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Público • Sexta-feira 5 Novembro 2010 • 47

Não foi só o desemprego que derrotou Obama – foi também a agenda sectária dos democratas

A maravilhosa vitalidade da democracia americana

F
ROBYN BECK/AFP
oi apenas a 4 de Agosto deste ano que Ba- Talvez seja altura de quem escreveu tal enormida-
rack Obama convidou o líder da minoria de engolir a caneta. Não por alguns dos candidatos
republicana no Senado para um encon- apoiados pelo Tea Party terem obtido notáveis su-
tro a sós na Casa Branca. Dezoito meses cessos eleitorais, até porque a inaptidão de outros
depois de tomar posse, como notava em roubou aos republicanos algumas vitórias possíveis
artigo de primeira página, na semana passada, o – mas porque candidatos como Rand Paul (Kentucky)
New York Times. Foi um encontro “notável”, escre- e Marco Rubio (Florida) entraram pela porta grande
José via um dos jornais que mais fervorosamente têm no Senado realizando brilhantes discursos de vitória.
Manuel apoiado Obama, “não pelo que nele se disse, mas Vale a pena ouvi-los. Para perceber como é grande a
Fernandes por ter levado tanto tempo a ser marcado”. O diário distância entre a caricatura que é feita do Tea Party
contava depois que, mesmo assim, esse encontro e aquilo que o Tea Party representa.
Extremo só aconteceu depois de líderes republicanos terem Antes do mais, o movimento Tea Party, mesmo
ocidental lembrado a colegas democratas que convinha falar sendo muito heterogéneo e integrando excentrici-
com eles. Pelo menos um deles recordava como era dades como a lunática candidata ao Senado pelo
diferente no tempo de Bill Clinton, um Presidente Delaware, Christine O’Donnell, reflecte antes de
que não teria sido reeleito “se não tivesse trabalhado mais a revolta contra os poderes tidos por excessivos
com os dois lados”. de Washington e do Governo central, assim como
Calculo que não foi por acaso que o New York contra impostos elevados. Não é um movimento
Times resolveu contar este episódio a poucos dias conservador que coloque temas como o aborto ou o
da eleição em que os republicanos conseguiram a casamento gay na agenda (não os vimos nesta cam-
maior reviravolta na composição da Câmara dos Re- panha), antes um movimento que, ao reivindicar-se
presentantes dos últimos 60 anos – foi porque parte da revolta dos comerciantes de Boston contra os
dos problemas de Obama (e parte dos defeitos que impostos britânicos no século XVIII, tem uma base
terá de corrigir) reside na forma sectária como viveu de apoio larga e que inclui muitos democratas. Em
os primeiros dois anos de mandato. Um sectarismo muitos aspectos – como disse Rubio no seu discurso
que, como ontem escrevia a imprensa americana, –, é um movimento também contra a forma como
não conseguiu ultrapassar na sua primeira confe- os republicanos geriram Washington e fizeram au-
rência de imprensa pós-maremoto eleitoral. Pressio- mentar os défices. Miguel Monjardino, num lúcido
nado pelos jornalistas que queriam saber se estava artigo no Expresso sobre este movimento, sublinhou
disposto a aceitar o veredicto dos eleitores sobre O Tea Party é, antes correcta que as sondagens à boca que o Tea Party também se alimenta da consciência
algumas das suas políticas, Obama respondeu que das urnas sobre as motivações do que muitos americanos têm “de que as instituições
não tencionava corrigir um milímetro que fosse a do mais, um movimento voto confirmam. Mas é uma expli- e o sistema político deixaram de funcionar em be-
orientação que tem seguido. Disse mesmo ao repór- cação incompleta, como as mes- nefício do bem comum” – um mal que está longe de
ter do New York Times que iria “continuar” a tentar
contra os poderes mas sondagens comprovam. ser uma exclusividade dos Estados Unidos.
compromissos com os republicanos, “como já tinha excessivos de Washington Os democratas perderam porque E aqui chegamos a um ponto inescapável: a forma
feito no passado” – e sabemos que não o fez. se desfez a coligação que há apenas como o Tea Party canalizou a revolta anti-sistema
Esta faceta de Obama poderá surpreender alguns e do Governo central, dois anos lhes tinha proporcionado de muitos americanos, a forma como promoveu a
dos seus incondicionais adoradores europeus – é assim como contra uma grande vitória e levado muitos sua agenda dentro do sistema e não fora dele, a for-
até provável que os entusiasme. Eles identificam- a antever um longo domínio do par- ma como o sistema acabou por enquadrar muitos
se mais depressa com o Presidente que descreve impostos elevados. E de tido nas instituições de Washing- novos activistas e o que a disputa das eleições, com
os republicanos como “inimigos” do que com o se- ton. As mulheres e os mais velhos as suas vitórias e derrotas, já lhe permitiu apren-
nador que ganhou notoriedade ao proclamar que
revolta contra um sistema viraram-se para os republicanos. der e ensinar, tudo isso junto mostra a vitalidade
“não há uma América democrata e uma América que muitos sentem que Os eleitores independentes migra- da democracia americana. Se nos Estados Unidos
republicana, mas os Estados Unidos da América”. ram em massa para o partido da não existissem eleições primárias e os eleitos não
Esses apoiantes, como se pode ler nas caixas de deixou de funcionar em oposição ao Presidente. Os jovens respondessem directamente perante os eleitores,
comentários da imprensa internacional, acham que benefício do bem comum ficaram em casa. Até nos subúrbios se nos Estados Unidos prevalecesse o sistema de
a onda republicana que varreu os Estados Unidos é da classe média alta e instruída os listas partidárias fechadas, o movimento Tea Party
fruto da ignorância e primitivismo dos americanos democratas perderam. Sobraram, como indefectí- não teria conseguido integrar a revolta no sistema,
brancos da classe média, algo que Obama não diz veis, os negros e, sobretudo, os latinos, suficientes antes promoveria movimentos anti-sistema. O que
preto no branco mas sugere por aproximação: os para evitar desastres maiores em estados como a significa que a democracia americana continua a
democratas perderam as eleições porque o povo Califórnia e o Nevada. ser mais aberta e mais vibrante, capaz de mais fa-
não percebeu “os factos, a ciência e os argumentos” Esta coligação não se desfez apenas porque os ci- cilmente eleger figuras não-ortodoxas e realmente
da Casa Branca, pois o “medo” (?) ter-lhe-ia toldado dadãos estão com medo da situação económica ou, independentes. O povo, em última instância, tem
os espíritos (discurso a um grupo de doadores no como se gosta de escrever por aí, estão “zangados”. sempre uma palavra a dizer e consegue dizê-la.
Massachusetts). Esta coligação desfez-se porque a onda de Obama Jornalista (twitter.com/jmf1957)

N
também tinha sido cavalgada por muitos dos que
a verdade, o que aconteceu foi algo desconfiam do poder de Washington e aquilo que P.S.: No passado mês de Janeiro, quando o Mas-
bem diferente: Barack Obama e os de- o Presidente e o 111.º Congresso lhes deram foi sachusetts elegeu, de forma surpreendente, um
mocratas encabeçados pela speaker sempre mais e mais Washington sob a forma de republicano para o lugar deixado vago por Ted
Nancy Pelosi procuraram tirar parti- mais intervencionismo, mais regulação, mais taxas Kennedy, escrevi nesta coluna, citando Lenny Da-
do da supermaioria de que dispunham e mais défice. Ora, na América, como provavelmen- vis, um antigo conselheiro político de Bill Clinton,
no Congresso para prosseguir uma agenda parti- te em nenhum outro país do mundo, cultiva-se o que se Obama quisesse cumprir o sonho de uma
dária sem compromissos e muito à esquerda dos princípio do “Governo limitado” e desconfia-se “nova política” teria de perceber a mensagem dos
sentimentos da “middle America”. Como notava por regra de todos os avanços da Administração. eleitores, e por isso teria de fazer compromissos,
esta semana o Wall Street Journal, sempre que isso Mesmo quando são feitos em tempos de crise ou de negociar e de procurar plataformas bipartidá-
sucedeu os eleitores revoltaram-se e derrotaram em nome da protecção dos desprotegidos. rias. Agora, que sofreu nova e mais pesada derrota,
os democratas nas eleições seguintes. Foi o que O que nos leva ao Tea Party. pode ser que escute este conselho, até porque ele

N
sucedeu a Lyndon Johnson em 1966 e a Bill Clinton está por fim nas páginas de todos os jornais. Não é
em 1992, que também sofreram pesadas derrotas ão há nada mais popular entre os bem- porém claro, face ao seu comportamento recente,
em eleições semelhantes. pensantes de todo o mundo (incluindo que seja capaz de dar esse passo e tornar-se mais
A explicação mais comum para o desaire eleito- os dos Estados Unidos) do que desquali- pragmático. O que pode colocá-lo em dificuldades,
ral dos democratas – um desaire que começou no ficar o movimento Tea Party como algo pois é bem possível que a saída da actual crise eco-
Congresso mas se estendeu também às eleições para radical, extremista, porventura medieval. nómica não seja tão rápida como foi em 1982 e em
governadores e para as câmaras legislativas de vários Recentemente, o The Guardian descrevia-o mesmo 1994, alturas em que Reagan e esse tal Clinton tam-
Estados – começa sempre por referir a situação eco- como “um movimento cujas estrelas emergentes esta- bém sofreram derrotas pesadas e, depois, partiram
nómica e o elevado desemprego. É uma explicação riam melhor numa prisão ou num asilo de lunáticos”. para a fácil reeleição em 1984 e 1996.

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