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19/05/2019 Trashing: o lado sombrio da sororidade | Passa Palavra
Este artigo foi escrito para a revista Ms. e publicado na edição de Abril de 1976,
páginas 49-51 e 92-98. Ele atraiu mais cartas de leitoras que qualquer outro
artigo anteriormente publicado na Ms., quase todas relatando suas próprias
experiências de trashing [1]. Alguns desses relatos foram publicados num
número posterior da Ms.
Faz muito tempo que me detonaram. Eu fui uma das primeiras no país, talvez a
primeira em Chicago, a ter minha reputação, meu comprometimento e o meu
próprio eu atacados pelo Movimento de mulheres de um jeito que me deixou
em pedaços, incapaz de agir. Levei anos para me recuperar, e mesmo hoje as
feridas não cicatrizaram inteiramente. Assim, circulo às margens do
Movimento, nutrindo-me dele porque preciso, mas muito amedrontada para
mergulhar uma vez mais no seu interior. Não sei nem mesmo do que tenho
medo. Continuo dizendo a mim mesma que não há razão para que isso
aconteça novamente – se eu for cautelosa – enquanto lá no fundo há um
certeza penetrante, irracional, que diz que, se eu der minha cara a tapa, serei
uma vez mais um para-raios de hostilidade. Por anos tenho escrito essa
lengalenga na minha cabeça, normalmente como um discurso para uma
variedade de plateias imaginárias do Movimento. Mas nunca pensei em me
expressar publicamente sobre o assunto porque tenho sido uma adepta
convicta de não lavar roupa suja do Movimento em público. Estou começando
a mudar de ideia.
Em primeiro lugar, tanta roupa suja está sendo exposta publicamente que
duvido que o que tenha para revelar junte muita coisa à pilha. Para aquelas que
têm sido ativas no Movimento, não é sequer uma revelação. Segundo, por anos
tenho observado com crescente pesar o Movimento conscientemente destruir
qualquer uma em seu interior que se destaque de alguma forma. Por muitos
anos, esperei que essa tendência autodestrutiva de nhasse com o tempo e a
experiência. Assim, eu simpatizava, apoiava, mas não falava sobre as muitas
mulheres cujos talentos foram perdidos para o Movimento porque suas
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Esse ataque é executado fazendo com que você sinta que a sua mera existência
é prejudicial ao Movimento e que não há nada que se possa fazer para mudá-
lo. Esses sentimentos são reforçados quando você ca isolada das suas amigas,
enquanto elas se convencem de que a associação com você é também
prejudicial para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá
manchá-las. Eventualmente, todas as suas colegas se juntarão num coro
acusatório que não pode ser silenciado, e você se verá reduzida a uma mera
paródia de quem outrora havia sido.
Isso era tão sutilmente comunicado que eu nunca encontrava alguém para
falar a respeito. Não houve grandes confrontos, mas várias pequenas afrontas.
Individualmente consideradas, cada uma dessas afrontas era insigni cante;
mas, se tomadas em conjunto, eram como mil chicotadas. Eu era
gradualmente ostracizada: se um artigo coletivo era escrito, minhas tentativas
de contribuir eram ignoradas; se eu escrevesse um artigo, ninguém o leria;
quando eu falava em reuniões, todo mundo escutava educadamente e, então,
prosseguia com a discussão como se eu não tivesse dito coisa alguma; as datas
de reuniões eram alteradas sem que me avisassem; quando era minha vez de
coordenar um projeto de trabalho, ninguém ajudava; quando não recebi as
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Mês após mês, a mensagem era martelada: Caia fora! O Movimento estava
dizendo: Saia! Saia! Um dia me encontrei confessando para minha colega de
quarto que achava que eu não existia; que eu era uma invenção da minha
própria imaginação. Foi quando eu soube que era hora de sair. Minha saída foi
muito tranquila. Contei a duas pessoas e parei de ir ao Centro de Mulheres. A
reação das pessoas me convenceu que eu tinha entendido a mensagem
corretamente. Ninguém ligou, ninguém mandou nenhuma carta, nem sequer
boatos circularam. Metade da minha vida havia sido anulada e ninguém o
havia percebido exceto eu mesma. Três meses depois, chegou-me a
informação de que eu havia sido denunciada pela União de Libertação das
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ilesa à minha criação, por que deveria sucumbir agora? A resposta demorou
anos para chegar. É uma resposta pessoalmente dolorida, pois admito uma
vulnerabilidade da qual pensei que houvesse escapado. Sobrevivi à minha
juventude porque nunca tinha dado a ninguém ou a nenhum grupo o direito de
me julgar. Esse direito, reservei-o a mim mesma. Mas o Movimento me
seduziu com sua doce promessa de sororidade. Prometia prover um paraíso
contra a devastação de uma sociedade sexista; um lugar onde uma mulher
seria compreendida. Era a minha própria necessidade do feminismo e das
feministas que me fez vulnerável. Concedi ao Movimento o direito de me
julgar porque con ei nele. E quando me julgaram inútil, aceitei o julgamento.
Por pelo menos seis meses, vivi num tipo de desespero paralisante,
internalizando completamente o meu fracasso como uma questão pessoal. Em
junho de 1970, encontrei-me em Nova Iorque, coincidentemente, com outras
feministas de quatro diferentes cidades. Nós nos reunimos numa noite para
uma discussão geral sobre o estado do Movimento, mas, ao invés disso,
discutimos sobre o que aconteceu conosco. Tínhamos duas coisas em comum:
todas tínhamos ampla reputação no Movimento e todas tivemos nossa
reputação assassinada. Anselma Dell’Olio leu para nós uma fala sobre
“Divisionismo e autodestruição no Movimento das Mulheres”, que ela havia
feito recentemente no Congresso para a União das Mulheres como resultado
da queimação de lme que ela própria sofreu.
“Eu aprendi… há anos que mulheres estiveram divididas, uma contras as outras,
autodestrutivas e cheias de raiva impotente. Pensei que o Movimento poderia mudar
isso. Nunca sonhei que veria o dia em que este ódio, mascarado como pseudo-
igualitarismo radical, seria usado dentro do Movimento para derrubar irmãs que se
destacassem.
“Eu estou me referindo… aos ataques pessoais, tanto os evidentes quanto os insidiosos,
aos quais foram submetidas as mulheres no Movimento que lidaram muito di cilmente
com qualquer grau de realização, conquista ou feito. Esses ataques tomam diferentes
formas. A mais comum e persuasiva é o assassinato de reputação: a tentativa de minar e
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Ao longo dos anos, conversei com muitas mulheres que tiveram suas
reputações assassinadas. Como um câncer, os ataques se espalhavam, desde as
que tinham reputações até as que eram tão-somente fortes; desde as que eram
ativas até as que meramente tinham ideias; desde as que se destacavam como
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que nos lembram que não somos todas as mesmas têm seu lme queimado
porque as qualidades que as fazem diferentes são interpretadas como uma
a rmação de que não somos todas iguais.
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A prova de fogo, no entanto, ocorre quando alguém tenta defender uma pessoa
sob ataque, especialmente quando ela não está lá. Se esta defesa é levada a
sério e mostra-se alguma preocupação em ouvir todos os lados e obter todas
as evidências necessárias, provavelmente não está ocorrendo detonação. Mas
se a sua defesa é dispensada de imediato com um “como você pode defendê-
la?”; se você acaba se tornando suspeita ao tentar fazer essa defesa; se ela é de
fato indefensável, você deve olhar as acusadoras de perto. Há algo mais
acontecendo do que simples discordâncias.
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Duvido que haja uma explicação única para a detonação; é mais provável que
se deva a diversas combinações de circunstâncias que nem sempre são
visíveis, mesmo para quem as vive. Mas a partir das histórias que ouvi, e dos
grupos que observei, o que mais me impressionou é o quanto a detonação é
tradicional. Não há nada de novo no desencorajamento das mulheres a agirem
fora do esperado com o uso de manipulação psicológica. Esta é uma das coisas
que por anos têm impedido as mulheres de crescer; é algo do qual o feminismo
deveria nos libertar. No entanto, ao invés de uma cultura alternativa com
valores alternativos, criamos meios alternativos para nos inculcar a cultura e
os valores tradicionais. Só o nome mudou; os resultados são os mesmos.
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Joreen
O artigo foi ilustrado com algumas das Pinturas Negras de Francisco de Goya;
elas não constam no original e são de responsabilidade do Passa Palavra.
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