You are on page 1of 43

SOCIEDADE DE EDUCAÇÃO DO VALE DO IPOJUCA

MANTENEDORA DA FACULDADE DO VALE DO IPOJUCA – FAVIP


MARIA DO SOCORRO FERREIRA DOS SANTOS

KARLA RAFAELA CINTRA MONTEIRO

O INCONSCIENTE REVELADO PELAS MÃOS:


Um Olhar Psicanalítico a Surdos

CARUARU, 2010
KARLA RAFAELA CINTRA MONTEIRO

O INCONSCIENTE REVELADO PELAS MÃOS:


Um Olhar Psicanalítico a Surdos

Trabalho monográfico de
Conclusão de Curso, sob orientação da
Professora Ms. Anna Barreto Campello
Carvalheira Chaves, como requisito para
obtenção do grau de Bacharelado em
Psicologia.

CARUARU, 2010
M775i Monteiro, Karla Rafaela Cintra.
O inconsciente revelado pelas mãos: um olhar psicanalítico a
surdos / Karla Rafaela Cintra Monteiro. -- Caruaru : FAVIP, 2010.
42 f.
Orientador(a) : Ana Barreto C. Carvalheira Chaves.
Trabalho de Conclusão de Curso (Psicologia) -- Faculdade do
Vale do Ipojuca.

1. Surdez. 2. Psicanálise. 3. Língua de sinais. 4. Olhar (Aspectos


psicológicos). I. Título.
CDU 159.9(10.2)

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário: Jadinilson Afonso CRB-4/1367


KARLA RAFAELA CINTRA MONTEIRO

O INCONSCIENTE REVELADO PELAS MÃOS:


Um Olhar Psicanalítico a Surdos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Bacharelado em Psicologia –
Faculdade do Vale do Ipojuca- FAVP, como
requisito para obtenção do título de Bacharel
em Psicologia.

Aprovado em __________/__________/__________.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________
Profª. Anna Barreto Campello Carvalheira Chaves. Orientador

_____________________________________________________________
Profº. Getúlio Amaral Júnior. 1º Avaliador

____________________________________________________________
Profº. José Daniel da Silva, 2º Avaliador
“Dedico este trabalho a todos os surdos que
viveram a dura espera, para serem vistos como
sujeitos...”
Agradecimentos

Ao longo, desses cinco anos foram inúmeras experiências de idas e vindas, que vivi.
Agradecer neste momento é sem dúvida voltar um pouco a essa curta e longa história,
marcada pela entrada da Psicologia em minha vida. Alguns silenciosos e em segredos
agradecimentos farei, pois estes serão somente meus. Outros, quero aqui colocá-los, mesmo
sabendo que não há palavras para expressá-los com exatidão.
Agradeço, ao meu Pai do Céu pela silenciosa e inegável ação ao longo desses cinco
anos de curso, algumas carregarei como sinal eterno da tua presença. “Meu coração jamais
esquecerá dos teus feitos, Pai”.
Agradeço, a minha família que silenciosamente entenderar o meu amor pela psicologia
e suportou minhas falácias de psicóloga. “Sei que pra vocês nunca serei a “Psicóloga Karla”
serei sempre e somente Karla. Obrigada!”.
Agradeço a Emanuel Rodrigues, o meu primeiro psicanalista, aquele que me fez amar
a Psicanálise e a descobri-la em mim. “Você não somente me deu asas pra voar como também
me ensinou a voar. Eu aprendi mais com você do que com os livros...”.
Agradeço a Lucia Miriam pela jornada de cinco anos de faculdade, diante de tantas
construções e desconstruções chegamos até o fim.“Tua presença marcou pra sempre a minha
vida, e a psicologia não seria a mesma sem você”.
Agradeço a Hélida Nogueira, minha cúmplice amiga que acompanhou, investiu,
acreditou e me impulsionou a ir adiante. Ninguém me fez acreditar mais em mim do que você.
“Minha amiga, quero um dia ser, o que você hoje já consegue ver em mim. Obrigada.”
E por fim ao CESAPE pela luta em prol dos surdos.“Vocês motivaram minha luta e
abriram meus olhos para um novo mundo!”

Muito obrigada!
Resumo

Nos primórdios da infância a linguagem era transmitida pelo afeto, pelo sentir, por
aquilo que a imagem do rosto materno nos transmitia. Nossa linguagem é formada antes de
tudo por esses afetos e imagens que vão tecendo a construção de nossos significantes
inconscientes, e dando a estes significações. Esse processo é semelhante para todos os sujeitos
sejam eles surdos ou ouvintes. O sujeito psicanalítico é o sujeito da fala. Fala essa que lhe
remete a descoberta do inconsciente. É ao utilizar esta linguagem, com tudo que a compõe, é
que o processo analítico acontecerá com todas as suas armações de significantes e metáforas.
A fim de ter acesso aquilo que fora recalcado ao inconsciente. A grande problemática deste
trabalho é pensar em como funciona a psicanálise para o sujeito surdo, já que está abordagem
se opera pela fala. E se pode acontecer atendimento psicanalítico a um sujeito surdo através
da língua de sinais. A inserção do surdo à língua de sinais possibilitará que o mesmo seja
inserido pela linguagem no campo simbólico. Sua não inserção ou tardia inserção é
severamente prejudicial ao seu desenvolvimento. A visão será a responsável por lhe trazer as
informações e orientações sobre o que acontece ao redor. Shorn (1997) citado por Sole (2005/
p 53) nos afirma que “[...] o surdo escuta com os olhos[...]”. Esta escuta pelo olhar do analista,
possibilitará um novo olhar sobre este sujeito surdo, um olhar que lhe fará encontrar seu
desejo e sua falta. O surdo da “deficiência”, da “incompletude”, do “falso silêncio”, da
“limitação”, da “não aceitação” e da “insatisfação do desejo materno”, acostumado a este
lugar, lugar do vazio. Terá neste olhar do analista a possibilidade de construir uma nova
imagem e novas amarrações para seus significantes, possibilitando assim um novo lugar
subjetivo.

Palavras chaves: Surdez/ Psicanálise/ Língua de sinais/ Olhar


Abstract

In the early days of childhood language was transmitted by affection, by feel, for
what the image of the maternal face transmitted us. Our language is formed primarily by these
affections and images that go spinning the construction of our significants unconscious, and
giving these significances. This process is similar for all subjects whether deaf or listeners.
The psychoanalytic subject is the subject of the speech. Speech that remits to the discovery of
the unconscious. And when using this language, with everything that composes, the analytic
process will happen with all its significant frames and metaphors; in order to obtain access to
what was suppressed when unconscious. The major problem of this work would be thinking
about how psychoanalysis would work for the deaf subject, since this approach operates by
speech, and if psychoanalytic service can happen to a deaf subject through sign language. The
insertion of the deaf, to the signs language will enable him to be inserted by language in the
symbolic field. His non insertion or late insertion is severely detrimental to his development.
The vision is responsible for providing information and guidance on what happens around.
Shorn (1997) cited by Sole (2005/p 53) says that "[...] the deaf listening with eyes [...]". This
listening by Analyst’s looking, will enable a new look on this deaf subject, a look that will
find their desire and their absence. The deaf disability, incompleteness, false silence,
limitation, non-acceptance and maternal dissatisfaction of
desire, accustomed to this place, instead of empty. Will this Analyst’s looking the possibility
to build a new image and new moorings for it’s significant, thus a new subjective place.

Keywords: Deafness/Psychoanalysis/language signs/Look


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 09

2 DESENVOLVIMENTO
2.1 CAPÍTULO 1- O Sujeito Psicanalítico ................................................................ 13
2.2 CAPÍTULO 2- A Surdez e a Psicanálise .............................................................. 20
2.3 CAPÍTULO 3- A Escuta pelo Olhar .................................................................... 34

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 40

4 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 41
9

Introdução

A linguagem é um meio de comunicação que viabiliza as relações com o mundo a


nossa volta. Por meio desta, saímos da alienação narcisista dos primeiros meses de vida. Esta
alienação nos privava de qualquer outra presença que não fosse a de nós mesmos, num mundo
de fantasias e ilusões. Para a linguagem acontecer, esta precisa ser ouvida, comunicada e
depois transmitida. Mas o ato de ouvir, não se limita à captação de sons.
Nos primórdios da infância a linguagem era transmitida pelo afeto, pelo sentir, por
aquilo que a imagem do rosto materno nos transmitia. Nossa linguagem é formada antes de
tudo por esses afetos e imagens que vão tecendo a construção de nossos significantes
inconscientes, e dando a estes significações. Esse processo é semelhante para todos os sujeitos
sejam eles surdos ou ouvintes.
Segundo a teoria Lacaniana no sujeito,

“[...] seus desejos são moldados naquele mesmo processo, já que as palavras
que são obrigadas a usar não são suas e não correspondem necessariamente às
suas demandas específicas: seus desejos são moldados na forma da língua ou
línguas que aprendem[...]” (FINK/2008, p 22).

Entendemos assim que está longe do discurso do Eu nos possibilitar um pleno


conhecimento de nós mesmos, já que somos penetrados por Outra presença, a da linguagem.
Lacan afirmou por diversas vezes que “[...] o inconsciente é estruturado como uma
linguagem[...]”(FINK/2008, p 25). Não há desejo sem linguagem. É nesse inconsciente
estruturado pela linguagem que o desejo se faz parecer tão estranho e inassimilável. O
estranho que também é familiar como nos afirma Freud na sua obra “o estranho”. Este
estranho tem a ver ao que nos é familiar que fora introjetado pelo discurso do Outro por suas
fantasias e sonhos. Afirma Fink
“[..]o Outro é essa linguagem estranha que devemos aprender a falar e que é
eufemisticamente referida como nossa ‘língua materna’, mas que seria
melhor ser chamada nossa ‘língua do Outro materna’: são o discurso e os
desejos dos outro a nossa volta, na medida em que estes são
internalizados[,..]” (FINK/2008, p 28).

Para Quinet (2003) não somente habitamos a linguagem, mas a mesma também nos
habita. Envolvidos pela linguagem e fazendo parte dela, experimentamos a relação com o
Outro. “[...] A fala implica o sujeito dirigir-se ao Outro, implica o reconhecimento do Outro e
a articulação, em palavras, da demanda e do desejo em relação ao Outro”. (QUINET/ 2003, p
10

43). Fazendo uso desta fala o sujeito não somente constituirá o seu Eu, mas possibilitará a
existência de um mundo simbólico.
Pela linguagem encontramos o Outro, aquele diferente de nós que nos constitui
enquanto ser neste mundo de relações. Nossa fala está “tecida” pelo mundo a nossa volta. E
será esta comunicação o caminho percorrido para construção subjetiva. Somos habitados pela
linguagem e a comunicamos. A fala, expressão desta linguagem, não se limita à voz, mas ao
corpo como um todo. Compreender que o surdo fala é antes de tudo um exercício à
compreensão de que a linguagem vai além da sonoridade produzida pela voz. É pensar que a
linguagem é antes de tudo um meio de comunicação entre aquele que deseja falar e aquele
que escuta o comunicado.
A língua de sinais é a possibilidade deste surdo ser inserido na linguagem; já que
esta preenche todos os pré-requisitos de uma língua oficial e legítima, capaz de viabilizar a
comunicação e sociabilizar os surdos no contexto em que estes são minorias. Pereira (2007)
nos traz a discussão quanto o uso da língua de sinais como algo legitimo ao surdo, ou seja,
uma linguagem própria como meio de acesso aos seus conteúdos subjetivos. Somente na
década de 60 surge à primeira pesquisa sobre estudos lingüísticos na língua de sinais, o que
contribuiu para a luta do reconhecimento da língua de sinais como uma língua. Recentes
pesquisas defendem a “existência de uma gramática própria com regras específicas em todos
os níveis lingüísticos” (PEREIRA/ 2007 p 12). Apresentando alguns aspectos formais na
língua de sinais como, por exemplo: a localização dos sinais, configuração das mãos e
movimento. Essas pesquisas ao longo do tempo foram comprovando sua estrutura lingüística
em termos fonológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos primeiro em ASL (American
Sign Language ) , e depois nas demais línguas de sinais. Afirma Pereira (2007) “[...]os
fundamentos da linguagem não estão baseados na forma do sinal, mas, sim, na função
lingüística que a serve[...]” (PEREIRA/2007, p 14).
Com pouco mais de vinte anos no Brasil, a LIBRAS 1 tem o reconhecimento
enquanto Língua aliada aos avanços das pesquisas acadêmicas sobre a surdez. O recente
interesse da Psicanálise pela área da surdez tem possibilitado um campo vasto de pesquisa e
produção acerca do atendimento psicanalítico a surdos. A Língua de Sinais no contexto
brasileiro teve seu ponto de partida a partir da década de 90. Mas só nos últimos dez anos a
psicanálise tem contribuído para uma discussão no que diz respeito ás particularidades da
constituição do sujeito surdo em seu ponto de vista. São “[...]cada vez mais visíveis às

1
LIBRAS: Língua Brasileira de Sinais.
11

iniciativas que se voltam para a surdez a partir de um novo olhar, não da perspectiva do
patológico, mas de sujeitos com uma organização cultural específica” (PEREIRA/2007, p 1).
A grande problemática deste trabalho seria pensar em como funcionaria a
psicanálise para o sujeito surdo, já que está abordagem se opera pela fala. Poderá acontecer
atendimento psicanalítico a um sujeito surdo através da língua de sinais? Como os surdos são
uma comunidade específica detentora de uma linguagem própria. Estes teriam que ser
analisados com a utilização desta mesma linguagem: a língua de sinais? Se o sujeito surdo
metaforiza através da língua de sinais, então há possibilidade de ter acesso ao seu inconsciente
e de haver um processo psicanalítico?
No intuito de contribuir com as indagações levantadas, o presente trabalho
transcorrerá nas premissas da visão psicanalítica sobre o sujeito. Sendo que, apresentaremos a
partir do primeiro capítulo as principais facetas e compreensões do sujeito à luz da Psicanálise.
Pois este sujeito, antes visto de forma unicamente médica, agora é visto na sua subjetividade
pela descoberta do seu inconsciente.
No segundo momento, traremos a práxis de psicanalistas no atendimento a surdos.
Segundo Françoise Dolto na obra de POIZAT (1996) citada por Sole (2005) a língua de sinais
é o único acesso da criança surda à simbolização, o que mais tarde irá prepará-la para a
linguagem falada e escrita. O acesso à língua de sinais de forma tardia nas crianças surdas
prejudicará seu desenvolvimento. A visão será a responsável por lhe trazer informações e
orientações sobre o que acontece ao redor. Shorn(1997)citado pr Sole (2005) nos afirma que
“[...] o surdo escuta com os olhos[...]” (p 53). Compreendemos assim, que o ato de ouvir não
está intrinsecamente ligado à audição, mas sim ouvir está na ordem do desejo e na
intencionalidade de quem ouve. Segundo Thoua (1999) citado por Sole(2005/ p 56):

“[...] O prazer ligado a um signo referido ao desejo do Outro, que a voz vem
oferecer, responsável pela legenda do fantasma, vem de uma zona diferente do
ouvido. O ouvir essencial para o desenvolvimento da linguagem está na ordem
do olhar e do sentir em questão, do desejo de transmitir o comunicado[...]”.

O terceiro capítulo apresenta o olhar como essa escuta para o sujeito surdo.
Trazendo a pulsão escópica como a pulsão a definir a esquive entre o olho e o olhar. Este
mesmo Olhar, marcado pelo desejo, pode possibilitar o surdo através desta pulsão encontrar
seu desejo neste lugar do não-dito.
Por fim, na certeza de que não sanaremos todas as indagações e problemáticas
relacionadas ao sujeito surdo e seu inconsciente, deixaremos nas considerações finais,
12

contribuições que poderão servir de subsídio para práxis de profissionais interessados a ouvir
os que podem falar pelas mãos.
13

Capítulo 1- O Sujeito Psicanalítico


14

O sujeito psicanalítico é o sujeito da fala. Fala essa que lhe remete a descoberta do
inconsciente. O grande achado da psicanálise está neste inconsciente que “[...] É constituído
por conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente –
consciente pela ação do recalque. Seus conteúdos são representantes da pulsão[...]”
(LAPLANCHE/2001, p 235).
Ao iniciar seus estudos na psicanálise, Freud questiona a forma de tratamento
utilizado pelos psiquiatras da sua época, voltados para a histeria. Envolvido pela ciência
psiquiátrica da época, Charcot 2 apresenta a hipnose como um método que permitia tratar
diversas perturbações psíquicas, em especial a histeria. As pessoas hipnotizadas costumavam
relatar alterações de consciência, anestesia e analgesia, obedecendo e realizando os mais
variados e extremos atos consequentes deste pretenso estado. Por exemplo, pacientes que não
conseguiam andar com paralisia nas pernas, hipnotizadas, levantavam e andavam sem a
menor dificuldade. Demonstrando assim, ser algo da ordem da psique e não uma disfunção
em seus corpos. Mas ao retornar do transe hipnótico, as mesmas voltavam ao estado anterior,
sem lembrar do que lhes havia ocorrido. Sigmund Freud, em colaboração com Breuer 3 ,
começou a pesquisar os mecanismos psíquicos da histeria e postulou a teoria que essa neurose
era causada por lembranças reprimidas, de grande intensidade emocional. Havendo a
necessidade destas pacientes lembrarem do momento que surgiu seus sintomas, revivê-los a
fim de possibilitar a elaboração dos mesmos.
O método catártico se diferenciou de todos os outros procedimentos utilizados na
época, pela eficácia terapêutica sem o uso da sugestão hipnótica. Este novo método propiciava
pela intervenção feita baseada em certas premissas sobre o mecanismo psíquico, o
desaparecimento dos sintomas da histeria. Por esta intervenção os processos inconscientes que
desembocavam a formação do sintoma, mudavam de curso. O método catártico já havia
renunciado à sugestão, e Freud deu o passo seguinte, abandonando também a hipnose. Quinet
afirmou que

2
Jean-Martin Charcot (Paris, 1825 — Morvan, 1893) foi um médico e cientista francês; alcançou fama no
terreno da psiquiatria na segunda metade do século XIX. Foi um dos maiores clínicos e professores de Medicina
da França.
3
Josef Breuer (Viena, 15 de janeiro de 1842 — Viena, 20 de dezembro de 1925) foi um médico e fisiologista
austríaco, atribui com a psicanálise.
15

“[...] Freud recusou o palco em que se oferecia a histérica para poder descobrir
seu ‘teatro privado’, como dizia Anna O., e descrever o modo de
funcionamento do inconsciente que ele mesmo denominou de Outra Cena-
cena que está para além da visibilidade e do espetáculo do corpo[...]”
(QUINET/ 2004, p 195)

Apresentando um novo modo de acesso ao inconsciente das pacientes histéricas: a


fala. Mas não qualquer fala, a fala pela associação livre, trazida pela teoria psicanalítica, faz
uso da linguagem como a via de acesso para este inconsciente. Segundo Bollas (2005, p 13),
“é por meio da associação livre que o sujeito diz o que vem à mente, numa fala aleatória
passando de um tópico para o outro numa sequência espontânea”. Para a psicanálise, a
associação livre

“[...] propicia uma relação que permite ao analisante dar atenção ao que a sua
vida inconsciente diz e à insistência de Freud em que o material mais valioso
se encontra no que é aparentemente irrelevante- uma espécie de busca trivial,
resultante das suposições modernas de que, para compreender um objeto,
deve-se examiná-lo no seu sentido normal, e não prejulgá-lo com suposições
hierarquizadas[...]” (BOLLAS/ 2005, p 13).

Esta fala livre e espontânea permitiria o acesso aos conteúdos recalcados do


inconsciente, possibilitando a elaboração dos traumas e conflitos. Os conteúdos dessa fala
seriam analisados pelo analista, este sujeito do suposto saber, que os devolveria ao paciente
em forma de intervenção. E nesta escuta clínica o sujeito não somente relembraria de seus
traumas, como teria acesso aos seus significantes trazidos por ela.
Fink, afirma que “[...]o discurso nunca possui uma só dimensão[...]”(FINK/ 2007, p
19). Existem dois tipos de fala, a fala do eu daquilo que achamos que somos, e a fala do outro
de algum outro que fala. Referindo aos dois lugares psicológicos, que temos internalizado em
nós, o lugar do eu e do Outro. Freud chamou aquele outro lugar de inconsciente nos seus
achados psicanalíticos, Lacan afirmou categoricamente em sua obra que “[...] o inconsciente é
o discurso do Outro[...]” (FINK/ 2007, p 20). Lacan replicaria em “[...] o Outro como
linguagem[...]”(FINK/ 2007, p 21). Sendo o Outro essa linguagem e nessa linguagem
constituí nosso inconsciente, concluímos que também somos formados pelo Outro.
E essa necessidade dá lugar ao Outro como linguagem que o transformará em desejo,
como nos afirma Fink

“[...] seus desejos são moldados naquele mesmo processo, já que as palavras que são
obrigadas a usar não são suas e não correspondem necessariamente às suas demandas
específicas: seus desejos são moldados na forma da língua ou línguas que aprende[...]”
(2008/ p 22).
16

É ao utilizar esta linguagem com tudo que a compõe que o processo analítico
acontecerá com todas as suas armações de significantes e metáforas. A fim de ter acesso
aquilo que fora recalcado no inconsciente, que resiste em retornar do recalque mesmo sendo
este o desejo do inconsciente: o desejo de se revelar. O processo analítico utilizar-se-á de
instrumentos de acesso a esse inconsciente pela fala. Entre eles, o relato dos sonhos cujo
paciente narra seu enlace onírico. Segundo Costa,

“[...] A realidade psíquica corresponde à proposta do sonho como realização do desejo


inconsciente. Freud representou-a como uma espécie de ‘outra cena’, que não
corresponde às balizas que nos orientam no cotidiano, mas que tece com elas uma rede
de associações. Ela é responsável tanto pela fantasia quanto pela formação dos
sonhos[...]” (COSTA/ 2006, p 13).

A linguagem nos sonhos se encontra como uma escrita criptográfica (hieróglifos e


ideogramas chineses, escritas que guardam sua relação com imagens). Esta escrita em forma
de sonho é composta por esta realidade psíquica, cujos desejos inconscientes se encontram,
produzidos pela falta estruturante do sujeito. Esta falta possibilitará, o mesmo a desejar o
inalcançável e impossível, e este será lugar das fantasias e dos sonhos. Freud trouxe em seus
estudos a compreensão que esta escrita em forma de enigmas nos sonhos, seriam como um
texto portador de uma mensagem não-explicitada. “[...] Cuja singularidade dessas escritas é a
de preservarem um certo signo da imagem que vieram a substituir[...]”( COSTA/ 2006, p 24).
Compreendemos assim, que o sonho precisa ser lido. Cuja produção estará submetida a duas
leis: a condensação e o deslocamento. Na condensação, um único elemento no sonho é
resultado de uma ampla e extensa rede de associações. As informações condensadas trazem
um emaranhado de significantes em seu contexto, sendo preciso ser decifrado. O outro
elemento, o deslocamento, o que adquire relevância com o produto final são expressões que
não têm relação direta com o conteúdo latente, cujas series de associações levam a uma certa
contigüidade desses conteúdos que aparentemente não possuem relação em comum. Mas esta
relação estará nas cadeias desses significantes que a servem, sendo um o desdobramento do
outro.
Os atos falhos que segundo Freud se traduzem como “[...] um ato bem-sucedido: o
desejo inconsciente realiza-se nele, muitas vezes, de uma forma bastante clara[...]”
(LAPLANCHE/ 2001, p 44). Ou seja, o desejo inconsciente escapa do sujeito, antecipando-
lhe o comunicado, sem que o sujeito possa abordar o dito. Isso acontece de maneira clara e
bem-sucedida, em que o sujeito se dá conta do seu desejo que lhe antecipou. Trazendo a sua
consciência aquilo que estava no seu recalque, como que no deslize de sua fala, o recalcado
17

“foge de sua prisão”. E se revela sem o menor pudor ou resistência, provando o seu desejo. O
ato falho se encontra nesta fala livre catártica que Freud trouxe a práxis psicanalítica, cujo
sujeito utilizando-se da associação livre permite que seu inconsciente fale.
A primeira meta da análise, segundo Freud, é a transferência entre o analista e o
paciente para o estabelecimento do diagnóstico, no caso de uma possível neurose ou psicose.
Lacan afirma categoricamente que “[...] não há entrada em análise sem as entrevistas
preliminares[...]”(QUINET/2007, p. 14). As entrevistas preliminares seriam um trabalho
prévio antes do sujeito entrar na análise propriamente dita, ou seja, no discurso analítico. A
queixa trazida pelo analisado que corresponde aquilo que está na superfície do seu conflito
que não responde a pergunta alguma. É apresentada através da associação livre ao analista que
usará das entrevistas preliminares para sair da queixa e entrar na demanda do sujeito em
questão. Isso seria a possibilidade do sujeito questionar-se a fim de responder ao que ele
demanda, o que seus sintomas estão demandando a respeito dos seus conflitos inconscientes.
E isso se caracterizaria na entrada do sujeito ao discurso analítico.
O segundo ponto seria a função diagnóstica do trabalho analítico “[...] o diagnóstico
só tem sentido se servir de orientação para a condução da análise[...]”(QUINET/ 2007, p 18).
A partir do simbólico que se pode fazer um diagnóstico diferencial estrutural por meio do
complexo de Édipo, ou seja, da negação do Outro na castração. A maneira como o sujeito
vivenciará esta negação causada ou não pela castração, corresponderá aos três tipos de
estruturas clínicas. A neurose marcada pelo recalque que é o retorno daquilo que no simbólico
foi negado retornando no simbólico sob forma de sintoma. O sintoma neurótico funcionará
como o registro simbólico ao que foi recalcado, possibilitando assim o acesso à organização
simbólica do sujeito no seu inconsciente. Na perversão a castração é desmentida e o que foi
negado retorna sob forma de fetiche para o perverso. Nesse caso a determinação simbólica
pode ser apreendida através de sua estrutura de linguagem. O fetiche seria a cristalização do
retorno desse tipo de negação. Na psicose acontece a foraclusão, o sujeito não deixa traço ou
vestígio para o que foi negado, o negado no simbólico retorna ao real como alucinação. “[...]
A foraclusão do Nome-do-Pai (NP) exclui o sujeito da norma fálica, riscando qualquer
esperança do analista de fazê-lo bascular para o lado da neurose[...]”(QUINET/2007, p 22).
No caso das neuroses, convocado a ocupar o lugar do Outro, o analista pela transferência
receberá por parte do analisado as demandas do que possibilitará perceber a relação desse
sujeito com o Outro. No caso do obsessivo, o Outro goza. “[...] É um Outro a quem nada falta
e que não deve, portanto, desejar, o obsessivo anula o desejo do Outro[...]”(QUINET/2007, p
23). O obsessivo não somente tenta anular este desejo como também tenta preenchê-lo com
18

significantes para barrar o gozo. É atormentado pelas idéias, não consegue parar de contar,
calcular ou duvidar. Já para a histérica o Outro é o Outro do desejo, ela confere ao Outro o
lugar dominante. Para a histérica o Outro possui o falo e está sempre lhe devendo alguma
coisa, ela “[...] estimula o desejo do Outro e dele se furta como objeto, é o que confere a
marca de insatisfação a seu desejo[...]”(QUINET/2007, p 24).
O terceiro ponto para o processo analítico é a função transferencial, em que o
analista é o suposto saber. A transferência neste caso “[...] não é, portanto, uma função do
analista, mas do analisante. A função do analista é saber utilizá-la [...]”(QUINET/2007, p 26).
É conferido ao analista o suposto saber sobre o sintoma em questão apresentado pelo
analisado em que acredita que o analista sabe antecipadamente sobre seu sintoma. Mas o
analista precisará dessa “doce ilusão” sobre o seu saber para ocupar o lugar do Outro, daquele
que têm o saber que o analisado deseja, o que possibilitará a transferência. O desejo terá que
ser incluso nesta transferência e surgir como o desejo do Outro, levando assim ao sintoma à
implicação entre o desejo e o saber. “[...]O estabelecimento da transferência no registro do
saber através de sua suposição é correlato à delegação àquele que é seu alvo de um bem
precioso que causa o desejo, causando, portanto, a própria transferência”(QUINET/2007, p
31).
A demanda em analise depende da oferta do analista. O processo analítico responde
aquilo que o analista oferta na análise e sobre esta oferta o analisado depositará sua demanda
sintomática. Para Lacan “[...] só há uma demanda verdadeira para se dar início a uma análise,
a de se desvencilhar de um sintoma [...]”(QUINET/ 2007, p. 16). A demanda de análise
acontecerá na elaboração do sintoma, transformando-o em sintoma analítico, ou seja, sendo
questionado e não em estado bruto como chega à clínica. Uma vez a queixa se transformando
em demanda endereçada ao analista através da transferência, o sintoma deixará de ser uma
resposta e passará a ser uma questão a ser decifrada respondendo ao que este sintoma está
delimitando. O analista que ocupa o lugar do Outro abrirá a questão “o que queres?”,
introduzindo o desejo nessa dimensão sintomal. E estando neste lugar do suposto saber
através da transferência, o sintoma será endereçado ao analista, o que corresponderá ao
sintoma propriamente analítico. Nesta escuta clínica ao sujeito, utilizando-se da associação
livre, o analista numa “atenção flutuante” captará os significantes. Segundo Bollas

“[...] O analista, ao entrar no estado de atenção enlevada e imparcial, coloca-se


sob influência da ordem inconsciente. Guiado pela lógica do encadeamento de
idéias do paciente, a analista descobre retrospectivamente, em certo momento,
o significado (ao menos parcial) do que o paciente disse até
então[...]”(BOLLAS/2005, p. 19).
19

Quinet (2003) afirma que o inconsciente se atualiza na transferência, é pela que


transferência o lugar do Grande Outro é ocupado pelo analista. O outro da fala remeterá ao
lugar da falta, sendo esse grande Outro o lugar do “tesouro dos significantes” dos elementos
da linguagem. É preciso que haja a transferência para que os significantes sejam revelados
pelo inconsciente vencendo as resistências daquilo que fora anteriormente recalcado. Quando
o analista, ocupa o lugar do Grande Outro, significa o tesouro dos significantes acessado pelos
elementos da fala. O sujeito, utilizando-se desta fala livre permitirá que seus significantes
sejam direcionados ao analista, processo este que levará o sujeito a se haver com suas
questões. As metáforas que se encontram nesses significantes lhe dará significados diversos e
distintos, possibilitando assim o sujeito a percorrer por diversos caminhos num mesmo
significante. O processo analítico trabalhará com esses significantes, no esmiuçar dessa cadeia
que estarão intercalados entre si sendo que um é o desdobramento do outro. E assim,
sucessivamente um significante remeterá a outra cadeia, sendo está associação algo
interminável e insaciável.
Conforme Quinet (2003) serão os significantes representativos da pulsão que irão
fazer o inconsciente ser estruturado como uma linguagem. Algumas das características dos
significantes estarão na amarração e na repetição do próprio inconsciente, cujo significante
puxará um outro, e sua significação que é fluida estará neste próximo significante da cadeia e
na sua localização. Assim compreendemos que um significante de uma cadeia também faz
parte de outra cadeia, havendo uma simultaneidade e uma repetição que compõe o
funcionamento do inconsciente.
Como vimos, o sujeito psicanalítico é o sujeito da fala. Fala esta que trará nas suas
associações os significantes, e conseqüentemente seus conteúdos inconscientes recalcados. A
fala, para psicanálise é o meio que poderá possibilitar que este processo analítico aconteça. A
grande problemática presente neste trabalho perpassa pela questão quanto à surdez nesta
práxis clinica. Pelo fato dos pacientes surdos não poderem comunicar-se pela linguagem oral.
Então, como ter acesso ao inconsciente desses sujeitos que não podem se comunicar
oralmente? Como poderá acontecer à associação livre, o relato dos sonhos, os atos falhos, o
acesso aos conteúdos recalcados desses sujeitos? Abrimos então uma outra questão quanto à
forma de linguagem dos surdos: como sua comunicação acontece e como seu inconsciente é
manifesto por esta outra forma de linguagem?
20

Capítulo 2 - A Surdez e a Psicanálise


21

A Língua de Sinais no contexto brasileiro teve seu ponto de partida a partir da


década de 90. Mas só nos últimos dez anos a psicanálise tem contribuído para uma discussão
no que diz respeito ás particularidades da constituição do sujeito surdo em seu ponto de vista.
Sendo “[...]cada vez mais visíveis às iniciativas de se voltar para a surdez a partir de um novo
olhar, não da perspectiva do patológico, mas de sujeitos com uma organização cultural
específica[...]”(PEREIRA/2007, p 1). Importante pensar em como seria a análise para o
sujeito surdo, já que está abordagem se opera pela fala? Como os surdos são uma
comunidade específica detentora de uma linguagem própria, a língua de sinais, estes teriam
que ser analisados com a utilização desta mesma linguagem? Caberia ao analista adentrar
neste mundo do surdo, na sua linguagem de expressão para assim poder verificar a existência
das metáforas conceituais presentes na subjetividade da LIBRAS. Mais de 90% dos surdos
são filhos de pais ouvintes o que acarreta de modo tardio o seu acesso à língua de sinais.
Para “[...]desmistificar preconceitos acerca da subjetividade das pessoas surdas e
utilizar e aprofundar a mais valiosa e inquestionável conquista da comunidade Surda
Brasileira: o direito a se expressar com a sua própria língua.” (PEREIRA/ 2007, p 4). É que
esta luta foi tão árdua e esperada pela comunidade surda, não resumindo ao fato do surdo ter
uma língua simplesmente. Mas do surdo ter uma identidade como cidadão do mundo, capaz
de ser comunicada com toda a sua subjetividade.
Essa conquista do surdo pela sua língua própria possibilitou a conquista do seu
direito de ser respeitado na sua diferença no contexto social e cultural, como uma comunidade
específica, detentora de direitos e deveres como toda outra. A contextualização histórica da
luta do surdo pelo direito à própria língua cita a revolta dos estudantes em Gallaudet a única
universidade de artes liberais para surdos no mundo, localizada nos Estados Unidos- Centro
da Comunidade Surda Mundial. A greve em Gallaudet em seus 124 anos de existência nunca
tinha tido um diretor surdo em sua administração, após a revolta foi nomeado o King Jordan
como seu mais novo diretor surdo. Este marco histórico representa a luta dos surdos pelo
direito de serem surdos respeitados na sua diferença e na sua língua.
Fazendo um recorte na história da surdez, na questão do ouvintismo, o sujeito surdo
via educação fora estimulado a oralização tendo que aprender a falar, repetir e ler os lábios
dos ouvintes para poder se comunicar. Sem que estes surdos conforme Sole, tenham sido
entendidos em seus direitos de surdos e questionados quanto ao seu desejo. Criticando
também os testes psicométricos pois foram construídos para ouvintes e foram utilizados ao
22

longo da história da surdez para analisar surdos e seu funcionamento psicológico. O que
contribui para a “psicopatologização da surdez” vendo o surdo numa esfera patológica, como
se a surdez já trouxesse em si diagnósticos prontos e rotulados. Critica Sole, “[...] fazem
diagnósticos errados e rotulam adultos e crianças surdos de emocionalmente perturbados sem
provas evidentes” (SOLÉ/2005, p 33). O ouvintismo é contra a luta do surdo por sua língua
específica, “trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo
está obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte...” (PEREIRA/2007, p 8). Através
do treinamento labial e articulação o surdo é convidado a eliminar as diferenças e corrigir sua
suposta anormalidade enquanto sujeito surdo e não ouvinte. Tais medidas implantadas durante
muito tempo sufocaram o uso da língua de sinais, mas não conseguiram fazer com que a
mesma entrasse em desuso. A língua de sinais durante o tempo que não foi aceita de maneira
oficial e respeitada como a linguagem do surdo, foi utilizada de modo informal e as
escondidas pelos surdos e pelos poucos ouvintes que compreendiam de sua importância. A
utilização deste método oralista trouxe grandes prejuízos em termos cognitivos, psicológicos e
lingüísticos para o surdo, apresentando grande estatística de fracasso escolar e perda de
autonomia desses sujeitos ao longo da historia.
Somente na década de 60 surge à primeira pesquisa sobre estudos lingüísticos na
língua de sinais, o que contribuiu para a luta do reconhecimento da língua de sinais como uma
língua. Pesquisas defenderam a “existência de uma gramática própria com regras específicas
em todos os níveis lingüísticos” (PEREIRA/2007, p 12). Apresentando alguns aspectos
formais na língua de sinais como, por exemplo, a localização dos sinais, configuração das
mãos e movimento. Essas pesquisas ao longo do tempo foram comprovando sua estrutura
lingüística em termos fonológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos, primeiro em ASL*, e
depois nas demais línguas de sinais.
A linguagem em sinais está inserida culturalmente sendo representada e confirmada
em suas características: não universais e dependem da cultura em que estão inseridas para
serem compreendidas. Alguns estudos demonstraram que os sujeitos surdos e ouvintes
apresentam os mesmos dispositivos e processos de aquisição em suas formas de linguagem
seja ela, a língua de sinais ou a língua oral. Chegou-se a conclusão de que “[...]os
fundamentos da linguagem não estão baseados na forma do sinal, mas, sim, na função
lingüística que a serve.” (PEREIRA/2007, p 14). Apesar da predominância visual na língua de
sinais a mesma utiliza-se dos mesmos dispositivos neuropsicológicos tendo sua
predominância o uso do hemisfério esquerdo do cérebro como acontece para as demais
modalidades lingüísticas para ouvintes. Ou seja, primeiro a informação visual é capturada
23

pelo surdo, utilizando o hemisfério direito do cérebro para ser analisada. Depois neste
processo é ativado o hemisfério esquerdo do cérebro, responsável pela linguagem, quando o
surdo utiliza a língua de sinais. Sendo comprovado nos estudos do neurologista Sacks (1998)
que a língua de sinais é vivamente para o surdo sua linguagem.
Em 1987 a FENEIS4 começou a divulgar de maneira sistemática a Libras no Brasil,
o primeiro curso oficial de Libras oferecido no Brasil acontece em 1989. Com pouco mais de
vinte anos no Brasil, a Libras caminhou para o reconhecimento enquanto Língua aliada aos
avanços das pesquisas acadêmicas. A partir da década de 90, cresceu muito o interesse sobre a
temática, o que contribuiu para significativas pesquisas sobre a surdez. O que resultou numa
organização mais efetiva do movimento surdo no Brasil. Tornou-se reconhecida oficialmente
como língua pelo decreto da LEI Nº 10.436 de 24 de Abril de 2002, Art. 1º descreve que
“[...]é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais
- Libras e outros recursos de expressão a ela associados[...]”.
Para pensar sobre a identidade do sujeito surdo é necessário entender como acontece
a construção a partir desta diferença, cuja linguagem falará desta diferença e será esse o
elemento unificador desta comunidade específica. “[...]O sujeito surdo não têm a surdez como
único elemento definidor de identidade e subjetividade. Mais do que surdo, o sujeito pertence
a uma religião, classe social, sexo, profissão e, por mais inserido que esteja na comunidade
surda, possui maneiras singulares de experenciar a surdez[...]” (PEREIRA/2007, p 23). Sendo
a construção da identidade surda vivenciada como toda e qualquer construção de identidade,
uma construção móvel, constante e inserida em um meio cujos multifatores irão influenciá-la.
A linguagem do sujeito contribuirá para a construção desta identidade seja esta em que língua
for. Como para psicanálise não existe sujeito completo, sem déficit ou falta, este surdo é visto
antes de tudo como sujeito. Será esta falta que lhe fará desejar e isso é inerente a qualquer
sujeito neurótico, seja ele surdo ou não. Para driblar as repressões e as resistências que
protegem o conteúdo inconsciente é utilizada pela teoria psicanalítica a associação livre de
palavras. Já que o desejo do inconsciente é ser revelado. É preciso voltar-se para o sujeito a
fim de escutá-lo, encontrando seus significantes inconscientes e sua estrutura neurótica. Este
processo acontece pela fala. Fala esta que é mais do que a verbalização de palavras é a
comunicação da linguagem deste sujeito, do seu desejo que muitas vezes está no seu não dito.
Segundo Pereira, a psicanálise e a semântica cognitiva são as vias de melhor acesso
para o estudo da Libras e de seus conteúdos metafóricos possibilitando assim conhecer a

4
FENEIS: Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos.
24

subjetividade do sujeito surdo. Para o autor THÁ (2003, 2004) a “[...]conceitualização é uma
atividade do pensamento e é essencialmente semântica, ocorrendo via palavras ou imagens,
sendo o sentido independente da forma pelo qual seu conteúdo semântico é expresso”
(PEREIRA/2007, p 39). A grande questão apresentada pelo autor quando ele se refere ao
processo de conceituação pela via das palavras ou das imagens, serve de defesa para acreditar
na possibilidade do surdo conceituar e metaforizar o mundo a sua volta de acordo com o seu
mundo. Já que o sujeito surdo apreende o mundo antes pela visão (imagens) e depois sim pela
linguagem (palavra), e que acontece o inverso com os ouvintes. A “[...]metáfora não é
somente um fenômeno lingüístico, mas também parte fundamental de nosso sistema
conceitual[...]”(PEREIRA/2007, p 53), demonstrando assim que ela não é uso exclusivo da
linguagem mas participa de toda interação do processo do pensamento. O “[...]sistema
metafórico pretende dar conta de explicar como as pessoas conceituam a sua vida interior,
independente de como, de fato, se dê a constituição subjetiva dos sujeitos” (PEREIRA/2007,
p 57).
A língua de sinais e as metáforas existentes nesta forma de linguagem sofrem
influência da cultura em que estão inseridos. A visão do surdo lhe fala sobre este mundo e
desta forma ele o apreende, antes mesmo da linguagem sobre este. “A metaforização da visão
representa o que há de mais autêntico em termos da experiência perceptiva dos surdos[...]”
(PEREIRA/2007, p 67). Para o sujeito surdo o silêncio não existe já que o mesmo vive
constantemente na ausência do som, é preciso entender e investigar o surdo do lugar dele
enquanto surdo, e não enquanto ouvinte. A necessidade de estudar a metáfora da subjetividade
em Libras é perceber o processo de conceitualização do sujeito surdo diante de sua língua e de
sua subjetividade. Importante salientar aqui que alguns surdos carregam em si e na sua
construção conceitual valores ouvintes a cerca da surdez, supervalorizando a surdez acima da
sua singularidade enquanto sujeitos.
Sole (2005) defende o uso da língua de sinais como língua legitima dos surdos,
afirmando que “[...] recorrendo a lingüistas que se dedicam a estudar a língua de sinais, deixo
claro que a língua de sinais é uma língua naquilo que o conceito lingüístico é capaz de definir
como língua” (SOLÉ/2005, p. 18). Afirma categoricamente que sendo uma língua, esta
poderá ser passível de uma escuta psicanalítica. E para este atendimento não será necessária
uma especialização na área, mas uma habilitação do analista à língua de sinais. E através desta
língua seja ela oral ou em sinais que o atendimento psicanalítico acontecerá da mesma forma
tanto para ouvintes ou para surdos.
25

Para clínica psicanalítica a grande questão não seria a surdez em si, mas “[...]as
particularidades da constituição subjetiva dos sujeitos surdos[...]” (SOLÉ/ 2005, p 20). Cuja
problemática desta constituição do Eu, aponta como barreira para a construção a falta de
inserção em tempo hábil a língua de sinais. A falta de inserção desde o nascimento do sujeito
surdo numa língua e a representação que principalmente a mãe tem da surdez, como depois a
representação do pai e do social poderão se tornar empecilhos ao acesso ao simbólico e a
decorrência aos traços depressivos. Solé defende o uso da língua de sinais como língua
legitima dos surdos, afirmando que “[...] recorrendo a lingüistas que se dedicam a estudar a
língua de sinais, deixo claro que a língua de sinais é uma língua naquilo que o conceito
lingüístico é capaz de definir como língua.”(SOLE/2005, p 18). Sendo uma língua, esta
poderá ser passível de uma escuta psicanalítica. E para este atendimento não será necessária
uma especialização na área, mas uma habilitação do analista à língua de sinais.
A psicanálise intensificou seus estudos na área da surdez nesses últimos dez anos,
mas alguns importantes autores já haviam escrito sobre a surdez anteriormente em suas obras.
Entre eles, Freud que em dois momentos de sua obra cita os surdos: a primeira em
“contribuição aos estudos das afasias” (1999) dizendo que no caso dos surdos não se trata de
uma afasia e mais tarde no artigo “O Ego e o Isso” (1973c) fala sobre os componentes visuais
que representação verbal desempenham papel de sinais auxiliares. Lacan em seu seminário
sobre a angustia (1997b) tratando sobre a separação entre linguagem, voz e sonoridade, tudo
que o sujeito recebe por via vocal sinaliza que existem outras vias para receber a linguagem
que não a vocalização. Sole nos traz os estudos de Poizat (1996) a respeito de Françoise Dolto
citando uma carta escrita em 1981 pela teórica, defendendo “[...] a utilização da língua de
sinais por sujeitos surdos, colocando que a língua de sinais é o único acesso da criança surda à
simbolização e é indispensável como preparação para a linguagem falada e
escrita[...]”(SOLÉ/2005, p 36). Dolto afirma com seus estudos que a língua de sinais é para
todas as crianças a mais antiga e conhecida forma de língua. Abro aqui um parêntese ao
recorte clínico trazido por Sacks na sua obra “Vendo vozes”, ressaltando a importância da
inserção a língua de sinais para o sujeito surdo:

“[...] Dois anos atrás, na Braefield School for the Deaf, conheci Joseph, um
menino de onze anos que acabara de ingressar na escola pela primeira vez-
uma criança de onze anos sem língua de espécie alguma. Joseph nascera surdo,
mas isso só fora percebido em seu quarto ano de vida. O fato de ele não falar,
ou não entender o que se falava na idade normal, foi atribuído a ‘retardo’,
depois a ‘autismo’, e esses diagnósticos o perseguiram. Quando sua surdez
26

finalmente se evidenciou, além de ‘surdo-mudo’ julgaram-no idiota, e nunca


houve um verdadeiro empenho em ensinar-lhe uma língua.
Joseph ansiava por comunicar-se, mas não conseguia. Não sabia falar,
escrever, nem usar a língua de sinais, e só podia servir-se de gestos e
pantomina, além de uma notável habilidade para desenhar. Eu me perguntava
sempre: o que teria acontecido com ele? O que s epassa em seu íntimo, como
foi que ele chegou a essa situação? Ele parecia vivo e animado, mas
imensamente desconcertado: seus olhos eram atrídos pelas bocas que falavam
e pelas mãos que gesticulavam- dardejavam de nossas bocas para nossas mãos,
inquisitivos, incompreensivos e, parecia-me, anelantes. Ele percebia que
alguma coisa estava ‘acontecendo’ entre nós, mas não conseguia entender o
que era- ate então, não tinha quase noção alguma da comunicação simbólica,
do que era ter um meio de troca simbólico, permutar pensamentos.
Anteriormente privado de oportunidades- pois ele nunca fora exposto à língua
de sinais- e prejudicado em sua motivação e estado de espírito (sobretudo no
que se refere ao prazer que a brincadeira e a linguagem deveriam
proporcionar), Joseph estava então apenas começando a aprender um
pouquinho da língua de sinais, começando a ter alguma comunicação com os
outros. Isso manifestamente o deleitava; ele queria ficar na escola o dia inteiro,
a noite inteira, o fim de semana inteiro, o tempo todo. Dava muito pena ver
sua aflição ao sair da escola, pois ir para casa, para ele, significava voltar ao
silêncio, retornar a um vácuo de comunicação sem esperanças, onde ele não
podia conversar, comunicar-se com os pais, vizinhos, amigos; significava ser
deixado de lado, tornar-se novamente um ninguém...]” (SACKS/1998, p 50)

Na obra “Psychanalyse et Surdité” (1993) autoria de Virole (1993) retoma a


discussão sobre a língua de sinais versus a oralização. O autor coloca que “[...] a partir do
conhecimento da língua de sinais, é possível aos psicanalistas atuais oferecerem uma escuta a
pacientes surdos[...]”(SOLÉ/2005, p 37) defendendo o uso da língua de sinais. Virole aborda
sobre a marca simbólica da surdez na construção das fantasias do imaginário dos filhos e dos
pais. Quando a mãe tem esta “função de porta-voz absoluta” e, o pai um “rival estrangeiro” de
quem desconhece o nome. Apontando em seus estudos as dificuldades encontradas na prática
clínica:

“[...] Além do impedimento do divã, aponta para a dificuldade da instalação da


transferência, em que a população surda seria ‘pré-analítica’, sem
conhecimento daquilo que poderá obter de uma análise e sem conhecimento
das regras. A transferência é estimulada pelo fato do analista, mesmo não
sendo surdo, conhecer a língua de sinais para se comunicar com seu
paciente.”(SOLÉ/2005, p 38).

No primeiro ano de vida estas crianças vivenciam importantes dificuldades


psicoafetivas o que se apresenta posteriormente como uma nítida dificuldade relacional,
aponta Virole. Enfatizando que a falta de uso do surdo para com sua língua própria: a língua
de sinais; acarretará frustrações intensas e uma significativa falta de confiança na
comunicação com os ouvintes. Poizat (1996) fundamentado nos estudos de Freud e Lacan
27

toma a voz como objeto pulsional afirmando “[...] Pela voz se faz à relação ao Outro. É pela
voz que o Outro se inscreve na falta da linguagem sobre cada um de nós, tecendo a rede
inconsciente e consciente da qual somos constituídos[...]” (SOLÉ/2005, p 48). O autor
enfatiza não somente a voz no aspecto da comunicação como também na relação com o Outro,
entendendo que a surdez traz uma sensação de ausência aos falantes:

“[...] A brusca confrontação com um Outro que de repente não podemos mais
supor escutar ou responder, ou que podemos supor ausente, é produtora de
afetos devastadores para o sujeito, pois é do Outro, lugar da linguagem, que
nós tiramos nosso estatuto de sujeito falante, de ‘fala-ser’[...]” (SOLÉ/2005, p
49).

Existe uma diferença nítida e real entre o analista ouvinte e seu analisado surdo,
mesmo que este apreenda a língua de sinais com propriedade e eficiência esta diferença
precisará ser sempre levada em consideração. Porque a língua de sinais utiliza-se de outra via
de acesso para a expressão do comunicado, tendo seus códigos de tradução e peculiaridades.
É de real importância que o analista tenha competência ao usar da língua de sinais para
estabelecer a comunicação com o surdo, mas em momento algum permitir a repetição das
relações destes surdos com suas mães. Relações marcadas muitas vezes pelo domínio dos
surdos utilizando-se da culpa de suas mães. Primeiro, por estes não fazerem parte do seu
desejo materno, tendo-lhes faltado investimento e comtemplação. E segundo pela função de
“porta-voz” exercida por estas mães, na tentativa de dá “voz” a esses filhos que colocaram no
mundo sem ouvir, sentindo-se responsáveis por isso. A grande dificuldade muitas vezes
apresentada para o analista é a impossibilidade da permissão de entrada do terceiro nesta
relação dual entre mãe e filho-surdo.
Sole (2007) nos advêm que “[...] há situações em que a fidelidade da interpretação
pode ser comprometida pelos problemas de comunicação que alguns sujeitos surdos
apresentam” (SOLÉ/2007, p 71). Muitas vezes esse individuo com um vocabulário muito
restrito e com um conhecimento insuficiente poderão dificultar a comunicação, e a
interpretação da linguagem. Alguns pacientes oralizados apresentaram dificuldades no uso
adequado de significados nas palavras usadas por eles, significados estes que foram dados por
ouvintes. Na clínica é percebida algumas dificuldades e desafios, as diferenças intrínsecas
entre ouvintes e surdos. Mas de maneira clara e contundente Sole defende o atendimento
psicanalítico a surdos. Explicitando que “[...]o fato de uma outra via que não a escuta da voz
materna seja privilegiada para a constituição subjetiva destes sujeitos não acarretou uma
28

constituição que não possa ser entendida pela teoria psicanalítica ou que seja necessário criar
uma nova metapsicologia” (SOLÉ/2007, p 73).
A experiência da surdez é mais que uma vivência pessoal é uma marca inscrita no
corpo e na psique também. Será representada por cada sujeito de maneira particular e única
devido a sua história e a história de seus pais. A maneira como estes irão significar e olhar
esta surdez remeterá a significantes que irão nortear este sujeito em sua vivência. É
justamente por causa dessa diferença inscrita em cada sujeito que o analista precisará entender
o que lhe comunicam, sendo esta uma das grandes preocupações do surdo ao comunicar algo
ao analista, se este está lhe entendendo. Elemento também utilizado pela transferência. Cujas
dificuldades não estarão somente na diferença da língua, mas na dificuldade de inserir um
terceiro na relação mãe-filho. Estes filhos surdos de pais ouvintes em alguns casos não
possuem nem mesmo história pessoal a serem relatadas. O Outro possui sua história e suas
lembranças. Sole (2007) diz que:

“Ao considerar que a relação que meus pacientes surdos estabeleceram com
seus familiares foi marcada pela diferença de língua, pela falta da escuta da
voz, pelas conseqüências dessa falta, pela alienação do pensamento, ao mesmo
tempo pela desconfiança que a diferença surdo/ouvinte produziu e pela
desvalorização de sua condição, essas serão a tendência da transferência
estabelecida em análise.” (SOLÉ/2007, p 79).

Na práxis clínica pode-se verificar que os atos falhos nos surdos aconteciam como
no caso do sujeito estrangeiro cuja língua materna seria seu idioma de origem, e sua língua
secundaria esta que foi aprendida no país em que se encontra hoje. Nestes casos, os atos
falhos se apresentaram na língua materna, pois é sempre nela que está a manifestação do
inconsciente. O ato falho no sujeito surdo acontecerá pela língua de sinais seja na narrativa de
algum sonho ou acontecimento que tenham sido posterior à oralização. Seu significado estará
ligado à língua materna aprendida na infância como forma de comunicação. Recorte de um
caso clínico, Sole(2007):

“Eva (27 anos, surda profunda) relata um sonho: vinha em um ônibus cheio de
surdos; ao passar por uma ponte o ônibus vira. Ao lado tem um homem
ouvinte trabalhando em um trator. Ela pensa que ele é sua salvação; quando o
ônibus cai, ela se agarra no trator e não cai junto com o ônibus. Ao vocalizar
trator, junto com o sinal correspondente, Eva vocaliza\traidor. Faço-lhe notar o
erro de pronúncia e lhe pergunto qual o sinal correto para traidor e o que
significa. Ela corrige e ri do ato falho. Pergunto, então, quem é traidor, ela
rapidamente responde ‘os homens’.” (SOLÉ/2007, p 82).
29

O analista que procurar entender a língua de sinais terá a possibilidade de decifrar o


Outro, mas este não poderá esquecer que para cada um terá um significante. Aquele
psicanalista que escuta ou olhar o sujeito surdo estará em contato com um sujeito não repetido.
Cuja cadeia de significantes é única e interminável como qualquer outro sujeito dispõe.
Compreendemos assim que a língua de sinais, na maioria das vezes será a única via de
inserção efetiva desse sujeito ao seu campo simbólico. Neste caso se o analista não sabe a
língua de sinais, a transferência não poderá acontecer devido à impossibilidade numa situação
terapêutica de um terceiro para interpretação.
Como nos afirma Meynard (1995, p. 149) citada por Sole (2007) quando nos diz que
“[...] os sinais não são imagens icônicas e, portanto, na clínica psicanalítica não se trata de ver
os sinais ou de olhá-los, mas assim como todos os outros campos abertos ao inconsciente, de
escutá-los” (SOLÉ/2007, p 89). Para o autor, os movimentos enunciadores produzidos pelos
materiais lingüísticos sinalizados são os mesmo produzidos pelos oralizados, eles dizem a
verdade do sujeito que enuncia algo. Esta clínica nos convida a escutar com os olhos “[...] O
traço com a mão, não uma imagem, mas um composto de traços no qual não se trata de uma
imagem dada a ver, mas de um material linguageiro a ler [...]” (SOLÉ/2007, p 90). Importante
o analista não responder a demanda do analisado surdo quando este lhe solicita que ocupe o
lugar de tradutor da língua, daquele que “fala por”. Mas afinar a escuta a cada paciente que
chega a clínica para que analista e analisado, falem a mesma língua.
Freud afirma que a linguagem é aprendida pelo ouvir, que a voz dos pais é estimulo
para a formação do ego, que existe uma diferença significante entre o que é vivido daquilo
que é ouvido. As lembranças ópticas estão mais próximas dos processos inconscientes do que
os pensamentos verbais. Lacan, faz algumas observações, quando ele diz que provêm da fala
dos adultos a inserção do sujeito a realidade. Que o orifício mais importante do corpo é o
ouvido, a voz ao separar-se do corpo dá lugar ao desejo. Segundo Aulagnier “[...] o prazer de
ouvir e suas formulações acerca do lugar da voz materna no processo primário, capaz de dar
sentido à informação sensorial do bebê (1979)[...]” (SOLÉ/2007, p 93). Considerando estas
afirmações de renomados teóricos, afirmamos que a falta desta escuta será sem duvida algo
relevante para a constituição subjetiva do sujeito surdo. A capacidade de constituir uma língua,
um sistema de signos distintos que correspondem a idéias distintas é algo inato no homem. O
ser humano precisa de uma língua, este se comunica de diferentes formas e precisa transmitir
o comunicado. O sujeito seja ouvinte ou surdo, se encontrará ao nascer com um mundo de
informações, movido pelas palavras. E será neste “espaço falante” que este sujeito
experimentará sua língua, sendo assim inserido no simbólico, como afirma Lacan. A criança
30

ouvinte que inicialmente apresenta uma gestualidade rudimentar vai aos poucos substituindo
pela fala, no caso da criança surda esta gestualidade irá se transformar na sua fala
propriamente dita. Como afirma Goldgrub “[...] aceder à linguagem não depende
exclusivamente da possibilidade de ouvir a voz materna ou poder falar; um sujeito surdo é
capaz de aceder à linguagem sem estas capacidades[...]” (SOLÉ/2007, p 97).
A voz não se resume a um estímulo sonoro, ela antes é marcada pelo que tem de
significante, ou seja, naquilo que está implicado no Outro. Entendendo a distinção entre visão
e olhar, separando-as quando o olhar encontrasse com o desejo do outro. Podemos assim
pensar que a audição também poderá separar-se da escuta por este mesmo desejo,
possibilitando assim que o sujeito surdo escute a voz materna que estiver inserida no desejo.
A criança registra seu prazer de ouvir quando a voz materna é acompanhada de sentido seja
ao embalar seu sono ou a acalmá-lo com seu canto. Esses registros que antes de serem
auditivos são afetivos irão tecer simbolicamente sua escuta desta voz materna. No caso, de
crianças surdas “[...] o ouvido passa a ser uma zona não estimulada pela voz, isto é, não
libidinizada pela voz materna, portanto não possuindo existência psíquica[...]” (SOLÉ/2007, p
98).
A escuta da voz materna na sua função mais auditiva não somente facilitará a
unificação dos outros sentidos bem como será um “invólucro” para a unificação corporal
vivenciada na primeira infância. A criança surda não utilizará a voz materna para realização
desta unificação, o que mais tarde poderá ser observado em alguns pacientes uma certa
dificuldade motora. O surdo vivenciará uma certa angustia precoce pela desintegração de sua
imagem corporal, a escuta da voz materna tem um efeito organizador desde os primeiros dias
de vida. A criança surda precisará fazer uma outra espécie de escuta. Segundo Vasse (1974)
“[...] a função psíquica da linguagem e da língua é estabelecer um corte nessa relação
dual[...]” (SOLÉ/2007, p 100. O mesmo faz uma comparação entre a abertura do umbigo e a
do ouvido, sendo o primeiro a representação do corte entre dois corpos. “[...] o umbigo é o
corte; a voz é a subversão desse corte[...]” (SOLÉ/2007, p 100). A voz, não é imprescindível
para a simbiose do corpo da mãe com seu filho, para que isso aconteça depende do desejo da
mãe em relação a este filho e da inserção no campo simbólico. A surdez só poderá impedir
essa colagem pelo que ela poderá representar à mãe, não pela falta da audição e da fala.
A imagem do mundo personificada pela língua da mãe será a imagem do mundo
transmitida para o surdo. “[...] É a língua da mãe, internalizada pela criança, que permite a
esta passar da sensação para o ‘sentido’, ascender do mundo perceptivo para o conceitual[...]”
(SACKS/1998, p 74). Para que a linguagem do surdo de fato aconteça é necessário, três
31

pessoas, ou seja, a entrada de um terceiro nesta relação. O surdo preso ao mundo real de sua
mãe, ausente das palavras e mergulhado no não-dito. Lugar que não se encontra o desejo nem
a falta, lugar do vazio. A falta de conceituação das palavras, ou seja da falta de significado e
sentido proporciona o vazio. A prisão a este mundo concreto e perceptivo leva o sujeito a um
certo retardo e alienação deste mundo. Staks afirma que “[...] nossa verdadeira linguagem,
nossa verdadeira identidade, reside na fala interna, no incessante fluxo e geração de
significado que constitui a mente individual[...]” (SATKS/1998, p 85). É nesta fala interna
que nossos conceitos e significados são formados e reformulados a todo tempo. Nossas
vivências e nossas relações vão tecendo deste mundo dentro de nós, dando-nos a oportunidade
de re-significar o nosso mundo interno e conseqüentemente nossa percepção de mundo.
O primeiro investimento na linguagem não podendo ser das zonas auditivas, pela
impossibilidade do prazer do ouvir, deverá acontecer de outras vias. No caso, de sujeitos
surdos que não puderam usar a zona auditiva para atribuir o desejo do outro, este primeiro
investimento deverá vir decorrente do olhar. Segundo Solé “[...] O prazer de entender o que o
outro deseja deve ter sido decorrente do olhar, mesmo com as especificidades que esta outra
via possa acarretar.” (SOLÉ/2007, p 104). Muitos pais ouvintes, não sabendo lidar com a
surdez de seus filhos apresenta-lhes ao desprazer do silêncio: “Não adianta falar, ele não
ouve”. O que poderá lhes representar mais tarde como uma profunda experiência de abandono
desses pais. Para um bebê surdo, os momentos de solidão e ausência materna serão vividos
com mais intensidade e constância; porque fora do alcance de sua visão esta mãe está ausente,
não podendo ser antecipada a presença desta pelos sons que lhe antecipa sua chegada. Essa
desgastante experiência de abandono poderá significar para o bebê como desamor e
posteriormente ser uma das causas dos traços depressivos apresentados por este. “[...] tanto
para os bebês surdos quanto para o sujeito surdo, aquilo que está fora de sua visão deixa de
existir.” (SOLÉ/2007, p 107). Ao fechar os olhos, para o surdo o mundo desaparece,
necessitam de muito amparo na metáfora paterna para não terem medo de se desintegrar-se no
escuro.
As informações do mundo a sua volta serão lhe passadas pelo olhar, o que muitas
vezes necessitam que certas explicações lhes sejam dadas de maneira mais objetiva. Muitas
dificuldades apresentadas pelos surdos no contexto sócio-cultural, na sua interação com o
mundo a sua volta, encontram-se pela falta de compreensão daquilo que não foi capturado
pelo seu campo visual. Necessitando assim, da interação com o outro, pela linguagem, como
acontece com os sujeitos ouvintes.
32

Segundo Sole [...] Os momentos de abandono que a falta da audição pode acarretar à
construção de um eu ideal, identificado com uma imagem denegrida de si, com um objeto
desvalorizado[...]” (SOLÉ/2007, p 111). Algumas vezes por ter sido mal enunciada ou mal
investida pela libido da mãe, estas crianças apresentam uma baixa auto-estima. Um baixo
investimento objetal, em alguns casos um baixo investimento para falar e pensar.
Conseqüentemente, a imagem de si denegrida e impossibilitada, será resultado desta falta de
investimento. “[...] Mesmo não ouvindo a voz da mãe, sua “fala” adquire a mesma
importância que possui para os que a escutam.” (SOLÉ/2007, p 112). Ou seja, o investimento
libidinal transmitido pela fala da mãe ao bebê, mesmo que este não ouça a voz materna, esta
“fala” terá a mesma importância que possui a um ouvinte. O silêncio da mãe para o bebê
surdo é sintoma da falta de investimento e desejo, podendo entender este silêncio como a falta
de inclusão do bebê no discurso materno.

“[...] O desejo de ouvir, que seria sucessor do prazer de ouvir, será, na criança
surda, decorrente do prazer de escutar, proveniente das demais sensações
corporais, principalmente do prazer de olhar, sucesso do prazer de ver, e não
do prazer de ouvir, tomando-se desejo de escutar pelo olhar, ou desejo de
olhar escutando.” (SOLÉ/2007, p 114).

O sujeito precisa que lhe seja acendido nele o desejo de falar ao Outro, o desejo de
escutar, primeiro a voz materna e a posterior do Outro. A visão limita-se a ver, mas o olhar é
emudecido pelo simbólico dos significantes. O surdo precisará desejar sua inserção na
linguagem, esta precisará vir pelo desejo e no desejo acontecer. A língua de sinais servirá
como a “voz”, importância para a constituição psíquica dos primeiros anos de vida. Martha
Schorn (1997) cita Aulagnier para explicar a importância constitutiva do olhar e do contato
materno, através disto a criança surda irá libidinar e formar a imagem sobre seu corpo. A
visão será a responsável por lhe trazer informações e orientação sobre o que lhe acontece ao
redor. Pela falta da mediação da palavra, a criança surda usará da ação para se manifestar e
para controlar as pessoas a sua volta. Enfatiza Shorn (1997) “[...] o surdo escuta com os olhos
[...]” (SOLÉ/2005, p 53), levando nos a compreensão que o ato de ouvir não está
intrinsecamente ligado a audição, o ato de ouvir está na ordem do desejo e na intencionalidade
de quem ouve. Segundo Thoua (1999) “[...] O prazer ligado a um signo referido ao desejo do
Outro que a voz vem oferecer, responsável pela legenda do fantasma, deve vir de uma zona
diferente do ouvido, a zona em questão é o olhar[...]” (SOLÉ/2005, p 56). O olhar só poderá
ser uma eficiente via de constituição para este sujeito surdo, se este tiver sustentação
simbólica pelo pai e pela mãe, e pelo grande desejo por este filho. Do contrário, esta não
33

diminuirá os danos provocados pela falta da escuta à voz materna. Será o olhar do analista a
esse sujeito a possibilidade de dar suporte aquilo que o Outro primordial não sustentou. “[...] o
olhar do analista sustenta, nesses casos, uma nova imagem que o sujeito necessita para
reconstruir um percurso com outras possibilidades[...]” (SOLÉ/2007, p 177).
34

Capítulo 3 A escuta pelo Olhar


35

Há uma esquive entre o olho e o olhar, quando a visão se apaga só resta o olhar. O
olho, órgão do imaginário, registro da consciência e do sentido que faz com que o homem se
julgue um eu. Esse olho está na ordem daquilo que lhe é especular, daquilo que está na
consciência. Mas o olhar, não. Este está na ordem do desejo, na modalidade objetal do real da
pulsão escópica. Pulsão que permitiu [...]à psicanálise restabelecer uma função de atividade
para o olho não mais como fonte da visão, mas como fonte de libido[...]” (QUINET/2004, p
10). O real trazido por Lacan é domínio da pulsão. Neste real se presentifica a pulsão escópica,
aquilo que está no invisível, no real e no olhar. E aquilo que está no imaginário é visível,
especular, as imagens como também o olho. Na separação destas estruturas do imaginário e
do real, estará o simbólico que “[...] se reduz à relação do sujeito com o significante, presente
em todo fenômeno visual” (QUINET/2004, p 42). A realidade de fato é constituída de
imaginário e determinada pelo simbólico do qual o real está foracluído.
O sujeito, em sua estratégia pulsional, atribui o olhar ao Outro de acordo com sua
estrutura clínica:
“[...] o neurótico supõe um outro como suporte do olhar para causar seu desejo
ou sua angústia; o perverso tenta devolver ao Outro o olhar para fazê-lo gozar;
o psicótico não tem o olhar como objeto separado, mas como atributo do
Outro, outorgando-lhe o poder de vigiar e punir[...]” (QUINTE/2004, p 13).

Esse olhar pulsional não é o olhar do sujeito, mas sim o olhar sobre o sujeito, é um
olhar que o visa. “[...] A pulsão está na base do dar-a-ver do sujeito e o afeta através de um
olhar que o objetiva e ao mesmo tempo se encontra excluído da visão” (QUINET/2004, p 41).
O olhar é o invisível da visão. Essa esquive entre o olhar e o olho corresponde no âmbito
visual à diferença entre o imaginário e o real, cujo olhar escapa ao visível. E será pelo
simbólico que a lógica do significante comandará. Diante da ordem do real e do imaginário é
no simbólico que as coisas tomam forma: mescladas e articuladas entre as duas estruturas que
a compõe. A realidade assim pra um universo subjetivo toma forma neste simbólico
mergulhados neste tesouro de significantes. O sujeito que olha e que é olhado seja pelo objeto
ou pelo Outro, dará sentido a este olhar por esses significantes.
O sujeito do desejo, na verdade é o sujeito da Coisa. Daquilo que é o objeto perdido
que sempre lhe escapa e que jamais existiu. Assim, o sujeito continua no seu desejo, sendo
afetado pelo seu real do gozo. Gozo marcado por um mais-de-olhar, inalcançável e intocável.
36

É o desejo que irá percorrer as teias dos significantes inconscientes, interligando-os e sendo
sua via de condução.
“[...] Essa subordinação do sujeito ao significante é correlata ao inconsciente
estruturado como uma linguagem, o que faz Lacan definir o sujeito como o
que é representado por um significante para outro significante”
(QUINET/2004, p 65).

O olhar é a causa do sujeito escópico. Aquele que no campo visual é sujeito do


desejo, e precisa para isso, apaga-se diante do objeto olhar. Não temos necessidade de ver, e
sim desejo de olhar. Um olhar não se pede, ele comparece ou não. Conforme Quinet “[...] o
olhar é o objeto do desejo ao Outro; e a voz é o objeto do desejo do Outro[...]”
(QUINET/2004, p 69). A pulsão escópica não precisa da fala, ela abstrai qualquer fala.
Porque não há palavras para dizer o olhar. A fala do Outro lançado sobre o meu Eu fará parte
dos meus significantes inconscientes, sendo este inconsciente estruturado como uma
linguagem. Minha fala responde ao desejo do Outro sobre mim, uma vez que este Outro se
encontra introjetado no meu desejo. O olhar se abstrai desta fala, sendo ele o desejo lançado
ao Outro.
Na pulsão escópica, o olhar não precisa do dito. O olhar está no não-dito, naquilo
que escapa ao sujeito. Para que o desejo ao Outro aconteça de fato é necessário à castração,
aquilo que barra o desejo para que o mesmo continue desejante. “[...] Podemos equiparar essa
barra sobre o olhar ao significante do Nome-do-Pai, que é o significante da lei da castração
que faz do sujeito um ser para o desejo[...]” (QUINET/2004, p 46).
O significante o Nome-do-Pai é o que barra a Coisa, esvazia o gozo, o significante
da Lei trazido pelo Édipo. Relação Edipiana entre a mãe e o filho, causa de alienação pela
simbiose alcançada. Eles se encontram mergulhados no desejo. O gozo que é este tocar na
morte, quando o sujeito alcança o desejado. E assim nada mais têm a desejar, sendo sua
própria morte. A entrada do terceiro nesta relação possibilitará um furo neste Gozo, a sua não
realização em plenitude. Tornando este Gozo inatingível e impossível, e assim sua
permanência no desejo.
Quinet afirma “[...] Para o sujeito a castração se realiza pela via do escópico- é a
castração ótica[...]” (QUINET/2004, p 89). No mito de Édipo a figura do olho toma o palco,
quando o rei fura-lhe os olhos, testemunha do seu incesto. A fenda do sujeito é o efeito dessa
dupla fenda do olho e do sexo do Outro. “[...] Esta fenda é moebiana, pois inclui na mesma
borda o olho que vê a falta de pênis e o sujeito olhado por essa falta tornada olho[...]”
37

(QUINET/2004, p 94). O sujeito ver sua falta e dar-a-ver o Outro na sua falta. É o olhar e o
ser visto. Um olhar chama o Outro para que o mesmo lhe devolva este olhar. Sendo assim, a
castração ocorre por esta pulsão escópica que olha o desejado impossível e toca-lhe pelo olhar.
Encontrando neste olhar a sua falta e a não realização do seu gozo.
A alienação simbiótica vivida na relação mãe e filho como já vimos, necessita da
entrada do terceiro para que a falta seja imposta, e para que o desejo apareça. Fazendo o
sujeito sair do mundo real. Ou seja, daquilo que está sem amarração, mergulhado no que
escapa ao sujeito, fora da realidade. A castração possibilitará a entrada no campo simbólico
daquilo que lhe é consciente e visível. A fim de que o Nome-do-Pai seja incluído na relação
dual entre o Grande Outro (mãe) e o seu filho. A Lei precisa ser escrita, inserida. A fim de
que a castração aconteça é necessário que o real, segundo Lacan, estabeleça o corte nesta
alienação. Levando o sujeito ao campo simbólico do desejo. Caminho necessário a todo
neurótico, seja surdo ou ouvinte. O recalque aqui será aquilo que lhe escapou, da ordem do
real e que agora se encontra no inconsciente a ser resgatado.
Tratando-se da relação entre mãe e filho surdo esta alienação é ainda mais intensa
devido à ausência de palavras. A dupla relação entre mãe e filho vivenciada fora da
linguagem, excluída do mundo e de uma língua, não existindo as palavras. Será vivenciada
numa troca sensorialmente estabelecida. Impossibilitando o sujeito surdo ser inserido no
campo simbólico, o que somente acontecerá quando for inserida a linguagem. E esta
linguagem acontecerá pelo olhar no caso do surdo. “[...] O prazer de entender o que o outro
deseja deve ser decorrente do olhar, mesmo com as especificidades que esta outra via possa
acarretar” (SOLÉ/2005, p 104).
A linguagem da castração não se trata da via oral, mas da linguagem inata do não-
dito, aquilo que é da ordem do real. A linguagem oral aqui se apresenta como algo secundário
ao processo de castração, já que é feito pelo que não fora dito. Sendo este um processo
comum para os sujeitos surdos ou ouvintes. Mesmo possuindo vias de linguagens diferentes,
participam do mesmo não dito em questão. Aqui o que for da ordem do real lacaniano
norteará seu mundo simbólico e suas metáforas inconscientes. Este não-dito possibilita surdos
e ouvintes viverem a castração, permitindo em seguida a entrada da linguagem para a inserção
no campo simbólico. Lugar este marcado pelos significantes do sujeito e por suas amarrações.
O não-dito está no olhar que perpassa pelas palavras e dá forma ao desejo, que olha e que é
objeto do olhar do Outro.
A língua de sinais esta escuta pelo olhar, acontecerá no âmbito da pulsão escópica. O
sujeito movido pelo desejo da escuta remeterá no olhar seu desejo, a fim de encontrar o desejo
38

do Outro. Nos sinais dessa linguagem gestual, os significantes daquilo que não foram dito
estarão nas entre-linhas desses sinais, dando-lhes significado e sentido, amarrando os
conteúdos inconscientes deste sujeito surdo. Cada surdo terá na língua de sinais sua fala, seus
conteúdos e metáforas necessárias para construir sua linguagem. Podendo assim, ser analisado.
A pulsão escópica norteará esta linguagem, o sujeito transmitirá seus conteúdos não pela
linguagem oral. Mas pela linguagem gestual que se usará do olhar para encontrar sentido e
comunicar seu desejo.
O olhar do analista possibilitará um novo olhar sobre este sujeito surdo, um olhar
que lhe fará encontrar seu desejo e sua falta. Este novo olhar lhe sustentará numa nova
amarração de significantes, abrindo assim espaço para um novo “cenário”. E nesta articulação
entre o real do não-dito e os significantes do simbólico, que a realidade vai sendo tecida no
imaginário. Possibilitando assim, uma nova realidade e nova compreensão sobre a mesma. O
surdo muitas vezes preso ao olhar materno, que tampona a falta e se apresenta como “porta-
voz” absoluta. Este Grande Outro que não somente entende e “sabe” do seu desejo, como
também lhe esconde o que falta. O analista será este Outro olhar, que lhe devolverá a falta,
possibilitando à escuta do seu desejo. Não como substituto de “porta-voz”, mas como escuta.
Garantindo a este o lugar de sujeito. A pulsão escópica aqui acontecerá pela via de linguagem
“ao Outro” como já mencionamos, sendo este olhar que convida e deseja o Outro. Este olhar
que solicita um olhar, mas não qualquer olhar, o olhar do desejo. Possibilitando que o sujeito
encontre seus significantes e suas metáforas inconscientes ao “depositar” sua pulsão no objeto.
A língua de sinais esta via de linguagem pelo olhar, será o caminho de acesso ao
inconsciente do surdo. Na escuta desta linguagem construída pela formação dos significantes
inconscientes, de suas amarrações e articulações. A língua natural do sujeito é a linguagem do
seu inconsciente. E assim pela mesma será revelado. O analista escutará pelo olhar este
sujeito, e pelo olhar o mesmo terá acesso ao desejo do seu paciente. O surdo terá a
possibilidade de construir novas armações e metáforas, a fim de “repetir, recordar e elaborar”
seus conflitos inconscientes.
E embora este olhar tenha sido a via de constituição do surdo na sua formação, esta
diversas vezes mostrou-se ser pouco eficaz. Sendo necessária uma boa sustentação simbólica
da mãe e do pai, num grande desejo por este filho. Para que o olhar seja suficiente na
constituição desse sujeito surdo. Sendo preciso mediar a imagem que o surdo construiu de si.
Sole afirmou que “[...] Como analista entendo que é necessário que o nosso olhar seja suporte
daquilo que o Outro Primordial não sustentou[...]” (SOLÉ/ 2005, p 177). Todo olhar
depositado sobre este sujeito lhe convidou a construção de uma auto-imagem, trazendo-lhe
39

uma imagem especular baseada nestes olhares. O surdo da deficiência, da incompletude, do


falso silêncio, da limitação, da não aceitação e da insatisfação do desejo materno. Acostumou-
se a este lugar, lugar do vazio.
O olhar do analista possibilitará a construção de uma nova imagem, a fim do surdo
poder trilhar um novo percurso de possibilidades no seu contexto subjetivo. Compreendendo
que nada está esgotado ou definido, mas sempre habilitado a novas construções subjetivas.
Como neste primeiro momento a função materno foi ineficaz e imaginária, não possibilitando
sustentação simbólica para este sujeito. O olhar do analista precisará sustentar o lugar
psíquico, ‘emprestando seu olhar e seu suporte simbólico’ não como substituto do lugar
materno. Mas como um olhar de desejo e investimento sobre este outro, no campo simbólico.
Encontrando neste olhar do analista, o seu desejo e seu novo lugar no mundo.
40

Considerações Finais

Não posso dizer que concluímos esta temática, devido ao fato de ainda ter muito a
estudar sobre a surdez no campo da psicanálise. Mas podemos trazer aqui, fundamentada
nesta discussão, algumas compreensões a este respeito. Primeiramente, afirmar que o surdo
fala. Muitas vezes estes sujeitos surdos são chamados “surdos-mudos” pelo senso comum.
Preso ao estereotipo não só da surdez, mas também de uma mudez inexistente. Não falo aqui
da oralização de surdos que apreenderem a falar oralmente com ouvintes, mesmo sem escutar.
Falo da língua natural para o surdo, a língua de sinais. Língua que possibilitará pela sua
inserção uma vivência mais saudável e tranqüila quanto à surdez. E como uma língua, a
mesma possibilitará qualquer tipo de vivência que seja movida pela linguagem.
Segundo ponto, o surdo poderá ser atendido por esta língua de sinais na visão
psicanalítica. Esta forma de linguagem expressão de uma fala, contem todas as amarrações
necessárias para que a psicanálise a escute. Compreendendo o fato do analista precisar falar e
ouvir por esta mesma via de linguagem. A fim de comunicar-se pela mesma via do seu
paciente. E sendo assim, o procedimento analítico utilizado será o mesmo seja o paciente
surdo ou ouvinte. O trabalho analítico será de escutar este paciente, ouvindo seu desejo e
remetendo-lhe ao mesmo. Neste caso, fazendo o surdo escutar sua própria “voz”.
Terceiro e ultimo ponto, afirmamos que nesta “fala pelas mãos” encontram-se as
metáforas e significantes que este sujeito significou pela construção de sua linguagem.
Construção esta, marcada pelo real do qual o não-dito faz parte. E pelo simbólico cuja
construção só pode se iniciar quando o sujeito foi inserido nesta língua. Possibilitando assim,
que sua fala ultrapasse o processo perceptivo e caminhe para o processo conceitual. Ou seja,
mesclada e articulada pelo imaginário do sujeito, estando assim no mundo simbólico das
neuroses. Confirmando assim que por meio desta linguagem em forma de sinais, o
inconsciente do surdo será revelado pelas mãos.
41

REFERÊNCIAS

BOLLAS, C. Associação Livre. Tradução Carlos Mendes Rosa- Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Ediouro; São Paulo: Segmento-Duetto, 2005

COSTA, Ana. Sonhos.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008.

FREUD, S. O estranho. Vol XVII. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago Editora, 1996.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Lei de LIBRAS
http: //www.feneis.com.br/arquivos/legislação/lei_da_libras_LEI%20Nº%2010.436.doc –
Acesso em 23 de maio de 2010.

PEREIRA, Priscila Frehse. Psicanálise e Surdez: Metáforas Conceituais da Subjetividade em


Libras. Curitiba: 2007. Dissertação (Mestrado em Letras). Setor de Ciências Humanas, Letras
e Artes, Universidade Federal do Paraná.

QUINET, A. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro; Jorge


Zahar, 2003.

QUINET, A. As 4+1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
42

SACKS, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. Tradução Laura Teixeira Motta.
São Paulo: Companhia das letras, 1998.

SOLÉ, M. C. Petrocci. O sujeito surdo e a psicanálise: uma outra via de escuta. 1 ed. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2005.

You might also like