Professional Documents
Culture Documents
“Facultativo” (1954)
1
— Perdão, é dia em que se pode ou não descansar, e eu estou com o
expediente atrasado.
— Desce — repetiu o outro, com tédio. — Olha que te encanam se você
começa a virar macaco pela parede acima.
— Mas, e o senhor por que então está vigiando, se é dia de descanso?
— Estou aqui porque a patroa me escaramuçou, dizendo que não quer
vagabundo em casa. Não tenho para onde ir, tá bem?
João Brandão aquiesceu, porque o outro, pelo tom de voz, parecia
disposto a tudo, inclusive a trabalhar de braço, a fim de impedir que ele
trabalhasse de pena. Era como se o vigia lhe dissesse:―Veja bem, está
estragando meu dia. Então não sabe o que quer dizer facultativo?
João pensava saber, mas nesse momento teve a intuição de que o
verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que
delas fazemos. Pensou na Constituição e nos milhares de leis que declaram
obrigatórias milhares de coisas, e essas coisas, na prática, são facultativas ou
inexistentes. Retirou-se, digno, e foi decifrar palavras cruzadas.
“Ciao” (1984)
2
Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por
ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao
desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um
bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu
de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a
industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos,
os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito
universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando
a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do
cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.
Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar
mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não
uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir,
se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna
cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.
Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do
editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes
problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter,
responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece;
dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e
internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que
existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a
crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar
de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos
que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa,
que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte
em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito.
Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se
compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse
pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação,
empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir
neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe
que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do
coletivo.
Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio
Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi
penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe
que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o
desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar metido a besta, julgando
que seus comentários passarão à História”. Ele sabe que não passarão. E daí?
Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras.
Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis décadas.
Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao
jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de
3
jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as
diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada
causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem
feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos
de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se
orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e
o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no
mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo,
alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.
E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele
hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra
escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem
periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar
o seu jardim, pelo menos imaginário.
Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
Rubem Braga
Hoje, pela volta do meio-dia, fui tomar um táxi naquele ponto da Praça
Serzedelo Correia, em Copacabana. Quando me aproximava do ponto notei uma
senhora que estava sentada em um banco, voltada para o jardim; nas
extremidades do banco estavam sentados dois choferes, mas voltados em
posição contraria, de frente para o restaurante da esquina. Enquanto caminhava
em direção a um carro, reparei, de relance, na relance, na senhora. Era bonita e
tinha ar de estrangeira; vestia-se com muita simplicidade, mas seu vestido era
de um linho bom e as sandálias cor de carne me pareceram finas. De longe podia
parecer amiga de um dos motoristas; de perto, apesar da simplicidade de seu
vestido, sentia-se que nada tinha a ver com nenhum dos dois. Só o fato de ter
sentado naquele banco já parecia indicar tratar-se de uma estrangeira, e não sei
por que me veio a idéia de que era uma senhora que nunca viveu no Rio, talvez
estivesse em seu primeiro dia de Rio de Janeiro, entretida em ver as árvores, o
movimento da praça, as crianças que brincavam, as babás que empurravam
carrinhos. Pode parecer exagero que eu tenha sentido isso tudo de relance, mas
a impressão que tive é que ela tinha a pele e cabelos muito bem tratados para
não ser uma senhora rica ou pelo menos de certa posição, deu-me a impressão
de estar fruindo um certo prazer em estar ali, naquele ambiente popular, olhando
as pessoas com um ar simpático e vagamente divertido; foi o que me pareceu
no rápido instante em que nossos olhares se encontraram.
Como o primeiro chofer da fila alegasse que preferia um passageiro para
o centro, pois estava na hora de seu almoço, e os dois carros seguintes não
4
tivessem nenhum chofer aparente, caminhei um pouco para tomar o que estava
em quarto lugar. Tive a impressão de que a senhora se voltara para me olhar.
Quando tomei o carro e fiquei novamente de frente para ela, e enquanto eu
murmurava para o chofer o meu rumo – Ipanema – notei que ela desviava o
olhar; o carro andara apenas alguns metros e, tomado de um pressentimento,
eu disse ao chofer que parasse um instante. Ele obedeceu. Olhei para a senhora,
mas ela havia voltado completamente a cabeça. Mandei tocar, mas enquanto o
velho táxi rolava lentamente ao longo da praia eu fui possuído pela certeza súbita
e insistente de que acabara de ver a primeira mulher do Nunes.
– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse uma vez
um amigo.
– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse outra vez
outro amigo.
Isso aconteceu há alguns anos, em São Paulo, durante os poucos meses
em que trabalhei com o Nunes. Eu conhecera sua segunda mulher, uma morena
bonitinha, suave, quieta – pois ele me convidara duas vezes a jantar em sua
casa. Nunca me falara de sua primeira mulher, nem sequer de seu primeiro
casamento. O Nunes era pessoa de certo destaque em sua profissão e afinal de
contas um homem agradável, embora não brilhante; notei, entretanto, que
sempre que alguém me falava dele era inevitável uma referência à sua primeira
mulher.
Um casal meu amigo, que costumava passar os fins de semana em uma
fazenda, convidou-me certa vez a ir com eles e mais um pequeno grupo. Aceitei,
mas no sábado fui obrigado a telefonar dizendo que não podia ir. Segunda-feira,
o amigo que me convidara me disse:
– Foi pena você não ir. Pegamos um tempo ótimo e o grupo estava
divertido. Quem perguntou muito por você foi a Marissa.
– Quem?
– A primeira mulher do Nunes.
– Mas eu não conheço …
-Sei, mas eu havia dito a ela que você ia. Ela estava muito interessada
em conhecer você.
A essa altura eu já sabia várias coisas a respeito da primeira mulher do
Nunes; que era linda, inteligente, muito interessante, um pouco estranha, judia
italiana, rica, tinha cabelos castanho-claros e olhos verdes e uma pele
maravilhosa – “parece que está sempre fresquinha, saindo do banho”, segundo
a descrição que eu ouvira.
Quando dei de mim eu estava, de maneira mais ingênua, mais tola, mais
veemente, apaixonado pela primeira mulher do Nunes. Devo dizer que nessa
ocasião eu emergia de um caso sentimental arrasador – um caso que mais de
uma vez chegou ao drama e beirou a tragédia e em que eu mesmo,
5
provavelmente, mais de uma vez, passei os limites do ridículo. Eu vivia
sentimentalmente uma hora parda, vazia, feita de tédio e remorso; a lembrança
da história que passara me doía um pouco e me amargava muito. Além disso
minha situação não era boa; alguns amigos achavam – e um teve a franqueza
de me dizer isso, quando bêbado – que eu estava decadente em minha
profissão. Outros diziam que eu estava bebendo demais. Enfim, tempos ruins,
de moral baixa e ainda por cima de pouco dinheiro e pequenas dívidas
mortificantes. Naturalmente eu me distraía com uma ou outra historieta de amor,
mas saía de cada uma ainda mais entediado. A imagem da primeira mulher do
Nunes começou a aparecer-me como a última esperança, a única estrela a
brilhar na minha frente. Esse sentimento era mais ou menos inconsciente, mas
tomei consciência aguda dele quando soube que ela ganhara uma bolsa
esplêndida para passar seis meses nos Estados Unidos. Senti-me como que
roubado, traído pelo governo norte-americano. Mas a notícia veio com um
convite – para o jantar de despedida da primeira mulher do Nunes.
Isso aconteceu há quatro ou cinco anos. Mudei-me de São Paulo, fiz
algumas viagens, resolvi parar mesmo no Rio – e naturalmente me aconteceram
coisas. Nunca mais vi o Nunes. Aliás, nos últimos tempos de nossas relações,
eu me distanciara dele por um absurdo constrangimento, o pudor pueril do que
ele pudesse pensar no dia em que soubesse que entre mim e a sua primeira
mulher… Na realidade nunca houve nada entre nós dois; nunca sequer nos
avistamos. Uma banal gripe me impediu de ir ao jantar de despedida; depois eu
soube que sua bolsa fora prorrogada, depois ouvi alguém dizer que a encontrara
em Paris – enfim, a primeira mulher do Nunes ficou sendo um mito, uma estrela
perdida para sempre em remotos horizontes e que jamais cheguei a avistar.
Talvez fosse mesmo ela que estivesse pousada hoje, pelo meio-dia, na
Praça Serzedelo Correia, simples, linda e tranqüila. Assim era a imagem que eu
fazia dela; e tive a impressão de que seu rápido olhar vagamente cordial e
vagamente irônico tentava me dizer alguma coisa, talvez contivesse uma
espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é você; eu sou Marissa, a primeira
mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos conhecermos jamais…”
Nelson Rodrigues
“A vaca premiada”
Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que o
brasileiro premiado. O inglês, não, nem o francês. Um ou outro recebe qualquer
prêmio com modéstia e tédio. Quando deram a Churchill o Nobel de literatura,
ele nem foi lá. Mandou a mulher e continuou em Londres, tomando o seu uísque
6
e mamando o seu charuto. O francês ou o alemão também reagiria com o mesmo
superior descaro.
A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui, certa vez,
a uma exposição de gado. E o júri, depois de não sei quantas dúvidas atrozes,
chegou a uma conclusão. Vi, transido, quando colocaram no pescoço da vaca a
fitinha e a medalha. Claro que a criança tem uma desvairada imaginação óptica.
Há coisas que só a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve
uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira e selvagem.
7
E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para o faxineiro, a
própria remuneração. Fiz as divagações acima porque assisti, no último sábado,
à entrega dos prêmios do Museu da Imagem e do Som. A cerimônia ia ser
televisada. Disse de mim para mim: — “Vamos ver se o brasileiro mudou”.
Dirá alguém que eram prêmios modestos. Não importa. A vaca já citada
recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com uma medalha, E nasceu nos
seus dentes toda uma espuma; a gratidão escorria-lhe em forma de baba
elástica. Eis o que me perguntava: — como reagiria Oscar Niemeyer?
(Bato estas notas e sou perseguido por uma obsessão pueril e terrível.
Não me sai da cabeça a seguinte cena: — o Otto indo buscar, a nado, o prêmio
8
Nobel.) E, de repente, o ator Sérgio Cardoso diz o nome de Oscar Niemeyer. A
platéia quase veio abaixo. O nome de Pelé foi muito menos aplaudido. E, no
entanto, para o gosto popular, as botinadas estão muito mais próximas do
sublime do que a arquitetura.
[23/1/1968]
9
Luis Fernando Verissimo
“O popular”
10
nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para
a câmara.
O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa
lhe atribui. Alguém que é “socorrido por populares”, outro, menos feliz, que é
linchado por populares... Engano.
Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a
antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo
inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o
Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade
pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas
revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no
chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.
O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu
habitat natural é a margem dos acontecimentos. E - este é o seu maior mistério,
a chave da sua existência - ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular
leva naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para
desvendarem um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular
verdadeiro estará atrás do preso, assistindo a tudo.
11