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5/17/2019 Educação Liberal

Educação Liberal

Palestra de Olavo de Carvalho


Rio de Janeiro, 18 de Outubro de 2001
Transcrição: Fernando Antônio de Araújo Carneiro
Revisão: Patrícia Carlos de Andrade

Sem revisão do professor

Agradeço comovido as palavras do deputado Carlos Dias e da minha querida amiga Mina Seinfeld 1. E,
aliás, essa é não somente uma oportunidade para ela falar a meu respeito, mas para contar também
algumas coisas a respeito dela. A professora Mina está envolvida numa luta que é paralela à minha,
onde encontra condições muito parecidas. Nós dois estamos envolvidos na luta contra as drogas,
apenas a espécie de droga é que muda: sobre as drogas de que ela trata, ainda há a discussão de se
serão liberadas ou não, ao passo que as drogas de que falo, não apenas estão liberadas, como são
obrigatórias. A diferença é mais ou menos esta. Mas, neste esforço monumental e meritório da
professora Mina, ela encontra a mesma resistência que encontro na minha área, porque todos estão
contra: os drogados, os traficantes, os que têm interesse político na coisa, os indiferentes e todos
aqueles que querem parecer bonzinhos - todos os politicamente corretos. E, de fato, quando você vai
para um debate é exatamente como ela descreveu: são trinta pessoas para falar a favor e uma contra e
depois, na transcrição, ainda cortam umas frases do que a pessoa falou e ficam lá somente três linhas,
para provar que o debate foi bastante democrático. Isto é pior do que não ter debate nenhum, é uma
falsificação.

Agradeço muito a meus alunos essa iniciativa. A idéia foi inteiramente deles, que têm um grande
mérito em fazer isto, abrir a outras pessoas a mesma oportunidade. Nosso curso aqui no Rio tem sido
quase que confidencial. Creio que existe aqui há dezoito anos e nunca foi anunciado nem avisado;
continua existindo, não sei como. Em São Paulo há toda uma infra-estrutura montada, o número de
alunos é bem grande, e no Paraná são cento e cinqüenta alunos. É um pouco estranho que aqui no Rio
de Janeiro, que ainda é a capital cultural do Brasil, nosso curso seja tão secreto assim. Não me
incomodo se dou aula para um, dois ou cem alunos: o problema é exatamente o mesmo. Ademais, esse
tipo de ensino requer muito tempo para dar frutos. Calculo mais ou menos dois anos, para a pessoa
começar a perceber o que está mudando em sua vida, no seu enfoque existencial.

Agora, o tema de hoje, que é a educação liberal, é mais abrangente do que a proposta do meu curso; o
curso é uma das modalidades, um dos capítulos do que chamaríamos de educação liberal. Liberal não
se confunde com o liberalismo político, a ideologia de Adam Smith, Herbert Spencer e outros, nem
com o sentido da palavra liberal nos Estados Unidos que quer dizer esquerdista, mas tem a ver com a
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noção, hoje em dia puramente nominal, de profissões liberais. Profissões liberais, como o próprio
nome diz, se opõem às profissões servis, que são exercidas em troca de uma remuneração. Profissões
liberais são exercidas num ato de liberalidade do indivíduo; ou seja, o profissional liberal está de
algum modo obrigado a exercer a sua tarefa somente por um mandamento interno, somente por um
dever interno, e ele tem que exercer aquilo com ou sem remuneração, ou até mesmo pagando para
exercê-la. Esse é o sentido originário. Por exemplo, o médico na ética da idade média não poderia
jamais recusar um paciente que não tivesse dinheiro para pagá-lo; o advogado a mesma coisa. E, por
isso mesmo, quando havia uma remuneração, esta se chamava honorário. Honorário é algo que damos
ao indivíduo não pela tarefa que ele desempenhou, mas em reconhecimento da honra de sua posição
na sociedade ou do mérito de seu saber. Tanto faz dar cinqüenta centavos ou cinqüenta mil, porque o
que vale é a intenção.

Hoje em dia, não é mais assim. Quando consultamos um advogado a primeira coisa que ele faz é puxar
uma tabela de honorários. A expressão tabela de honorários é uma contradição de termos, pois se são
honorários, não há tabela. Tabelas são de salários ou de preços, tabela de honorários não é possível.

Na idade média, a formação para as profissões liberais começava com a absorção do que se chamava
as artes liberais. Eram um conjunto de disciplinas, das quais três tratavam essencialmente da
linguagem e do pensamento e quatro tratavam dos números, entendidos num sentido muito mais
amplo do que hoje estamos acostumados a designar por este nome, e das proporções. O número seria
o sentido geral da forma e da proporção. As quatro disciplinas que lidavam com o número eram a
aritmética, a geometria, a música e a astronomia ou astrologia. A astrologia veio a se dividir em duas
áreas: a astrologia esférica, que era o estudo da esfera celeste, e a astrologia judiciária, que era o que
hoje chamamos de astrologia - uma especulação, seja científica ou outra coisa, sobre as coincidências
temporais entre o que se passa no movimento dos astros e os acontecimentos terrestres. Tudo isso era
considerado parte das matemáticas, ou seja, a matemática era, de modo geral, a ciência da medida e
da proporção. As outras três disciplinas eram a gramática, a lógica ou dialética, e a retórica.

Esta formação básica, que geralmente começava bem mais tarde do que hoje, aos quatorze anos,
visava a transmitir ao indivíduo, por um lado, o senso das proporções, o senso da forma do mundo e,
por outro lado, os meios de compreensão, expressão e participação na cultura humana 2.

O que hoje chamamos de educação liberal é uma adaptação das artes liberais antigas, feita sobretudo
por dois educadores, Robert Hutchins e Mortimer Adler 3, no começo de século . Nesta adaptação, as
artes liberais deixam de se distinguir das artes servis e começam a se distinguir do ensino profissional.
Todas as áreas de ensino visam a transmitir determinadas habilidades profissionais; as artes liberais,
em contra-partida, visam a formar o cidadão em geral, o cidadão não especializado. Mais
especificamente com a ênfase na idéia de cidadão da democracia, subentendendo-se democracia pelo
sistema onde vale a pena discutir, onde é possível haver uma discussão e onde há uma possibilidade de
que as questões sejam arbitradas por meio da razão e não de motivos desconhecidos que uma
autoridade possa ter para decidir assim ou assado.

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A discussão é evidentemente inerente à própria idéia de democracia. Mas, por outro lado, a discussão
é perfeitamente inútil se não há nenhum critério racional para arbitragem das discussões. Se não há
nenhum meio de os lados em disputa provarem as suas razões, ou seja, se todas as razões se
equivalem, então a discussão evidentemente não vai dar em nada e a coisa no fim será resolvida pelo
meio da força. Pode ser a força física ou a força emocional, o apelo emocional da propaganda.

Adler e Hutchins eram pessoas que pensavam politicamente de maneira muito diferente entre si:
Adler era mais conservador e Hutchins era definitivamente esquerdista. Mas, sabendo que há um
compromisso inerente entre a idéia de democracia e a idéia de razão, achavam que podiam organizar
um novo sistema de ensino não apenas baseado na tradição das artes liberais, mas na experiência
acumulada do ensino das elites americanas. Nos Estados Unidos, antes mesmo da independência, se
formaram vários colégios para a educação da elite que, quase instintivamente, adotaram como
mecanismo básico de ensino, a leitura e a absorção do legado dos clássicos. Entendemos por clássico,
uma obra que tem valor e interesse permanente, que tenha dado alguma contribuição que permanece
eficaz ao longo dos tempos; aquela obra que, a despeito do tempo que passou depois que ela foi escrita,
ainda tem algo a nos ensinar. Particularmente, e mais precisamente, se designam como clássicas obras
que estabeleceram certas noções ou transmitiram certos ensinamentos, que vão formando patamares
sucessivos de consciência humana, de tal modo que a discussão de determinados assuntos não tenha
mais o direito de descer abaixo daquele patamar.

Por exemplo, a partir do momento em que Aristóteles formula a ciência da lógica não é mais possível
discutirem-se legitimamente as coisas, como os sofistas e Sócrates discutiam, utilizando uma lógica
rudimentar, onde os procedimentos de prova se confundiam provisoriamente a procedimentos
destinados a impressionar o ouvinte. O próprio Sócrates, que é um crítico dos sofistas, incorre
freqüentemente nesse tipo de argumentação. Não por maldade evidentemente, mas simplesmente
porque os dois tipos de argumentação, a que visa a impressionar e a que visa a provar, não haviam
ainda se distinguido perfeitamente. Essa distinção só veio mesmo com Aristóteles. E a partir do
momento em que essa distinção fica estabelecida, cria-se uma espécie de patamar de consciência: não
temos mais o direito de ignorar a existência dessa distinção4.

A técnica da discussão e da prova foi elevada a nível de requinte quase inimaginável, mais tarde, pelos
filósofos escolásticos, que também fixam um novo patamar de exigência. Depois surgem os processos
de investigação e prova aceitos nas ciências naturais e isto vai se acumulando como uma série de
patamares de exigência de modo que, teoricamente, não teríamos o direito de entrar na discussão de
um assunto ignorando esses patamares já conquistados.

Dei o exemplo de patamares conquistados em filosofia, mas temos o mesmo processo em cada uma
das ciências e sobretudo nas artes. Por exemplo, o que vai distinguir a escrita literária da escrita
vulgar, nas artes literárias, é precisamente a consciência de uma evolução dos meios expressivos da
arte, que a primeira traz dentro de si. A escrita literária é cheia de referências aos antecessores;
referências a toda uma evolução anterior. É praticamente impossível encontrar um único verso da

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literatura moderna que não tenha dentro de si várias camadas de significado que foram sendo
acumuladas pela evolução da poesia ao longo dos tempos. É evidente que, para o leitor perceber isso, é
preciso que ele próprio tenha noção dessa evolução anterior, de modo que na medida que vai
absorvendo esta consciência da evolução da arte literária, a leitura que faz de um poeta moderno seria
imensamente mais rica do que a que poderia ser feita pelo sujeito que chegasse lá sem ter o
conhecimento das referências. Ou seja, essa evolução vai sedimentando novas linguagens e novos
códigos, cujo conhecimento é a condição para que se possa participar, de uma maneira consciente, do
mundo cultural, do mundo das discussões, do mundo da comunicação.

A transmissão a um estudante ou a um jovem da consciência desses patamares é que seria


precisamente a educação liberal.

O sistema político moderno é enormemente complexo. Se compararmos qualquer país hoje - Brasil,
Uruguai ou Paraguai - com a República Romana, veremos que sua organização política é imensamente
mais complexa. Para discutirmos um problema qualquer da economia ou da política paraguaias,
precisaríamos ter um horizonte de consciência muito mais vasto que o que o cidadão romano ou o
cidadão da democracia grega teriam que ter para compreender seus problemas locais. A acumulação
desses patamares de consciência, portanto, forma a série de condições que, num dado momento da
evolução histórica, o ser humano precisa cumprir para entender o que está acontecendo em torno dele.
Entender o que está acontecendo não é não é um dever e não é atribuição de uma profissão
especializada, mas é, de certo modo, uma possibilidade aberta a todos os cidadãos. Não podemos
tornar isso obrigatório porque a aquisição desse patrimônio depende de uma capacidade pessoal e de
uma disposição; uma vocação pessoal. Torná-lo obrigatório é, portanto, utópico.

Eu não acredito em educação universal obrigatória, de jeito nenhum. Não acredito em educação de
quem não queira se educar. Acredito em oportunidade universal de educação. Abrir para todos, sim,
mas tornar obrigatório é absolutamente inócuo.

A aquisição da consciência desses sucessivos patamares é uma possibilidade que está aberta aos
cidadãos que desejem compreender o mundo em que estão. Porque o mundo atual não surgiu do nada,
não foi inventado ontem, resulta de milhões de decisões e ações humanas que foram se encaixando
umas às outras e que produziram resultados que não estavam sob o controle de ninguém. O código
civil de qualquer país do ocidente e, de fato, toda a legislação moderna, por exemplo, certamente
sofrem a influência do código de Napoleão. Napoleão chamou uma comissão de juristas que escrevia
de um modo e ele riscava e dizia que não era daquele jeito, mas de outro. Ou seja, o código saiu da
cabeça dele e, a partir desse momento, o impacto foi formidável. Mas se não temos consciência do
modus raciocinandi, das razões que Napoleão teve para fazer isto desta maneira e não de outra,
sofremos o impacto de novas legislações cujas razões profundas não conhecemos. Ou seja, não
estamos capacitados para discutir aquilo.

Hoje em dia todo mundo acredita que existe o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade
de opinião. Eu não acredito porque, para haver liberdade de opinião é preciso, em primeiro lugar,

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haver uma opinião. Mas a maioria das pessoas que exercem a liberdade de opinião não tem opinião.
Para ter uma opinião, preciso ter prestado atenção em algo. Freqüentemente vemos pessoas que falam
durante dez minutos sobre assuntos nos quais não prestaram atenção nem por dois minutos. Então
não posso chamar isso de opinião: isto é uma efusão improvisada de palavras que brotam no momento
da pessoa, mas sem nenhuma relação com o objeto do qual ela está falando. Então se acreditamos no
direito universal à expressão das opiniões, que ele é um dado primeiro e incondicional, significa que
todos têm o direito de falar pelo tempo que quiserem e todos têm a obrigação de ouvir. Então lhes
pergunto: o que é o direito à liberdade de opinião sem a contra-partida que é o direito de não ouvi-la, o
direito de ir embora? Por exemplo, nenhum de vocês está obrigado a ficar sentado aí. Vocês estão
porque querem, mas têm o direito de ir embora a qualquer momento.

A própria idéia de direito à liberdade de expressão, à liberdade de opinião está condicionada ao mérito
da opinião, ao valor da opinião. E esse valor é condicionado, no mínimo, pelo interesse que o próprio
opinante tem no assunto. Imagina que o sujeito não se interessou pelo assunto o suficiente para se
informar a respeito dele por cinco minutos que sejam. Por que ele teria o direito de falar sobre o
assunto durante seis minutos e teríamos que escutá-lo? A conquista de uma opinião, portanto, é o
primeiro passo para o exercício efetivo da liberdade de opinião. É evidente que quando o indivíduo
expressa sua opinião numa assembléia, ele está de certa maneira se personificando; está dizendo: este
sou eu, sou o camarada que pensa assim e assado. Dali em diante, ele será encarado como
representante daquela opinião. Mas, se o sujeito dá uma opinião que pensou na hora e da qual não vai
se lembrar nos próximos dez minutos, ele personifica o quê?

É só reparar um pouco nas discussões públicas que acontecem no Brasil e percebemos um fenômeno
esquisito. Sabemos que as pessoas lêem pouco; os jornais de grande tiragem vendem hoje cerca de um
milhão de exemplares, sendo que vendiam o mesmo na década de cinqüenta. Ou seja, a população
cresceu formidavelmente, o número de escolas cresceu mais ainda, e as pessoas continuam lendo a
quantidade de jornais que liam na década de cinqüenta. Quanto aos livros, não tenho cálculos mais
atualizados, mas na década de noventa havia menos livrarias no Brasil do que na década de cinqüenta.
Apesar dessa total falta de interesse em saber das coisas, as pessoas sempre têm interesse em opinar.
Dificilmente vemos um repórter perguntar a uma pessoa na rua o que ela acha disso ou daquilo e
receber como resposta: não sei, estou por fora do assunto. Nunca vi isso. As pessoas consultadas
sempre têm opinião sobre qualquer coisa.

Vendo isso ao longo dos tempos, vi que esse é um traço antropológico muito estranho: uma sociedade
onde as pessoas não se interessam pelo assunto, mas têm um interesse brutal em opinar a respeito
dele. Não estranhamos isso apenas porque já nos acostumamos, mas essa é uma conduta anormal. É
uma anomalia que, repetida ao longo do tempo, acabamos achando que é normal.

Ora, se tentamos convencer as pessoas de que existe um negócio chamado cidadania e que esta inclui o
direito de opinar sobre questões públicas - e todos estão persuadidos disso - e ao mesmo tempo não
cria a percepção de que para ter uma opinião é necessário ter prestado atenção no assunto, o que
estamos fazendo com essa cidadania? A está transformando numa espécie de bolha de sabão, numa
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fantasia, numa mentira e numa paródia de si mesma. A noção de cidadania e de exercício da cidadania
faz sentido a partir do momento em que as pessoas têm realmente opiniões, não confundindo a
opinião com uma efusão qualquer de palavras que brota do inconsciente ou que foi ouvida num
anúncio de rádio anteontem e o sujeito repete. Esse tipo de falatório é a degradação da liberdade de
opinião, ele não é a própria liberdade de opinião. Sobretudo porque se espera que o exercício da
liberdade de opinião contenha dentro de si a possibilidade de uma repetição, de uma reiteração e de
uma luta pela própria opinião. Supõe-se que a opinião de um indivíduo valha algo para ele e, por isso,
ele luta por ela. Mas se o sujeito não precisou pensar no assunto, se a opinião não lhe custou nada,
quanto ela vale para ele? E a pergunta fatídica: por que devo prestar atenção à sua opinião por mais
tempo que você levou para formulá-la? Se você levou dois minutos pensando no assunto, por que devo
ouvi-lo durante três? Quando queremos que os outros façam o que não quisemos fazer, que sejam o
que não somos, entramos diretamente no culto à Papai Noel. E chamar isso de formação da cidadania
é achar que puerilizar as pessoas é torná-las cidadãos. Um homem que acha que os outros têm
obrigação de ouvi-lo só porque ele é bonitinho é exatamente como aquela criança que, quando vem
visita em casa, começa a fazer palhaçada e todos têm que achar bonito e passar a mão em sua cabeça.
Qualquer cidadão que se atreva a falar em púbico com essa expectativa está se aviltando, está
permitindo que a situação lisonjeie seus desejos pueris. Evidentemente não é esse tipo de formação do
cidadão a que visamos.

Educar o cidadão em primeiro lugar não é educá-lo para falar, mas é educá-lo para saber, quer ele fale
ou não. A famosa participação é apenas um exercício de uma força interior, de um poder que o
indivíduo tem. A educação liberal consiste em dar a ele este poder, esta força interior e não em lhe dar
os meios e as oportunidades de exercê-los.

Você já conheceu alguma pessoa que não tivesse nenhuma opinião sobre a sociedade em que vivemos?
Acho que a minha avó não tinha mas ela foi a última pessoa. Se perguntasse isso para a minha avó ela
perguntaria: " do que está falando?" Ela nunca achou que existia essa possibilidade de ter uma opinião
geral sobre a sociedade em que estava. Mas a partir da minha geração, ou talvez a de meus pais, todo
mundo foi educado para ter uma opinião sobre a sociedade, ou seja, exercer uma coisa que se chama a
crítica social. Qual é sua real possibilidade de ter uma visão crítica da sua sociedade? Em primeiro
lugar, para isso você precisaria ter uma idéia do funcionamento da sociedade. Isso leva algum tempo; é
um pouco trabalhoso. Mas mesmo que tivesse a visão geral, você acredita realmente que o membro de
uma sociedade consegue colocar a cabeça para fora dela, acima dela, e julgá-la desde cima? Se todos
somos de certo modo produtos da sociedade em que estamos, nossas opiniões, incluindo as negativas
que sobre a própria sociedade, são criações dela mesma e fazem parte do mesmo mal que denunciam.
A única possibilidade de haver uma crítica social legítima, que funcione, é a de que o indivíduo
humano de algum modo se coloque acima da sociedade e consiga ver nela algo que ela mesma não vê.
É necessário que a consciência dele esteja acima do nível de consciência que aparece nas próprias
discussões públicas. Para criticar minha sociedade como um conjunto, preciso me colocar numa
perspectiva que me permita vê-la como objeto, e daí já não sou mais um personagem ou um
participante da coisa, mas um observador superior; consegui uma posição acima da confusão, de onde

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posso ver o que está acontecendo e julgar o sentido geral das coisas. Assim como para opinar numa
briga entre marido e mulher é preciso que você não seja nenhum deles. Quando um casal com um
problema vai procurar um conselheiro matrimonial ou um psicólogo, está supondo que ele tem um
ponto de vista superior a cada um deles.

No que consiste esse ponto de vista superior? Consiste em que se tenha um critério de julgamento que
se sobrepõe às paixões e interesses em jogo naquele momento. Supõe-se, portanto, que você tenha um
conhecimento que o restante da sociedade não tem. Dito de outro modo, você julga a situação real à
luz de uma norma, mas esta norma só será válida se não tiver sido criada pela própria situação. Vamos
voltar ao exemplo do marido e mulher: a mulher está acusando o sujeito de não trazer dinheiro
suficiente para casa e ele a está acusando de não desempenhar as tarefas domésticas a contento. Qual
a norma que vai servir para julgar? Pode ser a opinião de um ou a opinião do outro? Não, a norma tem
que ser uma terceira coisa que sirva para arbitrar as duas ao mesmo tempo. Ou seja, você tem que ter
uma medida do justo e do injusto e esta medida não pode ter sido criada nem pela opinião de um, nem
pela opinião do outro. No caso, trata-se de uma proporção entre direitos e deveres. É só o
conhecimento dessa norma ou dessa proporção que lhe permitiria julgar a situação e ver qual é a cota
de razão e de desrazão que haveria nessa discussão. O problema é: de onde vamos tirar essa norma. Se
ela foi criada pela própria situação, apenas expressa um dos lados em conflito. Então ela tem que ser
transcendente à situação. Assim como no julgamento de um processo criminal, o sujeito matou outro,
roubou outro, aplicou estelionato: o tribunal vai julgar aquela situação à luz de uma lei que transcende
a situação.

Se pegarmos nossa sociedade como um todo ou a parcela da história que conhecemos, todos temos
opinião a respeito, mas raramente nos preocupamos com o problema da norma. Se digo que a
sociedade é injusta, é injusta em face de que norma? Qual é a norma com que estou julgando? Ou
tenho uma norma que seja efetivamente superior ao horizonte de consciência da discussão pública, ou
não posso julgar. Ou, então, estou tomando partido dentro de um conflito e em seguida sou eu mesmo
um membro desse conflito. Estou raciocinando, portanto, em circuito fechado, como um cachorro que
persegue o próprio rabo.

Existem situações, no entanto, onde aparece um sujeito que tem um conhecimento que a sociedade
não tem. A história de Moisés na Bíblia, por exemplo: Moisés faz uma crítica da situação, a situação do
cativeiro dos judeus no Egito. Ele acha que a situação está ruim por isso, por isso e por isso. E se lhe
dissessem que a situação é assim desde que o mundo é mundo? que sempre foi assim e sempre será
assim? Que sentido faz você criticar uma coisa que não tem remédio de maneira alguma? A crítica
estaria anulada. Mas Moisés podia criticar, porque ele tinha conhecimento do que veio antes e do que
viria depois - o conhecimento profético. Tinha conhecimento de que seu povo podia ser retirado dali e
ir para um outro lugar onde teria uma vida melhor. E de fato fez isto. Como sabemos que Moisés sabia
algo que os egípcios não sabiam? Porque provou que sabia. Com a travessia do Mar Vermelho, ele
provou que enxergava a situação dos judeus no Egito desde um ponto de vista superior ao da situação
real. Sabia que podia fazer e como fazer e, de certo modo, conhecia o futuro. Esse futuro era invisível

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para os participantes da situação. Era invisível tanto para os egípcios quanto para os judeus. Eles
demoraram quarenta anos para ouvir o que aquele homem tinha a dizer. Esse é o protótipo da crítica
social válida.

Outra crítica social válida também é feita por Sócrates. Sócrates critica uma situação estabelecida à
qual ele não se considera superior. Quando Sócrates é condenado por um tribunal ateniense, se dirige
a esse tribunal do ponto de vista de um homem que já morreu. Ele praticamente se considera morto e
diz: olha, realmente não sei se vocês ao me condenarem me fizeram um malefício ou um benefício,
porque não sei exatamente o que é a morte; tenho a impressão de que talvez seja melhor depois, que
talvez vocês tenham me feito um benefício. A consciência do desconhecimento da morte é uma norma
válida para o julgamento de qualquer situação humana. Todos sabemos que vamos morrer; e todos
sabemos que não sabemos precisamente o que é a morte, o que se desenrola nela e depois dela. Isto
nos dá uma base firme para julgar todas as situações humanas.

Me lembro de uma conferência brilhante que o filósofo espanhol Julian Marías fez no Brasil, na época
em que a junta militar havia instituído a pena de morte. Durante a conferência lhe perguntaram se era
a favor ou contra a pena de morte e ele disse: "sou contra por um simples motivo: não sei o que é a
morte e não tenho o direito de condenar um sujeito a uma coisa que eu não sei o que é; sei o que é
prisão, trabalhos forçados, mas morte, eu não sei o que é e esses senhores também não." Então, na
hora em que o indivíduo emite este julgamento, coloca-se não apenas acima da discussão pública, mas
quase que infinitamente acima dela, porque a discussão pública é feita em termos de posições
relativas, de posições que podem ter sua validade maior ou menor numa ou noutra situação. Mas, de
repente, chega o filósofo e diz algo que independe de toda a discussão. No meio das relatividades, ele
entra com o absoluto. O absoluto é este: não sei o que é morte e vocês também não sabem, e ponto
final. Nenhum de nós morreu para contar como é. Isto é o senso da medida. Em certos momentos,
portanto, a consciência pode se colocar infinitamente acima das questões públicas e encará-las desde
uma medida supeiror que lhe permite um julgamento justo.

Infelizmente isso não acontece sempre. Freqüentemente nos debatemos em questões onde nos falta a
medida e não a encontramos. A única coisa que sabemos é que esse senso da medida universal pode
ser desenvolvido nas pessoas pela consciência da dimensão histórica, pela consciência dos sucessivos
patamares de consciência alcançados ao longo do tempo. Porém, o indivíduo que não recebeu a
informação sobre este caso de Moisés, ou simplesmente não meditou sobre o assunto, simplesmente
não tem idéia de que uma certa situação pode ser julgada em face de uma possibilidade concreta de
mudá-la. Note bem, não é um desejo de mudá-la, mas uma possibilidade concreta conhecida de
antemão. No caso, Moisés sabia porque Deus contou para ele. Podia ter sabido de outra maneira. Mas
ele não achava que a situação dos judeus na época era ruim apenas porque sim, mas era ruim em face
de um poder do qual Deus tinha investido esse povo antes e em face de uma promessa que Ele tinha
feito para o futuro. Então, encaixando aquela situação numa sucessão histórica perfeitamente
conhecida, podemos dizer que Moisés podia julgar que aquela prisão era ruim, porque ele sabia onde
estava a porta.

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Agora, se estudarmos a história do século XX, veremos uma infinidade de revoluções, golpes de
estado, mudanças políticas feitas por pessoas que criticavam a situação e que diziam poder mudá-la
para melhor e que produziram situações infinitamente piores. Na década de oitenta, por exemplo, um
cidadão soviético consumia menos carne do que um súdito do czar em 1913. Isto significa o seguinte:
Lenin e Trotsky não sabiam onde estava a porta; propuseram uma mudança não porque tinham
perfeito conhecimento da possibilidade concreta de realizá-la, mas apenas porque queriam. É o caso
de a gente dizer que este tipo de crítica social não é legítima: você está criticando uma situação mas
não é melhor do que a situação, é apenas um componente dela; ou seja, a sua crítica não é uma
crítica, é apenas uma queixa, é um sintoma da própria situação, e portanto não podemos confiar em
você para resolver a situação. Na hora em que você passa por um sofrimento e diz 'ai', o 'ai' não é uma
crítica válida da situação, é apenas uma expressão dela. Tanto que dizer 'ai' não vai curar você de
maneira alguma.

Ao longo de todo o século XX, vemos que a crítica social, em sua quase totalidade, nunca passou de
expressão ou de sintoma da situação. Raramente se viu um empreendimento vitorioso de
transformação da sociedade com base na crítica, que produzisse exatamente o resultado prometido.
Isto significa que, desde o tempo de Moisés ou Sócrates, a nossa capacidade de crítica social diminui
formidavelmente. Simplesmente não entendemos a sociedade, não gostamos da sociedade;
gostaríamos de mudá-la, mas não chegamos a perceber que nossa revolta e nosso próprio desejo de
mudar são apenas sintomas da própria situação social e, portanto, impotentes não somente para
mudá-la, mas até para fazer uma crítica objetivamente justa.

São essas constatações que nos colocam a necessidade de conquista de um patamar ou de uma medida
justa e universal, em função da qual a crítica possa ser feita. Todo ser humano tem essa possibilidade
e, de certo modo, tem esse direito porque embora seja, sob muitos aspectos, um produto, um efeito ou
uma criação de sua sociedade, há algo nele que transcende a sociedade. Há no mínimo a estrutura
biológica. Não houve nenhuma sociedade que mudasse substancialmente a estrutura anatomo-
fisiológica do ser humano. Esta é uma constante. Portanto cada um de nós pode dizer que é fruto da
sociedade brasileira? Bom, sou fruto da sociedade brasileira, mas sou membro da espécie humana e,
como membro da espécie humana, existem em mim fatores estruturais constantes que já existiam
antes de o Brasil existir e que vão continuar existindo depois que o Brasil acabar. Portanto, como
membro dessa espécie animal chamada espécie humana, tenho em meu próprio corpo um dado que
transcende a situação histórica em que vivo. É claro que não é só a estrutura anatomo-fisiológica do
homem que transcende a situação histórica, existem muitos outros aspectos.

Ao longo da história humana, muitos desses elementos estruturais, constantes e universais foram se
revelando à nossa consciência. E foram registrados em obras, depoimentos e atos desses seres
humanos. A aquisição desse legado é o que é propriamente o que chamaríamos hoje de educação
liberal, que, nesse sentido, é a formação do cidadão consciente e portanto capaz de julgar não só fatos
da sociedade, mas a própria sociedade como um todo.

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Formar um homem desses não é fácil. As situações vão se tornando cada vez mais complexas e, de
repente, vêem-se emergir no cenário da história situações absolutamente novas que, apesar de todos
os dados que acumulou em toda a sua educação, você não é capaz de compreender. Surge, por
exemplo, um fenômeno como o totalitarismo moderno, como nazismo, fascismo e comunismo -
fenômenos supremamente esquisitos, que tudo o que a humanidade ocidental sabia até o século XIX
não bastava para explicar.

A idéia de que tratados internacionais fossem feitos não para ser cumpridos, mas apenas para ser
usados como armadilhas para os inimigos: isso foi uma novidade na história. Até o século XIX todo
mundo acreditava que tratados eram para ser cumpridos. De repente aparece um estado, a União
Soviética, que acha que não é bem assim, que não é importante cumprir os tratados, mas sim apenas
assiná-los. De um momento para outro, os tratados se transformam em instrumentos não para limitar
a ação dos contratantes mas, ao contrário, para dar mais possibilidades de ação contra os demais
contratantes. Hitler levou essa idéia a um nível alucinante: cada compromisso que Hitler assinou foi
assinado com a finalidade específica de não ser cumprido. Nos acostumamos tanto com isso que hoje
achamos natural.

Certas possibilidades de uso de violência assassina contra países inimigos não entraram na cabeça
humana antes do século XX. A guerra sem declaração de guerra é um exemplo: você está em guerra
com outro país mas não sabe; de repente soltam uma bomba no seu território. Isso foi mais uma
novidade do século XX. Outro exemplo é o ataque sistemático às populações civis: não existe mais a
noção de campo de batalha. O que é campo de batalha? É o lugar onde você vai para fazer a guerra. No
século XX isso desapareceu. Não há mais campo de batalha, há guerra onde você estiver.

Quando começaram a suceder, esses fatos deixaram as pessoas desorientadas; não havia como
explicar. Vemos, portanto, o avanço do totalitarismo no século XX e a impotência da inteligência
humana para explicar esse fenômeno na época, já que somente hoje temos uma compreensão mais
adequada do fenômeno totalitário. Notamos, então, que às vezes acontecem coisas novas e que mesmo
a acumulação de todo o legado desses depósitos de consciência adquiridos ao longo dos séculos não é
suficiente para nos situar. Seria necessária uma outra abordagem e as primeiras tentativas de
diagnóstico falham, porque estão comprometidas de certo modo, inconscientemente, com o mesmo
circuito produtor de idéias que geraram o fenômeno. Você tenta investigar o fenômeno, mas faz parte
dele; tenta diagnosticar a doença, mas também está doente. Um exemplo característico é o livro da
Hannah Arendt sobre o totalitarismo. Ela investiga, investiga e pega a pista certa: diz que os
fenômenos totalitários não querem criar uma nova sociedade, querem modificar a natureza humana. A
pista é exatamente esta. Só que, mais adiante, escorrega e diz que acredita na possibilidade de mudar a
natureza humana, apenas não por meios violentos. E com isso aí a descoberta influencia a visão de
quem descobriu, porque se é possível para o Estado mudar a natureza humana por meios não-
violentos então, prestem bem atenção, a diferença específica do totalitarismo deixa de ser o projeto de
mudar a natureza humana e passa a ser apenas o emprego da violência. A especificidade do fenômeno,
portanto, se perdeu. Assim, Arendt não consegue levar o diagnóstico até o fim. Mas ela escreveu o livro

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no calor do momento e não podia enxergar a situação com toda a clareza; foi um dos primeiros
diagnósticos abrangentes que se tentou. Se investigasse mais um pouco veria que, ao longo dos
séculos, não surgiu nenhuma idéia ou doutrina política que visasse a mudar a natureza humana. Todas
tomavam a natureza humana, fosse qual fosse, como pressuposto. Consideravam-na fenômeno de
ordem natural, cósmica, biológica, no qual a sociedade não pode mexer.

Foi só no século XX que se acreditou que, através da formação de um certo Estado, leis, burocracia, se
poderia mexer na própria natureza humana. É a diferença que existe entre você ser um criador de
animais, como vacas e galinhas, ou você transformá-los em outra coisa: a idéia de transformá-los em
outra coisa rigorosamente nunca tinha aparecido na mente humana até o século XX.

Hoje, passados cem anos, temos uma compreensão um pouco maior do fenômeno totalitário, mas para
isso foi necessário remanejar todo o legado de conhecimentos e repensar a coisa sob mil aspectos.
Embora não seja sempre infalível, esse processo de recuperação do legado é a única esperança que
temos de entender a nossa situação existencial. Não existe nenhum outro meio. Aliás, existe um outro
meio; existe o que a Bíblia chama de sabedoria infusa: Deus e os anjos infundem em você, sem que
saiba. Vai dormir sem saber e acorda sabendo. Tirando esta hipótese, a única outra hipótese que existe
é a da acumulação do legado da consciência humana ao longo dos séculos. A finalidade da educação
liberal é exatamente esta. E isto é simples: consiste na aquisição dos documentos necessários, no
estudo desses documentos e na revivescência das experiências cognitivas e existenciais que estão
registradas nesses documentos. Ou seja, você vai ler a Bíblia, Platão ou Aristóteles, não no sentido
apenas de adquirir informação, mas no sentido de tornar suas as experiências cognitivas que se
registraram nesses documentos.

Por exemplo, Aristóteles insiste muito numa coisa que chama maturidade. Maturidade não no sentido
fisiológico, mas no sentido intelectual. O homem maduro é o homem que teve certas experiências e
aprendeu com elas. Uma dessas experiências é a plena experiência da norma, da existência da norma.
A maior parte das pessoas simplesmente não teve isso; vê as coisas acontecerem e as opiniões se
entrechocarem, mas nunca chegou a experienciar as famosas leis não-escritas de que fala a tragédia
grega. Por exemplo, em Os suplicantes de Sófocles, dois jovens gregos fogem do Egito, onde o rei
queria obrigá-los a um casamento que não desejavam, e vão parar numa ilha. Nesta ilha pedem asilo
ao rei local. O rei fica num dilema porque, por um lado, havia uma tradição de dar asilo a quem pede e,
por outro, dando asilo ele se arriscava a uma guerra contra o Egito. Ele imediatamente argumenta
para os jovens: " na legislação egípcia não há nada que impeça o rei de obrigá-los a casar com quem
vocês não querem, portanto o rei do Egito não cometeu nenhuma ilegalidade" . E eles respondem: " é,
mas acima das leis do Egito há as leis não-escritas, há as leis divinas. A lei divina diz que ninguém
pode ser obrigado a casar contra sua vontade." O rei se toca com aquilo e, em seguida, tem outro
problema: o regime na ilha era constitucional e ele não era monarca absoluto. Tem, portanto, que
levar o problema à assembléia. Reúne, então, a assembléia e, por meio de um longo e tocante discurso,
consegue persuadir a assembléia a aceitar o risco da guerra, para não infringir as leis não-escritas.

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A tragédia grega era um acontecimento cívico, não apenas um espetáculo teatral. Era um
empreendimento promovido pelo governo para a educação dos cidadãos. Nessa tragédia e em muitas
outras, qual é a mensagem transmitida? A idéia de que um país é obrigado às vezes a se colocar em
risco para não infringir as leis não-escritas. Ou seja, esse governo argumentava contra si mesmo,
contra seu interesse, e educava as pessoas assim. É claro que o momento da história em que aparece a
tragédia grega é um momento excepcionalmente luminoso na história da consciência humana. Há
inúmeras tragédias gregas onde se concede razão ao inimigo da pátria, o troiano. Toda a educação
recebida na escola, os discursos políticos etc., induziam as pessoas ao patriotismo e a tragédia entrava
como elemento compensador, para que as pessoas não tomassem em sentido absoluto os valores do
patriotismo, porque esses valores eram relativizados por valores mais altos. Então, quando existe uma
comunidade política capaz desse nível de consciência, é evidentemente um momento luminoso da
história. E o milagre grego de que falamos não pode, evidentemente, ser encarado apenas em termos
de realizações estéticas ou científicas, mas sobretudo como um momento culminante na história da
consciência humana.

Existem muitos outros momentos de consciência exemplar na história. Um é a história que se passa
com o genro de Maomé, Ali. Um excelente orador, cujos discursos estão entre os mais belos da
literatura universal, Ali foi um fracasso total como político, mas um grande guerreiro. Conta-se que,
numa das batalhas, ele encurralou um inimigo, conseguiu desarmá-lo e encostou a espada em sua
garganta. O inimigo então o xingou; ele ficou perplexo, colocou a espada na bainha e foi embora. Em
seguida, o inimigo diz: " você está com a espada na minha garganta, me derrotou, e só porque o
xingo... venci você com um xingamento?" Ele diz: " não, não é isso, é que fiquei com raiva de você, e se
o matasse, eu não seria mais um guerreiro, seria um assassino, porque o teria matado por raiva
pessoal e não tenho nada contra você. Isso aqui é guerra.." Esta ética guerreira durou séculos. Até o
século XIX ainda havia amostras de um espírito de luta cavalheiresco que predominava na guerra.

Há outro episódio famoso que se passa entre príncipes muçulmanos e espanhóis. Uma batalha estava
prestes a ocorrer em determinado lugar e os muçulmanos erraram o caminho. Em vez de parar no
lugar da batalha, foram parar no castelo do príncipe espanhol que iria combatê-los. Só que o castelo
estava vazio, só estavam lá a rainha e suas aias, mucamas e crianças. Conta-se que a rainha saiu do
castelo e passou-lhes um sabão: "não têm vergonha de encurralar mulheres e crianças assim?" Eles
pediram desculpas e foram embora.

Se comparamos isso com o panorama do século XX, onde vemos, não massas de população, mas elites
intelectuais capazes de se fecharem completamente à metade da realidade, para encarar somente a
metade que lhes interessa, então, de fato, nossa comunidade política está infinitamente abaixo do
nível de consciência daquelas comunidades.

Imaginem o que aconteceria hoje em qualquer país do mundo. O que aconteceria com o sujeito que
dissesse que não ocupou a cidade porque só havia mulheres e crianças? Iria para a corte marcial. Seu
dever militar se sobrepõe ostensivamente às normas não-escritas, as quais não são sequer levadas em
consideração. Elas simplesmente não existem mais. O que há hoje, não é só um fenômeno de
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imoralidade, mas um fenômeno de baixo nível de consciência, porque o indivíduo acredita que aquele
interesse militar imediato é real e que a norma não-escrita é irreal. Ele infringe a norma não-escrita,
porque acredita que ela não existe, que é apenas invenção, produto cultural, crença. Só conhece a
norma não-escrita, por referência escrita ou oral, ouviu falar que existe, mas não tem experiência
pessoal dela. Não há nem a situação do indivíduo que, através da educação, chegou a perceber que
essas normas não-escritas efetivamente existem.

Dike é a idéia grega justiça cósmica; é uma experiência que se pode fazer, não uma invenção cultural;
uma experiência que requer certo nível de maturidade. Então, quando Aristóteles enfatiza que
somente o homem maduro pode guiar a comunidade, está se referindo aos homens que conseguiram
absorver um certo número de experiências decisivas, que colocam a sua alma um pouquinho acima do
nível de consciência de sua comunidade. Não quer dizer que precisem ser santos ou profetas ou heróis,
mas são simplesmente pessoas que têm uma amplitude anímica um pouco mais vasta, porque
chegaram a ter certas vivências. Quando não temos isso e, não obstante, temos uma formação
universitária, um diploma, e as julgamos as situações evidentemente pelas experiências que temos. No
começo do século XX, houve uma série de antropólogos que saíram pelo mundo fazendo
recenseamentos dos usos e costumes dos vários lugares. Quando notaram que aquilo que era proibido
num lugar era obrigatório no outro, tiraram a conclusão de que todas as normas eram culturalmente
relativas. Isto foi especialmente divulgado no mundo por Margareth Mead e Jules Benedict. Eles
fizeram um sucesso tão grande que, hoje em dia, essa convicção do relativismo antropológico é tida
como um dogma: todas as morais são culturalmente relativas. É no mínimo curioso que nunca
ninguém tenha feito a seguinte pergunta: me aponte uma sociedade onde o homicídio seja legítimo?
Ou, me aponte uma sociedade onde o casamento seja proibido. Ou, me aponte uma sociedade onde
qualquer forma de conhecimento seja proibido. Simplesmente não existem tais sociedades. Isso quer
dizer que, por baixo da variação acidental de normas aqui ou ali, existe uma infinidade de normas
universais que nunca foram contestadas por civilização ou cultura alguma. A lista das regras e normas
permanente é infinitamente maior do que a das normas variáveis. Então isso quer dizer que esses
antropólogos, baseados em sua pequena experiência acidental de ter conhecido uma ou duas
comunidades, generalizaram para a espécie humana, de modo que a visão total da humanidade fica
reduzida ao tamanhinho da amplitude de consciência de dois ou três antropólogos, que viram meia
dúzia de coisas. Nas ciências humanas, isso se tornou norma no século XX: o indivíduo proclama que
tudo o que ele não viu não existe e tudo o que está fora de seu círculo de experiência só pode existir
como invenção, como crença ou como criação cultural e portanto não tem importância nenhuma.

Uma educação baseada nisso seria uma deseducação, porque ela está de cara bloqueando a
possibilidade de certas experiências.

A humanidade toda deixou documentos de pessoas que conversaram com Deus. Eles não existiram?
São milhões e milhões de documentos, falei com Deus e obtive tal resposta. Falar com Deus e obter tal
resposta é uma experiência. É algo que acontece ou não acontece. Não é uma teoria evidentemente, é
um fato, ou ele é fictício ou ele é real. Algum antropólogo de alguma universidade já convidou alguém

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para fazer essa experiência e ver o que acontece? Alguém ensinou a você: para falar com Deus é assim
e assado, a coisa tem uma lógica, requer um certo tempo, tem um vai-e-vem, tem um feedback? Não,
porque eles também não sabem. Dizem que houve pessoas que acreditaram em Deus, Deus é uma
crença e nada sabemos a respeito. Como nada sabemos a respeito? E esses depoimentos todos? Vamos
fazer de conta que nada disso existiu? Toda essa gente estava no mundo da lua e você foi o primeiro
que descobriu a realidade? Construíram-se civilizações, legislações, sociedades, vidas humanas, tudo
em cima disso, e era ficção? Prefiro apostar na hipótese contrária de que esse pessoal todo sabia do
que estava falando. Ou seja, algo nos aconteceu e se não temos o mínimo acesso a esse tipo de vivência
então nada sabemos a respeito, e não é uma atitude científica rotular de crença o que você não sabe o
que é.

Durante quanto tempo você é capaz de manter um fio de raciocínio dentro de si, sem se dispersar
completamente? Vamos chamar de raciocínio, o encadeamento de silogismos - premissa maior,
premissa menor, conclusão. Quantos silogismos em linha você é capaz de fazer dentro de si, sem se
dispersar e perder o fio da meada? Um, dois e olhe lá. Isto quer dizer que a dispersão é o seu estado
habitual. Compare-se, por exemplo, a um praticante de uma mística ascética qualquer, que aprende a
se concentrar numa palavra ou um nome que designa uma qualidade divina durante, digamos,
dezesseis horas seguidas; que aprende a afastar qualquer outro pensamento de sua mente. Você acha
realmente que a visão que o homem disperso tem pode ser idêntica à do homem concentrado? É claro
que não. Isto quer dizer que, em outras épocas, houve homens muito concentrados, capazes de
limpidez de pensamento, de auto-consciência - e logo explico o que quero dizer com essa auto-
consciência - e que tiveram acesso a certas experiências e deixaram testemunhos delas, e esses
documentos são preciosos. Mais tarde, aparece um sujeito sem concentração nenhuma, uma alma
totalmente dispersa, totalmente fragmentada, com auto-conhecimento precaríssimo, dizendo que tudo
são crenças. Ora, faça-me o favor!, isto é a anti-educação. Se queremos entender esses documentos,
temos que criar a condição psicológica para refazer as experiências que estão subentendidas neles.

Alguém já ouviu falar da prece perpétua? É uma técnica da igreja ortodoxa. Existe um livro
extraordinário sobre isso chamado "Relatos de um peregrino russo" - uma abreviatura de milhares de
escritos dos místicos ortodoxos ao longo do tempo. O peregrino russo é um homem simples que um
dia ouve na missa o padre dizer a sentença de Jesus: orai sem cessar. Ele diz: " como orai sem cessar?
Ninguém pode orar sem cessar, a gente reza e depois vai fazer outra coisa." Sai então procurando,
pergunta para um, pergunta para outro, até que encontra um monge que diz: " você vai rezar junto
com o ritmo de sua respiração, vai dizer Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim; e vai dizer isso
com plena intenção; você só quer uma coisa na vida: que Jesus tenha pena de você. Vai esquecer todo
o resto e vai fazer isso, vinte e quatro horas por dia, pelo resto de sua vida." Talvez, se conseguir
prestar atenção na piedade divina, com um pouco dessa concentração, acabe percebendo que ela
existe. Agora, pelo simples fato de ter lido sobre esse negócio de piedade divina, você diz que isso é
crença? Mas, como? Você conhece a coisa, sabe do fenômeno que está sendo falado, ou sabe somente
as palavras?

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Assim como esta prática existem milhares no mundo - budistas, judaicas, islâmicas, hinduístas e
outras. Tudo isto é totalmente desconhecido do ensino moderno. O ensino se tornou uma arte de falar
sobre coisas que se desconhece completamente. Não estou me referindo ao ensino religioso. Se pedir
ao padre, ao rabino, ou ao aiatolá, ele vai ensinar a você algumas coisas da religião dele, o formulário
de crenças dele, e vai dizer que todas as outras não interessam. Ele também já não está falando de
experiências, está falando de uma crença determinada. Não é disso que estou falando. Estou falando
de realidades e não de formulários de dogmas que dizem que isso está certo e aquilo está errado. Do
mesmo modo, as experiências subjacentes à filosofia de Platão ou à filosofia de Aristóteles também são
condições indispensáveis para que você as compreenda. Quando Platão falava na Academia, ou
Aristóteles no Liceu, eram literalmente homens maduros falando com outros homens maduros. Não
era uma discussão entre almas dispersas.

Todos aqui já sentiram, por exemplo, acessos de tristeza ou de desespero que não sabiam de onde
vieram. Todo mundo já teve isso. Ora, se existe algo na sua própria alma que você não sabe de onde
veio, existe um conteúdo que é estranho a você. Ou seja, a sua alma é tão conhecida sua, quanto uma
cidade onde acaba de desembarcar pela primeira vez; você está perdido dentro de você. Sua alma é o
instrumento pelo qual você conhece o mundo, mas se ela própria é tão desconhecida assim, quantos
metros espera avançar no caminho do conhecimento, antes de ter limpado as lentes com que vai olhar
este mundo? Uma certa limpidez da alma, portanto, um certo conhecimento do indivíduo por ele
mesmo, de modo que ele saiba de onde vêm suas emoções, de onde vêm seus desejos e o que o compõe
efetivamente por dentro, são condições sine qua non da verdadeira educação. Não existe a educação
sem o efetivo auto-conhecimento. Mas, se num curso de filosofia universitário, você levantar este
problema, dirão: "se quer auto-conhecimento, que vá procurar um padre ou um psicanalista, que nós
estamos aqui para estudar filosofia." Que raio de filosofia é esta que não se preocupa nem em saber se
a alma do sujeito está habilitada para aquilo? Que raio de ensino é este que não cumpre a condição da
maturidade que o próprio Aristóteles e o próprio Platão colocam como condição básica para o estudo
da filosofia? Isto quer dizer que, ao longo dos tempos, a noção de educação foi sendo perdida. Ela é
conservada apenas em núcleos muito limitados; há grupos de pessoas que sabem e continuam
cultivando aquilo, como sempre. Mas o ensino de massas, público e privado, não está dando às
pessoas senão um grosseiro simulacro de educação. Não cabe a mim julgá-lo ou modificá-lo; não sou
ministro da educação, nem quero ser. Se me pedissem um projeto de educação nacional, me
esconderia debaixo da cama e pedir socorro à minha mãe. Esse problema está acima da minha
capacidade, como está acima da capacidade do ministro da educação ou de qualquer outro que ocupe o
lugar dele.

A educação requer sobretudo essa situação: há o professor e os alunos. Querem um plano de educação
para vocês? Esse, eu sou capaz de inventar, dentro de um universo operacional abarcável. O professor
conhece seus alunos, sabe até onde pode levá-los e sabe o que pode fazer, isto é o máximo. A idéia de
um plano de educação que abarque toda uma nação, isto para não falar em toda a humanidade, como
faz a ONU hoje, é evidentemente simulacro, não existe. Os planos atuais de educação que estão sendo
impostos no mundo inteiro pela ONU, que é para a formação do cidadãozinho perfeito da Nova Ordem

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Mundial, foram inventados na década de cinqüenta por um sujeito chamado Robert Muller, que era
discípulo de uma pseudo-esoterista chamada Alice Bailey, uma mulher completamente maluca, da
doutrina dos raios cósmicos, que conversava com extra-terrestres; esse cara pega as obras de Alice
Bailey, adapta para a formação de um plano educacional mundial e este plano está sendo implantado.
Evidentemente isto é uma caricatura grotesca. Quando falo dessas coisas, estou falando de mística
verdadeira, coisas que foram acumuladas ao longo de cinco mil anos de judaísmo, dois mil anos de
cristianismo, mil e quinhentos anos de islamismo, quase dez mil anos de hinduísmo, não de uma
doida americana que conversou com extra-terrestres. Então, o sujeito que aprendeu com esta
visionária de extra-terrestres pode fazer um plano para educar o mundo e eu, que aprendi coisa
melhor, só tenho um plano para educar vocês. É porque sei o que é educação e esse sujeito
evidentemente não sabe. Sei quanto é complexa a educação, o quanto ela requer de contato direto e
comprometimento total do professor com seus alunos, porque se trata não apenas de transmitir certos
conhecimentos, mas de elevar o indivíduo para a possibilidade de certas experiências interiores, que
darão poder à sua inteligência e poder à sua capacidade cognitiva. Educar é transmitir um poder. E
esse poder, não posso injetar em você; posso dizer mais ou menos onde ele está e você pode procurar,
posso dizer como você pode abrir a caixa e pegar o que é seu. É a partir desse enriquecimento da
experiência interior e a partir da idéia de concentração, de continuidade da consciência, que o
indivíduo se abre à possibilidade de compreensão desses documentos deixados ao longo das eras.
Informar simplesmente a existência disso já é fazer alguma coisa. Mas, além de informar, podemos de
vez em quando dar alguma dica de como o indivíduo se torna capacitado para pegar esse legado.

Durante muito tempo, o ensino ocidental esteve consciente disso. Se lemos os escritos dos grandes
educadores da idade média como Hugo de São Vitor, Santo Alberto Magno, vemos que o começo das
universidades preservou ainda a consciência disso aqui. Por volta do século XV, mais ou menos, a
universidade se torna objeto de disputa entre Vaticano e estados nacionais. A partir daí, as
universidades vão se tornando, cada vez mais, meios para fins que não são os de seus estudantes.
Ainda pertenço à escola antiga: acredito que a finalidade da educação é o estudante, é o indivíduo
humano, um cara real. O que ele vai fazer com isso depois simplesmente não é da minha conta. Acho
um assinte a promessa de educação para o desenvolvimento, porque estará pressuposto que se vai
educar o sujeito para fazer determinada coisa, e que essa coisa vai ter um resultado global x. Ou seja,
programa-se a vida inteira do cara. Educação para a paz, educação para o desenvolvimento, educação
para a cidadania, tudo isto, no fim das contas, é educar o indivíduo para uma finalidade que não é
necessariamente a dele. Então isto não é educação, é programação. A finalidade da educação, tal como
entendo e tal como foi entendida ao longo de todos os tempos, é a maturidade. O que o homem
maduro vai fazer com o que ensinei é problema exclusivamente dele, ele vai exercer a maturidade dele,
não a minha. Quando ele tiver um problema na mão a situação será outra, os dados serão outros e não
existe nenhuma possibilidade de um professor antever tudo isso. Isso significa que, uma vez
conquistada a maturidade, a finalidade da educação está terminada, acabou, seu educador tem que ir
embora para casa. E você se transforma num educador, se quiser, ou vai fazer outra coisa, pois não é
só na educação que homens maduros são necessários.

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Mas essa total desatenção ao fenômeno da maturidade, aliada a uma atenção excessiva aos usos que a
pessoa supostamente vai fazer da educação, faz com que praticamente toda a educação do século XX
faça do aluno um meio e nunca a finalidade. Ou seja, a educação se torna serva da política, serva da
economia, serva da guerra, serva de qualquer outra coisa e o aluno por sua vez se torna servo desse
processo. Acho isso uma imoralidade. Não gostaria de praticar isso. A possibilidade de uma educação
que não se encaixe nisso é evidentemente aberta, dentro do próprio sistema democrático, pela
possibilidade da educação livre. É claro que a democracia, como qualquer outro regime, também
programa as pessoas para serem servas de um plano já dado de antemão, mas ela tem uma vantagem:
não cerca o indivíduo por todos os lados, deixa aberta algumas possibilidades. A democracia induz o
indivíduo, mas não o obriga completamente. O problema é que geralmente as pessoas não sabem das
possibilidades que a democracia deixa em aberto. Ou não sabem, ou as desprezam. As possibilidades
de auto-educação e de educação livre são coisas preciosas que existem no regime democrático, das
quais temos que tirar proveito de algum modo.

A idéia mesma de que essa proposta educacional se encaixasse de algum modo dentro do esquema
educacional vigente é contraditória, afinal de contas o sistema educacional vigente tem a sua
finalidade também, a formação profissional e o adestramento das pessoas para a mecânica da
democracia. Mas é claro que a educação de massas - pública ou privada - visa a formar massas e não
indivíduos, o que quer dizer que se trocarmos todos os alunos, não faz diferença alguma. Mas na
educação verdadeira, cada indivíduo é precioso. E, até por isso, pode existir na educação efetiva o
fenômeno do aborto pedagógico. Eu mesmo já tive uma boa coleção de abortos pedagógicos, em que vi
que, num determinado momento, o florescimento da consciência é totalmente obstaculizado pelo
meio. O meio coloca no indivíduo certos conflitos que, ou o paralisam, ou o fazem até recuar. O meio
social no qual estamos trabalhando não é inteiramente hostil à educação: deixa uma certa margem em
aberto. Mas a capacidade de desestímulo que o meio brasileiro tem para a educação é absolutamente
fantástica. A curiosidade é desestimulada e o simples fato de o sujeito querer saber alguma coisa não é
considerado normal;

Outro dia estava conversando com meu irmão sobre como, quando pequeno, ele gostava de fazer
rádios de pilha. Gostava de eletrotécnica. Inventou isso sozinho, da cabeça dele, foi tentar fazer e
aprendeu. E todas as pessoas em torno achavam aquilo muito esquisito e diziam: "por que você está
mexendo com isso? Tem que se preparar para ganhar dinheiro."Em muitos meios, não
necessariamente nos mais pobres, é assim até hoje.

Vamos pensar na idéia de que o máximo de realismo que se pode ter na vida é pensar apenas em
ganhar dinheiro. Ótimo, você se dedica a algo apenas para ganhar dinheiro. Vamos supor que você
fabrique copos, mas não porque goste e sim para ganhar dinheiro. No dia seguinte pega o dinheiro que
ganhou com os copos e vai comprar água mineral. Mas acontece que o sujeito que abriu a mina e
engarrafou a água também fez para ganhar dinheiro. E com o que ganhou, também vai comprar uma
outra coisa que só foi feita para dar dinheiro. Então se você compra um sapato, este foi feito para quê?
Não para fazer sapato, mas para ganhar dinheiro, o sapato não é finalidade, a finalidade é o dinheiro.

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5/17/2019 Educação Liberal

Enfim, todas as ações do processo produtivo são exclusivamente meios, e não há uma única coisa que
se possa comprar, que valha a pena ser comprada. Ninguém fez nada para que aquilo valesse. A idéia
de que a atitude realista e madura na vida é pensar apenas no dinheiro esquece que é necessário que
exista algo que se possa comprar com o dinheiro. Que se este algo nunca é a finalidade, é sempre
secundário, é sempre sacrificado ao dinheiro. Se eu fizer um objeto ou outro, de um jeito ou de outro, e
ganhar a mesma coisa que se fizesse um determinado bem feito, então para que fazer este bem feito?
Você faz o seu produto mal feito, ganha seu dinheiro e vai todo contente comprar outro produto que
também é mal feito. Isto é uma radical incompreensão do processo econômico. Mas isso é uma coisa
que se vê no Brasil. Viajando pelo mundo, não vemos as pessoas agindo assim.

A visão negativa que temos do processo capitalista faz com que o pratiquemos de maneira negativa.
Não gostamos dele e por isso o corrompemos. Se fosse socialismo, faríamos exatamente a mesma
coisa.

Esse rebaixamento geral das expectativas, dos valores da vida, é um dado constante na sociedade
brasileira e é um tremendo desestímulo. Faz com que haja no processo educacional muitos fenômenos
de aborto, de indivíduos que vão se desenvolvendo até certo ponto e de repente têm uma crise, um
pânico. Uma crise muito comum é a do indivíduo que percebe que, quando está percebendo algo,
sabendo algo que os outros não sabem ou não percebem, cria-se uma dificuldade de comunicação. Por
exemplo, se você é muito apegado a seu grupo de amigos de juventude, não pode se educar, porque ou
você os educa a todos juntos ou vai amadurecer mais do que eles e eles vão se tornar uns chatos para
você e não vão gostar mais de você. A educação tem esse preço, aquele que sabe não é facilmente
compreendido pelo que não sabe. Muitas pessoas, quando constatam isso, recuam ou caem no seu
processo educacional e se castram espiritualmente, para não perder amizades ou apoio familiar, que
evidentemente não valem a pena.

Mas é essencial entender, para encerrar, que a definição de educação liberal é a preparação da alma
para a maturidade. O homem maduro é o único que está capacitado a fazer o bem para o meio em que
está. Porque o bem também tem que ser conhecido. O discernimento entre o bem e o mal não vem
pronto; não adianta ter um formulário, os dez mandamentos ou ter o código civil e penal. Isto não
resolve muito. O bem e o mal são uma questão de percepção, que tem que ser afinada para cada nova
situação que você vive, porque costumam aparecer mesclados. Jesus disse: na verdade amais o que
deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar. Este é todo o problema da educação, desenvolver no
indivíduo, mediante experiências culturais acumuladas, a capacidade de discernimento para que ele
saiba em cada momento o que deve amar e o que deve odiar. Ninguém pode dar essa fórmula de
antemão, mas a possibilidade do conhecimento existe e está consolidada em milhões de documentos.
Uma educação bem conduzida pode levar o indivíduo à maturidade do verdadeiro julgamento
autônomo.

Notas

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5/17/2019 Educação Liberal

1. Diretora do programa Drug Watch International. [voltar]

2. Aliás, a idéia corrente, abundantemente repetida por jornalistas e intelectuais brasileiros, de que o ensino
na época fosse limitado aos nobres, é talvez a mais idiota que alguém já meteu na cabeça, porque o
característico da nobreza durante toda a idade média era precisamente não estudar. O estudo era considerado
uma ocupação imprópria para os nobres e só própria a dois tipos de pessoas: aqueles que se dirigiam ao clero
e as mulheres. Portanto as mulheres eram privilegiadas no ensino medieval. Aproximadamente 60% ou 70%
do público escolar eram compostos de mulheres.
Este é um detalhe que qualquer estudioso da idade média sabe, mas que você nunca vê mencionado em parte
alguma. É como se houvesse um escotoma, um ponto preto que impede as pessoas de saberem disso. Esse
detalhe por si basta para derrubar toda uma visão da história, que é aquela visão de que a história transcorre
de um estado de escravidão, dominação e autoritarismo para um estado de maior liberdade e democracia.
Esta visão está subentendida em praticamente tudo o que se discute nesse país e em metade do mundo. E é
evidente que basta um pouquinho de estudo efetivo da história para ver que as coisas realmente nunca se
passaram assim. Na verdade, idéias como as modernas ditaduras e os modernos autoritarismos são coisas
que, na antiguidade e na idade média, nem passariam pela cabeça de um governante. A hipótese, por
exemplo, de haver um cadastro eletrônico onde estão todos registrados, onde se pode acompanhar a conduta
de cada um, saber quanto o sujeito gastou, onde ele esteve e, em caso de dúvida, poder usar tudo contra ele, é
uma idéia que se fosse dada a Gengis Kahn, ele acharia monstruosa. Ou seja, Gengis Kahn não pretendia ter
tanto poder assim, poder que hoje em dia qualquer governante ditatorial, e até democrático, tem sobre as
pessoas.
A História, portanto, ao contrário do que diz o famoso clichê, tem seguido no sentido de um crescimento da
autoridade. A autoridade vai conquistando meios de ação sobre os indivíduos de que nunca antes dispôs e, ao
mesmo tempo, surgem mecanismos compensadores como a liberdade de imprensa e o ensino universal. Mas,
elas por elas, o autoritarismo tem ganhado a corrida. [voltar]

3. Mortimer Adler é autor do livro "Como ler um livro" (pegar referências). [voltar]

4. Ora, não termos o direito de fazer alguma coisa não significa que não a façamos. Na prática, a mistura de
procedimentos legítimos e ilegítimos é um fato do nosso dia-a-dia. A maneira mais prática e fácil de fazer
prevalecer sua tese, é fazer como fizeram no debate mencionado por Mina Seinfeld, em que você desaparece
com a tese do adversário e a sua, por ser a única existente, acaba prevalecendo. [voltar]

www.olavodecarvalho.org/palestras/2001educacaoliberal.htm 19/19

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