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Artigo Científico Original

PARA UMA CONCEPÇÃO


PÓS-COLONIAL DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA
Élida Lauris
PARA UMA CONCEPÇÃO TOWARDS A POST-
PÓS-COLONIAL DO COLONIAL CONCEPTION
DIREITO DE ACESSO À ON THE RIGHT TO ACCESS
JUSTIÇA TO JUSTICE1

Élida Lauris
Doutora em Pós-colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia, da
Universidade de Coimbra. Foi investigadora do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra. Actualmente é co-coordenadora do Projeto ALICE, onde desenvolve o projeto
de investigação “Hérculeos juízes, cidadãos vulgares: estudo comparativo dos usos, do alcance e dos sentidos da
transformação social escrita nas constituições da África do Sul e do Brasil”. Sua tese de doutorado “Acesso para
quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece. Dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas
do acesso à justiça no Brasil e em Portugal” foi distinguida com o Prémio CES para Jovens Cientistas Sociais de Língua
Portuguesa em 2015. Tem experiência na área de Direito, com ênfase na sociologia do direito e dos tribunais e
direito constitucional, actuando principalmente nos seguintes temas: acesso à justiça, independência judicial, reforma
do judiciário, separação de poderes, judicialização da política, constitucionalismo e hermenêutica constitucional.

RESUMO ABSTRACT
Uma releitura do acesso à justiça tem A rereading of access to justice has as
como primeiro desafio a denúncia do en- first challenge the denouncement of the
cerramento do debate sobre o acesso na closure of the debate on access to simu-
simulação de uma tensão inexistente en- late a non-existent tension between struc-
tre estrutura e ação em que esta última ture and agency as the latter is always
é sempre incorporada num processo de incorporated into a process of strengthen-
reforço e melhoria da primeira, o qual ing and improving the first, which it should
deve apoiar e pelo qual deve esperar. support and whereby it should expect. On
De um lado, vê-se a ação enquanto mo- the one hand, one sees agency as implicit
vimento implícito de mudança social que movement for social change that address-
se dirige à expansão do papel das pro- es the expanding role of legal professions
fissões e das estruturas jurídicas. De outro and structures. On the other hand, the cre-
lado, o antagonismo criativo aos modos ative antagonism to the modes of produc-
de funcionamento do direito e do Estado tion of the law and the State by agency
pela ação é simplificado como suplemen- is simplified as a participation supplement
to de participação no sistema jurídico, in the legal system, i.e. alternatives to ac-
isto é, alternativas de acesso ao direito. cess to justice. If there is no place for a
Se não há lugar para a mudança radical radical change of the structure, the unveil-
da estrutura, o desvelar das ineficiências ing of the inefficiencies represent an eter-
representam um eterno retorno da inicia- nal return of the transformation initiative
tiva de transformação à ação social. A to agency. Accordingly, a reconsideration
revisão da compreensão de acesso à jus- of the understanding of access to justice
tiça requer, por isso, que se revisite as co- requires revisiting forged collaborations
laborações forjadas e as tensões ocultas and hidden tensions in the relationship

1 Este artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação “ALICE, espelhos estranhos, lições imprevistas”, coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.
ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - Portugal. O projeto recebe fundos do Conselho Europeu de Investigação, 7.º Programa Quadro da
União Europeia (FP/2007-2013) / ERC Grant Agreement n. [269807].

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Lauris

na relação entre Estado e sociedade civil between State and civil society with re-
no que toca às reformas de ampliação gard to access to law and justice legal re-
do acesso ao direito. Este artigo procu- forms. This paper seeks to restore a com-
ra depurar a conceção compreensiva do prehensive conception of access to justice,
acesso à justiça, submetendo-a ao crivo subjecting it to the scrutiny of a critical
de uma análise crítica do lugar do Estado analysis of the role of the State and civil
e da sociedade civil na construção de po- society in building access to justice poli-
líticas de acesso à justiça nos estados de- cies in post-modern democratic states.
mocráticos pós-modernos. Keywords: access to justice; legal assis-
Palavras-chave: acesso à justiça; assis- tance, State, Civil Society, post-colonialisms.
tência jurídica, Estado, Sociedade Civil,
pós-colonialismos.

INTRODUÇÃO não judicial, administrativa e não-gover-


O acesso à justiça habitualmente traz namental dos modos de entregar o di-
consigo um conteúdo normativo acerca do reito. Daí que o próprio Cappelletti seja
uma referência inultrapassável na elabo-
sistema jurídico e da sua efetivação que
ração de uma conceção ampla de acesso
extravasa a temporalidade e a contex-
à justiça, nos seus próprios termos, um mo-
tualização da própria expressão. Como
vimento composto no âmbito da metáfora
recorda Galanter (2010:115-116), a uti-
de sucessivas ondas de reformas jurídicas
lização do termo “acesso à justiça” para
tendo em vista a ampliação das oportu-
representar a ampliação da ação e das
nidades de acesso.
expectativas de busca de justiça em face
do sistema jurídico, é recente, tendo surgi- A principal contribuição desta formu-
do apenas no final da década de 1970. lação é a naturalização do acesso à
Esvanecido inicialmente na noção de as- justiça como inerente ao movimento de
sistência jurídica aos pobres ou como de- evolução dos estados democráticos ou
corrência do princípio de igualdade pe- de democratização de estados em evo-
rante a lei, o acesso à justiça enquanto lução. Parece natural não só esperar que
expressão acompanha a popularidade as medidas de acesso à justiça sejam
do projeto Florença2, coordenado por amplas, como também manter grandes
Mauro Capelletti. É com a publicação do expectativas acerca da possibilidade de
conjunto de artigos e da série acesso à ampliar a democratização dos estados,
justiça resultante do projeto Florença que das suas instituições e dos seus profissio-
se assiste à fixação do termo e à defesa nais através do alargamento do acesso
de um conceito compreensivo que abarca à justiça. Assim, a fórmula do acesso à
uma progressiva diversificação judicial e justiça tem acomodado resultados tão
diversificados quanto aparentemente
2 O projeto, financiado pela Fundação Ford, Ministério de Educação e Conse-
contraditórios como:
lho Nacional de Pesquisa italianos, reuniu mais de uma centena de investigadores
de diferentes áreas (direito, sociologia, ciência política, antropologia, psicologia)
dedicando-se ao estudo do sistema de acesso em cerca de trinta países. Os resulta-
1) O fortalecimento das instituições jurí-
dos da investigação foram publicados em 1978/1979 em quatro volumes: Volume
I (Access to justice: A world survey, coordenado por Cappelletti e Garth); Volume
dicas e administrativas e das carreiras
II (Access to Justice: Studies of promising institutions, coordenado por Cappelletti e profissionais que integram e o reforço de
Weisner), Volume III (Access to Justice: Emerging perspectives and issues), Volume IV
(Patterns in Conflict Management: Essays in the ethnography of law. Access to justice in medidas de accountability e participação
an anthropological perspective, coordenado por Koch). Posteriormente foi publicado
em 1981 o volume Access to Justice and Welfare State. social nestas instituições.
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2) A centralidade do direito do Estado nas sociedades? Esse dilema tem deixa-
como bem de providência social e me- do os estudos sociojurídicos do acesso à
didas de relativização dos fundamentos justiça numa encruzilhada entre o triunfa-
epistemológicos desse mesmo direito – ti- lismo e o niilismo. Entre afirmar a promes-
tularidade coletiva dos direitos, informa- sa do acesso à justiça e criticar o défice
lização da justiça, etc. epistemológico do direito e sua utilização
ideológica para os fins de dominação po-
3) O reforço do papel das profissões na
lítica, não parece possível formular uma
assistência jurídica e na entrega de um
teoria crítica que evidencie a estrutural
resultado social justo através do acesso
desigualdade como meio de realização
ao direito, a crítica ao encastelamento
do direito e simultaneamente enuncie o
dos profissionais e a defesa da despro-
acesso à justiça como alternativa credível
fissionalização da justiça.
para a emancipação social. Neste caso,
4) O protagonismo do Estado na sua de- tratar-se-ia de acesso em condições de-
mocratização, a ampliação da juridifica- siguais ou acesso ao aparato de manu-
ção na vertente do acesso e o desvelar tenção do status quo, enfim, acesso não à
da violência da intervenção do Estado, igualdade mas à desigualdade. Ao mes-
da utilização ideológica do direito e da mo tempo, os grandes modelos de trans-
insuficiência do direito estatal na regula- formação social (socialismo e revolução)
ção das relações sociais. parecem esgotados e o reformismo não
Uma conceção ampla de acesso à justiça tem sustentado outro trânsito de mudança
parece fadada à oscilação entre a trans- que não seja o do Estado que cura a pró-
gressão da denúncia das limitações do pria incúria (Santos, 2006: capítulo 10).
universo jurídico e a grandiloquência da Daí ser natural a reflexão do acesso à
promessa de democratização do direito justiça ter entrado numa espiral em que a
e através dele. As dificuldades em que- celebração dos avanços na democratiza-
brar esse circuito têm evidenciado os me- ção do direito e o ceticismo em face da
canismos de acesso à justiça como essen- fragmentação do acesso num mercado
cialmente fraudulentos, noutras palavras, de serviços jurídicos limitado fazem parte
um esquema retributivo limitado que trai de um mesmo futuro que não poderá vir
frequente e repetidamente as expectati- de outra direção que não do progresso
vas que cria (Abel, 1996). do direito e do Estado. Esta espera pelo
futuro, que se dá num cenário de reco-
Como pretendo defender neste artigo, lha e coordenação de fragmentos, ficou
persistem dois dilemas centrais no que desnudada de um sentido crítico, seja ele
toca à discussão atual do acesso à justiça. conservador ou progressista. Se os recur-
O primeiro dilema dá-se entre acesso e sos são limitados e o futuro é um só, a
direito e pode ser assim formulado: como construção de uma teoria crítica de aces-
o acesso à justiça se pode manter como so à justiça afigura-se inútil.
poderosíssima mensagem de igualdade
pelo e do direito num contexto em que O segundo dilema diz respeito à relação
entre tribunais e emancipação social: se
os modos de produção e reprodução do
os tribunais têm um papel de mudança
campo jurídico3 são evidências arrebata-
social e a experiência de acesso e de co-
doras da manutenção das desigualdades
nhecimento do direito é um privilégio de
poucas/os, como pode ser emancipatória
3 Utilizo a expressão campo jurídico para referir ao espaço próprio de produ-
ção e reprodução do direito que, no contexto de afirmação tecnocrática da gover- a mudança social enquanto experiên-
namentalidade, se define como autónomo e exclusivo na medida da especialidade
profissional que consagra e protege. cia apenas daquelas/es que puderam
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acedê-la e/ou têm competência para as raízes4, não pode explorar a radicali-
enunciá-la? Questiona-se a afirmação dade das opções. As soluções de acesso
do papel emancipatório dos tribunais e à justiça ficam assim recolhidas no interior
a utilização do direito no âmbito da mo- de uma abordagem estrutural-funciona-
bilização de recursos da ação coletiva. lista. Nesse sentido: (1) a experiência de
A relação entre tribunais e emancipação acesso é conformada pelos padrões de
social tem sido debatida no interior de funcionamento das estruturas jurídicas;
uma ambiguidade estrutural, inerente ao (2) a falta de acesso à justiça correspon-
próprio direito. Entre a fundação do di- de a obstáculos estruturais vivenciados
reito como repressão e sua refundação pelos cidadãos; (3) a resposta aos obs-
como resistência, a expectativa em rela- táculos de acesso subsume-se a tentativas
ção aos tribunais é dual: afirmar a cida- de coordenação de diferentes iniciati-
dania, conservando a ordem das coisas, vas/alternativas de acesso à justiça. No
por um lado, e transformando-a, por ou- âmbito desta abordagem, que em muito
tro. Como argumentarei neste artigo, os colaborou para visibilizar a responsabili-
limites de uma análise institucionalista e dade do Estado no que toca à promoção
o mito decorrente de uma leitura estri- do acesso à justiça, a produção de uma
ta das vitórias judiciais como vitórias de teoria do direito crítica é um contrassen-
transformação social, se contextualizados so. Apesar de demonstrar empiricamente
no âmbito de uma abordagem constituti- a disparidade entre princípios e práticas
va do direito, transfiguram a questão da no âmbito da realização do acesso à jus-
centralidade da litigação para os pro-
tiça pelas instituições estatais, a estrutura
jetos emancipatórios. Em vez de centra-
é simultaneamente um problema e uma
lidade, indaga-se sobre a utilidade do
solução. A abordagem estrutural-funcio-
recurso aos tribunais num universo em que
nalista faz assim uma crítica empírico-
a difusão do poder e das subjetividades
-metodológica, e nunca epistemológica
exige uma leitura mais apurada acerca
da política contenciosa e da micropolítica ou fenomenológica, à evidência de pro-
(Scott, 2000) da resistência. dução e reprodução das desigualdades
pelo direito.
Nos estados contemporâneos, a opção de
acesso à justiça tem sido construída sob Uma releitura do acesso à justiça tem
a vigilância, a hesitação e a suspeição como primeiro desafio a denúncia do en-
dos estados e das classes dominantes. cerramento do debate sobre o acesso na
Trata-se de um processo cuja procura de simulação de uma tensão inexistente en-
soluções e alternativas de estabilização tre estrutura e ação em que esta última
e recuperação das raízes do pensamento é sempre incorporada num processo de
jurídico moderno transforma a expectati- reforço e melhoria da primeira, o qual
va de democratização dos estados numa deve apoiar e pelo qual deve esperar.
espera prolongada e angustiante. Em pri- De um lado, vê-se a ação enquanto mo-
meiro lugar, como afirma Santos, o contra- vimento implícito de mudança social que
to social moderno é irreversível (Santos,
1998a), isto é, a adesão ao projeto po- 4 Santos (1998) distingue o pensamento social como um pensamento dua-
lista entre raízes e opções, as características distintivas entre o modo de pensar
lítico de dominação moderna é definiti- moderno e o tradicional residiria no facto de a modernidade fundar raízes a par-
tir das quais se deriva um conjunto de opções. Enquanto as sociedades tradicio-
va, não havendo hipótese de renúncia ou nais são sociedades de raízes (a religião, os costumes), as sociedades modernas
caracterizam-se por ter à disposição um conjunto vasto de opções. Ao radicalizar a
rescisão contratuais. Em segundo lugar, o razão como fundamento último da vida social e coletiva, a racionalidade moderna
distingue-se pela possibilidade de radicalização e proliferação das opções a par-
processo de emenda e ajuste dos termos tir de um universo fundacional que estabelece como universal, objetivo e secular. O
dualismo entre raízes e opções nos termos propostos por Santos é especialmente útil
contratuais, se está destinado a conservar para a discussão da relação entre acesso, direito, justiça e Estado.

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se dirige à expansão do papel das pro- âmbito do acesso à justiça é complexa,
fissões e das estruturas jurídicas. De outro a dupla esperança é também dupla de-
lado, o antagonismo criativo aos modos pendência: a esperança a depender das
de funcionamento do direito e do Estado oportunidades de acesso, as expectativas
pela ação é simplificado como suplemen- a dependerem da lógica operativa das
to de participação no sistema jurídico, instituições. A equação entre esperanças
isto é, alternativas de acesso ao direito. e expectativas não pode ser resolvida no
Se não há lugar para a mudança radical domínio da administração rotinizada dos
da estrutura, o desvelar das ineficiências conflitos pelo sistema jurídico, requerendo
representam um eterno retorno da inicia- que o foco de análise se estenda para
tiva de transformação à ação social. A além da mecânica de funcionamento do
revisão da compreensão de acesso à jus- Estado, noutras palavras, implica o deba-
tiça requer, por isso, que se revisite as co- te da justiça como instituição política.
laborações forjadas e as tensões ocultas A discussão do acesso à justiça sofre,
na relação entre Estado e sociedade civil assim, um afunilamento do seu alcance
no que toca às reformas de ampliação do compreensivo para dedicar-se à discus-
acesso ao direito. Na sua parte final, este são dos limites e das possibilidades de
artigo procura depurar a conceção com- realização da emancipação social pelos
preensiva do acesso à justiça, submeten- tribunais. Como afirma Santos, a decisão
do-a ao crivo de uma análise crítica do sobre a partilha de direitos, em regra,
lugar do Estado e da sociedade civil na contrapõe interesses sociais divergentes
construção de políticas de acesso à justiça (empregadores versus trabalhadores,
nos estados democráticos pós-modernos. consumidores versus produtores, homens
versus mulheres, cidadão versus Estado,
etc.). Logo, a reivindicação de uma solu-
SER OU NÃO SER: ACESSO À JUSTIÇA, ção jurídica sobre a titularidade do direi-
TRIBUNAIS E EMANCIPAÇÃO SOCIAL to, muito embora aparente ser uma solu-
ção meramente técnica, pode assumir um
A reflexão sociojurídica acerca do aces- forte conteúdo de mudança do status quo
so à justiça tem ocupado um lugar de es- social e político (Santos, 1986). Devido às
pera pela vontade política, uma espera suas potencialidades no âmbito da trans-
que preenche afirmando a necessidade formação e justiça social, o conceito de
de acesso, ora demonstrando os seus fra- acesso à justiça deve desenvolver-se num
cassos, ora oferecendo propostas para quadro conceptual amplo de articulação
o seu êxito. No entanto, a esperança de entre agência e estrutura na distribuição
sair da posição de expectador da vonta- dos direitos, o que inclui a mobilização
de política e tornar-se parte do processo de procedimentos e mecanismos judiciais
de decisão do sistema de governo tem (representação em juízo, consulta jurídi-
sido confiada à possibilidade de acesso ca, defesa adequada, devido processo
à justiça. Aposta-se na mobilização das legal), instituições estatais não judiciais
agências governamentais e do judiciário (administração pública) e instituições não
para, colocando em pauta a efetivação estatais (partidos políticos, organizações
de direitos, questionar os rumos do sis- não-governamentais) através da iniciati-
tema jurídico e as escolhas da política va de cidadãos, empresas e grupos so-
pública. Neste caso, espera-se o acesso ciais, circunscrevendo não só conflitos indi-
para não ter que esperar mais. Esta re- viduais, mas também questões coletivas e
lação entre esperanças e expectativas no de direitos difusos, com especial atenção
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aos conflitos estruturais e às clivagens so- ação dos tribunais tal e qual ocorre com
cioeconómicas existentes (género, classe, os poderes executivo e legislativo.
etnicidade, etc.). Contudo, no campo da Em segundo lugar, os tribunais interagem
disputa pela distribuição dos recursos num processo dinâmico com outros órgãos
políticos, dado o papel dos tribunais en- do governo submetendo-se igualmente
quanto órgão de soberania dedicado à à pressão externa de ideias, ideologias
aplicação e à garantia dos direitos em e políticas, o que significa dizer que não
última instância, o acesso à justiça strictu basta compreender a ideologia que com-
sensu, isto é, o acesso ao poder judiciário,
promete a ação individual de juízes sem
assume a centralidade da discussão.
entender o fluxo de interação ideológica
Neste domínio, emergem as contribuições entre tribunais e academia, media, gru-
da análise institucionalista do judiciário. pos sociais organizados e outras institui-
A abordagem institucionalista, ao pro- ções políticas. Neste contexto, é evidente
por levar as estruturas a sério, deixa de que as decisões judiciais são tão influen-
lado leituras behaviouristas do funciona- ciadas por princípios quanto pelos limites
mento dos tribunais, substituindo a aten- do que é politicamente possível. Os limi-
ção que se dá à atitude dos profissionais tes da política possível requerem atenção
como ponto irradiador do posicionamen- a prováveis retaliações ou estratégias
to político dos tribunais pela atenção à dos órgãos e agentes políticos que po-
instituição tribunal. O judiciário é, assim, dem contornar a eficácia das sentenças
contextualizado no interior do sistema po- judiciais ou recusar a sua aplicação. Em
lítico como mais uma das suas instituições5 terceiro lugar, os tribunais exercem in-
(Shapiro, 1964). Esta contextualização fluência nos rumos do sistema político e
traz consigo uma necessidade de reen- têm autoridade no debate público. Daí
quadramento do papel dos tribunais pelo que a forma como os tribunais são orga-
menos em três aspetos, como argumentam nizados e geridos, o controlo hierárqui-
Gisburg e Kagan (2005: 3). Em primeiro co e disciplinar do campo comunicativo,
lugar, reconhece-se que o judiciário exer- as imposições deontológicas e a defesa
ce poder, aliás, como qualquer outra ins- da neutralidade do juiz influenciam o im-
tituição ou órgão do Estado. As decisões pacto discursivo dos tribunais na política.
judiciais não se limitam a ditar o destino Como se vê, do ponto de vista da rela-
de litigantes individuais, elas fazem políti- ção entre direito e emancipação social, a
ca e afetam o comportamento de agentes abordagem institucionalista aponta mais
governamentais, empresas e grupos de limitações do que vantagens6 para o
cidadãos. Consequentemente, também os exercício de uma função transformadora
tribunais se submetem a um contexto de pelos tribunais.
legitimação constante, procurando mais
O campo de debate acerca do poten-
consenso e apoio do que oposição e re-
cial de transformação dos tribunais tem
sistência. Esta busca por legitimidade, por
sido, assim, clivado pelo confronto entre
sua vez, circunscreve as possibilidades de
confiança institucional e defraudação das
5 A discussão do judiciário como instituição política ganhou popularidade com a
expectativas7. A adoção de um dos dois
ideia de expansão global do poder judiciário e judicialização da política, pionei-
ramente formuladas por Tate e Valinder (1995). Em linhas gerais, Tate e Valinder
delimitam a ideia de judicialização como um processo de generalização da forma 6 Como afirmou Santos (2011: 14): Ante os desafios e dilemas do acesso ao
do processo judicial, o que pode implicar tanto o deslocamento do processo de direito, do garantismo de direitos, do controlo da legalidade, da luta contra a corrup-
decisão acerca de direitos do legislativo e das agências do executivo para os ção e das tensões entre a justiça e a política, os tribunais foram mais vezes parte do
tribunais, quanto o extravasamento do modo de adjudicação para fora do lugar problema do que parte da solução.
que lhe é próprio, o judiciário. Sobre o tema, ver, Shapiro e Stone Sweet, 2002; 7 A discussão sobre limites e possibilidades do direito no que toca à emancipa-
Trochev, 2004; Guarnieri e Pederzolli, 2002; Sweet, 2000, Epstein e Knight, 1996 ção social acompanha as clivagens e divergências levantadas pelo movimento de
e Hirschl, 2004. Critical Legal Studies.

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polos é variável de acordo com a possi- veis. Por fim, adverte para o efeito de
bilidade de a ação do poder judiciário contra-mobilização que acompanha a
conseguir extravasar a camisa de força judicialização de casos controversos. Se
da sua posição institucional. Demostrando uma das vantagens imediatas do recur-
os apertados limites institucionais do judi- so aos tribunais é a maior popularidade
ciário, Rosenberg (2008) narra a expe- dos casos, o outro lado desse movimento
riência de transformação social pelos tri- é a mobilização dos oponentes da cau-
bunais como uma experiência de emanci- sa. Muito embora os dois lados já existam
pação regulada. Desde logo indica a ne- antes do recurso ao tribunal, as posições
cessidade de apoio para que os tribunais fortalecem-se na batalha judicial e um
possam fazer frente às tentativas de lu- dos resultados negativos da falta de efi-
dibriar a aplicação das decisões judiciais cácia da ação judicial é o fortalecimento
por parte dos outros poderes políticos. Por de quem se opõe à causa.
outro lado, a ineficácia da mudança so- A maior vantagem da abordagem ins-
cial decidida pelos tribunais evidencia-se titucionalista é o facto de afirmar o ju-
na dependência judicial face a poderes diciário como poder político a par da
de implementação que competem a ou- contextualização dos seus limites. Nesse
tros órgãos, o que, no fundo, decorre de sentido, descortina o facto de que mui-
a arquitetura política dos estados moder- tas das tentativas de utilizar a judiciali-
nos liberais se ter encarregado de criar zação como concretização da imagem
um poder judiciário sem poderes. do Estado como centro da promoção de
Ao analisar a experiência americana, direitos tem servido para construir o que
Rosenberg exemplifica essas limitações a literatura sociojurídica denomina o mito
ao referir as barreiras políticas levan- dos direitos. O mito dos direitos reforça a
tadas por muitos líderes políticos norte- centralidade do Estado e do seu direito,
-americanos para a implementação do apostando no papel a ser desempenha-
direito de aborto, bem como a necessi- do pelos tribunais como instância última
dade de intervenção do governo federal da proteção dos indivíduos e da probi-
para se garantir as decisões judiciais con- dade da política. Trata-se de um raciocí-
quistadas pelo movimento de direitos ci- nio especialmente sedutor pela linearida-
vis. Neste quadro, adverte primeiramente de que estabelece entre o papel de ati-
para o que considera ser um desperdício vistas, profissionais do direito, tribunais e
financeiro, de talentos e de recursos crí- mudança social. Conforme formulado por
ticos, apostar numa alternativa de mobi- Scheingold (2007), o mito dos direitos
lização cujo resultado pode ser o enfra- sucumbe primeiramente ao não reconhe-
quecimento político da causa. As vitórias cer a distância entre a enunciação de um
judiciais simbólicas seriam responsáveis direito no ordenamento jurídico e a sua
por conduzir ao erro estratégico de ce- efetiva garantia. Acreditando ingenua-
lebração de uma ilusão que encobre uma mente que essa distância pode ser per-
realidade desencantada, desviando a corrida nos tribunais, profissionais do di-
atenção das forças sociais do caminho de reito tendem a investir na litigação como
transformação desta realidade. A con- se a mudança social fosse decorrer de
centração de esforços na judicialização, uma estratégia de tentativa e erro junto
neste sentido, acaba demovendo a utili- dos tribunais, ignorando, assim, o possível
zação de outros meios de reivindicação efeito despolitizador da tramitação de
que poderiam ser mais efetivos e menos uma demanda social e política quando
comprometedores dos recursos disponí- convertida em conflito jurídico entre duas
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partes e, consequentemente, investindo processos jurídicos constituem a realidade


em estratégias de litigação que conso- social e são constituídos por ela. Trata-se
mem os recursos do que poderia integrar de uma visão ampla do campo jurídico
uma estratégia coordenada de manobras e do seu significado cultural, das formas
políticas de maior impacto. A realização como o papel do direito é culturalmen-
dos direitos a partir da garantia judicial te produzido e como produz significados
torna-se, assim, um concurso de vontades culturais e identidades. Nos termos de
e de recursos entre as partes envolvidas. Merry (1994) a abordagem culturalista
do direito implicou deixar de lado o do-
Com base nesses argumentos, Scheingold
mínio da investigação empírica da reso-
(2007) sugere a substituição da centrali-
lução de conflitos, já tomado como certo,
dade da litigação pela utilidade da liti-
e aventurar-se por domínios, como os di-
gação, e do mito de direitos por uma po- reitos humanos ou as narrativas nos tribu-
lítica de direitos. Esses dois polos – cen- nais, em que categorias como a contex-
tralidade/utilidade dos tribunais, mito/ to, identidade e interseccionalidade são
política de direitos – têm dividido a refle- centrais às preocupações metodológicas.
xão acadêmica acerca da relação entre A sociologia interpretativa do poder cul-
ativismo social, direitos e papel dos tri- tural do direito devolve uma abordagem
bunais. A própria relação entre a teoria compreensiva ao acesso à justiça para
dos movimentos sociais e a sociologia da explorar a relação entre direito e eman-
política de direitos manifesta a oscilação cipação social. Recusando a imagem do
entre o deslocamento centro-periferia Estado como centro do/s direito/s, a
do papel da litigação e do direito. Se é principal contribuição dessa abordagem
certo que a teoria dos movimentos sociais é de-centrar o direito. Mais do que falar
tem dado uma atenção marginal ao pa- do Estado ou falar para o Estado, vê-se o
pel do direito, enquadrado como recurso fenómeno do poder e do direito espraiar-
no âmbito da análise organizacional dos -se em domínios que extrapolam a esfera
movimentos, não é menos verdade que do Estado, questionando a univocidade
a sociologia e a teoria do direito dedi- do seu contraponto, a sociedade civil.
cam-se aos resultados das instituições É neste âmbito que Santos (2002a: 243-
jurídicas na defesa do/s direito/s como 303) defende a necessidade de uma con-
se não existisse uma agência exterior a ceção pós-moderna de direito que deve
estas instituições. Este estranhamento tem compreender a interlegalidade inerente
sido ultrapassado aos poucos através da à manifestação do poder jurídico e dis-
análise de categorias híbridas às duas ciplinar em distintas unidades de práticas
reflexões disciplinares, como mobilização sociais como o sexismo, o racismo, o pro-
do direito8 ou advogados de causas9, dutivismo, o consumismo. Numa conceção
que circulam na fronteira entre estrutura pós-moderna do direito, o Estado é ape-
e ação jurídicas. Neste ponto, a aborda- nas um dos domínios de interlegalidade,
gem institucionalista e positivista é aban- o domínio da cidadania.
donada em nome de uma abordagem
No âmbito de uma abordagem constitu-
constitutiva do direito.
tiva do direito, reescreve-se a relação
A abordagem constitutiva do direito inte- entre tribunais e emancipação social. A
ressa-se pelos meios através dos quais os abordagem positivista e institucionalista
reforça a imagem do Estado como centro,
8 Para um conceito de mobilização do direito interdisciplinar, ver Mccan, 2006. afirmando a essencialidade dos tribunais
Para uma abordagem unidisciplinar da mobilização do direito, ver Black, 1973.
9 Ver Sarat e Scheingold, 1998, 2001 e 2005. na redistribuição dos recursos políticos
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em conflito, o que traz à tona a questão arquétipos da política pós-moderna, ad-
sobre o que os tribunais podem fazer vogam uma nova forma de fazer política
pela emancipação social. Esta pergunta, (baseada na ação direta, processos de
por sua vez, tem uma resposta manifesta, decisão participativos, estruturas descen-
em face dos seus limites institucionais, os tralizadas), defendem maior atenção ao
tribunais, por si, pouco ou nada podem cultural e às questões relativas à quali-
fazer. Assim, sem abrir mão da análise dade de vida, apelam por maiores pos-
do Estado como esfera da cidadania, o sibilidades de participação nas decisões
vasto espaço de não-concretização da políticas e estão determinados a lutar
centralidade do Estado é um espaço de por uma vida melhor, sem, contudo, pré-
investigação das formas que podem ser -determinar os planos para uma socie-
assumidas pela produção e reprodução dade melhor. Como criticam os padrões
do poder, do direito e da resistência. O de racionalidade institucionalizada da
recurso aos tribunais é apenas uma das modernidade, rejeitam um desenho insti-
formas de reprodução possível do direi- tucional ou uma visão compreensiva para
to, o que inverte os termos da pergun- uma nova sociedade. As questões, reivin-
ta sobre a utilidade dos tribunais. Uma dicações e demandas que levantam não
abordagem interpretativa indaga o referem a uma visão ou força unificada,
que as narrativas de resistência e pro- por isso, as pontes de diálogo com racio-
dução do direito fora do centro podem nalidades de transformação social totali-
fazer pelos/com os tribunais, bem como zantes, como o marxismo ou liberalismo,
com outras agências do Estado, uma vez são estreitas, o que significa defender a
que ampliam o campo de visão sobre as transformação social sem uma teoria ge-
formas de poder e os modos do direito, ral para sustentá-la.
questionando a sua unidade discursiva
através da resistência. No que toca à discussão sobre o acesso à
justiça, movemo-nos de um terreno seguro,
A abordagem constitutiva do direito e a a defesa de um movimento universal de
sociologia interpretativa adequam-se às acesso à justiça que tem como protago-
possibilidades de discussão da política nista o Estado e as profissões jurídicas e
e do direito num mundo pós-moderno. como principais favorecidos, os cidadãos
Trata-se de um mundo fracionado pelos e cidadãs, beneficiárias/os diretas/os da
nacionalismos, racismos, machismos, des- construção de uma sociedade justa e igua-
truição ambiental, etc. Neste mundo, que litária, para um domínio de desconstrução
não comporta a solução de uma subjeti- do direito como narrativa emancipatória.
vidade unívoca (o indivíduo) ou de ma- Este mundo pós-foucaltiano deixa a des-
crossubjectividades de síntese ou antítese
coberto teorias universalistas da igual-
dialética (o Estado, o partido, o proleta-
dade, desestabilizando a autoridade do
riado), a análise do direito é mais des-
direito e do raciocínio jurídico com contra-
construtiva, do que construtiva, não sendo
-narrativas de opressão e disciplina, leva-
claro qual o caminho a ser seguido pela
das a cabo por uma microssociologia do
teoria social do direito para manter o
poder. Este é o mesmo lugar em que as
seu compromisso com a emancipação e a
dinâmicas de falta de reconhecimento e
justiça social. Handler (1992) apresenta
de injustiça distributiva aproximam desi-
este dilema densificando-o no que toca
gualdade e exclusão (Santos, 1999).
à composição e à agenda dos novos mo-
vimentos sociais. Os novos movimentos Como argumenta Santos (1999), cada
sociais, que podem ser considerados os vez mais a subordinação de classe cria
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Lauris

interditos culturais que negam o reconhe- A consciência política descentra o poder e


cimento a quem não está integrada/o no o direito do Estado, esse descentramento
setor produtivo (desempregados, traba- está ao serviço tanto da democratização
lhadoras domésticas, moradoras e mora- do poder, evidenciando esferas de opres-
dores de rua), bem como os critérios de são que foram afastadas da esfera públi-
interdição do reconhecimento multipli- ca de liberdades e de direitos, quanto do
cam a diferenciação na distribuição de reconhecimento da resistência, que aceita
recursos às/aos desiguais (aumento na o nominalismo dos direitos e das liberda-
diferenciação no trabalho entre homens des instituídos pelo Estado mas recusa a
e mulheres, brancos e negros, etc). As exclusividade do seu regime de verdade
micronarrativas de opressão, nesse sen- (Foucault, 1999). Aposta-se numa cons-
tido, não podem abrir mão da crítica e trução do direito através do diálogo en-
da luta macroestrutural por igualdade e tre as diferentes experiências de poder,
reconhecimento de direitos. Esse contexto opressão e conquista de direitos. A cons-
parece forçar a discussão sobre o acesso ciência pragmática assenta-se na evidên-
à justiça a optar entre a desconstrução cia de duas impossibilidades, a impossibi-
da autoridade e do poder do direito e lidade de se construir uma teoria geral de
a construção de uma política macroestru- emancipação social11 através do direito e
tural de redistribuição e reconhecimento a impossibilidade de se renegar a política
de direitos. Noutras palavras, a discussão de direitos do Estado. Ainda que o discur-
do acesso à justiça ou celebra o presente so liberal e social de direitos integre um
pelo que nele há de pós-moderno ou ce- regime epistemológico de interdição e um
lebra o que há de moderno no presente. regime político de dominação e gestão
da exclusão e inclusão, a perda de fé nos
Na minha conceção, uma teoria crítica direitos só gera consequências danosas
pós-colonial do acesso à justiça10 assen- para os interditos do direito, cuja apos-
ta em três momentos de consciência: uma ta na linguagem dos direitos pode atuar
consciência epistemológica, uma consciên- como motor para a refundação do seu va-
cia política e uma consciência pragmáti- lor nas sociedades. Assim, a luta por aces-
ca. A consciência epistemológica descons- so à justiça afirma-se como um processo
trói a autonomia e autoridade do conhe- de tradução entre a afirmação dominan-
cimento jurídico científico evidenciando o te dos direitos, a afirmação da opressão,
juricídio (Santos, 2007b: 29-81) que com- das várias manifestações do poder e da
porta e o seu papel ideológico na natu- denegação dos direitos, a repetição e a
ralização do discurso da dominação po- contra-afirmação dos direitos pelas/os
lítica. No âmbito da entre desigualdade dominadas/os. Formulada nestes termos
e exclusão, reconhece ainda o papel da a teoria crítica do acesso à justiça dirige-
autoridade do discurso jurídico na inter- -se à reformulação das categorias socie-
dição do reconhecimento através de um dade civil e Estado.
universalismo anti-diferencialista e da in-
tegração subordinada das/os desiguais
na dinâmica de gestão da exclusão e da Sociedade Civil
inclusão feita pelo contrato social moder- O enquadramento da sociedade civil no
no (Santos, 1999). âmbito da discussão do acesso à justiça

10 A crítica pós-colonial do direito e do acesso à justiça que aqui delineio segue 11 Santos 2002b argumenta impossibilidade hodierna de se produzir uma teo-
de perto a crítica ao papel da história e seus protagonistas conforme formulada ria geral da emancipação social, defendendo por isso uma sociologia das ausên-
pelos Subaltern Studies. Ver Chakrabarty, 2000 e Guha, 2002. cias e das emergências.

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tem uma história linear que acompanha ciedade civil na realização da promes-
a evolução do seu contraponto, o Estado. sa moderna de igualdade. A teorização
Como atesta a ideia de movimento global crítica do acesso à justiça fica a padecer
de acesso à justiça, pode-se dizer que à diante deste facto: a evidência da insu-
sociedade civil sempre coube um papel ficiência da dicotomia Estado-sociedade
secundário, limitado à função passiva de civil não foi acompanhada da proble-
utente da evolução do Estado, este sim, matização da categoria sociedade civil
protagonista da reforma social dedica- como esfera de realização dos direitos e
da à evolução do acesso à justiça. Assim, das liberdades. Assim, a sociedade civil
a sociedade civil beneficiária da política foi reerguida como solução para o pro-
pública de acesso à justiça veio corres- blema da falta de acesso à justiça, num
ponder aos modos de funcionamento de contexto em que a construção da própria
um Estado-providência especialmente em categoria sociedade civil é um exemplo
face da previsão de direitos económicos inegável da histórica denegação de jus-
e sociais a serem reivindicados contra o tiça na distribuição dos recursos políticos
Estado. No mesmo sentido, nos marcos de do Estado moderno. No âmbito de um
um Estado liberal, instaura-se uma polí- consenso hegemónico neoliberal que as-
tica de acesso à justiça reparatória, em severa a existência de um Estado fraco
que as distorções na igualdade de re- (Santos, 2007b), o seu contraponto, a so-
presentação processual são restauradas ciedade civil, ganha força e destaque.
pela ação filantrópica dos profissionais
Enquanto categoria clivada de tensões,
do direito.
a dicotomia Estado-sociedade civil tem
Com a crise do Estado-providência esta resistido como os polos opostos de uma
relação foi alterada, emergindo a socie- equação de liberdade e igualdade
dade civil panaceia dos males do acesso quando: (1) livres e iguais nunca foram
à justiça e da fraqueza do Estado. A so- atributos estendidos a todos e a todas;
ciedade civil panaceia pode assumir três e (2) a própria ideia de liberdade das
sentidos (Comaroff e Comaroff, 2006): transações individuais sempre esteve de-
1) A sociedade civil contra o Estado, pendente de alguma regulação econômi-
onde as questões relativas ao acesso à ca e social por parte do Estado. Contudo,
justiça são resolvidas pela autorregula- a definição de uma oposição em que o
ção das partes. Estado é a outra face da sociedade ci-
vil tem sido utilizada para asseverar que
2) A sociedade civil de soluções privadas, o fortalecimento da sociedade civil não
celebrada como alternativa econômica e se pode realizar noutro caminho que não
eficaz de oferta de serviços jurídicos. o do enfraquecimento do Estado, e vice-
3) A sociedade civil comunidade, como -versa. Esta relação, contudo, não atenta
organização, agente ou ação coletiva para o facto de que, como alerta Santos,
que partilha os custos e as responsabili- a produção de uma sociedade civil for-
dades da governação12. te depende da força do Estado para
legalizar e deslegalizar a sua fraqueza
É curioso notar a recuperação da dico-
tomia Estado-sociedade civil em face do (Santos, 2007b: 454-508).
reconhecido falhanço da categoria so- Segundo esta lógica que representa a
partilha e a transferência de responsabi-
12 No Brasil, a capacitação da comunidade tem recebido atenção de progra- lidades do Estado na relação com a socie-
mas de acesso à justiça financiados pelo Estado. Ver Secretaria de Reforma do
Judiciário, 2006 e 2008. dade civil, Santo alerta para o facto de
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que a força da sociedade civil tem ocul- separação entre uma esfera pública de
tado a expansão do Estado em forma de poder e uma esfera privada de direitos.
sociedade civil, com a criação de gover- A clareza desta distinção tem a vanta-
nos indiretos, paraestatais e, ainda, com gem de estabelecer com nitidez o lado
a reprodução deliberada pelo Estado de da política e do direito e o lado da ci-
sociedades civis, sociedades civis secun- dadania, uma límpida separação em que
dárias13, como denominou (Santos,1990). esta última decorre da vocação anti-di-
Esta estatização da sociedade civil ou li- ferencialista e de justiça social dos dois
beralização da esfera do Estado, por sua primeiros, relação cujos traços evolutivos
vez, é feita sem o espartilho da defesa foram tão bem retratados por Marshall
da igualdade e da proteção contra a ar- (1964). O Estado populista, o Estado
bitrariedade do poder que orienta a di- interventor, o Estado-providência, a so-
cotomia liberal clássica Estado-sociedade ciedade civil individualista, a sociedade
civil. No âmbito da discussão sobre aces- civil comunitária, a sociedade de classes,
so à justiça, a sociedade civil como pana- apesar das diferenças entre e elas e na
ceia da falta de acesso tem reproduzido inter-relação com Estado, estiveram sem-
sobre a dicotomia uma dupla invisibilida- pre incorporadas numa síntese dicotómi-
de: (1) a invisibilidade da manutenção ca (estado versus sociedade civil).
da burocracia e da violência14 nos do- A hipervisibilidade da dicotomia Estado
mínios de reprodução da justiça através e sociedade civil ofuscou a discussão em
da ou com a participação da sociedade torno de outras distinções dentro de cada
civil, (2) a invisibilidade da participação um destes extremos. A invisibilidade das
social nos domínios profissionais exclusivos distinções na sociedade civil foi definiti-
do sistema de justiça. vamente colocada em causa com a emer-
O carácter problemático da sociedade gência das subjetividades pós-modernas.
civil como solução no âmbito do acesso à A sociedade civil fragmentada, por sua
justiça emerge da dinâmica entre divisões vez, fraciona a cidadania, afirmando que
visíveis, divisões invisíveis e divisões abis- a justiça para ser social tem que ser, ao
sais15 (Santos, 2007a) que a categoria mesmo tempo, igualitária e diferencia-
binária estado-sociedade civil provoca. lista. Este movimento anti-totalizante de
A divisão visível é a própria dicotomia visibilização das distinções deixou, contu-
entre sociedade civil e Estado, esta distin- do, esquecida a permanência de divisões
ção sobressai-se pela maleabilidade com totais invisíveis no interior da socieda-
que se adequa às dinâmicas de expan- de civil, divisões abissais, nos termos de
são e retração de cada um daqueles dois Santos (2007a). A meu ver, é nas divisões
polos, assegurando que as metamorfoses visíveis, invisíveis e abissais, que sustentam
do Estado sejam sempre consideradas o jogo relacional entre sociedade civil e
democráticas desde que compreendam a Estado, que deve residir uma noção com-
preensiva de acesso à justiça.
13 Ao conceituar a sociedade civil secundária, Santos dá o exemplo da utiliza-
ção da capacidade reguladora do Estado para criar, no âmbito da privatização
Na discussão feita até aqui, a conceção
do Serviço Nacional de Saúde, espaços de atividade económica e empresarial
privada, promovendo o associativismo corporativo, associando o capital privado
compreensiva do acesso à justiça é cla-
ao sector público e incorporando áreas altamente lucrativas. (Santos, 1990)
14 Em Santos 2007b, a burocracia, a violência e a retórica são apresentadas
ra. Nos termos em que formulei no início
como elementos estruturais do direito. deste capítulo, trata-se de uma progres-
15 De acordo com Santos (2007a) é inerente ao pensamento social moderno
tanto o estabelecimento de divisões visíveis quanto a invisibilidade de divisões siva diversificação judicial e não judicial,
abissais. A linha abissal, que separa a racionalidade de dois modos de vida e
reprodução das relações sociais, regulação/emancipação e violência/apropria- administrativa e não-governamental dos
ção, distingue dois universos referenciais que não existem em simultâneo, a pre-
sença de um lado da linha torna o outro lado inexistente. modos de entregar o direito. Pronunciado
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no âmbito de um movimento global e enquanto a experiência da opressão in-
evolutivo do acesso à justiça pode-se tegra a imagem do Estado disciplinador
dizer que a visão compreensiva, se não e repressivo como centro. É a linha abis-
esteve atenta à emergência das subje- sal (Santos, 2007a) entre justiça como
tividades, soube reconhecer a existên- cidadania e justiça como violência que
cia de uma sociedade civil estratificada, explica o fenômeno popularmente co-
que seria atacada por oportunidades de nhecido como acesso à justiça pela porta
acesso à justiça progressivamente mais dos fundos, isto é, o acesso à justiça da
abrangentes. Mesmo não recorrendo aos sociedade civil incivil é a justiça criminal.
mesmos termos, há o reconhecimento da A experiência de acesso enquanto opor-
existência de uma sociedade civil íntima tunidade de apreciação rotineira do con-
(com indivíduos e grupos super-incluídos), flito individual, de um lado, é apresenta-
de uma sociedade civil estranha (com da retoricamente como um momento de
indivíduos e grupos moderadamente in- cidadania, de encontro entre o Estado e
cluídos e excluídos) e de uma sociedade a sociedade civil, de outro lado, repro-
civil incivil (indivíduos super-excluídos) duz divisões já visíveis, não atendendo à
(Santos, 2003)16, sendo contra essa es- necessidade simultânea da igualdade e
tratificação que a ampliação do acesso da diferença na administração da justiça,
à justiça atuaria. É seguro afirmar que,
tampouco às demandas de democracia
no período de prosperidade do acesso à
participativa nos processos de decisão
justiça nos países centrais, as oportunida-
dos tribunais. As dificuldades de adequa-
des criadas atingiram transversalmente
ção e organização do judiciário à legis-
todos aqueles estratos da sociedade civil.
lação de violência doméstica, legislação
É esse o ideal que alimenta a associação
anti-racista é um bom exemplo desta rea-
do acesso à justiça como indicador da
lidade. O sistemático não acesso à justi-
qualidade da democracia nas socieda-
ça, por sua vez, resulta de uma divisão
des contemporâneas.
total entre a repressão e a promoção do
Contudo, o que a realidade de incum- direito. Esta distinção é comumente apa-
primento ou cumprimento fragmentado gada nas discussões de acesso à justiça
da realização do acesso à justiça com uma vez que a defesa de um movimento
a qual vivemos indica é uma tentativa progressivo de alargamento do acesso
de promoção da igualdade que, quan- negaria a sua própria formulação se re-
do bem-sucedida, alcança no máximo conhecesse que a dinâmica de acesso é
a sociedade civil estranha. Trata-se da também responsável pela reprodução da
administração, em regra, de uma justiça violência e exclusão. É, por essa razão,
anti-diferencialista e sobrecarregada, que defendo a reformulação do carácter
estancada na solução rotinizada de con- compreensivo do acesso à justiça.
flitos individuais. A realidade do acesso
O primeiro passo de compreensão deve
à justiça aponta para uma dinâmica de
dirigir-se às divisões invisíveis e abis-
não acesso que reproduz uma divisão
sais produzidas pelo direito e pelo fun-
abissal entre a experiência da justiça e
cionamento dos mecanismos de acesso.
a experiência da opressão. A experiên-
É a partir desse reconhecimento que se
cia da justiça corresponde a uma cida-
deve projetar o alargamento da políti-
dania, em regra, individualista liberal,
ca pública e, não o contrário, promover
o alargamento da política pública sem o
16 Neste ponto acompanho a definição tripartite de sociedade civil apresen-
tada por Santos, 2003: sociedade civil estranha, incivil e íntima. respetivo reconhecimento das dinâmicas
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de desigualdade e exclusão que lhe são Essa maneira de contar a história repro-
inerentes. O reconhecimento das divisões duz-se na reflexão académica e nos cri-
é intensivo, implica conhecer as dinâmicas térios de escolha de casos para estudos
de exclusão extrema que, no âmbito da históricos e comparados18 do acesso à
sociedade civil incivil e do lado da linha justiça, em geral, e da assistência jurídi-
da justiça como violência, são os obstácu- ca, em particular. Num estudo comparado
los ao acesso à justiça. Essa mudança de sobre a evolução da assistência jurídica,
perspetiva não só assumirá o direciona- Blankenburg (2002:112), por exemplo,
mento da política de acesso ao domínio justifica a não escolha de países latino-
da sociedade civil incivil como imporá o -americanos, africanos e asiáticos como
acesso à justiça como uma dinâmica de casos, por estes ainda ocuparem uma
co-presença radical17 (Santos, 2007a): às espécie de pré-história da assistência ju-
manifestações de violência e apropria- rídica, dada a inexistência de cobertura
ção ilegítimas, perpetradas por ação ou por parte de um Estado-providência:
omissão do Estado, devem corresponder
uma presença da defesa contra a arbi-
trariedade e da promoção de direitos. Our multi-country comparison sets out
to compare only countries which were
known to have developed an effecti-
Estado ve legal aid infrastructure for a wide
array of problems, not just criminal de-
A relação entre Estado, direito e aces-
fense. This implies that comparison is
so à justiça tem sido enquadrada numa
restricted to the rich countries around
abordagem estruturalista. A experiência the world. In some countries of former
de acesso enquanto conformada aos pa- British Commonwealth like India or
drões de funcionamento das estruturas Bangladesh, we find admirable lawyer
jurídicas implica uma forma peculiar de initiatives. Likewise we find clinics in
contar o acesso à justiça. A história do South Africa and at Latin America uni-
acesso à justiça é a história de quem pen- versities encouraged by development
sa e influencia as mudanças na estrutu- programs. Lacking a welfare state
ra, isto é, de quem tem poder perante o environment, however, they remain iso-
Estado. De um lado, é uma história con- lated initiatives, sponsored by reform-
tada dos dominantes para os dominados -minded groups, often from rich coun-
e dominadas. São, neste sentido, precisas tries. As one would predict, without a
as palavras de Abel (1985: 598): legal welfare state covering basic poverty
aid is a social reform that begins with the one does not find a developed legal
solution – lawyers – and then looks for pro- aid infrastructure.
blems that it might solve. De outro lado,
é uma história que os países centrais de-
O acesso à justiça que conta está pro-
senvolvidos contam para os países da
fundamente influenciado pelo que Guha
periferia do sistema mundo. Como afir-
(2002) denominou estatismo. De acordo
ma Blakenburg (2002), a história da as-
com Guha (2002) o estatismo aparece
sistência jurídica é a história de estados
como uma ideologia que retira o poder
de bem-estar generosos e de profissões
de escolha dos sujeitos da história. Nesse
jurídicas poderosas.
sentido, os acontecimentos considerados
17 Santos 2007a defende que uma concepção pós-abissal tem como condição
a co-presença radical, isto é, a presença e visibilidade simultânea dos dois lados 18 Basta verificar a escolha de estudos de caso do Projeto Florença. Ver também
da linha abissal que separa violência/apropriação da regulação/emancipação. Regan, et al. (orgs.), 2002.

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historicamente dignos não procuram fa- do acesso à justiça e de perda do poder
zer correspondência com o valor digni- das profissões jurídicas em face da cons-
dade daqueles e daquelas que pensam trução de uma política económica da jus-
e fazem a história. O estatismo implica tiça, o espaço remanescente de debate
a defesa e a aceitação da ordem esta- acerca dos conceitos e dos modelos de
belecida, na medida em que transforma acesso à justiça é geralmente um espa-
toda a reflexão sobre o curso da histó- ço de competição entre visões de dife-
ria numa genealogia do sistema político, rentes profissões jurídicas, na tentativa
social e dos valores vigentes. Esta visão de influenciar as decisões do Estado, uma
contamina igualmente aos oponentes da competição entre diferentes sonhos pro-
ordem vigente, uma vez que a oposição fissionais de poder (Guha, 2002).
procura substituir uma totalidade por ou-
tra, o poder vigente versus outro sonho de Noutra dimensão, a história das conquis-
poder. Se o acesso à justiça é um impor- tas no âmbito do acesso à justiça é em
tante indicador do carácter democrático regra canibalizada pela história das vi-
dos estados, como se costuma dizer, o tórias obtidas dentro dos tribunais. Para
valor de democracia e o valor igualda- além do reforço do mito dos direitos, a
de considerados dignos de integrarem a equação emancipação social e tribunais
história do acesso à justiça corresponde à não envolve a discussão do acesso à justi-
influência e ao poder daqueles que tive- ça, pressupõe-na. A luta judicial pelos di-
ram poder para transformar determina- reitos é um privilégio daqueles e daque-
das propostas de reforma em aconteci- las cultural e economicamente equipados
mentos históricos. para a batalha judicial, como refere Epp
(1998), é necessário uma estrutura de
Em raríssimas ocasiões esses aconteci- apoio para a mobilização do direito nos
mentos corresponderam aos valores e tribunais: but cases do not arrive in supre-
às expectativas daqueles e daquelas me courts as if by magic … the process by
a quem as reformas de acesso à justiça which individuals make claims about their
têm-se dirigido. Assinalo, neste âmbito, legal rights and pursue lawsuits to defend
duas observações. A primeira é o fato or develop those right is not in any sim-
de os acontecimentos históricos do aces- ple way a direct response to opportunities
so à justiça terem como centro o Estado, provided by constitutional promises or ju-
ignorando que em grande parte do mun- dicial decisions, or to expect arising from
do a história do acesso à justiça tem as popular culture. Legal mobilization also
suas portas abertas pelo pluralismo jurí- depends on resources, and resources for li-
dico, convivendo com e evoluindo a partir tigation depend on a support structure of
de formas de resistência que se podem
rights-advocacy lawyers, rights advocacy
considerar manifestações anárquicas de
organizations, and sources of financing. A
justiça informal. Estes acontecimentos fo-
ampliação do espaço discursivo através
ram deixados de fora de estudos histó-
da utilização dos tribunais na luta pelos
ricos e comparados que simplificaram a
direitos só é um argumento a favor da
história do acesso à justiça na trajetória
legitimidade democrática dos tribunais
da generosidade e escassez dos Estado-
se estiver baseado na evidência de que
providências. A segunda observação é a
é ampla a possibilidade de aceder aos
influência que o estatismo exerce nas vi-
tribunais, o que é uma falácia.
sões competitivas sobre o acesso à justiça
na atualidade. Sendo certo que a rea- Por outro lado, o campo de enunciação
lidade é de incumprimento da promessa do direito pelos tribunais é um clube pri-
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vativo, a emancipação social pedida nos (1994:14-15) quando argumenta que


tribunais e/ou concedida por eles, ainda uma das mais interessantes maneiras de
que seja em nome de todos e todas é pensar a contribuição cultural do direito
enunciada apenas por aqueles e aquelas para os projetos emancipatórios está na
profissionalmente competentes e inves- análise da resistência. Muito embora a
tidos de autoridade para fazê-lo. Esse análise da resistência assente numa mi-
poder de enunciação separa o regime crossociologia que se mostra pessimista
de verdade (Foucault, 1999) do campo em relação a grandes teorias de eman-
jurídico dos regimes de verdade da ação cipação social, especialmente com o co-
social. Ainda que estejamos diante de lapso das pretensões de justiça social em
advogados populares/de causas, o facto favor do capitalismo e de um consenso
é que a atuação profissional que promo- hegemônico neoliberal acerca de um de-
ve a mudança social o faz num papel que terminado conteúdo da democracia, dos
reforça a autoridade do campo jurídico e direitos humanos e do estado de direito,
a separação entre o conflito jurídico e o a esperança de mudança social pode as-
conflito social. sumir uma outra escala, de onde emer-
gem micronarrativas de resistência.
Esta mudança implica uma conversão da
A concorrência pelo monopólio do
acesso aos meios jurídicos herdados do
noção de resistência, antes associada à
passado contribui para fundamentar a consciência e levantes coletivos, para for-
cisão social entre profanos e profissio- mas mais subtis, o que corresponde a um
nais favorecendo o trabalho contínuo mundo pós-foucaltiano em que o poder
de racionalização próprio para au- é capilar e não visível. É a característica
mentar cada vez mais o desvio entre sub-reptícia do poder que confere maior
os veredictos armados do direito e importância aos atos de resistência. Esta
as instituições ingênuas da equidade leitura da resistência não se pode exaurir
e para fazer com que o sistema das numa abordagem contenciosa do conflito
normas jurídicas apareça aos que o enquanto disputa contra o Estado. Trata-
impõem e mesmo, em maior ou menos se de uma malha complexa de poder e
medidas, ao que ele estão sujeitos, contra-poder em que a relação com o
como totalmente independente das Estado é ambígua. Espera-se contrapor a
relações de força que ele sanciona e violência do Estado da mesma maneira
consagra (Bourdieu, 1989:212). que se espera que o Estado se contrapo-
nha às formas de violência difusas. Nesse
Como já tive ocasião de defender, a his- sentido, salienta Merry (1994), fala-se
tória de emancipação social pelos tribu- de resistência contra o direito, resistência
nais padece do afunilamento da posição através do direito, resistência que rede-
institucional do judiciário. O outro lado fine o significado do direito, exercidas
da sobrevalorização da centralidade por movimentos sociais em momentos de
dos tribunais é a opacidade de uma dis- confronto ou de negociação política ou,
cussão sobre o papel constitutivo do di- ainda, por pessoas comuns na condução
reito. A discussão do papel constitutivo do seu dia-a-dia.
do direito adequa-se uma realidade pós- A luta pelo acesso à justiça realiza as-
-moderna de reivindicações de direitos, à sim uma tarefa arqueológica e geoló-
medida em descentra o direito e o poder gica (Santos, 2007b). A dimensão ar-
do Estado. Estou de acordo com Merry queológica identifica as resistências, as
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manifestações do poder, a repressão do nidades de acesso à justiça, em seus di-
Estado, os momentos de confronto e de ferentes desdobramentos, passam a ser
negociação como parte da construção consideradas como indicadores centrais
política de acesso à justiça, recusando o da democratização das comunidades po-
valor histórico de uma narrativa exclusiva líticas, atestando o comprometimento do
dos momentos de expansão do Estado e Estado com a igualdade e com o bem-
do papel dos profissionais protagonistas -estar dos cidadãos. Para a sociologia do
desta expansão. A dimensão geológica direito e dos tribunais, o campo de traba-
faz a prospeção da estrutura de apoio lho aparece claramente delimitado no es-
das causas sociais e a gestão dos recursos tudo das deficiências e das fragilidades
disponíveis, nesta avaliação geológica, o do direito e dos sistemas de justiça, bem
direito do Estado é um artefacto cultural como na discussão das alternativas que
à disposição da luta social. A mudança asseguram o acesso. A este propósito, a
do Estado não tem por objetivo substituir estratégia de acumulação contribui para
o poder estatal por um sonho de poder um estreitamento discursivo do acesso à
equivalente com outros titulares. Por essa justiça. A crítica do direito e do funcio-
razão, a escala de ação do acesso à namento da ordem jurídica é absorvida
justiça dá tanto valor aos direitos como no âmbito de uma engenharia social de
política, dimensão macroestrutural, como reconstrução de sistemas mais acessíveis.
à infrapolítica (Scott, 2000) dos direitos,
procurando estabelecer o diálogo entre Numa proposição direta: quanto mais
os diversos atores e as diferentes escalas acesso à justiça, melhor direito; quanto
de resistência. mais se conhece dos obstáculos que se
colocam ao acesso à justiça, de mais co-
nhecimento se dispõe para aperfeiçoar
CONCLUSÃO a produção e a reprodução do direito.
Numa espiral sem fim, o discurso do aces-
O direito e a justiça como promessas e so à justiça debate-se entre a exposição
o acesso como resposta mantêm-se aco- das fraquezas e dos obstáculos do siste-
modados numa modesta fórmula em que ma de justiça e a discussão de respostas
mais acesso associado a mais direito para o seu fortalecimento. Enquanto as
equivale a mais justiça. Falar de acesso à soluções e políticas de acesso à justiça es-
justiça neste sentido, seria, não só simples, tão permanentemente submetidas ao es-
mas também simplista, permitindo formu- crutínio de um sistema de direitos que se
lar o que denomino estratégia de acu- reproduz como sistema de poder e opres-
mulação entre acesso, direito e justiça: se são, a crítica ao direito é disciplinada
faz falta no acesso deve ser correspon- através das reformas e das soluções para
dido, preferencialmente em abundância, a construção de uma justiça acessível. A
pelo direito e pela justiça. experiência de acesso à justiça é, assim,
A estratégia de acumulação converte o deslocada do presente. A atualidade do
direito e a justiça em duas faces de uma discurso de acesso à justiça é a de uma
mesma moeda que partilham uma única proposta que fracassou no passado, a
fonte de legitimidade, o Estado. A justiça bordo da pretensão de construção de um
rever-se-ia como justiça efetiva enquan- Estado-providência, e de um objetivo a
to justiça oficial do Estado, e o direito alcançar no futuro, em consonância com
rever-se-ia como justo enquanto garantia o progresso civilizacional do direito como
efetiva de direito de acesso. As oportu- meio exclusivo de emancipação social.
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Entre a transgressão das denúncias das cançados, o que consequentemente com-


faltas do direito e a promessa do pro- promete a legitimidade do Estado, se os
gresso do direito e pelo direito como direitos de acesso e o acesso aos direitos
emancipação, o acesso à justiça inscreve- não são efetivos, a justiça não é justa.
-se no âmbito de uma hegemonia discur- Se é certo que a evidência da falta de
siva da falta de acesso à justiça. Se a acesso à justiça apela para sua impor-
desigualdade de acesso ao direito e à tância e necessidade, a polarização ar-
justiça como promoção é inversamente gumentativa entre a defesa do acesso à
proporcional à desigualdade de acesso
justiça e a afirmação da falta de acesso
ao direito e à justiça como repressão, isto
à justiça não se resolve com a escolha de
é, quem mais sofre o impacto da repres-
um dos dois lados. A defesa do acesso
são do direito é quem menos aproveita
à justiça enquanto progresso da justiça
da promoção do direito como bem-estar,
e do direito do Estado extenua a crítica
falar de acesso à justiça e de igualda-
na medida em que ela é integrada no
de perante a lei é afirmar os termos da
movimento de aperfeiçoamento e de am-
sua negação. Reside aqui um segundo as-
pliação do reconhecimento pelo direito.
peto da simplicidade de abordagem do
A denúncia da falta de acesso à justiça
tema do acesso à justiça. Em sociedades
enquanto componente de um sistema jurí-
em que o reforço de utilização do direi-
dico estatal excludente e repressivo, por
to como repressão não é equivalente ao
sua vez, retira o significado das reformas
esforço de promoção do direito como
e das políticas de acesso à justiça, ao de-
bem-estar social, não se fala de acesso à
monstrar a sua ineficácia.
justiça, mas sim da falta de acesso à jus-
tiça. Tanto maior o impacto transgressivo E se as oportunidades de acesso à jus-
da denúncia da falta de acesso, maiores tiça existentes, ainda que limitadas, de-
as expectativas quanto às promessas de sembocarem em resultados socialmente
emancipação social do direito e pelo uso justos, ainda que pontuais? É possível a
do direito. simultaneidade da promessa e da trans-
gressão? A promessa de acesso ao di-
Contraditoriamente, se o sentido atual do
reito e à justiça coabitaria com a crítica
acesso à justiça é a sua ausência, exige
ao modo de reprodução do direito do
que seja feita uma opção entre a trans-
Estado? É possível apostar na transgres-
gressão e a promessa. Caso contrário, as
são para a reformulação das promessas
denúncias presentes da falta de acesso
de acesso à justiça?
ver-se-iam facilmente deglutidas e disten-
didas num horizonte de aperfeiçoamento A meu ver o impacto da promessa e o
infinito do direito e da democratização potencial da transgressão das medidas
dos estados, perdendo a sua atualidade. de acesso à justiça têm que ser investi-
Se o discurso do acesso à justiça está en- gadas a partir do que foi invalidado
carcerado numa estratégia de acumula- como experiência histórica, seja a tra-
ção futura entre acesso, direito e justiça, jetória dos sistemas de acesso à justiça
o discurso da falta de acesso à justiça é dos países periféricos, sejam as experiên-
presente e separa os termos da equação: cias de acesso à justiça daqueles e da-
a reivindicação de mais justiça ressalta quelas para as quais a ideia de acesso
da evidência de menos acesso e menos como assistência social foi pensada, as
direito. Opera-se uma separação entre populações pobres. As condições políti-
oportunidades oferecidas pelo sistema cas e culturais de produção deste texto
jurídico e judiciário e os resultados al- reivindicam assim a noção de co-apren-
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