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19/05/2019 Trashing: o lado sombrio da sororidade | Passa Palavra

Trashing: o lado sombrio da sororidade


11/12/2014

A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve


como uma ferramenta muito poderosa de controle social. Por Jo Freeman(*)

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Este artigo foi escrito para a revista Ms. e publicado na edição de Abril de 1976,
páginas 49-51 e 92-98. Ele atraiu mais cartas de leitoras que qualquer outro
artigo anteriormente publicado na Ms., quase todas relatando suas próprias
experiências de trashing [1]. Alguns desses relatos foram publicados num
número posterior da Ms.

Faz muito tempo que me detonaram. Eu fui uma das primeiras no país, talvez a
primeira em Chicago, a ter minha reputação, meu comprometimento e o meu
próprio eu atacados pelo Movimento de mulheres de um jeito que me deixou
em pedaços, incapaz de agir. Levei anos para me recuperar, e mesmo hoje as
feridas não cicatrizaram inteiramente. Assim, circulo às margens do
Movimento, nutrindo-me dele porque preciso, mas muito amedrontada para
mergulhar uma vez mais no seu interior. Não sei nem mesmo do que tenho
medo. Continuo dizendo a mim mesma que não há razão para que isso
aconteça novamente – se eu for cautelosa – enquanto lá no fundo há um
certeza penetrante, irracional, que diz que, se eu der minha cara a tapa, serei
uma vez mais um para-raios de hostilidade. Por anos tenho escrito essa
lengalenga na minha cabeça, normalmente como um discurso para uma
variedade de plateias imaginárias do Movimento. Mas nunca pensei em me
expressar publicamente sobre o assunto porque tenho sido uma adepta
convicta de não lavar roupa suja do Movimento em público. Estou começando
a mudar de ideia.

Em primeiro lugar, tanta roupa suja está sendo exposta publicamente que
duvido que o que tenha para revelar junte muita coisa à pilha. Para aquelas que
têm sido ativas no Movimento, não é sequer uma revelação. Segundo, por anos
tenho observado com crescente pesar o Movimento conscientemente destruir
qualquer uma em seu interior que se destaque de alguma forma. Por muitos
anos, esperei que essa tendência autodestrutiva de nhasse com o tempo e a
experiência. Assim, eu simpatizava, apoiava, mas não falava sobre as muitas
mulheres cujos talentos foram perdidos para o Movimento porque suas

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tentativas de usá-los foram recebidas com


hostilidade. Conversas com amigas em Boston, Los
Angeles e Berkeley que tiveram sua reputação
atacada em 1975 convenceram-me de que o
Movimento não aprendeu a partir de sua experiência
irre etida. Em vez disso, o assassinato de reputação
alcançou proporções epidêmicas. Talvez tirá-lo do
armário deixe o ar mais fresco.

O que é “detonação“, essa expressão coloquial que


diz tanto, mas explica tão pouco? Não é desacordo;
não é con ito; não é oposição. Esses são fenômenos
perfeitamente comuns que, quando mutuamente entrelaçados, honesta e não
excessivamente, são necessários para manter um organismo ou uma
organização saudável e ativa. A detonação é uma forma particularmente cruel
de assassinato de reputação que equivale a um estupro psicológico. É
manipulador, desonesto e excessivo. É ocasionalmente disfarçado pela
retórica do con ito honesto ou acobertado pela negação de que exista qualquer
reprovação. Mas ele não é feito para expôr desacordos ou resolver diferenças. É
feito para desacreditar e destruir.

Os meios variam. A detonação pode ser feita de forma privada ou num


ambiente de grupo; na cara ou pelas costas; através de ostracismo ou por meio
de denúncia aberta. A detonadora pode dar-lhe informações falsas sobre o que
as outras pensam de você (coisas horríveis); pode contar a suas amigas falsas
histórias do que você acha delas; pode interpretar o que quer que você diga ou
faça da maneira mais negativa; pode projetar expectativas irreais sobre você
de modo que, quando não conseguir atingir essas expectativas, você se
transforma num alvo “legítimo” para a raiva; pode negar suas percepções da
realidade; ou pode ngir que você absolutamente não existe. A queimação de
lme pode até ocorrer de forma velada por meio das novas técnicas grupais de
crítica/autocrítica, mediação e terapia. Qualquer que seja o método utilizado, a
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detonação envolve violação de integridade, declaração de inutilidade e


contestação da motivação da própria pessoa. Com efeito, o que é atacado não
são ações ou ideias, mas o próprio indivíduo.

Esse ataque é executado fazendo com que você sinta que a sua mera existência
é prejudicial ao Movimento e que não há nada que se possa fazer para mudá-
lo. Esses sentimentos são reforçados quando você ca isolada das suas amigas,
enquanto elas se convencem de que a associação com você é também
prejudicial para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá
manchá-las. Eventualmente, todas as suas colegas se juntarão num coro
acusatório que não pode ser silenciado, e você se verá reduzida a uma mera
paródia de quem outrora havia sido.

Três ataques à minha reputação foram necessários para me fazer desistir.


Finalmente, no nal de 1969, senti-me psicologicamente mutilada ao ponto
de saber que não conseguiria continuar. Até então eu interpretava que minhas
experiências decorriam de con itos de personalidade ou de divergências
políticas que eu poderia corrigir com tempo e esforço. Mas quanto mais eu
tentava, pior as coisas cavam, até que nalmente fui forçada a encarar a
incompreensível realidade de que o problema não era o que eu fazia, mas o que
eu era.

Isso era tão sutilmente comunicado que eu nunca encontrava alguém para
falar a respeito. Não houve grandes confrontos, mas várias pequenas afrontas.
Individualmente consideradas, cada uma dessas afrontas era insigni cante;
mas, se tomadas em conjunto, eram como mil chicotadas. Eu era
gradualmente ostracizada: se um artigo coletivo era escrito, minhas tentativas
de contribuir eram ignoradas; se eu escrevesse um artigo, ninguém o leria;
quando eu falava em reuniões, todo mundo escutava educadamente e, então,
prosseguia com a discussão como se eu não tivesse dito coisa alguma; as datas
de reuniões eram alteradas sem que me avisassem; quando era minha vez de
coordenar um projeto de trabalho, ninguém ajudava; quando não recebi as

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correspondências e descobri que meu nome não estava no catálogo de


endereços, disseram-me que eu havia olhado no lugar errado. Meu grupo uma
vez decidiu fazer uma campanha de arrecadação de dinheiro para enviar
pessoas para uma conferência; quando eu disse que queria ir, decidiram que
todo mundo iria por conta própria (para ser justa, uma colega posteriormente
me ligou para contribuir com $5 para a minha passagem, sob a condição de
que eu não contasse a ninguém. Ela foi detonada poucos anos depois).

Minha resposta a isso foi a perplexidade. Senti-me como se estivesse vagando


com os olhos vendados num campo cheio de objetos cortantes e buracos
profundos enquanto me tranquilizavam, dizendo que podia ver perfeitamente
e estava em um campo de grama macia. Era como se eu houvesse entrado
involuntariamente numa sociedade nova, operada por regras que eu não
conhecia, nem poderia conhecer. Quando tentei fazer com que meu(s)
grupo(s) discutissem a respeito daquilo que eu pensava estar acontecendo
comigo, eles tanto negaram a minha percepção de realidade, dizendo que nada
estava fora do comum, quanto classi caram os incidentes como triviais
(individualmente eles eram). Uma mulher, em conversas telefônicas privadas,
admitiu que eu estava sendo maltratada. Mas ela nunca me apoiou
publicamente e, honestamente, admitiu que era porque temia perder a
aprovação do grupo. Também zeram a caveira dela em outro grupo.

Mês após mês, a mensagem era martelada: Caia fora! O Movimento estava
dizendo: Saia! Saia! Um dia me encontrei confessando para minha colega de
quarto que achava que eu não existia; que eu era uma invenção da minha
própria imaginação. Foi quando eu soube que era hora de sair. Minha saída foi
muito tranquila. Contei a duas pessoas e parei de ir ao Centro de Mulheres. A
reação das pessoas me convenceu que eu tinha entendido a mensagem
corretamente. Ninguém ligou, ninguém mandou nenhuma carta, nem sequer
boatos circularam. Metade da minha vida havia sido anulada e ninguém o
havia percebido exceto eu mesma. Três meses depois, chegou-me a
informação de que eu havia sido denunciada pela União de Libertação das
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Mulheres de Chicago, fundada depois de eu ser expulsa do Movimento, por


permitir-me ter sido citada numa notícia recente sem sua permissão. Isso foi
tudo.

O pior disso era que eu realmente não sabia por que


eu estava tão profundamente afetada. Sobrevivi à
minha criação num subúrbio muito conservador,
conformista e machista, onde meu direito à minha
própria identidade estava constantemente sob
ataque. A necessidade de defender meu direito de
ser eu mesma me fez mais dura, não
esfrangalhada. Os meus calos foram fortalecidos
futuramente pelas minhas experiências em outras organizações políticas e
movimentos, onde eu aprendi o uso da retórica e do argumento como armas
numa luta política, e como identi car con itos pessoais mascarados como
políticos. Tais con itos eram geralmente articulados de forma impessoal,
como ataques às ideias de alguém; embora talvez não fossem produtivos, eles
não eram destrutivos como aqueles que vi mais tarde no movimento feminista.
Pode-se repensar as próprias ideias como um resultado de elas serem
atacadas. É muito mais difícil repensar a própria personalidade. O assassinato
de reputações era usado ocasionalmente, mas não era considerado legítimo, e
era, portanto, limitado tanto na extensão como na efetividade. Como as ações
das pessoas contam mais que suas personalidades, tais ataques não
resultavam tão facilmente no isolamento. Quando eram aplicados, só
raramente irritavam.

Mas o movimento feminista conseguiu me afetar. Pela primeira vez na minha


vida, me encontrei acreditando em todas as coisas horríveis que falavam sobre
mim. Quando fui tratada feito merda, interpretei este tratamento como se
quisesse dizer que eu fosse, pessoalmente, uma merda. Minha reação a este
tratamento me deixava ainda mais insegura à medida em que a comparava
com a minha própria experiência de vida. Tendo sobrevivido até certo ponto
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ilesa à minha criação, por que deveria sucumbir agora? A resposta demorou
anos para chegar. É uma resposta pessoalmente dolorida, pois admito uma
vulnerabilidade da qual pensei que houvesse escapado. Sobrevivi à minha
juventude porque nunca tinha dado a ninguém ou a nenhum grupo o direito de
me julgar. Esse direito, reservei-o a mim mesma. Mas o Movimento me
seduziu com sua doce promessa de sororidade. Prometia prover um paraíso
contra a devastação de uma sociedade sexista; um lugar onde uma mulher
seria compreendida. Era a minha própria necessidade do feminismo e das
feministas que me fez vulnerável. Concedi ao Movimento o direito de me
julgar porque con ei nele. E quando me julgaram inútil, aceitei o julgamento.

Por pelo menos seis meses, vivi num tipo de desespero paralisante,
internalizando completamente o meu fracasso como uma questão pessoal. Em
junho de 1970, encontrei-me em Nova Iorque, coincidentemente, com outras
feministas de quatro diferentes cidades. Nós nos reunimos numa noite para
uma discussão geral sobre o estado do Movimento, mas, ao invés disso,
discutimos sobre o que aconteceu conosco. Tínhamos duas coisas em comum:
todas tínhamos ampla reputação no Movimento e todas tivemos nossa
reputação assassinada. Anselma Dell’Olio leu para nós uma fala sobre
“Divisionismo e autodestruição no Movimento das Mulheres”, que ela havia
feito recentemente no Congresso para a União das Mulheres como resultado
da queimação de lme que ela própria sofreu.

“Eu aprendi… há anos que mulheres estiveram divididas, uma contras as outras,
autodestrutivas e cheias de raiva impotente. Pensei que o Movimento poderia mudar
isso. Nunca sonhei que veria o dia em que este ódio, mascarado como pseudo-
igualitarismo radical, seria usado dentro do Movimento para derrubar irmãs que se
destacassem.

“Eu estou me referindo… aos ataques pessoais, tanto os evidentes quanto os insidiosos,
aos quais foram submetidas as mulheres no Movimento que lidaram muito di cilmente
com qualquer grau de realização, conquista ou feito. Esses ataques tomam diferentes
formas. A mais comum e persuasiva é o assassinato de reputação: a tentativa de minar e

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destruir a crença na integridade do indivíduo sob ataque. Outra forma é o “expurgo”. A


última tática é de isolá-la…

“E o que elas atacam? Geralmente duas categorias… Sucesso ou realização de qualquer


tipo parecem ser os piores crimes: …faça qualquer coisa…. que outras mulheres
acreditem em seu íntimo que também poderiam ter feito – e… você vira alvo. Se, então…
você for assertiva, se tiver o que geralmente é descrito como uma ‘personalidade forte’,
se… você não se encaixar no estereótipo convencional de uma mulher “feminina”,… está
tudo acabado.

“Se você está na primeira categoria (uma empreendedora), você é imediatamente


rotulada como uma oportunista em busca de emoção, uma mercenária cruel, que está lá
para fazer fama e dinheiro sobre os corpos mortos das irmãs altruístas que tiveram suas
habilidades enterradas e sacri caram suas ambições para a maior glória do Feminismo.
Produtividade parece ser o maior crime – mas se você tiver o azar de ser franca e
articulada, você também será acusada de ser louca por poder, elitista, fascista e
nalmente o pior epíteto de todos: se identi ca com os homens. Aaaarrrrggg!”

Ao ouvi-la, um grande sentimento de alívio tomou conta de mim. Era minha


experiência que ela estava descrevendo. Se eu era louca, não era mais a única.
Nossa conversa continuou até tarde naquela noite. Quando saímos, nós
sarcasticamente nos apelidamos de “refugiadas feministas” e concordamos
em nos encontrar de novo. Nunca o zemos. Ao invés disso, cada uma voltou
para seu próprio isolamento e lidou com o problema apenas no nível pessoal. O
resultado foi que a maioria das mulheres daquela reunião saíram do
Movimento, assim como eu z. Duas terminaram no hospital por colapsos
nervosos. Embora todas tenham continuado a ser feministas dedicadas,
nenhuma tem realmente contribuído com seus talentos para o Movimento
como elas poderiam ter feito. Embora nós nunca tenhamos nos encontrado
novamente, nossas leiras cresciam à medida em que a doença da
autodestruição lentamente engolia o Movimento.

Ao longo dos anos, conversei com muitas mulheres que tiveram suas
reputações assassinadas. Como um câncer, os ataques se espalhavam, desde as
que tinham reputações até as que eram tão-somente fortes; desde as que eram
ativas até as que meramente tinham ideias; desde as que se destacavam como

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indivíduos até aquelas que falhavam em se adequar rápido o su ciente com as


voltas e reviravoltas da mudança de linha. A cada nova história, minha
convicção de que a detonação não era um problema individual, causado por
ações individuais, crescia; não era um resultado de con itos políticos entre
pessoas com ideias diferentes, era uma doença social.

Essa doença tem sido ignorada há tanto porque é frequentemente mascarada


sob a retórica da sororidade. Em meu próprio caso, a ética da sororidade
impediu o reconhecimento do meu ostracismo. Os novos valores do
Movimento diziam que toda mulher era uma irmã, toda mulher era aceitável.
Eu claramente não era. Ainda que ninguém pudesse admitir que eu não era
aceitável sem admitir que elas não estavam sendo irmãs. Era mais fácil negar a
realidade da minha inaceitabilidade. Junto com outras detonações, a
sororidade tem sido usada como faca, ao invés de bainha. Um vago padrão do
comportamento fraternal é estabelecido por juízas anônimas que condenam
aquelas que não cumprem esses padrões. Enquanto o padrão for vago e
utópico, ele não pode nunca ser atingido. Mas pode ser deslocado de acordo
com as circunstâncias para excluir as irmãs indesejadas. Assim a memorável
máxima de Ti-Grace Atkinson, de que a “sororidade é poderosa: ela assassina
irmãs”, é rea rmada repetidas vezes.

A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve


como uma ferramenta muito poderosa de controle social. As qualidades e
estilos que são atacados tornam-se exemplos para outras mulheres
aprenderem a não seguir – do contrário, o mesmo destino cairá sobre elas.
Isso não é uma característica peculiar do Movimento das Mulheres, ou mesmo
das mulheres. O uso de pressões sociais para induzir adequações e intolerância
é endêmico na sociedade americana. A questão relevante não é por que o
Movimento exerce fortes pressões para a adequação a um rígido padrão, mas
qual é esse padrão ao qual as mulheres são pressionadas a se adequarem.

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Esse padrão é travestido pela retórica da revolução


e do feminismo. Mas, por baixo dele, estão algumas
ideias muito tradicionais sobre os papéis
adequados das mulheres. Tenho observado que
dois tipos diferentes de mulheres sofrem esses
ataques. A primeira é a descrita por Anselma
Dell’Olio – a empreendedora e/ou a mulher
assertiva, aquela a quem o epíteto “identi cada
com os homens” é aplicado de forma comum. Esse
tipo de mulher sempre foi rebaixado pela nossa
sociedade com epítetos que variam de “pouco
feminina” até “vadia castradora”. A principal
razão de ter havido tão poucas “grandes mulheres
que … [realizaram algo]” não é meramente que a grandeza feminina foi pouco
desenvolvida ou não reconhecida, mas que as mulheres que apresentam
potencial para o sucesso são punidas tanto por mulheres quanto por homens.
O “medo do sucesso” é algo bastante racional quando se sabe que a
consequência do sucesso é a hostilidade e não o elogio.

Não apenas o Movimento falhou em superar essa socialização tradicional,


como algumas mulheres levaram isso a novos extremos. Fazer alguma coisa
signi cante, ser reconhecida, ter sucesso, implica que se está “aproveitando
da opressão de outras mulheres”, ou que se considera melhor que as outras.
Apesar de poucas mulheres pensarem isso, muitas também cam em silêncio
enquanto as outras a am as garras. A luta por “ausência de lideranças” que o
Movimento tanto valoriza frequentemente se torna muito mais uma tentativa
de destruir aquelas mulheres que mostram qualidades de liderança, do que
desenvolver tais qualidades naquelas que não têm. Muitas mulheres que
tentaram compartilhar suas habilidades foram detonadas por a rmarem que
elas sabem algo que as outras não sabem. O culto do Movimento ao
igualitarismo é tão forte que se confundiu com o culto à mesmice. As mulheres

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que nos lembram que não somos todas as mesmas têm seu lme queimado
porque as qualidades que as fazem diferentes são interpretadas como uma
a rmação de que não somos todas iguais.

Consequentemente, o Movimento exige coisas erradas das mulheres que


conquistaram posições dentro dele. Ao invés de exigir reconhecimento e
responsabilidade, pede culpa e arrependimento. As mulheres que se
bene ciaram pessoalmente da existência do Movimento de fato devem mais
do que gratidão a ele. Mas esta dívida não é paga com espancamento moral. A
prática do ataque à reputação apenas desestimula outras mulheres a tentar se
libertar de seus tradicionais grilhões.

O outro tipo de mulher que é comumente detonada é um tipo que eu jamais


suspeitaria. Os valores do Movimento favorecem mulheres que são muito
solidárias e comedidas; aquelas que estão constantemente resolvendo
problemas pessoais alheios; as mulheres que desempenham bem um papel
maternal. Mas um número surpreendente dessas mulheres já teve sua
reputação detonada. Ironicamente, justo a habilidade de desempenhar este
papel gera ressentimento e cria uma imagem de poder que suas colegas acham
ameaçadora. Algumas mulheres mais velhas rejeitam conscientemente este
papel maternal, porém, espera-se que o desempenhem porque elas se
encaixariam nele — e são detonadas quando recusam. Outras mulheres que
desempenham esse papel voluntariamente geram expectativas que
eventualmente não conseguirão atender. Ninguém consegue ser “tudo para
todas”; então, quando estas mulheres se veem numa situação em que têm que
dizer “não” para conservar um pouco do seu próprio tempo e energia pra si
mesmas ou pra cuidar da questão política de um grupo, elas são vistas como
rejeitadoras e tratadas com ódio. É claro que mães de verdade conseguem lidar
com um pouco de raiva das suas crianças porque mantém um alto grau de
controle físico e nanceiro sobre elas. Até mulheres nas pro ssões
“cuidadoras”, que ocupam papéis de mães substitutas, têm recursos para
controlar a raiva de seus clientes. Mas quando se é uma “mãe” para suas
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pares, esta não é uma possibilidade. Se as exigências estão fora da realidade,


ou se recua, ou fazem sua caveira. 

A detonação contra ambos os grupos tem raízes comuns nos papéis


tradicionais. Entre as mulheres existem dois papéis concebidos como
permissíveis: a “ajudadora” e a “ajudada”. A maioria das mulheres são
treinadas para agir de uma ou outra maneira em diferentes momentos. Apesar
da prática de conscientização e de um diagnóstico intenso da nossa própria
socialização, muitas de nós ainda não conseguimos nos libertar de
desempenhar esses papéis, nem da nossa expectativa de que outras irão
desempenhá-los. Aquelas que se desviam desses papéis — as mulheres de
ação — são punidas por fazê-lo, assim como aquelas que fracassam em
atender as expectativas do grupo.

Apesar de só algumas mulheres se engajarem na detonação, a culpa por


permitir que esta prática persista é de nós todas. Uma vez sob ataque, há pouco
que uma mulher pode fazer para se defender, porque, por de nição, uma
mulher que tem sua reputação atacada está sempre errada. Mas há muita coisa
que quem está observando pode fazer para impedi-la de ser isolada e, em
última instância, destruída. A detonação só funciona bem quando suas vítimas
estão sozinhas, porque a essência dele é o isolamento de uma pessoa e a
atribuição a ela dos problemas do grupo. O apoio coletivo quebra essa fachada
e priva as destruidoras de reputação da sua audiência cativa. Transforma um
massacre numa luta. Muitos ataques foram impedidos pela recusa de colegas
de se silenciarem por medo de serem os próximos alvos. Outras agressoras
foram forçadas a esclarecer suas reclamações até o ponto em que estas
reclamações puderam ser tratadas de forma racional.

Existe, é claro, uma linha tênue entre a detonação e


a luta política, entre assassinato de reputação e
objeções legítimas contra comportamentos
indesejáveis. Discernir a diferença requer esforço.

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Seguem aqui alguns indicadores de caminhos a seguir. A detonação envolve


muito uso do verbo “ser” e pouco uso do verbo “fazer”. É o que se é, e não o
que se faz, que é objetado, e essas objeções não podem ser facilmente
expressas em termos de comportamentos indesejáveis especí cos. As
detonadoras também tendem a usar nomes e adjetivos de uma forma vaga e
genérica para tentar expressar suas objeções a uma pessoa especí ca. Esses
termos carregam uma conotação negativa, mas não lhe dizem realmente o que
está errado. Isso é deixado para sua imaginação. Aquelas que estão sofrendo
ataques à reputação não podem fazer nada certo. Porque elas são más, suas
motivações são más e, portanto, suas ações são sempre más. Não existe
reti cação de erros passados, porque esses são tratados como sintomas e não
como erros.

A prova de fogo, no entanto, ocorre quando alguém tenta defender uma pessoa
sob ataque, especialmente quando ela não está lá. Se esta defesa é levada a
sério e mostra-se alguma preocupação em ouvir todos os lados e obter todas
as evidências necessárias, provavelmente não está ocorrendo detonação. Mas
se a sua defesa é dispensada de imediato com um “como você pode defendê-
la?”; se você acaba se tornando suspeita ao tentar fazer essa defesa; se ela é de
fato indefensável, você deve olhar as acusadoras de perto. Há algo mais
acontecendo do que simples discordâncias.

Como a destruição de reputação tornou-se mais frequente, eu quei mais


intrigada com a questão do porquê. O que há no Movimento das Mulheres que
apoia e até mesmo incentiva a autodestruição? Como podemos, por um lado,
falar sobre o incentivo às mulheres a desenvolver seu próprio potencial e, por
outro, esmagar aquelas entre nós que fazem exatamente isso? Por que
condenamos nossa sociedade machista pelo dano que causa às mulheres, para
depois condenarmos as mulheres que não parecem tão severamente
destruídas pela sociedade? Por que a conscientização não nos conscientizou
sobre a detonação?

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A resposta óbvia está enraizada na nossa opressão enquanto mulheres, e na


auto agelação grupal que resulta de termos sido criadas para acreditar que as
mulheres não valem muito. No entanto, esta resposta é muito fácil; esconde o
fato de que a detonação não ocorre de forma aleatória. Nem todas as mulheres
ou organizações femininas fazem destruição de reputação, ou pelo menos não
o fazem na mesma medida. É muito mais predominante entre aquelas que se
consideram radicais do que entre aquelas que não se consideram; muito mais
entre aquelas que enfatizam mudanças pessoais do que entre aquelas que
enfatizam mudanças institucionais; muito mais entre aquelas que não veem
vitórias antes da revolução do que entre aquelas que se satisfazem com
vitórias menores; muito mais entre grupos com objetivos vagos do que entre
grupos com objetivos concretos.

Duvido que haja uma explicação única para a detonação; é mais provável que
se deva a diversas combinações de circunstâncias que nem sempre são
visíveis, mesmo para quem as vive. Mas a partir das histórias que ouvi, e dos
grupos que observei, o que mais me impressionou é o quanto a detonação é
tradicional. Não há nada de novo no desencorajamento das mulheres a agirem
fora do esperado com o uso de manipulação psicológica. Esta é uma das coisas
que por anos têm impedido as mulheres de crescer; é algo do qual o feminismo
deveria nos libertar. No entanto, ao invés de uma cultura alternativa com
valores alternativos, criamos meios alternativos para nos inculcar a cultura e
os valores tradicionais. Só o nome mudou; os resultados são os mesmos.

Embora as táticas sejam tradicionais, a virulência não é. Nunca vi mulheres se


enfurecerem tanto com outras mulheres como acontece no Movimento. Em
parte, isso ocorre porque as nossas expectativas sobre outras feministas e
sobre o Movimento em geral são muito elevadas e, portanto, difíceis de
atender. Nós ainda não aprendemos a ser realistas em nossas demandas sobre
nossas irmãs ou sobre nós mesmas. Ocorre também porque outras feministas
estão disponíveis como alvos para a raiva.

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A raiva é um resultado lógico da opressão. Ela exige


uma válvula de escape. Como muitas mulheres são
rodeadas por homens a quem, pelo que
aprenderam, não é prudente atacar, sua raiva é
geralmente voltada para dentro. O Movimento está
ensinando as mulheres a parar este processo, mas
em muitos casos não forneceu alvos alternativos.
Enquanto os homens estão distantes e o “sistema”
é muito grande e vago, as “irmãs” estão por perto.
Atacar outras feministas é mais fácil e os
resultados podem ser vistos mais rapidamente do
que quando se ataca instituições sociais amorfas.
Pessoas são feridas; elas vão embora. Pode-se
sentir a sensação de poder que vem de ter “feito
alguma coisa”. A mudança de uma sociedade inteira é um processo frustrante,
muito lento, em que os ganhos são incrementais, as recompensas são difusas e
os retrocessos são frequentes. Não é uma coincidência que a queimação de
lme seja feita com frequência e mais violentamente por aquelas feministas
que veem pouco valor em mudanças pequenas e impessoais e, portanto,
muitas vezes não tenham condições de agir contra instituições especí cas.

A ênfase do Movimento na palavra de ordem “o pessoal é político” tornou


mais fácil o orescimento da detonação. Começamos por derivar algumas das
nossas ideias políticas da análise de nossas vidas pessoais. Isto legitimou, para
muitas, a ideia de que o Movimento poderia nos dizer que tipo de pessoas
devemos ser e, por extensão, que tipo de personalidades devemos ter. Como
não foram estabelecidos limites para tais exigências, foi difícil impedir abusos.
Muitos grupos têm buscado remodelar as vidas e mentes de suas integrantes, e
alguns destróem a reputação daquelas que resistiram. A detonação é também
uma forma de extravasar a competitividade que permeia nossa sociedade, mas
de uma forma que re ete os sentimentos de incompetência que as

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detonadoras exibem. Em vez de tentar provar que se é melhor do que qualquer


outra pessoa, tenta-se provar que outra pessoa é pior. Isso pode proporcionar
a mesma sensação de superioridade que a concorrência tradicional faz, mas
sem os riscos envolvidos. Na melhor das hipóteses, o objeto de sua ira é
exposto à vergonha pública; na pior das hipóteses, a própria posição é
assegurada sob a fantasia da justa indignação. Francamente, se vamos ter
concorrência no Movimento, eu pre ro a tradicional. Tal competitividade tem
os seus custos, mas também existem alguns benefícios coletivos a partir das
realizações que as concorrentes fazem ao tentar superar umas às outras. Com
a detonação não há bene ciárias. Em última análise, todas perdem.

Apoiar mulheres acusadas de subverter o Movimento ou prejudicar o seu


grupo exige coragem, pois nos obriga a dar a cara a tapa. Mas o custo coletivo
de permitir que ataques sistemáticos à reputação continuem tão longa e
amplamente como temos permitido é enorme. Já perdemos algumas das
mentes mais criativas e das mais dedicadas ativistas do Movimento. E o mais
importante: temos desencorajado muitas feministas a se sobressaírem, pelo
medo de que façam a caveira delas. Não fornecemos um ambiente seguro para
que todas possam desenvolver seu potencial individual, ou onde reunamos
forças para as batalhas contra as instituições machistas que devemos travar
cotidianamente. Um movimento que antes extravasava energia, entusiasmo e
criatividade agora se embaraça em questões de sobrevivência básica – a
sobrevivência contra o outro. Não é hora de pararmos de olhar para os
inimigos internos e começarmos a atacar o inimigo real lá fora?

A autora gostaria de agradecer a Linda, Maxine e Beverly por suas úteis


sugestões na revisão deste artigo.

Joreen

O artigo foi ilustrado com algumas das Pinturas Negras de Francisco de Goya;
elas não constam no original e são de responsabilidade do Passa Palavra.

https://passapalavra.info/2014/12/101362/ 16/17
19/05/2019 Trashing: o lado sombrio da sororidade | Passa Palavra

NOTAS

(*) Artigo escrito por Jo Freeman, militante feminista estadunidense e autora


do clássico “A Tirania das Organizações sem Estrutura“, sob o pseudônimo
Joreen. Traduzido pelo Passa Palavra a partir do original em inglês, disponível
no site da autora.

[1] Trashing é um termo coloquial da língua inglesa que signi ca “destruir”,


“detonar”, “assassinar a reputação”, “atacar a reputação” ou “espancar
moralmente” uma pessoa. Coloquialmente, poderia ser traduzido como um
caso extremo de “fazer a caveira” ou “queimar o lme” de alguém. Daqui em
diante, a tradução verteu “trashing” usando estas várias formas, de acordo
com o contexto.

https://passapalavra.info/2014/12/101362/ 17/17

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