumo foi de tal forma elevado que a Madeira
recebeu o epíteto de ilha da aguardente. A situação reportou inegáveis prejuízos para a
saúde pública pelo que se tomaram medidas limitativas do consumo. De acordo com
Rodolfo Schultze em 1864 os madeirenses tinham preferência pelo consumo de vinho
misturado com água ou cerveja.
Consumia-se ainda cerveja, ginger-beer (limonada de gengibre) e água mineral. No
século XIX os ingleses viriam a alterar o hábito ao introduzirem a cerveja. A primeira
fábrica foi implantada na ilha por João Park em 1840, a que se sucederam outras na
década de cinquenta, como foi o caso da de Victorino José Figueira (1856) e José de
Freitas (1859). Temos alguns dados sobre a produção de cerveja. O primeiro produzia
326 hectolitros de cerveja branca e preta e 58 de ginger beer, já o segundo apresentava
340 de cerveja branca e preta e 60 de ginger beer. Mas muitos estrangeiros preferiam a
cerveja importada tal como nos refere Rudolfo Schultze em 1864, todavia a
concorrência da cerveja inglesa e alemã não afectava a madeirense, muito apreciada
pelos locais e considerada de superior qualidade.
Em 1872 H. P. Miles fundou a Atlantic Brewery e em 1890 Manuel Alves de Araújo
surge com a fábrica Leão. A primeira, que produzia água de soda, limonada gasosa e
cerveja, apresentava o equipamento adequado ao engarrafamento já avançado em
relação às demais mas que ainda estava muito longe das actuais linhas de
engarrafamento. Em 1908 em duas unidades do Funchal fabricava-se 666 hectolitros de
cerveja branca e preta e 118 de ginger beer. Uma cerveja custava 30 réis enquanto um
ginger beer ficava pelos 20 réis. A crise da década de trinta obrigou à fusão de todas as
pequenas industrias numa só unidade industrial, dando lugar à Empresa de Cervejas da
Madeira que hoje domina o mercado local. Mesmo assim não conseguia satisfazer as
necessidades dos apreciadores de cerveja, uma vez que nos inícios da década de
cinquenta a ilha importava 29.520 litros de cerveja. Fora do Funchal temos notícia de
uma fábrica de refrigerantes na Ribeira Brava, que funcionava em 1955 e de um outra
em 1909 no Porto Santo, propriedade de João Augusto de Pina para engarrafamento da
água da fontinha.
O restrito grupo de bebidas alarga-se à cidra, ou vinho de peros que era muito apreciada
na ilha em princípios do século XX. Isto é testemunhado pelo número de lagares em
toda a ilha, assinalando-se em 1908 dezoito. Hoje a tradição da bebida persiste no Santo
da Serra. Todavia na época a bebida mais apreciada era a aguardente. O consumo era
excessivo, sendo considerado um problema de saúde pública pelas autoridades. O
consumo começou a divulgar-se em princípios do século XIX por influências das tropas
inglesas que por duas vezes ocuparam a ilha.
A subsistência das populações foi gerada de pequenas indústrias no sector alimentar
cuja dimensão foi proporcional ao movimento demográfico e às inovações técnicas. Em
1862 eram ainda incipientes uma vez que apenas foi arrolada uma fábrica de massas no
inquérito industrial, mas em 1928 a situação é distinta. Assim para além de sete fábricas
de massa temos duas de gelo, quatro de bolachas, cinco de refrigerantes e onze
confeitarias.

AS FOMES. Pode-se afirmar que a Madeira viveu sempre sob o espectro permanente da
falta de cereal, indispensável para manter a dieta dos madeirenses. As dificuldades no
abastecimento das casas e padarias da cidade eram permanentes e mais se agravavam
em momentos de crise de produção na ilha e nos mercados açoriano e canário, os
principais abastecedores. Tudo isto porque a produção local foi, por mais de dois
séculos, um quarto do consumo local.
A fome foi uma constante da história da ilha. Os primeiros momentos manifestaram-se
já no século XV, pois em 1466 e 1485 a ameaça pairou na então vila do Funchal. O
século XVI manteve-se sob o mesmo espectro com dois momentos de evidência em
1523 e 1545. Pior seria a situação em princípios do século XVII. A presença de uma
força espanhola, conhecida como força do presídio, fez aumentar o consumo de cereais
e agravar as dificuldades de abastecimento. O resultado disso foi os motins de 1600,
1602 e 1627, que culminaram em 1695 com a perseguição a William Bolton, um dos
principais intervenientes no comércio de cereais e farinhas dos Estados unidos, acusado
pelos madeirenses de especulação, nos séculos XVIII e XIX.
A dependência da ilha aos mercados externos era extremada e agravava-se em
momentos de guerra. Era isso que acontecia em 1815 em que “a carestia dos viveres
ocasionada pelas tristes revoluções do mundo”, Na verdade e guerra americana
conduziu ao corte do mercado abastecedor de milho e farinhas. A falta de pão levava o
madeirense a socorrer-se de tudo o que pudesse enganar a fome. Assim na década de
setenta do século XVIII a falta supria-se, segundo o Governador Manuel de Saldanha de
Albuquerque, com raízes, flor de giesta e frutos silvestres. Idêntica situação viveu a ilha
na década de quarenta do século XIX em que a tragédia da fome foi atacada pelo
governador civil, José Silvestre Ribeiro, Com obras de emergência.
O século XIX pode bem ser considerado como o das fomes. A primeira sucedeu em
1815 mas foi em 1847 que a palavra assumiu o carácter mais violento. A morte colheu
alguns e os poucos inhames existentes eram cobiçados de todos. Em Santana, por
exemplo montara-se vigilância às culturas e inhames. Em Santa Cruz um homem foi
morto quando roubava alguns inhames para enganar a fome dos familiares. Teme-se por
motins populares e um assalto aos armazéns da cidade, mas tudo isto foi contornado
pela política hábil do governador, José Silvestre Ribeiro, que montou um sistema de
sopa pública. No Porto Santo a fome estava sempre presente no quotidiano dos seus
moradores. Em 1769 tivemos uma das primeiras grandes fomes, mas foi na primeira
metade do século dezanove que estas se sucederam de uma forma constante. Os anos de
1802, 1806, 1815, 1823, 1829, 1847 e 1855 são os momentos de maior nota. A situação
levou Rui Nepomuceno (1994) a afirmar que as crises de subsistência foram a constante
mais destacada da História da Madeira.
No século XX as dificuldades não desaparecem. A crise económica das décadas de vinte
e trinta reflectiu-se na dieta alimentar dos funchalenses e provocou a tão celebrada
revolta da farinha em Fevereiro de 1931. Mesmo assim as maiores dificuldades estavam
para acontecer no período da segunda guerra mundial. As dificuldades foram redobradas
na década de cinquenta. A ilha apenas produzia 11% do trigo e 6,4% do milho
consumido na ilha, o que agravava a dependência ao mercado estrangeiro e nacional.
Ramon Honorato Correa Rodrigues (1953-1955) dá conta do quadro pouco animador da
alimentação madeirense, nomeadamente do meio rural, sendo notório o deficit de
proteínas, gorduras e calorias. No período a incidência dos produtos da dieta alimentar
estava na batata, batata-doce e no milho.
A dependência alimentar da ilha parece uma situação irresolúvel. Os limitados recursos
da ilha em contraste com o surto demográfico são os responsáveis da situação. Na
década de cinquenta a ilha tinha necessidade de importar mais de quarenta mil toneladas
de cereais. De acordo com os valores disponíveis a ilha necessitava de importar mais de
90% do milho e farinhas consumidos. A distribuição do consumo variava entre a cidade
e o campo, assim de acordo com a capitação anual o funchalense consumia 110 kg de
trigo por ano e 80,5 de milho, já no meio rural rondava os 43 de trigo e 41,6 de milho.
Isto resulta do facto de o homem do campo poder dispor de outros suplementos
alimentares fruto da sua actividade agrícola.
A actual culinária madeirense é herdeira da tradição cultural dos colonos europeus, das
aportações dos forasteiros e rotas marítimas. Os cereais perduram sob a forma de pão ou
diferentes formas de cozinhado. O milho conhece-se hoje mais como frito do que como
papas. A batata persiste na mesa. E a sobremesa é hoje a mais requintado e rica, quer em
aromas e sabores. Tudo isto é obra da Natureza e do Homem.

BIBLIOGRAFIA. A Cozinha Madeirense: Lucillia Boullosa Valle, O Paladar Madeirense, Funchal, SD.
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9000-420 – Funchal
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VIEIRA, Alberto (1998),

Dados para a História da Alimentação


na Madeira

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VIEIRA, Alberto (1998), Dados para a História da Alimentação na Madeira, Funchal, CEHA-Biblioteca
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DADOS PARA A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NA MADEIRA

Alberto Vieira

No mundo actual a culinária adquiriu elevado requinte. A sociedade chamada de consumo


universalizou os nossos hábitos gastronómicos. Os hipermercados, os restaurantes são a expressão
disso e ninguém os dispensa o acto de comer e beber deixou de ser uma necessidade fisiológica para
se tornar num prazer. O requinte da cozinha, a arte e mestria dos cozinheiros assim o demonstram.
A mesa transformou-se num espaço importante. À mesa selam-se contratos, decide-se os
destinos de um país, ou celebra-se um evento particular. Ainda há bem pouco tempo a inauguração
da Ponte Vasco da Gama fez-se com uma monumental feijoada.
A nossa culinária não está alheia a esta realidade. Ela é fruto duma herança europeia dos
colonos que lançaram a semente no século XV e dos demais que foram atraídos pela sua magia e
beleza. Os ingleses são os segundos descobridores da ilha e aqueles que mais influência nos legaram.
A mesa torna-se variada ajusta-se ao paladar dos convivas e à disponibilidade dos produtos. A
posição da ilha, o seu protagonismo histórico contribuiu para a sua afirmação desde o século XV e
definiram uma evolução peculiar da mesa.
Os forasteiros, de passagem ou em busca da cura para a tísica pulmonar, isto nos séculos
XVIII e XIX, são os criadores e apreciadores da nossa gastronomia. Habituados às laudas mesas
reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das quintas ou do
Palácio do Governador. Assim em 1793 saiu da ilha agradado com a mesa do governador da ilha, D.
Diogo Pereira Forjaz Coutinho " A sua mesa é uma das mais variadas e delicadas e em poucas
partes do mundo se poderia apresentar cousa semelhante.
Travessas esplêndidas sustentam animais inteiros; ali deparei com um porquinho recheado
rodeado de laranjas, uma lebre armando um salto, faisões tentando levantar voo, ornados com a
sua vistosa e flamejante plumagem".
Esta opulência contrastava com a frugalidade da alimentação do povo. Diz-nos George
Forster que "os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão,
cebolas, vários tubérculos e pouca carne".
Na verdade a mesa madeirense foi sempre muito frugal, situação que era quebrada nos
momentos festivos, nomeadamente no Natal, Espírito Santo e festividades em honra dos diversos
oragos das paróquias da ilha. É em torno do calendário religioso que o madeirense estabelece os
vários momentos que marcam a sua gastronomia. Para ele o Natal é a festa, isto é o momento mais
importante do ano da vivência festiva quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os folguedos e
as delícias da mesa. A tradição anota mesmo um calendário para este ritual. A 8 de Dezembro faz-se
o bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as linguiças e a carne de vinho e
alhos estejam prontas para o Natal. Neste dia no regresso da missa do galo prova-se a carne. A mesa
mantém-se farta de licores, doces e bolos para gáudio dos que estão e dos visitantes. O caldo de
galinha caseira e a carne assada com cuscuz completavam o repasto natalício.
Depois o calendário religioso e o ano agrícola estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa é a
tradição do inhame cozido com bacalhau, no S. Martinho o atum salpresado. Hoje, todavia este
calendário gastronómico perdeu algumas das suas razões de ser. As actuais técnicas de conservação
dos produtos, a actual sociedade de consumo permitem que a disponibilidade dos produtos e o seu
consumo percam essa sazonalidade.
A tradição estabeleceu a matriz, mas os diversos contactos e presença de forasteiros vieram
quebrar a monotonia da ementa diária e transformar o acto de comer. A ilha, terra de passagem de
gentes assistiu também à movimentação e descoberta do mundo animal e vegetal. A ilha foi, na
verdade, o espaço de passagem das plantas do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa.
Da Europa chegaram à ilha os cereais, a vinha e a cana de açúcar. Os dois primeiros por exigência da
cultura cristã. A América e a África revelaram-se aos europeus na sua exoticidade e variedade dos
frutos. Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia torna-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou aquilo que
foi encontrando. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café, chá, baunilha, ananás,
banana, milho e batata chegam à mesa europeia. As ilhas, e de modo especial a Madeira são viveiro
da sua aclimatação aos solos europeus. A nossa variedade de frutos é resultado disso. A viagem de
Vasco da Gama (1497-1499) veio a contribuir para a generalização do consumo das especiarias, já
conhecidas dos europeus, mas só agora com uma rota segura da sua divulgação. Assim ao tradicional
açafrão, a mesa apura-se com as pimentas orientais.
Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões. A maça
apela-nos à grande metrópole de Nova York, enquanto o ananás nos recria as paradisíacas ilhas do
Havai. Mas tudo terá mudado a partir do século XVIII. A alimentação progrediu e as ementas
universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de identidade de origem e entraram definitivamente
no quotidiano. A mesa do mundo ocidental uniformiza-se. As divergências e a exoticidade sucedem
no confronto com outras culturas, como o mundo árabe e as regiões orientais.
É neste longo processo de transformação que se enquadra a afirmação da batata, que teve na
Irlanda o principal centro difusor do tubérculo descoberto no novo mundo. Entre nós a sua
generalização aconteceu em princípios do século XIX, mas no imediato se transformou no produto
preferido da mesa e subsitência madeirense, retirando lugar aos cereais.
Em 1842 o míldio atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na
população, que se repercutiu noutros espaços europeus. A Madeira foi vítima dessa situação entre
1846 e 1847. A fome vitimou milhares de madeirenses e forçou outros tantos à emigração. Not-se
que esta situação conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena afirmação
do milho na dieta popular. Este, sob a forma de pão ou de farinha, transformou-se rapidamente na
base da mesa madeirense na primeira metade do nosso século. Apenas as guerrras mundiais
condicionaram o seu consumo e conduziram a novas crises de fome.
Hoje a nossa culinária é resultado dessa herança cultural dos colonos europeus, das
aportações dos forasteiros e rotas marítimas. Os cereais perduram sob a forma de pão ou diferentes
formas de cozinhado. O milho conhece-se hoje mais como frito do que como papas. A batata persiste
na mesa. E a sobremesa é hoje a mais requintado e rica, quer em aromas e sabores. Tudo isto obra da
Natureza e do Homem.

BIBLIOGRAFIA

RITCHIE, Larson I. A. Comida e civilização de como a História foi influenciada pelos gostos
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