ARISTÓFANES. As Aves. Tradução, in- postos a encontrar uma cidade mais tran- trodução, notas e glossário de Adriane da qüila ou, se for preciso, fundar uma ao seu Silva Duarte. Edição bilíngüe. São Paulo: gosto (vv. 36-48): Hucitec, 2000. 265 p. B.L. ...Não odiamos aque- la cidade pelo que ela é:/ grande por natureza, feliz/ A peça As Aves de Aristófanes tem e comum a todos que pa- um destaque todo especial no conjunto da gam taxas./ As cigarras, obra do maior comediógrafo grego da an- por um mês ou dois,/ can- tigüidade. Então é mais do que louvável a tam sobre os ramos, mas os publicação dessa comédia, traduzida por atenienses/ cantam sem- Adriane da Silva Duarte, como parte da pre sobre as tribunas, a sua Dissertação de Mestrado, e agora vida toda./ Por isso fazemos esta caminhada/ com uma enriquecida por uma introdução atualiza- cesta, uma panela e coro- da, numa abordagem, ao mesmo tempo, as de mirto,/ vagamos em completa e sucinta, descrevendo a trajetó- busca de um lugar tranqüi- ria literária de Aristófanes, com a impres- lo,/ onde pousar e passar a sionante clareza própria da autora. À tra- vida. dução acompanham notas bem definidas e não exaustivas, completadas, por sua vez, Mas podemos notar uma contra- por um glossário oportuno e leve, os quais, dição nos dois personagens principais, a em conjunto, tornam a leitura agradável e partir de seus nomes: Bom de Lábia eficiente, algo raro de se encontrar nas tra- (Pisetero) e Tudo Azul (Evélpides). Eles duções do grego para o português. Por ser são guiados por dois pássaros e procuram uma edição bilíngüe (grego-português), o mítico Tereu, homem que foi transfor- permite a leitura nas duas línguas, verso mado em pássaro, juntamente com sua por verso. mulher Procne e sua cunhada Filomela, “Embora faça referências a perso- numa triste história de traição, violência nalidades e a situações comtemporâneas, e canibalismo. Tereu, a poupa, saberia in- como era de costume na comédia antiga, formar sobre o lugar por eles desejado. As Aves é especialmente atraente para o Porém, depois de rejeitarem as sugestões leitor moderno por contar uma história de da poupa, resolvem criar uma cidade nas apelo universal, que faz lembrar um conto nuvens, a Cuconuvolândia, convencen- popular”, explica a autora na introdução. do os pássaros da sua antiga realeza sobre A peça traz dois velhos cidadãos atenienses todos os deuses. Os dois homens recebem cansados da agitação da sua cidade, espe- asas, e Bom de Lábia casa-se com Sobe-
– 365 – Relatório do curso “As Paixões na Antigüidade: Amor, Ira, Compaixão”...
rania, tornando-se, desse modo, o senhor Dessa maneira, é equivocada a afirmação
do universo. de que As Aves é uma comédia de escape, Por esse enredo, observa-se que as quando os princípios essenciais da pólis intenções de Bom de Lábia não eram as ateniense estão ali expressos. mesmas de Tudo Azul, que, convenien- As Aves inaugura uma nova era na temente, desaparece, na segunda metade comédia aristofânica. A partir de agora, a da peça. Toda a obra de Bom de Lábia é voz do poeta, que era ouvida nitidamente atribuída ao seu caráter persuasor: primei- na parábase, “seção característica da co- ro persuadiu Tudo Azul a acompanhá-lo; média antiga, em que o coro é deixado so- depois Tereu, a ser seu cúmplice diante zinho em cena e passa a se dirigir direta- dos outros pássaros; em seguida, conven- mente aos espectadores”, é silenciada. O ceu os próprios pássaros a fundarem coro de pássaros fala em seu próprio nome Cuconuvolândia; então os homens foram e demonstra que foi mais que persuadido persuadidos, na parábase, de que deve- por Bom de Lábia sobre sua divindade, pois riam sacrificar aos pássaros e não mais aos tecem sua própria teogonia, num estilo que deuses; e, finalmente, Bom de Lábia per- faz lembrar a de Hesíodo. suadiu os deuses a lhe darem Soberania Somente a leitura dessa peça tão como esposa. especial vai refletir o seu verdadeiro va- Somos então surpreendidos pelo lor. E agora temos em mãos uma excelen- tema real da peça, a palavra. “As Aves é te tradução para o português, acompanha- uma comédia sobre o poder das palavras”, da do texto original grego, que vai possi- esclarece a autora na introdução. bilitar aos estudiosos da língua grega uma “Emblemática dessa condição é a idéia da leitura ainda mais eficiente. fundação da cidade dos pássaros, que sur- ge para Bom de Lábia a partir de um tro- ANA MARIA CÉSAR POMPEU* cadilho (pólo – pólis, v. 184). Todo o seu Faculdade de Filosofia, Letras e plano está, literalmente, na ponta da Ciências Humanas língua, depende de sua capacidade de con- da Universidade de São Paulo. vencimento. A palavra de Bom de Lábia é poderosa não só porque é capaz de alte- NOTA rar o mundo, mas também porque confe- re poder ao seu usuário”. * Professora de Língua e Literatura Grega Adriane nos adverte ainda de que do Curso de Graduação de Letras da Universidade Federal do Ceará-UFC e somente na Atenas do século V, uma cul- Doutoranda em Grego do Programa de tura, predominantemente, oral com um Pós-Graduação em Letras Clássicas da regime democrático, tal poder seria atri- FFLCH-USP. buído à palavra, mesmo na imaginação.