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Crônicas selecionadas – Drummond, Rubem Braga, Nelson e Verissimo

Carlos Drummond de Andrade

“Facultativo” (1954)

Estatuto dos Funcionários, artigo 240: ―O dia 28 de outubro será


consagrado ao Servidor Público‖(com maiúsculas).
Então é feriado, raciocina o escriturário, que, justamente, tem um
―programa na pauta para essas emergências. Não, responde-lhe o Governo,
que tem o programa de trabalhar; é consagrado, mas não é feriado.
É, não é, e o dia se passou na dureza, sem ponto facultativo. Saberão os
groenlandeses o que seja ponto facultativo? (Os brasileiros sabem.) É descanso
obrigatório, no duro. João Brandão, o de alma virginal, não entendia assim, e lá
um dia em que o Departamento Meteorológico anunciava: ―céu azul, praia,
ponto facultativo‖, não lhe apetecendo a casa nem as atividades lúdicas,
deliberou usar de sua―faculdade‖ de assinar o ponto no Instituto Nacional da
Goiaba, que, como é do domínio público, estuda as causas da inexistência dessa
matéria-prima na composição das goiabadas.
Hoje deve haver menos gente por lá, conjeturou; ótimo, porque assim
trabalho à vontade. Nossas repartições atingiram tal grau de dinamismo e fragor,
que chega a ser desejável o não comparecimento de 90 por cento dos
funcionários, para que os restantes possam, na calma, produzir um bocadinho.
E o inocente João via no ponto facultativo essa virtude de afastar os menos
diligentes, ou os mais futebolísticos, que cediam lugar à turma dos ―caxias‖.
Encontrou cerradas as grandes portas de bronze, ouro e pórfiro, e nenhum
sinal de vida nos arredores. Nenhum — a não ser aquele gato que se lambia à
sombra de um tinhorão. Era, pela naturalidade da pose, o dono do jardim que
orna a fachada do Instituto, mas — sentia-se pela ágata dos olhos — não
possuía as chaves do prédio.
João Brandão tentou forçar as portas, mas as portas mantiveram-se
surdas e nada facultativas. Correu a telefonar de uma confeitaria para a
residência do chefe, mas o chefe pescava em Mangaratiba, jogava pingue-
pongue em Correias, estudava holandês com uma nativa, na Barra da Tijuca; o
certo é que o telefone não respondeu. João decidiu-se a penetrar no edifício
galgando-lhe a fachada e utilizando a vidraça que os serventes sempre deixam
aberta, na previsão de casos como esse, talvez. E começava a fazê-lo, com a
teimosia calma dos Brandões, quando um vigia brotou da grama e puxou-o pela
perna.
— Desce daí, moço. Então não está vendo que é dia de descansar?

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— Perdão, é dia em que se pode ou não descansar, e eu estou com o
expediente atrasado.
— Desce — repetiu o outro, com tédio. — Olha que te encanam se você
começa a virar macaco pela parede acima.
— Mas, e o senhor por que então está vigiando, se é dia de descanso?
— Estou aqui porque a patroa me escaramuçou, dizendo que não quer
vagabundo em casa. Não tenho para onde ir, tá bem?
João Brandão aquiesceu, porque o outro, pelo tom de voz, parecia
disposto a tudo, inclusive a trabalhar de braço, a fim de impedir que ele
trabalhasse de pena. Era como se o vigia lhe dissesse:―Veja bem, está
estragando meu dia. Então não sabe o que quer dizer facultativo?
João pensava saber, mas nesse momento teve a intuição de que o
verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que
delas fazemos. Pensou na Constituição e nos milhares de leis que declaram
obrigatórias milhares de coisas, e essas coisas, na prática, são facultativas ou
inexistentes. Retirou-se, digno, e foi decifrar palavras cruzadas.

“Ciao” (1984)

Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no


andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira
página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e
ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da
redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:
— Sobre o que pretende escrever?
― Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo
e de qualquer outro possível.
O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o
jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte
dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem
assunto, comete as suas croniquices.
Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o
momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na
prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas
oportuno.

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Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por
ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao
desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um
bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu
de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a
industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos,
os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito
universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando
a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do
cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.
Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar
mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não
uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir,
se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna
cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.
Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do
editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes
problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter,
responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece;
dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e
internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que
existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a
crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar
de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos
que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa,
que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte
em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito.
Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se
compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse
pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação,
empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir
neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe
que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do
coletivo.
Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio
Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi
penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe
que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o
desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar metido a besta, julgando
que seus comentários passarão à História”. Ele sabe que não passarão. E daí?
Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras.
Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis décadas.
Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao
jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de

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jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as
diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada
causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem
feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos
de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se
orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e
o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no
mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo,
alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.
E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele
hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra
escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem
periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar
o seu jardim, pelo menos imaginário.
Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.

Rubem Braga

“A primeira mulher do Nunes” (de Ai de ti, Copacabana, 1994)

Hoje, pela volta do meio-dia, fui tomar um táxi naquele ponto da Praça
Serzedelo Correia, em Copacabana. Quando me aproximava do ponto notei uma
senhora que estava sentada em um banco, voltada para o jardim; nas
extremidades do banco estavam sentados dois choferes, mas voltados em
posição contraria, de frente para o restaurante da esquina. Enquanto caminhava
em direção a um carro, reparei, de relance, na relance, na senhora. Era bonita e
tinha ar de estrangeira; vestia-se com muita simplicidade, mas seu vestido era
de um linho bom e as sandálias cor de carne me pareceram finas. De longe podia
parecer amiga de um dos motoristas; de perto, apesar da simplicidade de seu
vestido, sentia-se que nada tinha a ver com nenhum dos dois. Só o fato de ter
sentado naquele banco já parecia indicar tratar-se de uma estrangeira, e não sei
por que me veio a idéia de que era uma senhora que nunca viveu no Rio, talvez
estivesse em seu primeiro dia de Rio de Janeiro, entretida em ver as árvores, o
movimento da praça, as crianças que brincavam, as babás que empurravam
carrinhos. Pode parecer exagero que eu tenha sentido isso tudo de relance, mas
a impressão que tive é que ela tinha a pele e cabelos muito bem tratados para
não ser uma senhora rica ou pelo menos de certa posição, deu-me a impressão
de estar fruindo um certo prazer em estar ali, naquele ambiente popular, olhando
as pessoas com um ar simpático e vagamente divertido; foi o que me pareceu
no rápido instante em que nossos olhares se encontraram.
Como o primeiro chofer da fila alegasse que preferia um passageiro para
o centro, pois estava na hora de seu almoço, e os dois carros seguintes não

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tivessem nenhum chofer aparente, caminhei um pouco para tomar o que estava
em quarto lugar. Tive a impressão de que a senhora se voltara para me olhar.
Quando tomei o carro e fiquei novamente de frente para ela, e enquanto eu
murmurava para o chofer o meu rumo – Ipanema – notei que ela desviava o
olhar; o carro andara apenas alguns metros e, tomado de um pressentimento,
eu disse ao chofer que parasse um instante. Ele obedeceu. Olhei para a senhora,
mas ela havia voltado completamente a cabeça. Mandei tocar, mas enquanto o
velho táxi rolava lentamente ao longo da praia eu fui possuído pela certeza súbita
e insistente de que acabara de ver a primeira mulher do Nunes.
– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse uma vez
um amigo.
– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse outra vez
outro amigo.
Isso aconteceu há alguns anos, em São Paulo, durante os poucos meses
em que trabalhei com o Nunes. Eu conhecera sua segunda mulher, uma morena
bonitinha, suave, quieta – pois ele me convidara duas vezes a jantar em sua
casa. Nunca me falara de sua primeira mulher, nem sequer de seu primeiro
casamento. O Nunes era pessoa de certo destaque em sua profissão e afinal de
contas um homem agradável, embora não brilhante; notei, entretanto, que
sempre que alguém me falava dele era inevitável uma referência à sua primeira
mulher.
Um casal meu amigo, que costumava passar os fins de semana em uma
fazenda, convidou-me certa vez a ir com eles e mais um pequeno grupo. Aceitei,
mas no sábado fui obrigado a telefonar dizendo que não podia ir. Segunda-feira,
o amigo que me convidara me disse:
– Foi pena você não ir. Pegamos um tempo ótimo e o grupo estava
divertido. Quem perguntou muito por você foi a Marissa.
– Quem?
– A primeira mulher do Nunes.
– Mas eu não conheço …
-Sei, mas eu havia dito a ela que você ia. Ela estava muito interessada
em conhecer você.
A essa altura eu já sabia várias coisas a respeito da primeira mulher do
Nunes; que era linda, inteligente, muito interessante, um pouco estranha, judia
italiana, rica, tinha cabelos castanho-claros e olhos verdes e uma pele
maravilhosa – “parece que está sempre fresquinha, saindo do banho”, segundo
a descrição que eu ouvira.
Quando dei de mim eu estava, de maneira mais ingênua, mais tola, mais
veemente, apaixonado pela primeira mulher do Nunes. Devo dizer que nessa
ocasião eu emergia de um caso sentimental arrasador – um caso que mais de
uma vez chegou ao drama e beirou a tragédia e em que eu mesmo,

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provavelmente, mais de uma vez, passei os limites do ridículo. Eu vivia
sentimentalmente uma hora parda, vazia, feita de tédio e remorso; a lembrança
da história que passara me doía um pouco e me amargava muito. Além disso
minha situação não era boa; alguns amigos achavam – e um teve a franqueza
de me dizer isso, quando bêbado – que eu estava decadente em minha
profissão. Outros diziam que eu estava bebendo demais. Enfim, tempos ruins,
de moral baixa e ainda por cima de pouco dinheiro e pequenas dívidas
mortificantes. Naturalmente eu me distraía com uma ou outra historieta de amor,
mas saía de cada uma ainda mais entediado. A imagem da primeira mulher do
Nunes começou a aparecer-me como a última esperança, a única estrela a
brilhar na minha frente. Esse sentimento era mais ou menos inconsciente, mas
tomei consciência aguda dele quando soube que ela ganhara uma bolsa
esplêndida para passar seis meses nos Estados Unidos. Senti-me como que
roubado, traído pelo governo norte-americano. Mas a notícia veio com um
convite – para o jantar de despedida da primeira mulher do Nunes.
Isso aconteceu há quatro ou cinco anos. Mudei-me de São Paulo, fiz
algumas viagens, resolvi parar mesmo no Rio – e naturalmente me aconteceram
coisas. Nunca mais vi o Nunes. Aliás, nos últimos tempos de nossas relações,
eu me distanciara dele por um absurdo constrangimento, o pudor pueril do que
ele pudesse pensar no dia em que soubesse que entre mim e a sua primeira
mulher… Na realidade nunca houve nada entre nós dois; nunca sequer nos
avistamos. Uma banal gripe me impediu de ir ao jantar de despedida; depois eu
soube que sua bolsa fora prorrogada, depois ouvi alguém dizer que a encontrara
em Paris – enfim, a primeira mulher do Nunes ficou sendo um mito, uma estrela
perdida para sempre em remotos horizontes e que jamais cheguei a avistar.
Talvez fosse mesmo ela que estivesse pousada hoje, pelo meio-dia, na
Praça Serzedelo Correia, simples, linda e tranqüila. Assim era a imagem que eu
fazia dela; e tive a impressão de que seu rápido olhar vagamente cordial e
vagamente irônico tentava me dizer alguma coisa, talvez contivesse uma
espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é você; eu sou Marissa, a primeira
mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos conhecermos jamais…”

Nelson Rodrigues

“A vaca premiada”

Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que o
brasileiro premiado. O inglês, não, nem o francês. Um ou outro recebe qualquer
prêmio com modéstia e tédio. Quando deram a Churchill o Nobel de literatura,
ele nem foi lá. Mandou a mulher e continuou em Londres, tomando o seu uísque

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e mamando o seu charuto. O francês ou o alemão também reagiria com o mesmo
superior descaro.

E que faria o brasileiro? Sim, o brasileiro que, de repente, recebesse um


telegrama assim: — “Ganhaste o prêmio Nobel. Gustavo da Suécia”. Pergunto
se algum brasileiro, vivo ou morto, teria a suprema desfaçatez de mandar um
representante, como fez o Churchill? Por exemplo: — o meu amigo Otto Lara
Resende. Se a Academia Sueca, por unanimidade ou sem unanimidade, por
simples maioria, o preferisse.

Semelhante hipótese, que arrisquei ao acaso, já me fascina. O Otto,


prêmio Nobel. Que faria ele? Ou que faria o Jorge Amado? Ou o Érico
Veríssimo? Eis o que eu queria dizer: — qualquer um de nós iria, a nado, buscar
o cheque e a medalha. Nem se pense que faríamos tal esforço natatório por
imodéstia. Pelo contrário. Nenhuma imodéstia e só humildade.

A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui, certa vez,
a uma exposição de gado. E o júri, depois de não sei quantas dúvidas atrozes,
chegou a uma conclusão. Vi, transido, quando colocaram no pescoço da vaca a
fitinha e a medalha. Claro que a criança tem uma desvairada imaginação óptica.
Há coisas que só a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve
uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira e selvagem.

Cabe então a pergunta: — e por que até as vacas brasileiras reagem


assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um de nós carrega um
potencial de santas humilhações hereditárias. Cada geração transmite à
seguinte todas as suas frustrações e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro
tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade:
— não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.

Se não me entenderam, paciência. E tudo nos assombra. Um simples


“bom-dia” já nos gratifica. Nunca me esqueço de minha iniciação jornalística.
Trabalhei num jornal que não pagava. Mas o diretor, um escroque
perfumadíssimo e, insisto, mais cheiroso do que uma cocote, era o gênio do
cumprimento. Não passava por um funcionário sem lhe apertar a mão, e sem lhe
sorrir, e sem lhe piscar o olho.

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E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para o faxineiro, a
própria remuneração. Fiz as divagações acima porque assisti, no último sábado,
à entrega dos prêmios do Museu da Imagem e do Som. A cerimônia ia ser
televisada. Disse de mim para mim: — “Vamos ver se o brasileiro mudou”.

Fiz, preliminarmente, uma breve autocrítica. Eis o que me perguntei: —


“Será que estou frustrado, ressentido, humilhado, de não ser um deles?”. Há
vinte anos, quando comecei minha carreira, queria ter o meu nome no jornal de
qualquer maneira e a qualquer preço. Ah, quantas vezes escrevi sobre mim
mesmo. Assinava com um nome inventado e mandava publicar. E, depois, vinha
perguntar cá fora: — “Conhece esse sujeito? Escreveu sobre mim. Não sei quem
é”. Pois bem: — e comecei a entrar em todos os concursos de peças, de
reportagens, de contos, crônicas, o diabo. Todo mundo era premiado, menos eu.
No primeiro ano, segundo, terceiro, eu estrebuchava de humilhação. Por fim,
veio um doce e compassivo fatalismo. Repito: — “não ser premiado” é o meu
hábito de vinte e tantos anos.

(Minto. Outro dia, recebi no Chacrinha o prêmio de melhor cronista


esportivo de jornal. E a verdade é que reagi como brasileiro. Escolhi o meu
melhor terno, a minha melhor gravata, o meu melhor sapato. Meia hora antes
estava na televisão. Lá encontrei o João Saldanha, também contemplado.
Vagando pelos corredores da TV Globo, à espera da nossa convocação,
tínhamos, os dois, um ar indubitável de prêmio Nobel.)

Volto ao sábado. Sala Cecília Meireles. Como o governo da Guanabara


estava ligado aos prêmios, compareceu o governador Negrão de Lima. Ele, em
pessoa, faria a entrega. E, para maior ênfase do acontecimento, puseram lá uma
banda de música. Um dos premiados era Oscar Niemeyer. Outro: Glauber
Rocha; outro ainda: Pelé.

Dirá alguém que eram prêmios modestos. Não importa. A vaca já citada
recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com uma medalha, E nasceu nos
seus dentes toda uma espuma; a gratidão escorria-lhe em forma de baba
elástica. Eis o que me perguntava: — como reagiria Oscar Niemeyer?

(Bato estas notas e sou perseguido por uma obsessão pueril e terrível.
Não me sai da cabeça a seguinte cena: — o Otto indo buscar, a nado, o prêmio

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Nobel.) E, de repente, o ator Sérgio Cardoso diz o nome de Oscar Niemeyer. A
platéia quase veio abaixo. O nome de Pelé foi muito menos aplaudido. E, no
entanto, para o gosto popular, as botinadas estão muito mais próximas do
sublime do que a arquitetura.

Na minha casa, eu adulava a minha úlcera com pires de leite. E não


entendia mais nada. Por que esse amor súbito e ululante por um arquiteto?
Desde quando a arquitetura teve, no Brasil, um Frank Sinatra? Estava vendo a
hora em que os presentes, de pé, iam berrar como nos comícios do Brigadeiro:
— “Já ganhou! Já ganhou!”. Mas por que essa ovação de Cauby Peixoto? Era a
pergunta que continuava sem resposta.

E, súbito, percebo toda a verdade. Não era o arquiteto, era o gênio. O


povo não gosta das invenções plásticas de Oscar Niemeyer. Abomina. O que o
povo adora é aquele prédio do elixir de Nogueira, ali na Glória, perto do Relógio.
O homem comum entende que a casa feita por Oscar Niemeyer não serve para
dormir, amar, morrer ou simplesmente estar. Não importa. É gênio.

Pouco depois chegou a vez de Glauber. Outra ovação formidável. O


grande público não gosta dos seus filmes, não entende seus filmes. Mas é outro
gênio. Chamam-no de maluco. A figura que tenha essa lenda de insânia fascina
o povo. Lembro-me de um conhecido que foi ver Terra em transe e veio-me dizer,
deslumbrado: — “Não entendi nada”. Estava gratíssimo ao filme e ao seu autor.
O povo desconfia do que entende, desconfia do que gosta. E Glauber Rocha, ao
surgir na sala, era uma figura. A cabeleira mais selvagem do que as cerdas
bravas do javali.

Subiu a escadinha do palco com um passo ágil, elástico, quase alado.


Mas nem Glauber, nem Oscar Niemeyer fizeram a concessão de um sorriso. A
cara do Niemeyer estava fechada, inescrutável, como certas máscaras
cesarianas. (Ah, como o brasileiro precisa ter um gênio à mão. Sim, para apalpá-
lo, farejá-lo. A simples existência de um gênio patrício já nos permite um mínimo
de auto-estima.) E, por fim, o Luís Carlos Barreto, o formidável animador do
Cinema Novo, foi receber o seu. Subindo, disse, à queima-roupa, ao governador:
— “O dinheiro já saiu”. E aí, nessa voracidade jucunda, estava todo o Brasil.

[23/1/1968]

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Luis Fernando Verissimo

“O popular”

Um número recente da Veja trazia fotografias sensacionais das (como


diria um inglês) “incomodações” na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar
prêmio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão
irlandesa do Popular.
É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado
inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado
por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás
dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros,
também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no
tiroteio.
Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado
do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com
algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho
embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra.
Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira.
Nas nossas incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política no
Brasil, o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia
protegidos por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um
embrulho embaixo do braço, examinando as correias de um dos tanques.
Pancadaria na Avenida? Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo,
menos o Popular. O Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série
de cartuns em que o Popular aparecia assistindo ao Descobrimento do Brasil, à
Primeira Missa, ao Grito da Independência, à Proclamação da República...
Sempre com seu embrulho debaixo do braço. E de camisa esporte clara
para fora das calças. (O Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio.
O Popular tropical é muito mais Popular.)
Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido
como o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o
Popular nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é que
fica assistindo à sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os
acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular
fica com as mãos nos bolsos e quase sempre presta mais atenção ao motociclo
dos batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar
momentaneamente com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o
Popular é que fica olhando para o Transeunte.
O Popular não tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão
resolvem ouvir “a opinião de um popular” na rua, sempre se enganam. O Popular

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nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para
a câmara.
O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa
lhe atribui. Alguém que é “socorrido por populares”, outro, menos feliz, que é
linchado por populares... Engano.
Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a
antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo
inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o
Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade
pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas
revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no
chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.
O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu
habitat natural é a margem dos acontecimentos. E - este é o seu maior mistério,
a chave da sua existência - ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular
leva naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para
desvendarem um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular
verdadeiro estará atrás do preso, assistindo a tudo.

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