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1. Introdução
O Poder Americano é o quarto título de uma série de livros organizada por José Luis Fiori
como parte da coleção Zero à Esquerda, promovida pela Editora Vozes. A tetralogia assinada
pelo professor do Instituto de Economia da UFRJ aponta para a dinâmica da economia política
internacional contemporânea com o propósito de elucidar “espaços e perspectivas” para países
situados na periferia do sistema. Preserva-se, neste sentido, o desafio proposto por Furtado e
Prebisch quanto à necessidade de construção de uma economia política crítica e independente
dos interesses usualmente convergentes das grandes potências.
Seguiu-se Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações, publicado em 1999. Sob este
segundo título, Fiori colecionou textos que exploraram, de maneira comparada, as principais
experiências nacionais de industrialização observadas desde meados do século XIX. Com isso
objetivou-se resgatar, a partir de instrumental analítico braudeliano em longue dureé, o papel
das finanças, do crédito e da moeda, e sua relação com a formação e desenvolvimento dos
Estados Nacionais.
N’O Poder Americano são retomados os temas estudados nos volumes anteriores, na tentativa
de síntese sobre a natureza do poder norte-americano contemporâneo e sobre as estratégias de
afirmação unipolar imperial dos EUA a partir dos anos noventa.
2. O Poder Americano
Para tanto, partiu do “’momento’ lógico e histórico em que o ‘poder político’ se encontra com o
‘mercado’ e recorta as fronteiras dos primeiros ‘estados/economias’ e ‘identidades/interesses’
nacionais” (p. 20). Seguindo-se a análise proposta por F. Braudel, assumiu-se que os mercados
nacionais não emergiram espontaneamente de processos de troca endógenos a cada sociedade
territorial, mas foram resultado de ação do poder político que, através da delimitação de
fronteiras externas, eliminou barreiras internas e deu origem, pelo canal do endividamento
público, ao moderno sistema de crédito. Assim, “o risco dos banqueiros era a derrota dos
príncipes nas suas guerras, mas os seus lucros eram muito mais generosos do que em qualquer
outra aplicação mercantil. Sobretudo porque não se tratava apenas de retornos em dinheiro, se
tratava da conquista de posições monopólicas, no plano comercial e financeiro, ou mesmo na
cobrança de impostos e tributos dentro do território das ‘unidades imperiais’ endividadas”
(p.30).
Ao tomar como ponto de partida a ligação entre os príncipes e os banqueiros, Fiori criou “um
conceito paralelo e simultâneo ao da ‘economia-mundo’, que denomino[u] ‘política-mundo’.
Isto é, pedaços do planeta integrados e unificados por conflitos e guerras quase permanentes”
(p.21). Para Fiori, economia-mundo e política-mundo seriam projeções ortogonais, nas
dimensões da riqueza e do poder, respectivamente, da topologia hierárquica do sistema que
evolui também no tempo e no espaço. Percebidos nos tabuleiros da geoeconomia e da
geopolítica, elites nacionais territorializadas estabeleceriam historicamente entre si relações de
aliança/complementaridade ou de rivalidade/concorrência, entrando nos jogos das trocas e das
guerras em busca de acumulação de poder-riqueza, métrica última da própria hierarquia do
sistema.
Neste contexto, a ‘economia-política-mundo’ foi, a partir dos séculos XIII e XIV, construída
como montagem a partir de diferentes centros de poder (político e econômico) que competiram
por territórios (políticos e econômicos) e, através dos jogos das guerras e das trocas,
promoveram uma “destruição integradora”. Nesse sentido, o “mercantilismo foi o bisturi
utilizado pelos estados territoriais para extrair os ‘mercados nacionais’de dentro da ‘economia-
mundo européia’ do século XVI. E, depois, foi a política utilizada, pelos mesmos estados, para
proteger sua ‘criatura’ contra a concorrência e o ataque dos demais ‘estados-economias
nacionais’ emergentes” (p. 36).
No segundo artigo do livro, O Poder Global dos EUA: formação, expansão, limites, Fiori
procurou caracterizar a experiência dos EUA como prolongamento da expansão do capitalismo
europeu, particularmente da Inglaterra. Neste sentido, esta experiência constituiu-se em
novidade, na medida em que os EUA forjaram o primeiro estado nacional fora do continente
europeu, ainda que não possam ser considerados exceção ao ‘modelo expansivo’ adotado pelas
potências européias desde o século XVI. Para tanto, partiu-se da convergência entre interesses
ingleses e norte-americanos restabelecidos logo após a independência dos segundos e o
enfrentamento pela Inglaterrra, na Europa, com a França.
Após a guerra de trinta e um anos, os EUA emergiram como potência hegemônica em escala
mundial, rivalizando-se com a União soviética através de um clima de guerra que, na realidade,
jamais se realizou. A insegurança criada com a ameaça soviética, por outro lado, permitiu aos
EUA justificarem expressivo subsídio fiscal para desenvolvimento tecnológico e, não menos
importante, consolidar na Europa presença militar e empresarial compatíveis com a hegemonia
que pretendiam exercer no pós-guerra.
Ainda segundo Fiori, a partir da década de oitenta, com a retomada da diplomacia do dólar
forte, a banca norte-americana passou a enquadrar monetariamente as demais economias,
restringindo a liberdade para implementação de projetos nacionais que almejassem modificar
autonomamente a topologia hierárquica do sistema internacional. A liberalização das contas de
capitais, por outro lado, levou ao aumento da instabilidade sistêmica, penalizando as
economias mais frágeis e dependentes.
Com a derrocada das economias russa e japonesa no final dos anos oitenta e início dos anos
noventa, os EUA deslocaram o vetor expansionista para a Ásia Menor, onde a essencialidade
do petróleo como insumo industrial favoreceu naturalmente o encontro da geoeconomia com a
geopolítica.
Neste contexto, para Fiori não há sinais no horizonte de previsibilidade aberto pelo
instrumental analítico desenvolvido para que se afirme, na contemporaneidade dos fatos,
qualquer crise hegemônica ou tampouco a conquista de um poder global pelos Estados Unidos
da América.
Esta parece ser a síntese conclusiva do livro, reforçada por M. C. Tavares e L. G. M. Belluzo
no terceiro artigo, denominado A Mundialização do Capital e a Expansão do Poder
Americano. Neste os autores retomaram a hipótese pós-keynesiana de que as diferentes
estruturas financeiras estão por trás das especificidades dos “modelos” de industrialização. Para
os autores, na atualidade a Rússia militarmente forte, mas depauperada economicamente, não
parece representar ameaça à expansão dos EUA na Ásia. Da mesma maneira, a ausência de
praças financeiras significativas na Índia, apesar do domínio nuclear, igualmente parece excluir
este país do rol de ameaças. Neste contexto, a América Latina, com taxas de crescimento
sistematicamente baixas, estaria fora do núcleo dinâmico do sistema. Pari passu, “a União
Européia figuraria hoje como um enorme estômago às voltas com a digestão dos problemas
acumulados desde a paz de 1919 na sua fronteira oriental e retomados com a desestruturação
da União Soviética” (p.137). Os autores defendem que a ocupação dos territórios econômico e
político da Ásia dependem da forma como a China irá progressivamente se inserir no sistema,
tendo-se como parâmetro crítico a abertura da conta de capitais.
2. Comentários finais
Ainda que na atualidade cada vez menos brasileiros demonstrem sério interesse sobre o que é,
para que serve e para onde vai o Brasil, O Poder Americano constitui-se em registro de uma
geração de intelectuais preocupada com o encaminhamento destas três perguntas. Nesse
sentido, o livro se constitui em referência obrigatória para entender as possibilidades e os
limites para estratégias voltadas para o engrandecimento do Brasil e de seu povo em um
contexto internacional hierarquizado e conflituoso.
Contudo, a despeito da precisão analítica demonstrada nos textos, ao menos uma dimensão
importante nos parece escapar ao organizador na leitura d´O Poder Americano – a importância
da indústria cultural no enquadramento das “mentes e corações” em torno da mitologia da
América. Esta mitologia poderia ser sintetizada em torno da superioridade norte-americana na
construção de uma sociedade baseada na liberdade, na igualdade e na fraternidade. O mito da
realização dos ideais burgueses, por sua vez, esteve condicionado ao desafio enfrentado pela
indústria cultural norte-americana em legitimar as virtudes da economia de mercados e da
democracia dos EUA como espaços reais de ordenamento social e de cerceamento do
totalitarismo político e econômico.
Não nos compete aqui aprofundar o assunto. No entanto, as trajetórias do rádio e da indústria
fonográfica, dos estúdios e distribuidoras de filmes cinematográficos, da imprensa escrita e das
redes nacionais de televisão, não podem ser traduzidas sem que se considere o papel que
desempenharam como envoltória para a construção do mito da superioridade da América e para
a defesa dos propósitos humanistas por detrás das ações públicas internas e externas aos EUA.
Esperamos que a ausência sentida possa ser lida como bom motivo para a edição de novo
volume da série assinada pelo professor J. L. Fiori.
1
Professor adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal Fluminense, Doutor em
Economia pelo IE/UFRJ e Mestre em Administração de Empresas pelo COPPEAD/UFRJ.