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Morte do Pai-de-Santo: implicações e dificuldades para a

continuidade dos terreiros de candomblé


"A morte é, sem dúvida, para todos os grupos e para todas as sociedades, um evento
desestruturante. Não só pela perda das pessoas queridas mas também porque deixa
vago, na estrutura familiar, social, grupal etc., um espaço nem sempre preenchível,
principalmente em termos da relação particular do indivíduo que morre com os outros.
Ainda que seu "lugar" venha a ser ocupado por algum "substituto", o conteúdo das
relações nem sempre - ou quase nunca - pode permanecer inalterado. Para o
candomblé, a morte pode ser bastante mais complexa, especialmente quando se trata
da morte de um chefe de terreiro . As várias mortes de pais-de-santo ocorridas
recentemente e levantam algumas questões sobre esta problemática que devem ser
discutidas e eu gostaria de dar um primeiro impulso a esta discussão.
O primeiro problema diz respeito às questões rituais. No candomblé acredita-se que o
morto, quando ainda recentemente falecido, pode causar perturbações aos vivos, seja
porque se sente ainda ligado aos que amou, seja porque deseja ser ajudado a
desvencilhar-se dos vínculos com o mundo material. Há também a questão de que o
orixá que foi assentado na cabeça do iniciado falecido (e em representações materiais),
deve ser "libertado" para que possa retornar à "energia natural" da qual, na forma de
um orixá particular, era apenas um avatar, uma "qualidade", uma fração. Por este
motivo é realizado o ritual denominado axexê, ou cirrum, que visa "despachar o egun",
isto é, libertar os espírito das relações com o mundo dos vivos e "encaminhá-lo" ao
mundo dos mortos, livrando também o orixá.
A maioria dos adeptos do candomblé não sabe explicar, contudo, o que seja este
"mundo dos mortos". Muitos dizem mesmo que depois da morte não existe nada.
"Morreu, morreu. Acabou". Este desconhecimento, e também um certo "desinteresse"
pelo que se passaria no pós-morte leva o povo-de-santo a pelo menos duas diferentes
atitudes:

1 - A morte e o morto são entregues à religião hegemônica, no caso o catolicismo, que se


encarrega de ritualizá-la através do enterro católico, orações, missa de sétimo dia etc.
Quando se trata de um iaô, os assentamentos costumam ser simplesmente
"despachados" (geralmente jogados num rio ou num cemitério) com cerimônias
menores;
2 - É realizado o axexê, a cerimônia funeral do candomblé, dedicada em geral apenas
aos ebomis que têm filhos-de-santo. Neste caso o ritual se torna imprescindível e é
exigido tanto pelas famílias-de-santo quanto pela comunidade do povo-de-santo em
geral. Estabelece-se assim uma diferenciação das pessoas também diante da morte
causando um certo estranhamento o fato de iniciados não-ebomis não necessitarem do
axexê para libertarem seus orixás e seus vínculos com a família-de-santo. Mas existem
razões para que as coisas se passem assim.

A realização do axexê, uma grande e trabalhosa cerimônia, tem sido reservada apenas
para chefes de terreiro não só pela grande quantidade de vínculos (com seu pai-de-
santo, seus irmãos-de-santo, filhos-de-santo, netos-de-santo, sua família carnal etc.)
que estes mantêm mas também pelos grandes obstáculos que devem ser vencidos antes
de sua efetuação. Um deles é a falta de sacerdotes com conhecimento suficiente para
realizar o axexê. Sendo uma religião mágica, o processo ritual, os detalhes, as
"fórmulas" mágicas são sempre motivo de extremado cuidado, medo e desconfiança.
Qualquer mínimo erro, descuido ou engano pode ser a fonte de grandes desgostos e
problemas. Principalmente quando se lida com o absoluto desconhecido que é a morte.
Assim, poucos são os sacerdotes que se "arriscam" a realizar o axexê, preferindo
entregá-lo aos mais antigos sacerdotes ( QUE EU ACHO CERTO ), mesmo pagando um
alto preço por seus serviços religiosos. Como a realização desta cerimônia tem se
revelado bastante lucrativa, aqueles que a conhecem profundamente têm evitado
ensiná-las até mesmo aos seus próprios filhos-de-santo mantendo, desse modo, o
"monopólio" do conhecimento religioso. Os especialistas em axexê, cobram em média
1000 dólares para realizá-lo. E não é fácil, para os grupos de filhos dos terreiros,
conseguir este dinheiro e até mesmo superar questões como "quem vai realizar o axexê,
de que modo, quando, por quanto etc.", pois a morte do chefe de um terreiro gera
situações gravemente desestruturantes.
Estas situações chegam mesmo a colocar em risco a continuidade da casa-de-santo,
pois surgem muitas dúvidas: quem seria o sacerdote mais indicado para realizar o
axexê? Quem será o novo ou nova chefe do terreiro? A casa continuará e o indivíduo
permanecerá nela, ou fechará (o que é mais comum) e o filho de santo precisará ser
adotado por outra casa, devendo, neste caso, reestruturar toda sua vida religiosa?. Caso
a casa seja extinta, quem adotará os filhos-de-santo do morto, cuidando de seus orixás?
Muita gente, especialmente ogãs e ekedes, fica sem rumo, sem saber o que fazer de sua
vida religiosa:
. Agora que ele morreu, o que é que eu faço? Pra que terreiro eu vou? Vou como ekede?
Mas de quem? Mas não foi ela que me suspendeu!

Além do axexê, que rompe os laços do homem com o orixá e com o mundo dos vivos é
preciso ainda que o filho-de-santo rompa seu laço individual com o morto, através da
cerimônia de "tirar a mão de vume", que consiste em apagar a marca do pai-de-santo
na cabeça do filho, impondo-lhe outra, nova, de um novo pai ou mãe-de-santo. Mas
antes de qualquer outra coisa é preciso realizar o axexê do pai-de-santo, sem o qual
todos os outros procedimentos ficam impedidos. Para tanto, é preciso que haja,
imediatamente após a morte do chefe da casa, a cotização da família-de-santo para
financiar a cerimônia do axexê. Sendo uma soma tão alta (especialmente para o povo-
de-santo, formado por gente pobre em sua maior parte), essa cotização pode
desestruturar a vida financeira dos filhos, que precisam contribuir para que se consiga
pagar o sacerdote que realizará a cerimônia e para a compra do material necessário,
também bastante caro, quase outros mil dólares. Muitas vezes os filhos-de-santo
recorrem a estranhos, clientes do pai-de-santo, vendem móveis, objetos e outras coisas
do terreiro, pedem às lojas de artigos religiosos onde o pai-de-santo comprava material
para sua casa que forneçam pelo menos parte do material, fazem listas, rifas etc. Tudo
isto tem que ser feito em prazo muito curto e nem sempre é possível realizar o axexê no
devido tempo. E os "especialistas" não costumam baixar seus preços. Na melhor das
hipóteses podem parcelar em duas vezes seus honorários. Muitas vezes nem mesmo
permitem que os interessados comprem o material do ritual (encarregando-se eles
próprios disto), temendo que o fornecimento da lista seja um primeiro passo para a
quebra do "segredo".
Vê-se que um problema gera outro. A falta de sacerdotes que conheçam o ritual (poucas
vezes ensinados, sejamos justos) cria um monopólio de "conhecedores" bastante
restrito que, por sua vez põem um preço altíssimo em seus serviços, criando
dificuldades econômicas que poucas vezes podem ser superadas a contento pelos filhos-
de-santo. Com isso, realizam-se cada vez menos axexês e tais especialistas correm o
risco de, a médio prazo, verem seus serviços se tornarem desnecessários com a extinção
desse rito no candomblé, o que parece já estar acontecendo. Talvez estes
"conhecedores", "especialistas", não tenham quem "bata " seu próprio axexê por falta
de quem possa fazê-lo.
Suponhamos, para continuar nosso assunto, que o terreiro consiga passar pelas
dificuldades do axexê. Que consiga realizá-lo . Surge então um outro problema: a
sucessão da chefia da casa de candomblé. As sucessões são geralmente bastante
conflituosas, pois teoricamente vários são os candidatos a ela, mais ainda se a casa tem
muitos ebomis. Na maioria das vezes existem ainda os descendentes carnais também
iniciados que se julgam herdeiros preferenciais. Como a resolução passa pela consulta
ao oráculo dos búzios e esta só pode ser feita depois de realizado o axexê, arma-se uma
rede de problemas pois o tempo passa, os conflitos se definem em facções, acirram-se e
muita gente abandona o terreiro ou briga ferozmente por sua continuidade que passa a
ser, então, muito questionada em função dos conflitos gerados pela morte do líder da
casa. Intromissões de gente de outros terreiros, ligada por vínculos do parentesco
religioso também é bastante comum.
Existe ainda a questão legal. Muitos pais e mães-de-santo paulistas, para usá-los como
exemplo, são pessoas solteiras e sem filhos, portanto sem herdeiros diretos. Com a
morte, seus bens (inclusive o terreno e o prédio onde se instala o terreiro, se este é de
sua propriedade) entram no inventário obrigatório para que seja efetuada a partilha de
bens entre os herdeiros legais como o pai, a mãe, irmãos, sobrinhos etc. Como os chefes
de terreiro costumam manter a propriedade em seu nome (apesar de manterem os
registros dos terreiros como sociedades civis), mais um problema se põe para a
continuidade do terreiro. Porque geralmente os familiares que não fazem parte do
candomblé desejam vender o imóvel, dando fim, desse modo, ao terreiro. É
praticamente impossível ultrapassar este obstáculo.
Penso que o crescimento do candomblé obriga a pensar mais detidamente tais
questões. Os sacerdotes que conhecem o axexê não poderiam (ou deveriam) pensar em
ensiná-lo a seus filhos e outros interessados? Não poderiam diminuir sua ganância
cobrando menos ou então de acordo com as reais possibilidades de custeio dos filhos de
uma casa? Os chefes de terreiro não poderiam indicar em vida seus possíveis
sucessores? Não poderiam registrar o imóvel de uso religioso como bem da Associação,
a fim de retirá-lo do alcance de herdeiros não envolvidos com a religião, garantindo
dessa forma, minimamente, a continuidade de algo por que tanto lutou e viveu?
Apresento ainda mais uma questão: qual o papel das Federações de candomblé nestes
momentos, cruciais para os terreiros? Elas não poderiam minorar os problemas se
mantivessem sacerdotes conhecedores do rito do axexê dispostos a realizar estas
cerimônias, se não gratuitamente, pelo menos por preços mais acessíveis? Para que
servem estas Federações? Qual seu papel junto ao candomblé e aos candomblés. De que
modo aplicam os recursos que têm?

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